Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 88/2018-T
Data da decisão: 2018-10-30  IVA  
Valor do pedido: € 81.395,77
Tema: IVA – Compra e venda de bens em segunda mão – Dec.- Lei nº199/96, de 18-10.
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Decisão Arbitral

 

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Prof. Dr.ª Clotilde Palma e Prof. Dr. Carlos Lobo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de Maio de 2018, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A..., LDA. – denominada também, abreviadamente,  “A...” - , contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., n.º..., vem, ao abrigo do disposto no DL 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar pedido de pronuncia arbitral visando a declaração da ilegalidade das liquidações adicionais de 2015 de Imposto sobre o Valor Acrescentado e respectivos juros compensatórios com os n.º com os nº..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., no valor global de 97.085,87 € (noventa e sete mil oitenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), relativas ao ano de 2011, bem como da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa que apresentou.

 

Para além de algumas correções que considerou devidas e que tiveram origem em erros administrativos e de contabilização, a Requerente impugna aquelas liquidações por falta de fundamento e “por deficiente enquadramento legal das situações apontadas.”

 

Os factos são os mesmos que foram considerados provados no processo arbitral nº 168/21017-T – o que a Reclamante aceita - na medida em que aqueles, relativos a IRC, têm reflexo em sede de IVA.

 

Em síntese, as liquidações sob impugnação fundam-se, segundo a demandante, em pretensa omissão de vendas e consequente falta de liquidação de IVA.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-05-2018.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Tendo sido as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23-05-2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.

 

Por despacho de 2 de Julho de 2018 e depois de ponderadas as posições das partes nos articulados e a prova documental, foi dispensada, por inútil, a reunião prevista no artigo 18º, do RJAT e desnecessária a produção de prova testemunhal.

As partes foram ainda notificadas então para apresentarem as suas alegações finais, de facto e de direito, por escrito.

 

2. Saneamento do processo

Este Tribunal arbitral tributário é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não há excepções ou questões prévias a apreciar.

O processo não enferma de nulidades.

 

3. Fundamentação

Matéria de facto

3.1. Factos provados

Com base nos elementos que constam dos autos e do processo administrativo instrutor junto aos autos, bem como nos factos declarados provados no acórdão proferido no sobredito processo do CAAD nº 168/2017-T (publicado em www.caad.org.pt) – e que a Requerente expressamente aceita (cfr artigo 14.º, do PPA) - consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que exercia, em 2011, a título principal, a actividade de leilões para a venda de objectos de arte e antiguidades e, acessoriamente, a compra e revenda dos mesmos objectos e antiguidades em segunda mão;

b) A actividade leiloeira da Requerente, quanto aos bens que vende por conta de particulares, é efectuada nos seguintes termos:

            -           a A... não adquire a propriedade dos bens que coloca em leilão agindo em nome do vendedor;

            -           a A... e o vendedor de um bem vinculam-se entre si mediante a assinatura do respectivo contrato de prestação de serviços;

            -           do contrato de prestação de serviços constam, entre outros, os seguintes elementos: preço mínimo de venda para cada bem; comissão devida pelo vendedor à A...; em caso de venda do bem e o valor recebido pelo comprador, a A... obriga-se a entregar ao vendedor a quantia da venda deduzida da sua comissão e impostos;

            -           o comprador obriga-se a pagar à A... a quantia devida pela compra do bem, ou seja, o montante da arrematação acrescido de uma comissão com IVA incluído à taxa legal;

- Paralelamente, a Requerente procede a compra de bens (quer no mercado nacional, quer em países terceiros) para revenda;

c) Em 2011, a A... realizou 3 leilões, com 3 sessões cada, sendo que, quando os bens são vendidos ao cliente final (comprador) emite uma factura (a que corresponde a série 01) onde indica o valor de adjudicação (que designa por preço de martelo), acrescido de uma comissão que corresponde, em média, a 14% sobre esse preço, com IVA incluído à taxa normal e que corresponde ao valor recebido desse cliente final;

d) Quando uma peça é vendida, a A... emite uma factura (a que corresponde a série 02) ao comitente das vendas em leilão, onde menciona o preço de adjudicação e a respectiva comissão a cobrar a este comitente que corresponde, em média, a 11% sobre esse preço, sendo que o comitente tem direito a receber a diferença entre o preço final e a comissão com IVA incluído à taxa normal;

e) A Requerente regista em sistema informático as entradas das peças e a sua submissão a leilão;

f) A partir do momento em que é realizada a venda em leilão e é emitida a factura (da série 01), o risco do negócio corre exclusivamente pela Requerente, que assume perante o comitente o pagamento da peça transacionada;

f) A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma acção inspectiva à Requerente em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2013... de 14/08/2013 da qual resultaram correcções em sede de IVA e de IRC (já tratado pelo processo n.º 168/2017), referentes ao exercício de 2011.

g) Os Serviços de Inspecção Tributária verificaram as seguintes situações (quanto ao IVA):

- Falta de liquidação de IVA;

- Erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA;

- IVA indevidamente deduzido;

- IVA não liquidado na venda de peças

h) A Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente às consequentes liquidações, tramitada sob o n.º ...2016... ...

i). Reclamação que foi parcialmente deferida - €179,63 -, conforme notificação do respetivo despacho à Requerente em 13/12/2017 (Doc 3, junto com o PPA);

j) No processo arbitral instaurado em 10-3-2017 e que correu termos no CAAD sob o n.º 168/2017-T, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral para declaração de ilegalidade das liquidações de IVA ora sob impugnação, cumulado com o pedido de impugnação de liquidações de IRC (Doc 1, junto com o PPA);

k) Relativamente ao pedido de declaração de ilegalidade das sobreditas liquidações de IVA, foi a demandada AT absolvida da instância, por cumulação indevida de pedidos, por despacho proferido naqueles autos em 2-2-2018 (Doc 2, com o PPA);

l) Os factos que sustentam as correcções efectuadas encontram-se desenvolvidamente explanados no Relatório da acção inspectiva mencionada que se dá aqui por reproduzido e integrado e de que se destaca o seguinte:

i) Capítulo III - Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas

A - IRC - matéria tributável e IVA em falta: rendimentos não reconhecidos na contabilidade, falta de liquidação de IVA e erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA A.1) O sujeito passivo foi notificado pessoalmente, em 13/03/2015, para justificar as divergências existentes entre o montante das comissões (ganhos) que constam das faturas listadas no ficheiro SAFT-PT de faturação e o montante das mesmas reconhecidas na conta contabilística SNC 7211 – Prestações de Serviços/Mercado Nacional. Em resposta apresentada em 13/04/2015, no respetivo ponto 3, o sujeito passivo vem confirmar a falta de reconhecimento na referida conta 7211, do valor de comissões no montante de € 3 593,14, que discrimina nos anexos 3.2. e 3.3. que apresenta na referida resposta.

Pelo exposto, encontra-se em falta de declaração rendimentos sujeitos a IRC, no valor de € 3 593,14, que correspondem a rendimentos omitidos, nos termos do art. 20.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).

(...)

A.2) O sujeito passivo contabilizou a nota de lançamento nº … de 30/04/2011 com o reconhecimento de vários débitos na conta SNC 121- Depósitos à Ordem/B…, por crédito da conta 21111001 - Clientes C/C - Clientes Gerais - Clientes Nacionais - C/C, tendo sido notificado, em 13/03/2015, para justificar os registos efetuados através dessa nota de lançamento e, especificamente, justificar, individual e comprovadamente, os motivos das regularizações efetuadas, bem como as entidades (Nome e NIF) que efetuaram os pagamentos que entraram na conta bancária e a que titulo foram efetuadas.

Em resposta a Requerente refere que quanto aos “débitos por contrapartida da conta SNC 21111001 – Clientes CC: as entradas no banco de meios monetários provenientes de depósito, transferências e TPA, foram consideradas como recebimentos de clientes". Apresenta, ainda, o anexo 22.1. que contém um quadro no qual, relativamente a parte desses débitos, registados na conta 121, se observa que não consegue identificar quem efetuou os pagamentos e qual o respetivo documento justificativo da respetiva entrada na conta bancária.

Assim, foram recebidos na conta bancária titulada pela empresa, valores a seu favor que, não se encontram individualizados em contas de clientes que permitem a sua identificação e a associação ao respetivo documento de ganho (fatura) sendo que, mesmo depois de notificado, não identificou a que titulo foram efetuadas essas entradas e quem as realizou.

Face ao exposto, tais débitos resultam da normal atividade da empresa, ou seja, respeitam a recebimentos de clientes resultantes da sua atividade e que incorporaram a sua esfera patrimonial, sendo, portanto, rendimentos obtidos e que não foram objeto de faturação, num total de € 46 188,03 (...)

(...)

D - IRC - matéria tributável e IVA em falta: omissão de rendimentos e IVA não liquidado na venda de peças

Em 23/12/2011 o sujeito passivo (A…) emitiu as faturas nºs 433, 434, 435 e 436 para o próprio (autofacturação).

As faturas respeitam à venda de peças, num total de preço adjudicado ao cliente final de € 301.715,00, comissões (que o sujeito passivo considerou como comissões do comitente) no valor de € 30.139,46 e IVA liquidado sobre esta comissão de € 6.932,07.

As referidas faturas foram reconhecidas, pelo montante da comissão, a débito da conta SNC 6221-Trabalhos especializados e a crédito da conta SNC 7211- Prestações de Serviços/Mercado nacional. O respetivo IVA liquidado (sobre a comissão) foi reconhecido a débito de uma conta de IVA dedutível e a crédito de uma conta de IVA liquidado, ou seja, estas faturas, contabilística e fiscalmente, tiveram um efeito inócuo.

Da resposta ao quesito 27 da notificação pessoal efectuada em 13/03/2015, no quadro apresentado pelo sujeito passivo em Anexo 27.2, onde consta a identificação de todas as faturas emitidas aos comitentes relativas às peças vendidas em 2011, surgem as referidas faturas n.ºs 433, 434, 435 e 436. Ora, relativamente às peças vendidas, que o sujeito passivo elencou nas referidas faturas, não identificou, portanto, como devia e como era obrigado nos termos dos artigos 9.º a 13.º do Regime Especial (Decreto lei n.º 199/96 de 18 de Outubro) os respectivos comitentes, não se podendo concluir estar subjacente qualquer contrato de comissão de venda (cfr. prevê n.º 1 do art. 9.º e al. e) do art. 2.º do referido Regime Especial). Ainda a referir que, quanto à venda destas peças o sujeito passivo não comprova que as mesmas foram alienadas por conta de (cfr. art. 9.º, n.º 1 do Regime Especial):

“a) qualquer pessoa que não seja sujeito passivo (...)”

b) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este seja isenta de imposto, ao abrigo do n.º 33 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;

c) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este tenha tido por objecto um bem de investimento e seja isenta de imposto ao abrigo do artigo 53.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;

d) De outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão feita por este seja sujeita a imposto nos termos do regime especial de tributação da margem, previsto neste diploma, ou de idêntica regulamentação vigente no Estado membro onde seja efectuada a transmissão. "

Efetivamente, para o sujeito passivo poder aplicar, enquanto organizador de vendas em leilão, o Regime Especial, as transmissões têm que ser efetuadas por conta de um comitente, conforme definido no seu artigo 1.º, o que não sucede com as peças faturadas a si mesmo (ao próprio sujeito passivo), dado não ter sido emitida a fatura aos respectivos comitentes, como deveria acontecer.

Com efeito, convém lembrar que o sujeito passivo utiliza duas séries de faturação: uma para faturas emitidas ao adquirente de bens em leilão (cliente final) e outra (onde constam as faturas em causa, n.ºs 433, 434, 435 e 436) para os comitentes. De acordo com os procedimentos adotados na sua actividade as faturas só são emitidas ao comitente após a emissão das faturas ao adquirente/cliente final, isto é, quando a peça é vendida, pelo que se conclui que as peças que constam das referidas faturas foram todas vendidas. Aliás a este propósito o próprio n.º 2 do art. 9.º do Regime Especial estabelece que: 

“a transmissão dos bens do comitente para o sujeito passivo organizador de vendas em leilão, referida nas alíneas b), c) e d) do número anterior, considerar-se-á efectuada no momento da realização da venda em leilão desses mesmos bens. "

O sujeito passivo, através de e-mail de 05/06/2015, veio afirmar que as peças incluídas nas referidas faturas são peças próprias e que as mesmas originaram faturas de venda emitidas a clientes finais, nas quais calculou comissões e liquidou IVA. Contudo, a contabilidade não revela o registo de inventários de peças próprias ou de peças à consignação, além de que não revela qualquer registo das contas correntes individualizadas de clientes e comitentes.

Assim, relativamente às peças que constam nas faturas em análise não nos foi facultada qualquer outra informação adicional que comprovadamente e inequivocamente identificasse qual a origem e proveniência das mesmas. 

Por último é de salientar que a contabilidade não revela as contas de terceiros que permitam o controlo previsto e exigível no art. 13.º do Regime Especial, que aliás é condição para aplicabilidade do referido regime, e que refere:

" Os organizadores de vendas em leilão que efectuem transmissões de bens nas condições previstas no artigo 9.º são obrigados a registar, em contas de terceiros e devidamente justificados:

a) Os montantes obtidos ou a obter do comprador do bem; e

b) Os montantes reembolsados ou a reembolsar ao comitente.”

Apesar da inexistência destas contas e respectivos registos individualizados, o sujeito passivo foi notificado para apresentar os mesmos nos termos do mencionado art. 13.º tendo apenas, em resposta, apresentado uma listagem das faturas emitidas aos compradores e respectivos valores de venda, comissões e IVA e uma listagem das faturas emitidas aos comitentes, também com os valores de venda, respectivas comissões e IVA. Não apresentou, portanto, as contas correntes de terceiros e as respectivas justificações, designadamente dos montantes obtidos ou a obter dos compradores e dos montantes reembolsados ou a reembolsar aos comitentes.

Em conclusão, verifica-se que não estão reunidas as condições para aplicação do Regime Especial de IVA nas vendas de peças efectuadas que constam nas facturas emitidas pelo sujeito passivo a si mesmo (faturas n.ºs 433 a 436), pelo que será de aplicar o Regime Geral do IVA nestas transmissões, aplicando-se as normas de incidência gerais do CIVA. Estamos, assim perante transmissões de bens e prestações de serviços, sujeitas a IVA nos termos do art. 3.º, 4.º 7.º e 8.º do referido diploma, à taxa normal de 23%, prevista na al. c) do nº 1 do art. 18.º do CIVA. O valor tributável, está determinado nos termos do n.º 1 do art. 16.º do referido Código, nas próprias faturas emitidas n.ºs 433 a 436, que e o valor de venda das peças que consta das mesmas, num total de € 301.715,00.

No que se refere às vendas das peças em causa, verifica-se que o sujeito passivo não procedeu ao registo do respectivo ganho no valor de € 301.715,00, pois, não tendo comprovado a origem e proveniência das mesmas, designadamente quanto aos respetivos comitentes ou eventuais fornecedores, não é de acolher como ganho sujeito a IRC, somente a eventual comissão faturada ao cliente final.

(...)

m) Além da actividade, de vendas em leilão de objectos de arte e antiguidades, a Requerente exerceu, em 2011, de forma acessória a compra para revenda de bens da mesma espécie em segunda mão (com recurso, como canal de venda, aos leilões);

n) A Requerente procedeu à designada “autofacturação” (emissão para si própria das faturas mencionadas no relatório da IT – nºs 433, 434, 435 e 436) para destacar a venda em leilão de peças próprias;

o) A Requerente vendeu peças a clientes finais pelo valor global de adjudicação de 301.715,00 € e as mesmas foram àqueles facturadas;

p) A Requerente exercia, colateralmente à de leiloeira, a actividade de revendedora de peças de arte e antiguidades;

q) No que respeita às aquisições efectuadas a particulares, a Requerente elabora documentos que designa como “declarações de venda”, embora não o tenha feito em relação a todas as aquisições, no valor de € 85.820,62”;

r) Do confronto entre os custos de aquisição e os preços pelos quais os mesmos foram vendidos, resulta que a Requerente obteve uma margem de lucro global de 9.722,35 €, com IVA incluído;

s) No que se refere ao IVA, e considerando que no apuramento da margem não entram as peças vendidas com margem negativa, esta é de 20.760,00 €;

t) Margem essa que, para efeitos de determinação do valor tributável em IVA, face à venda de bens com margem negativa, é de 21.390,24€;

u) Dos 301.715,00 €, contidos nas facturas n.º 433, 434, 435 e 436, a Requerente apenas tem elementos que lhe permitem determinar o preço de compra de objectos vendidos pelo valor global de 181.130,00 € [70.215,00 € + 111.095,00 €].

 

 

3. 2 Factos não provados

Não há outros factos essenciais de entre os alegados pelas partes, provados e/ou não provados.

 

3.3 Motivação da decisão de facto

O quadro factual fixado pelo Tribunal resulta da análise crítica das posições das partes expressas nos respetivos articulados, em conjugação com o processo administrativo instrutor e demais documentos juntos aos autos, bem como do elenco de factos provados fixado no processo arbitral pelo Tribunal constituído no âmbito do CAAD sob o nº 168/2017-T, que teve a adesão das partes.

As liquidações em causa são as que constam dos documentos n.ºs 4 a 11, do PPA.

 

3. Fundamentação (continuação)

 

3.1 Do Direito

Cumpre em especial apurar no caso concreto, face aos factos provados vindos de enunciar se, face à inobservância dos requisitos formais para efeitos de aplicação do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e às Antiguidades (doravante RETBSM), é ou não difícil ou exigível para a Administração Fiscal identificar adequadamente cada entrega de bens e o cumprimento de tais requisitos. Está essencialmente em causa, como se notou no processo 168/2017-T deste Tribunal, a prova da contabilização de transacções correspondentes a quantias recebidas pela Requerente. O sujeito passivo consegue ou não comprovar, face aos documentos em causa, que possui os requisitos necessários para a aplicação do regime da margem em apreço?

Vejamos então.

Para o efeito iremos em linhas gerais analisar as características e funcionamento do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e às Antiguidades, abordando o seu enquadramento ao nível do Direito da UE, do Direito interno e da doutrina e jurisprudência.

3.1.1 Enquadramento no Direito da UE

O Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e às Antiguidades, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de Outubro, consiste num regime especial de tributação que prevê uma forma distinta de apurar o imposto adoptando o denominado regime de tributação pela margem (sublinhado nosso) que corresponde à diferença entre o valor de compra e o valor de venda[1].

 

O aludido diploma procedeu, em matéria de harmonização comunitária, à transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva n.º 94/5/CE, do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1994, relativa à tributação, em IVA, das transmissões de bens em segunda mão, objectos de arte, de colecção e antiguidades, encontrando-se actualmente acolhido  no Capítulo 4 do título XII da denominada Directiva IVA que prevê os regimes especiais aplicáveis aos bens em segunda mão, aos objectos de arte e de colecção e às antiguidades [2]

A subsecção 1 da secção 2 deste capítulo da Directiva IVA estabelece o regime da margem de lucro para os sujeitos passivos revendedores, regulamentado nos respectivos artigos 312.º a 325.º.

O Regime Especial reporta-se a vendas efectuadas pelos sujeitos passivos revendedores em geral, incluindo por organizadores de vendas em leilão. No caso de vendas efectuadas por organizadores de vendas em leilão ocorrerem no âmbito de contratos de comissão de venda com os proprietários dos bens, o Regime Especial define algumas especificidades.

 

O artigo 314.° da Directiva IVA enuncia que “O regime da margem de lucro é aplicável às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por um sujeito passivo revendedor, quando esses bens lhe tenham sido entregues no interior da Comunidade por uma das seguintes pessoas:

a)      Uma pessoa que não seja sujeito passivo;

b)      Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo esteja isenta em conformidade com o artigo 136.°;

c)      Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo beneficie da isenção para as pequenas empresas prevista nos artigos 282.° a 292.° e incida sobre um bem de investimento;

d)      Outro sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido sujeita ao IVA em conformidade com o presente regime especial.

Nos termos do artigo 315.° da Directiva IVA, “O valor tributável das entregas de bens referidas no artigo 314.° é constituído pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, deduzido o montante do IVA correspondente à própria margem de lucro.

A margem de lucro do sujeito passivo revendedor é igual à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o seu preço de compra.”

O artigo 312.° da Directiva contém os conceitos relevantes para efeitos de aplicação do Regime e prescreve o seguinte:

“Artigo 312.°

Para efeitos da presente subsecção, entende‑se por:

1)      “Preço de venda”, tudo o que constitua a contraprestação obtida ou a obter pelo sujeito passivo revendedor do adquirente ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente ligadas à operação, os impostos, direitos, contribuições e taxas, as despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro cobradas pelo sujeito passivo revendedor ao adquirente, com exclusão dos montantes referidos no artigo 79.°;

2)    “Preço de compra”, tudo o que constitua a contraprestação definida no ponto 1), obtida ou a obter do sujeito passivo revendedor pelo seu fornecedor.”

Por último, segundo o artigo 342.° da referida Directiva, “Os Estados‑Membros podem tomar medidas relativas ao direito à dedução do IVA a fim de evitar que os sujeitos passivos revendedores abrangidos por um dos regimes previstos na Secção 2 beneficiem de vantagens injustificadas ou sofram prejuízos injustificados.”

O objectivo do regime da margem de lucro é, como decorre do considerando 51 da Directiva IVA, evitar as duplas tributações e as distorções de concorrência entre sujeitos passivos no domínio dos bens em segunda mão, dos objectos de arte e de colecção e das antiguidades [3].

Tributar pela totalidade do seu preço a entrega de bens em segunda mão, de objectos de arte, de colecção ou de antiguidades por um sujeito passivo revendedor, quando o preço a que este adquiriu esses bens inclui uma quantia de IVA paga a montante por uma pessoa que pertence a uma das categorias identificadas no artigo 314.°, alíneas a) a d), da referida Directiva, e que nem essa pessoa nem o sujeito passivo revendedor puderam deduzir, implicaria, com efeito, uma dupla tributação[4].

Os requisitos que devem ser preenchidos para que um sujeito passivo possa aplicar o regime da margem de lucro estão previstos no aludido artigo 314.°. Este artigo, além de precisar o tipo de bens que um sujeito passivo revendedor pode entregar ao abrigo do regime da margem de lucro, estabelece, nos seus pontos a) a d), a lista de pessoas a quem esse sujeito passivo revendedor se deve dirigir para adquirir esses bens e que lhe permitem, assim, aplicar esse regime especial. Essas várias pessoas têm em comum o facto de não poderem de modo nenhum deduzir o imposto pago a montante no momento da compra desses bens e, por conseguinte, suportaram integralmente esse imposto[5].

Por sua vez, na secção 3 a Directiva acolhe o Regime especial das vendas em leilão, determinando que, “Artigo 333.º 1. Os Estados-Membros podem aplicar um regime especial de tributação da margem de lucro realizada pelos organizadores de vendas em leilão, em conformidade com o disposto na presente secção, no que respeita às entregas de bens em segunda mão, de objectos de arte e de colecção ou de antiguidades efectuadas pelos referidos organizadores, actuando em nome próprio e por conta das pessoas referidas no artigo 334.º, ao abrigo de um contrato de comissão de venda desses bens em leilão.

 

Em conformidade com o consignado, “Artigo 334.º O presente regime especial é aplicável às entregas efectuadas pelos organizadores de vendas em leilão que actuem em nome próprio por conta de uma das seguintes pessoas: a) Uma pessoa que não seja sujeito passivo; b) Outro sujeito passivo, na medida que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo, efectuada ao abrigo de um contrato de comissão de venda, esteja isenta em conformidade com o artigo 136.º; c) Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo, efectuada ao abrigo de um contrato de comissão de venda, beneficie da isenção para as pequenas empresas prevista nos artigos 282.o a 292.o e incida sobre um bem de investimento; d) Um sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo revendedor, efectuada ao abrigo de um contrato de comissão de venda, esteja sujeita ao IVA em conformidade com o regime da margem de lucro.”

 

Quanto ao valor tributável determina-se que, “Artigo 336.º O valor tributável de cada entrega de bens referida na presente secção é constituído pelo montante total facturado ao adquirente, em conformidade com o artigo 339.º, pelo organizador de vendas em leilão, deduzidos os montantes seguintes: a) O montante líquido pago ou a pagar pelo organizador de vendas em leilão ao seu comitente, determinado em conformidade com o artigo 337.º; b) O montante do IVA devido pelo organizador de vendas em leilão pela sua entrega. Artigo 337.º O montante líquido pago ou a pagar pelo organizador de vendas em leilão ao seu comitente é igual à diferença entre o preço de adjudicação do bem em leilão e o montante da comissão obtida ou a obter pelo organizador de vendas em leilão do respectivo comitente, ao abrigo do contrato de comissão de venda.

 

De notar que, nos termos do estatuído, “Artigo 338.º Os organizadores de vendas em leilão que entreguem bens nas condições previstas nos artigos 333.º e 334.º são obrigados a registar na sua contabilidade, em contas de passagem, os seguintes montantes: a) Os montantes obtidos ou a obter do adquirente do bem; b) Os montantes reembolsados ou a reembolsar ao vendedor do bem. Os montantes referidos no primeiro parágrafo devem ser devidamente justificados.”

 

 Por sua vez, determina-se que “Artigo 339.º O organizador de vendas em leilão deve fornecer ao adquirente uma factura que mencione claramente os seguintes elementos: a) O preço de adjudicação do bem; b) Os impostos, direitos, contribuições e taxas; c) As despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro cobradas pelo organizador ao adquirente do bem. A factura emitida pelo organizador de vendas em leilão não pode mencionar separadamente qualquer IVA.”

 

3.1.2 Enquadramento no Direito interno

 

Em termos de incidência objectiva, de acordo com o disposto no artigo 1.º do RETBSM, estão sujeitas a IVA, segundo o regime especial de tributação da margem, as transmissões de bens em segunda mão, de objectos de arte, de colecção e de antiguidades, efectuadas por sujeitos passivos revendedores ou por organizadores de vendas em leilão que actuem em nome próprio, por conta de um comitente, de acordo com um contrato de comissão de venda.

Se no regime geral o imposto é calculado com base no valor da venda, no caso dos bens em segunda mão o cálculo tem por base, como vimos, a margem bruta da venda, de forma a evitar uma dupla tributação.

Para efeitos do presente Regime Especial, entende-se por:

a) Bens em segunda mão - os bens móveis susceptíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação, com exclusão dos objectos de arte, de colecção, das antiguidades, das pedras preciosas e metais preciosos, não se entendendo como tais as moedas ou artefactos daqueles materiais;

b) Objectos de arte, objetos de colecção e antiguidades - os bens mencionados, respetivamente, nos pontos A, B e C da lista em anexo;

c) Sujeito passivo revendedor - o sujeito passivo que, no âmbito da sua actividade, compra, afecta às necessidades da sua empresa ou importa, para revenda, bens em segunda mão, objectos de arte, de colecção ou antiguidades, quer esse sujeito passivo actue por conta própria, quer por conta de outrem nos termos de um contrato de comissão de compra e venda;

d) Organizador de vendas em leilão - um sujeito passivo que, no âmbito da sua actividade económica, proponha a venda de um bem, em seu nome, mas por conta de um comitente, nos termos de um contrato de comissão de venda, com vista à sua adjudicação em leilão;

e) Comitente de um organizador de vendas em leilão - qualquer pessoa que entregue um bem a um organizador de vendas de bens em leilão, nos termos de um contrato de comissão de venda, com vista à sua adjudicação em leilão.

Como se determina no artigo 3.º, n.º1, as transmissões de bens em segunda mão, de objectos de arte, de colecção ou de antiguidades, efectuadas por um sujeito passivo revendedor, são sujeitas ao regime especial de tributação da margem, desde que este tenha adquirido esses bens no interior da União Europeia, em qualquer uma das seguintes condições:

a) A uma pessoa que não seja sujeito passivo;

b) A outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este tenha sido isenta de imposto, ao abrigo do n.º 33 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, ou de disposição legal idêntica vigente no Estado membro onde tiver sido efectuada a transmissão;

c) A outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este tenha tido por objeto um bem de investimento e tenha sido isenta de imposto, ao abrigo do artigo 53.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, ou de disposição legal idêntica vigente no Estado membro onde tiver sido efectuada a transmissão;

d) A outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão dos bens por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido efectuada ao abrigo do disposto neste diploma, ou de regulamentação idêntica vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens tiver sido efectuada.

De acordo com o consignado no n.º 2 da referida disposição legal, os sujeitos passivos revendedores poderão optar pela aplicação do Regime Especial às seguintes transmissões:

a) De objectos de arte, de colecção ou de antiguidades que eles próprios tenham importado;

b) De objectos de arte que tenham sido adquiridos no interior da UE ao seu autor, aos seus herdeiros ou legatários;

c) De objectos de arte que tenham sido adquiridos a um outro sujeito passivo, não revendedor, desde que a transmissão por esse outro sujeito passivo ou a aquisição intracomunitária dos bens pelo sujeito passivo, revendedor, se for caso disso, tenha beneficiado da aplicação da taxa reduzida de imposto prevista nas alíneas c) e e) do artigo 15.º do Regime Especial.

No que concerne ao valor tributável, determina o artigo 4.º o seguinte para os efeitos que por ora nos interessam:

“Artigo 4.º

Valor tributável

1 - O valor tributável das transmissões de bens referidas no artigo anterior, efetuadas pelo sujeito passivo revendedor, é constituído pela diferença, devidamente justificada, entre a contraprestação obtida ou a obter do cliente, determinada nos termos do artigo 16.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, e o preço de compra dos mesmos bens, com inclusão do imposto sobre o valor acrescentado, caso este tenha sido liquidado e venha expresso na fatura ou documento equivalente.

(…)

4 - Quando não for possível determinar exatamente o preço de compra de objetos de arte, considerar-se-á como tributável um valor igual a 50% da contraprestação, determinada nos termos do n.º 1.”[6]

De notar que, em nosso entendimento, o disposto no n.º 4 deste preceito apenas deve ser aplicável quando, como refere, não for possível determinar exatamente o preço de compra de objetos de arte, e não, como pretende, no caso dos autos, a Requerente, quando exista impossibilidade de se determinar o preço de compra dos objectos.

 

Das disposições vindas de citar, conclui-se, pois, que a transposição para a ordem jurídica nacional do Direito da UE se fez em idênticos termos.

Assim, para apuramento do imposto no âmbito deste RETBSM, há que determinar, previamente: (i) A contraprestação obtida ou a obter do cliente, determinada nos termos do artigo 16.º do CIVA; (ii) O preço de compra dos mesmos bens (o valor de compra). Ora, o artigo 16.º do CIVA, além de indicar na sua alínea f) do n.º 2, que o valor tributável é, para "as transmissões de bens em segunda mão (…), efectuadas de acordo com o disposto em legislação especial, a diferença, devidamente justificada, entre o preço de venda e o preço de compra", estabelece também quais são os elementos a incluir, no seu n.º 5, e quais os elementos a excluir, no seu n.º 6.

 

Sempre que as transmissões sejam efectuadas ao abrigo deste regime, não se deve discriminar o imposto na fatura e é obrigatório mencionar “IVA – Bens em segunda mão”.

 

De notar que, para efeitos de cumprimento das obrigações contabilísticas ou de escrituração, o n.º 2 do artigo 6.º consagra a necessidade de os sujeitos  passivos revendedores evidenciarem os elementos que permitam aferir dos requisitos de aplicação do  Regime especial de tributação pela margem a que se refere o n.º 1 do artigo  3.º, bem  como, em caso de opção pelo  referido regime, dos pressupostos indicados no n.º 2 do mesmo artigo  3.º (sublinhado nosso). Além disso, também nos termos do n.º 2 do artigo 6.º, os sujeitos passivos revendedores devem evidenciar os elementos necessários ao cálculo dos preços de compra e de venda dos bens transmitidos, para efeitos do apuramento do valor tributável definido no artigo 4.º.

 

Em relação aos sujeitos passivos revendedores que apliquem, no exercício da respectiva actividade, quer o regime geral de tributação, quer o regime especial da margem de lucro, impõe o n.º 3 do artigo 6.º do Regime Especial que o registo das operações daqueles dois tipos seja feito separadamente.

 

 

Apesar de existir este regime especial de tributação, o revendedor pode optar por liquidar o IVA com base no regime geral. Se o fizer, poderá deduzir o imposto suportado nas aquisições ou nas importações, no momento da venda[7].

 

Em conformidade com o previsto no artigo 9.º, n.º 1, são ainda sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado, segundo o regime especial de tributação da margem previsto neste diploma, as transmissões de bens efectuadas por organizadores de vendas em leilão que actuem em nome próprio, nos termos de um contrato de comissão de venda desses bens em leilão, por conta:

a) De qualquer pessoa que não seja sujeito passivo;

b) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este seja isenta de imposto, ao abrigo do n.º 33 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;

c) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este tenha tido por objeto um bem de investimento e seja isenta de imposto ao abrigo do artigo 53.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;

d) De outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão feita por este seja sujeita a imposto nos termos do regime especial de tributação da margem, previsto neste diploma, ou de idêntica regulamentação vigente no Estado membro onde seja efectuada a transmissão.

O valor tributável das transmissões de bens em segunda mão, de objectos de arte, de coleção ou antiguidades, efectuadas por organizadores de vendas em leilão, de acordo com o disposto no artigo 9.º, é constituído pelo montante facturado ao comprador, nos termos do artigo 12.º, deduzido:

a) O montante líquido pago ou a pagar pelo organizador de vendas em leilão, determinado nos termos do artigo 11.º e

b) O montante do imposto devido pelo organizador de vendas em leilão, relativo à transmissão dos bens (artigo 10.º).  

Em conformidade com o previsto no artigo 11.º, o montante líquido pago ou a pagar pelo organizador de vendas em leilão ao seu comitente é igual à diferença entre:

a) O preço de adjudicação do bem em leilão; e

b) O montante da comissão obtida ou a obter, pelo organizador de vendas em leilão, do respetivo comitente, de acordo com o estabelecido no contrato de comissão de venda.  

Nos termos dos artigos 12.º e 13.º deste Regime Especial, o leiloeiro tem de emitir uma factura ao cliente/comprador, onde conste o preço da adjudicação, os impostos, direitos, contribuições e taxas com exclusão do próprio imposto, as despesas acessórias, tais como embalagens, transporte e seguro, cobradas ao cliente e a menção "IVA - Regime Especial de Venda de Bens em leilão" (sublinhado nosso). Note-se que o leiloeiro não poderá discriminar na factura o IVA que liquidou nos termos deste Regime Especial.

É igualmente obrigação do leiloeiro, em conformidade com as regras previstas no DL nº 199/96 e na Directiva IVA, entregar um relatório ao comitente, onde conste a identificação do comitente e o preço da adjudicação diminuído do montante da comissão.

Este relatório substitui a factura que o comitente, no caso de ser sujeito passivo, deveria passar ao leiloeiro.

Como se esclarece na Informação prestada no Processo n.º 2263, com despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Director – Geral dos Impostos, em 2011-08-03[8]:

“9. Quando os bens em 2ª mão são adquiridos a particulares (as vendas efectuadas por particulares estão fora do campo de incidência do imposto e com tal não sujeitas a IVA), estão os mesmos desobrigados da emissão da respectiva factura ou documento equivalente.

10. Deste modo, quando o adquirente, sujeito passivo do imposto compra bens a particulares, porque tem que documentar as respectivas compras, tem sido entendimento destes Serviços, que pode ser o adquirente a emitir o respectivo documento de compra (revendedor) em substituição do particular, identificando-o, contudo, ou em alternativa, pode ser emitida pelo particular uma declaração de venda, com a identificação do comprador, identificação dos bens e o seu valor.”

 

A transmissão dos bens do comitente para o leiloeiro considerar-se-á efectuada no momento da realização da venda em leilão desses mesmos bens (n.º 2 do artigo 9.º do Regime Especial).

O leiloeiro deverá ainda registar em contas de terceiros os montantes recebidos ou a receber do cliente/comprador e os montantes pagos ou a pagar ao comitente.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 12.º, os organizadores de vendas em leilão, para efeitos do cumprimento das obrigações de facturação previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo  29.º e no artigo  36.º do CIVA, devem emitir  por cada venda uma factura onde  conste o valor de adjudicação, o valor de outros impostos, direitos, contribuições e taxas que eventualmente incidam sobre a operação em causa, bem como as despesas acessórias que sejam cobradas ao cliente, por exemplo, as relativas a comissão, embalagem, transporte ou seguro. Como se estabelece no n.º 2 do mesmo artigo 12.º, a factura deve mencionar a expressão “IVA – Regime especial de venda de bens em leilão”, não podendo, no entanto, conter discriminação do valor do IVA incidente sobre a transmissão de bens.

 

Complementarmente, em conformidade com os n.ºs 3 e 4 do artigo 12.º do Regime Especial, o organizador de vendas em leilão deve fornecer ao comitente um documento por si elaborado em que conste a identificação do comitente, bem como o preço da adjudicação diminuído do montante da comissão. Segundo resulta da parte final do n.º 4 do referido artigo 12.º, o documento a passar pelo leiloeiro ao comitente – que as disposições internas e da UE denominam de “relatório” – substitui a factura que o comitente, no caso de ser também  um sujeito  passivo do IVA, estaria obrigado a passar ao leiloeiro.

 

Como nota Rui Laires, “Do teor desta disposição, parece resultar que o comitente, ainda que se trate de um sujeito passivo do IVA agindo como tal, se encontra dispensado da emissão de factura pela operação assimilada a transmissão bens que efectua ao leiloeiro, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA. Embora de duvidosa razão de ser, tal dispensa não assume directa relevância em matéria de controlo do imposto, uma vez que a submissão ao regime da margem, em face das condições previstas no n.º 1 do artigo 9.º do Regime Especial, tem como pressuposto que a realização da operação assimilada a transmissão de bens, por parte do comitente, não dê lugar à menção em separado de qualquer montante a título de IVA.9

A nível contabilístico, os leiloeiros deverão registar os montantes recebidos ou a receber dos compradores e dos vendedores em contas de terceiros (sublinhado nosso), levando unicamente a comissão auferida à conta de exploração (artigo 13.º).

Nos casos das vendas efetuadas por leiloeiros em que não se verifiquem as condições para aplicação do Regime Especial em causa, nomeadamente, nas vendas de bens não abrangidos pelo Regime Especial ou nos casos em que o leiloeiro vende em nome e por conta de outrem e em que não se verificam os requisitos de aplicação do Regime Especial, são aplicáveis as regras gerais do Código do IVA.

 

3.2 Jurisprudência do TJUE

 

O TJUE já proferiu jurisprudência significativa em que se pronunciou sobre os critérios interpretativos deste Regime.

Assim, no Acórdão de 1 de Abril de 2004, Caso Stenholmen, considerou que na delimitação do seu âmbito deve atender-se à intenção que esteve subjacente à criação do regime. Para tanto, o acórdão invocou especificamente o terceiro e o quinto considerandos da Directiva 94/5/CE, nos quais foi manifestada a intenção de obstar à ocorrência de uma dupla tributação em IVA dos bens a que respeita o regime especial. Por esse motivo, acrescentou o TJUE, o respectivo âmbito de aplicação não tem de ser objecto de uma interpretação restritiva, na medida em que isso desvirtuaria a prossecução dos objectivos visados.

Ou seja, a interpretação das disposições deste Regime especial de tributação não deve estar sujeita, à partida, a um critério particularmente estrito, ao contrário do que sucede, por exemplo, segundo a acepção do TJUE, com as normas que estabelecem as isenções do IVA.

 

Embora se relacionem com a facturação e o exercício do direito à dedução do IVA suportado, cremos que as Conclusões do Advogado-Geral Evgeni Tanchev, apresentadas em 30 de Maio de 2018 no Processo C‑664/16, Caso Lucreţiu Hadrian Vădan, ainda não decidido pelo TJUE, são relevantes e transponíveis para o caso em apreço.

Questionava-se, em particular, se, em circunstâncias em apreço, o direito à dedução do IVA pago a montante previsto na Directiva IVA podia ser recusado por uma autoridade tributária nacional quando o contribuinte não apresentar quaisquer facturas que o comprovem. Assim, uma das questões consistia em saber se a Directiva IVA em geral e, em particular, os seus artigos 167.°, 168.°, 178.°, 179.° e 273.°, bem como o princípio da proporcionalidade e o princípio da neutralidade, podem ser interpretados no sentido de que permitem a um sujeito passivo que preencha os requisitos materiais para a dedução do IVA beneficiar do direito a dedução no caso de, num contexto específico como o do litígio no processo principal, esse sujeito passivo não poder provar, mediante a apresentação de facturas, os montantes anteriormente pagos pelas entregas de bens e pelas prestações dos serviços. Assim, questionava-se em particular se os artigos mencionados devem ser interpretados no sentido de que um sujeito passivo que não conservou as facturas que provam o seu direito à dedução do IVA relativo à entrega de bens ou à prestação de serviços pode fazer prova dessas operações através de um relatório elaborado por peritos designados pelo órgão jurisdicional de reenvio nacional para estimar o valor dos imóveis, tendo em conta o período de tempo considerável já decorrido desde que os edifícios novos em causa foram objeto de transacções.

Como se nota, a factura é um elemento essencial do direito de um sujeito passivo à dedução do IVA pago a montante, nos termos da Directiva IVA (sublinhado nosso). Com efeito, a factura devidamente emitida tem sido classificada como o «título de acesso» ao direito à dedução, dado que tem uma «função de seguro» para a autoridade tributária (sublinhado nosso) nacional ao estabelecer um nexo entre a dedução do imposto pago a montante e o pagamento de imposto.

O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Uma vez que a administração tributária dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transacções em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, requisitos adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito [9].

Porém, a jurisprudência do Tribunal de Justiça admite uma excepção que, conforme se salientou, é relevante para o processo principal. Trata‑se da situação em que a violação das exigências formais tem por efeito impedir a produção da prova do cumprimento das exigências materiais [10].

Ora, na opinião do Governo romeno, isso verifica‑se no processo principal. A falta de facturas ou de outros documentos adequados impede a produção da prova do cumprimento dos requisitos materiais do direito à dedução do imposto pago a montante [11].

O objectivo das menções que devem obrigatoriamente figurar na factura, nos termos do artigo 226.° da Directiva IVA, consiste em permitir às administrações tributárias controlar o pagamento do imposto devido e, se for caso disso, a existência de direito à dedução do IVA (sublinhado nosso). A data da prestação dos serviços objecto da factura permite controlar quando ocorreu o facto gerador e, portanto, determinar as disposições tributárias que devem, de um ponto de vista temporal, aplicar‑se às operações a que respeita o documento [12]. Incumbe ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA provar que preenche os requisitos de elegibilidade para dela beneficiar [13].

O Tribunal de Justiça declarou que o facto de não ter uma contabilidade organizada, que permita a aplicação do IVA e a sua fiscalização pela administração tributária, e a falta de registo das facturas emitidas e pagas são susceptíveis de impedir a exacta cobrança do imposto e, por conseguinte, de comprometer o bom funcionamento do sistema comum do IVA [14].

O Acórdão Reisdorf defende a tese de que os sujeitos passivos, quando já não estejam de posse da factura original, podem apresentar «outras provas concludentes» que demonstrem que existiu efectivamente a transacção que é objecto do pedido de dedução [15]

O Tribunal de Justiça confirmou o direito à dedução do imposto pago a montante em circunstâncias que envolviam diversos tipos de deficiência das facturas. Importa em especial salientar que, todavia, como nota o Advogado Geral, ao que parece, a jurisprudência não se terá ainda debruçado concretamente sobre a questão da ausência total de facturas  ou quaisquer outros documentos justificativos adequados.

Assim, prossegue,

76.      O Acórdão Uszodaépítő (53), por exemplo, versava sobre a alteração do conteúdo das faturas e a apresentação de uma declaração complementar. O Acórdão Polski Trawertyn (54) referia‑se a uma fatura emitida antes do registo e da identificação de uma sociedade para efeitos de IVA, emitida em nome dos futuros sócios da referida sociedade. O Acórdão Idexx Laboratories Italia (55) tinha por objeto uma situação em que o sujeito passivo não tinha inscrito no registo do IVA algumas faturas sujeitas ao regime de autoliquidação (56). No processo Senatex estava em causa a retificação de uma fatura (57).

77.      Nas suas Conclusões no processo Vámos (58), o advogado‑geral N. Wahl observou que «[n]os casos em que o Tribunal de Justiça rejeitou uma abordagem formalista, o objetivo consistia em assegurar que, não obstante o sujeito passivo ter cometido um pequeno erro processual, as operações seriam tributadas tomando em consideração as suas características objetivas […]. Os Estados‑Membros não podem penalizar o não cumprimento rigoroso de requisitos formais de [modo a] comprometer a neutralidade do sistema, por exemplo tratando de modo diferente empresas concorrentes ou privando disposições‑chave da Diretiva IVA do seu efeito útil»(59).

78.      Saliento, além disso, que, nos termos do artigo 242.° da Diretiva IVA, os sujeitos passivos devem manter uma contabilidade suficientemente pormenorizada que permita a aplicação do IVA e o seu controlo pela administração fiscal. O artigo 244.° da mesma diretiva obriga os sujeitos passivos a velar por que sejam armazenadas cópias das faturas emitidas por eles próprios, assim como todas as faturas recebidas. Por força do artigo 250.°, n.° 1, os sujeitos passivos devem apresentar uma declaração de IVA da qual constem todos os dados necessários para o apuramento do montante do imposto exigível (60).

79.      Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça os Estados‑Membros não estão impedidos de tratar como evasão fiscal a falta de contabilidade regular (61).

80.      No processo principal, a inobservância de um requisito formal, como a conservação das faturas, levou à recusa do direito à dedução, dado que o incumprimento impede a prova irrefutável de que as exigências materiais foram observadas (62). Mais que incumprimento de um requisito de forma, existe falta da informação necessária para demonstrar que os requisitos materiais foram satisfeitos (63). Ou, como um advogado‑geral recentemente salientou, é «perfeitamente lógico» recusar o benefício do direito a dedução se a violação das exigências formais «for de tal forma importante que torne impossível ou excessivamente difícil o controlo do preenchimento dos requisitos materiais do direito a dedução» (64).

81.      Assim, o processo principal configura uma das duas exceções ao princípio da prevalência da substância sobre a forma, sendo a outra a participação em evasão fiscal (65).

82.      Por conseguinte, embora não se possa excluir que possam existir circunstâncias em que as exigências materiais para a dedução do imposto pago a montante possam determinar‑se mediante relatórios periciais, na ausência de faturas, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar (66), na minha opinião tais circunstâncias não estão presentes no processo principal.”

Neste contexto, conclui que, nas circunstâncias do processo principal, o princípio da neutralidade fiscal não pode ser legitimamente invocado por um sujeito passivo que pretende pôr em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA, por não manter os registos exigidos nos termos da Directiva IVA durante um longo período.

Termos em que conclui que, “86. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pela Curtea de Apel Alba Iulia (Tribunal de Recurso de Alba Iulia, Roménia) do seguinte modo:

«Nas circunstâncias do processo principal, os artigos 167.°, 168.°, 178.° e 226.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de um sujeito passivo que não tenha conservado as faturas que comprovam o seu direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado relativo à entrega de bens ou à prestação de serviços não pode fazer prova da existência dessas transações mediante um relatório elaborado por peritos designados pelo órgão jurisdicional de reenvio para estimar o valor do material de construção e da mão‑de‑obra relativos à construção dos edifícios, tendo em conta o período de tempo considerável já decorrido desde que os edifícios novos em causa foram transacionados.

Recorde‑se en passant, neste contexto (embora não seja o do caso sub juditio) e apenas para acentuar a necessidade de os Estados serem particularmente exigentes no controlo do direito à dedução do IVA, que o Tribunal de Justiça considerou reiteradamente que os particulares não se podem prevalecer abusiva ou fraudulentamente das normas do Direito da União (Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, Caso Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., Proc. C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.° 43).

O Tribunal de Justiça começou por concluir, no âmbito de jurisprudência constante sobre o direito a dedução do IVA previsto na Directiva IVA, que compete às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício do direito a dedução se se demonstrar, à luz de elementos objectivos, que este direito é invocado fraudulenta ou abusivamente. Em seguida, considerou que a consequência de um abuso ou de uma fraude também está, em princípio, relacionada com o benefício do direito à isenção no âmbito de uma entrega intracomunitária (v., neste sentido, Acórdão de 6 de Setembro de 2012, Caso Mecsek‑Gabona, Proc. C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 54). O Tribunal de Justiça afirmou, por último, que, visto que uma eventual recusa de um direito baseado na Directiva IVA reflecte o princípio geral segundo o qual ninguém deve beneficiar abusiva ou fraudulentamente dos direitos decorrentes do sistema jurídico da União, tal recusa incumbe, em geral, às autoridades e órgãos jurisdicionais nacionais, qualquer que seja o direito em matéria de IVA afectado pela fraude, incluindo, por conseguinte, o direito ao reembolso do IVA (v., neste sentido, Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, Caso Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., Procs. C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.° 46).

Segundo jurisprudência constante, é o que sucede não apenas quando a fraude fiscal é cometida pelo próprio sujeito passivo mas igualmente quando o sujeito passivo sabia ou devia saber que, através da operação em causa, participava numa operação envolvida numa fraude ao IVA cometida pelo fornecedor ou por outro operador interveniente a montante ou a jusante da cadeia de entregas (v., em matéria de direito a dedução, Acórdão de 6 de Dezembro de 2012, Caso Bonik, Proc. C‑285/11, EU:C:2012:774, n.os 38 a 40; em matéria de direito a isenção de uma entrega intracomunitária, Acórdão de 6 de Setembro de 2012, Caso Mecsek‑Gabona, cit., n.° 54; e, em matéria de reembolso do IVA, Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, Caso Schoenimport «Italmoda» Mariano Previti e o., cit., n.os 49 e 50).

Assim, não é contrário ao Direito da União exigir a um operador que aja de boa‑fé e tome todas as medidas razoavelmente exigíveis para se certificar de que a operação que efectua não implica a sua participação numa fraude fiscal (Acórdão de 6 de Setembro de 2012, Caso Mecsek‑Gabona, cit., n.° 48 e jurisprudência referida).

Em contrapartida, não é compatível com o regime do direito à dedução previsto na Directiva IVA recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia nem podia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou que outra operação incluída na cadeia de entregas, anterior ou posterior à realizada pelo referido sujeito passivo, era constitutiva de uma fraude ao IVA. Com efeito, a instituição de um sistema de responsabilidade objectiva ultrapassaria aquilo que é necessário para preservar os direitos do Tesouro Público (Acórdão de 6 de Dezembro de 2012, Caso Bonik, Proc. C‑285/11, EU:C:2012:774, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

Resulta daqui que, mesmo que todos os requisitos materiais de obtenção do direito à isenção do IVA de uma entrega intracomunitária ou a dedução do IVA não estejam preenchidos, o Tribunal de Justiça considerou que o referido direito não pode ser recusado ao sujeito passivo que aja de boa‑fé e tome todas as medidas que lhe podem ser razoavelmente exigidas para se certificar de que a operação que efectua não implica a sua participação numa fraude fiscal (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de Setembro de 2007, Caso Teleos e o., Proc. C‑409/04, EU:C:2007:548, n.° 68, e de 6 de Setembro de 2012, Caso Mecsek‑Gabona, cit., n.os 47 a 50 e 55).

Estas considerações são pertinentes em caso de recusa das autoridades ou dos órgãos jurisdicionais nacionais do direito de aplicar o regime da margem de lucro, previsto no artigo 314.° da Directiva IVA.

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a determinação das medidas que podem, num caso concreto, ser razoavelmente exigidas a um sujeito passivo que pretende exercer um direito conferido pela Directiva IVA para se certificar de que as suas operações não fazem parte de uma fraude cometida por um operador a montante depende essencialmente das circunstâncias do referido caso concreto (Cfr., por analogia, Acórdãos de 21 de Junho de 2012, Caso Mahagében e Dávid, Procs. C‑80/11 e C‑142/11, EU:C:2012:373, n.os 53, 54 e 59, e de 6 de Setembro de 2012, Caso Mecsek‑Gabona, já cit., n.° 53).

Quando existem indícios que permitem suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude, o operador prudente pode, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, ver‑se obrigado a obter informações sobre outro operador a quem pretende adquirir bens ou serviços, para se certificar da fiabilidade desse operador (v., por analogia, Acórdão de 21 de Junho de 2012, Caso Mahagében e Dávid, cit., n.° 60).

Contudo, a administração fiscal não pode exigir de maneira geral que o sujeito passivo que pretende exercer o direito de aplicar o regime da margem de lucro, por um lado, verifique, nomeadamente, que o emitente da factura referente aos bens em função dos quais o exercício deste direito é pedido cumpriu as suas obrigações de declaração e de pagamento do IVA, a fim de se certificar de que não existem irregularidades ou fraude a nível dos operadores a montante, ou, por outro, possua documentos a este respeito (v., por analogia, Acórdão de 21 de Junho de 2012, Caso Mahagében e Dávid, cit., n.° 61).

Com efeito, em princípio, incumbe às autoridades fiscais efetuar as inspecções necessárias junto dos operadores a fim de detetar irregularidades e fraudes ao IVA, bem como aplicar sanções ao operador que cometa essas irregularidades ou essas fraudes (v., por analogia, Acórdão de 21 de Junho de 2012, Caso Mahagében e Dávid, cit., n.° 62).

Tal, porém, não significa que as autoridades fiscais se devam substituir aos contribuintes na prova do cumprimento dos requisitos de tributação especial, como é o caso do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão e/ou pelas leiloeiras.

Na verdade, não demonstrando estes contribuintes o cumprimento dos requisitos formais e substanciais para aplicação do Regime Especial, não resta à Autoridade Tributária outra alternativa que não seja a tributação à luz do regime geral de IVA.

3.3 Subsunção

Como é sabido a factura é um elemento essencial do direito de um sujeito passivo à dedução do IVA pago a montante, nos termos da Directiva IVA. Com efeito e como anteriormente se deixou assinalado, a factura devidamente emitida (sublinhado nosso) tem sido classificada como o «título de acesso» ao direito à dedução, dado que tem uma «função de seguro» para a autoridade tributária nacional ao estabelecer um nexo entre a dedução do imposto pago a montante e o pagamento de imposto.

In casu, conforme resulta do processo inspetivo tributário e não foi infirmado pela demandante, relativamente às peças vendidas, que o sujeito passivo elencou designadamente nas citadas facturas nºs 433,434, 435 e 436, não foram identificados, nos termos dos artigos 9.º a 13.º do Regime Especial (Decreto lei n.º 199/96 de 18 de Outubro), os respectivos comitentes, sendo que não se poderá obviamente presumir a existência de contrato de comissão de venda [cfr. n.º 1 do art. 9.º e al. e) do art. 2.º do referido Regime Especial e 314º, da Directiva IVA].

Ainda a assinalar que, quanto à venda das respectivas peças, o sujeito passivo não comprova que as mesmas tivessem sido alienadas por conta de quaisquer das entidades mencionadas no artigo 9, n.º1, do citado Regime Especial.[16]

Certo que a Requerente, através de e-mail de 05/06/2015, informou a AT que as peças incluídas nas referidas facturas eram peças próprias e que as mesmas originaram facturas de venda emitidas a clientes finais, nas quais calculou comissões e liquidou IVA. Contudo, a contabilidade veio a não evidenciar o registo de inventários de peças próprias ou de peças à consignação, além de igualmente não revelar qualquer registo das contas correntes individualizadas de clientes e comitentes (Cfr Relatório da Inspeção Tributária).

Recorda-se que, para o sujeito passivo poder aplicar, enquanto organizador de vendas em leilão, o Regime Especial, as transmissões têm que ser efectuadas por conta de um comitente, conforme definido no seu artigo 1.º. Ora tal manifestamente não sucede com as peças facturadas à Requerente (o próprio sujeito passivo). Ou seja: não há, no caso, emissão de factura aos respectivos comitentes, como deveria acontecer.

 

Por outro lado, a demandante não alega nem prova ter cumprido a escrituração das transmissões em causa de modo a evidenciar os elementos que permitiriam concluir pela verificação das condições prevista no artigo 3.º e dos elementos determinantes do valor tributável referidos no artigo 4.º, conforme dispõe e impõe o artigo 6.º, n.º2, todos do RETBSM.

 

E se em sede de tributação em IRC existe uma exigência menos acentuada quanto à exclusividade de prova da existência e valor das  de transações através de factura emitida com os requisitos gerais previstos no artigo 36.º, n.º5, do CIVA (e, no caso, com as menções especiais a que alude o RETBSM), em sede de IVA, pelas razões já apontadas,  designadamente pela sua função essencial para o  direito de um sujeito passivo à dedução do IVA pago a montante, nos termos da Directiva IVA ou como  «título de acesso» ao direito à dedução e a sua  «função de seguro» para a autoridade tributária nacional ao estabelecer um nexo entre a dedução do imposto pago a montante e o pagamento de imposto, a situação assume contornos distintos.

Ou seja e concretizando melhor: incumprindo ou negligenciando o contribuinte os deveres impostos, no caso, pelo sobredito Regime Especial de Tributação, não é admissível ou tolerável que tal omissão, no caso concreto, possa ser suprida a posteriori com outros meios de prova, não se afigurando que a Autoridade Tributária, com os elementos em seu poder, pudesse adequadamente escrutinar o cumprimento material pelo contribuinte dos requisitos exigidos para a tributação nos termos que alega.

À luz do exposto e ponderado o quadro factual apurado, conclui-se pela não comprovação da verificação das condições previstas, designadamente nos citados artigos 3.º, 4.º e 6.º, do sobredito Regime Especial de Tributação em IVA dos Bens em Segunda Mão (DL nº 199/96, de 18/10), necessárias para a aplicação do mencionado Regime Especial.

 Por outro lado, não foi igualmente comprovado pela Requerente e sujeito passivo de IVA, a origem e proveniência dos bens objecto das vendas nem identificados os respectivos comitentes, ou mesmo a própria existência de contratos de comissão.

Daqui resulta a total improcedência do pedido por ausência dos vícios apontados quer no despacho que indeferiu a reclamação quer nos atos de liquidação consequentes e sob impugnação.

4. Decisão 

 Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e
  2. Manter na ordem jurídica as liquidações sob impugnação e
  3. Condenar a Requerente nas custas do processo.

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 81.395,77.

6. Custas

Nos termos do art.º 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e são suportadas pela Requerente conforme decisão supra.

  • Notifique-se.

Lisboa, 30 de outubro de 2018

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Árbitro Presidente)

 

Clotilde Celorico Palma

(Árbitra Adjunta)

 

Carlos Lobo

(Árbitro Adjunto)

 



[1] Sobre este Regime veja-se Clotilde Celorico Palma “O regime especial de tributação em IVA dos bens em segunda mão, objectos de arte, colecção e antiguidades”, Fisco n.ºs 82/83, Setembro-Outubro, 1997e Rui Laires, O Iva nas Actividades Culturais, Educativas, Recreativas, Desportivas e de Assistência Médica ou Social, Cadernos Ideff n.º14, Almedina, 2012, pp 391 a 445.

[2] Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro.

[3] Veja-se neste sentido, Acórdão de 3 de Março de 2011, Caso Auto Nikolovi, Proc. C‑203/10, EU:C:2011:118, n.° 47 e jurisprudência referida.

[4] Idem, n.° 48 e jurisprudência referida.

[5] Veja-se, neste sentido, o Acórdão de 19 de Julho de 2012, Caso Bawaria Motors, Proc. C‑160/11, EU:C:2012:492, n.° 37.

[6] O negrito é nosso.

[7] Os procedimentos de cálculo referentes à aplicação do regime da margem às viaturas usadas foram objecto de esclarecimento por parte da Direcção de Serviços do IVA, através do Ofício-Circulado n.º 30012/2000, de 6 de Janeiro, disponível no Portal das Finanças, e que mantém a atualidade (exceto quanto à taxa do imposto).

 

[8]http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/despesa/civa/Documents/INFORMA%C3%87%C3%83O.2263.pdf

[9] Acórdão de 1 de Março de 2012, Caso Polski Trawertyn (Proc. C‑280/10, EU:C:2012:107, n.° 43) Sobre os requisitos das facturas veja-se Clotilde Celorico Palma, “Comentário ao Acórdão do TJUE de 15 de Setembro de 2016, Processo     C‑516/14, Caso Barlis –  A Administração Tributária mais papista que o Papa”,  Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, N.º3, ano IX.3.16.

[10] Acórdãos de 27 de Setembro de 2007, Caso Collée (Proc. C‑146/05, EU:C:2007:549, n.° 31), e de 11 de Dezembro de 2014, Caso Idexx Laboratories Italia (Proc. C‑590/13, EU:C:2014:2429, n.° 39). V. mais recentemente Acórdão de 7 de Março de 2018, Caso Dobre (Proc. C‑159/17, EU:C:2018:161, n.° 35).

[11]  Acórdãos de 12 de Julho de 2012, Caso EMS‑Bulgaria Transport (Proc. C‑284/11, EU:C:2012:458, n.° 71), e de 11 de Dezembro de 2014, Caso Idexx Laboratories Italia, cit, n.° 39.

[12]  Acórdão de 15 de Setembro de 2016, Caso Barlis (Proc. C‑516/14, EU:C:2016:690, n.os 27 e 30).

[13] Idem, n.º46.

[14] Acórdão de 5 de Outubro de 2016, Caso Maya Marinova (Proc. C‑576/15, EU:C:2016:740).

[15] Acórdão de 5 de Dezembro de 1996, Caso Reisdorf (Proc. C‑85/95, EU:C:1996:466, n.° 29).

[16] Isto é,“a) qualquer pessoa que não seja sujeito passivo (...)”b) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este seja isenta de imposto, ao abrigo do n.º 33 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;c) De outro sujeito passivo, desde que a transmissão feita por este tenha tido por objecto um bem de investimento e seja isenta de imposto ao abrigo do artigo 53.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou de idêntica disposição legal vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens seja efectuada;d) De outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão feita por este seja sujeita a imposto nos termos do regime especial de tributação da margem, previsto neste diploma, ou de idêntica regulamentação vigente no Estado membro onde seja efectuada a transmissão. "