Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 557/2022-T
Data da decisão: 2023-05-25  IVA  
Valor do pedido: € 25.072,06
Tema: IVA – Duplicação de coleta, injustiça grave ou notória, revisão oficiosa de atos tributários, art.º 78 LGT.
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SUMÁRIO:

  1. Inexistindo duplicação de coleta, não estão preenchidos os requisitos para recorrer ao instituto de revisão de ato tributário do art.º 78 n.º 6 da LGT.
  2. Verifica-se, igualmente, inexistir injustiça grave ou notória in casu nos termos do art.º 78 n.º 4 da LGT, uma vez que o erro de enquadramento da operação é imputável a comportamento negligente da Requerente.

 

DECISÃO ARBITRAL

A Árbitra do Tribunal Singular, Dra. Raquel Montes Fernandes, designada pelo Conselho Deontológico do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 28.11.2022, decide o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

A..., LDA, contribuinte n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Coimbra, doravante designada por “Requerente”, tendo sido notificada do indeferimento do recurso hierárquico do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de IVA referentes aos períodos 2017/01 a 2018/03, no montante total de € 25.072,06, apresentou, em 20.09.2022, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no art.º 2, n.º 1, alínea e) e art.º 10, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com o art.º 99, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).

 

A Requerente peticiona (i) a declaração de ilegalidade do indeferimento do recurso hierárquico do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de IVA referentes a 2017 e 2018 e (ii) a condenação da AT à restituição das quantias por si pagas ao Estado Português a título de duplicação de coleta, (iii) acrescida de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde as datas dos respetivos pagamentos.      

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os art.ºs 5, n.º 2, alíneas a) e b) e 6, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra singular deste Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 10.11.2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 28.11.2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

A fundamentar o seu pedido, a Requerente apresentou os argumentos que aqui se sumariam:

  1. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é ilegal por se verificar uma clara falta de fundamentação, que conduz a uma errónea qualificação e quantificação dos factos tributários, que igualmente se verifica de per si, bem como dúvida sobre a existência do facto tributário por erro nos pressupostos de facto e de direito, a qual se traduz, a final, numa injustiça grave e notória;
  2. O pedido de revisão oficiosa de atos tributários pode ter por base qualquer ilegalidade e ser efetuado na sequência de uma iniciativa do contribuinte, mesmo após ter transcorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação judicial do ato;
  3. Seja como meio alternativo, seja como meio complementar, o procedimento de revisão do ato tributário não pode deixar de ser visto como forma de correção da tributação ilegal e injusta, atuando um dever de garantia da legalidade e da justiça, que recai sobre a Administração Fiscal;
  4. O caso em apreço configura uma situação de duplicação de coleta, proibida por lei, uma vez que a Requerente pagou duas vezes IVA sobre as mesmas operações materiais e temporais, sendo que os consumidores finais não solicitaram qualquer reembolso;
  5.  A não ser assim, a AT estaria a locupletar-se com um imposto que considera não é devido, numa clamorosa violação dos princípios por que deve pautar a sua atividade, designadamente os da justiça, da razoabilidade, boa-fé e proporcionalidade;
  6. Pelo que, ao decidir pelo indeferimento do pedido de revisão, desde logo, tal decisão constitui um autêntico abuso de direito, querendo a AT “ficar” com um montante que não lhe pertence e o mesmo é dizer “enriquecer” sem causa;
  7. E à AT compete concretizar a revisão dos atos tributários ao abrigo dos princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade;
  8. O Requerente tem um conjunto de documentos que atestam todas as operações em causa e comprovativo do pagamento do imposto à administração fiscal alemã;
  9. O comportamento da AT é tão mais estranho e incompreensível quando relativamente aos anos de 2014, 2015 e 2016, a impugnante foi inspecionada, tendo a realidade dos factos sido apreendida e devolvidos os montantes pagos em Portugal a título de IVA;
  10. Ora, só se entende tal posição da AT na sequência da violação de diversos direitos fundamentais na prolação de decisão de indeferimento do pedido de revisão, mormente os direitos previstos no art.º 60 da LGT;
  11. Por outro lado, a não atenção à prova apresentada e requerida, a falta de investigação não cumpre minimamente os ditames do princípio do inquisitório, que é estruturante no âmbito do procedimento público tributário;
  12. De modo a alcançar a verdade material, é manifesto que, no caso concreto, é necessário ter em consideração a prova documental apresentada e diligenciar pela realização de diligências complementares de prova sucessivamente solicitadas;
  13. Não pode a AT, por um lado, através da sonegação de produção de prova à impugnante, e por outro lado, através da omissão de análise à prova documental carreada aos autos, limitar a produção de prova documental à impugnante como o fez, através de meras presunções, totalmente tiranas, discricionárias, obstinadas, ilusórias, sem qualquer suporte probatório, muito menos legal;
  14. Sem prejuízo, também não houve qualquer fundamentação que permita aferir as razões de facto e de direito que determinaram tal decisão;
  15. E, atendendo que a impugnante juntou documentos comprovativos respeitantes ao pagamento do imposto em Alemanha, ainda assim, se a Administração Tributária Portuguesa ficou com dúvidas sobre a materialidade/veracidade do mesmo, pelo que, deste modo, justificava-se a troca de informações com o Estado Alemão;
  16. In casu, caberia à AT o ónus de ilidir essa presunção de veracidade dos elementos probatórios carreados pelo sujeito passivo, ao procedimento, e impunha à AT que realizasse as diligências previstas a fim de atestar a veracidade/materialidade do pagamento de imposto na Alemanha, que o sujeito passivo declara e comprova ter efetuado, pois, apesar dessa prova, subsistem dúvidas quanto ao imposto pago pelo sujeito passivo nesse país;
  17. Ou seja, a AT, foi negligente, deixou de diligenciar todos os comportamentos que estavam ao seu alcance no sentido de apurar a verdade material;
  18. Neste contexto, e porque a impugnante pretendia provar que a situação tributária era diferente daquela que consta do entendimento da AT, juntou os atinentes meios de prova ao seu dispor, para que pudesse atestar a sua posição, e requereu prova documental complementar, o que foi liminarmente sonegado/vedado pela AT sem qualquer justificação;
  19. Sem prejuízo dessa violação de direitos de participação/audição da impugnante, da prova documental que fez juntar aos autos, resulta, ter a impugnante feito a imprescindível prova da situação tributária, real, diversa daquela que conta da decisão de indeferimento;
  20. Por tudo, previamente, exposto pode concluir-se que estamos perante uma clara falta de fundamentação, no que toca aos fundamentos quanto às regras de determinação da matéria coletável;
  21. Assim, quando é desconhecido o itinerário cognitivo e valorativo seguido pelo autor do ato deve concluir-se que houve preterição de formalidades legais, que se faz equivaler à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato o que vai contra quer este preceito legal, quer o art.º268 da Constituição da República, em termos de se considerar preterida uma formalidade essencial, teremos de concluir que o ato impugnado se encontra claramente desprovido dos elementos de facto e de direito;
  22. Desta forma, dúvidas não subsistem que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa se encontra totalmente desprovida de fundamentação, para além de que tal decisão, volvendo também a todos os fundamentos supra alegados, se traduz numa injustiça grave e notória, que, aliás, “se vê a olho nu”, quando a impugnante é constrangida ao pagamento do mesmo imposto, nos dois países, Portugal e Alemanha, pagando-o em duplicado, como de resto a AT também reconhece, embora não sancione legalmente tal circunstância.

 

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta em 16.01.2023, defendendo por impugnação que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. Na mesma data foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em síntese, a Requerida argumentou o seguinte na sua Resposta:

  1. Não estão reunidos os pressupostos para revisão dos atos de autoliquidação com fundamento em duplicação de coleta, na medida em que o que está em causa nos presentes autos é a aplicação de duas normas distintas pertencentes a ordenamentos jurídicos também distintos do mesmo facto tributário, o que poderia integrar o conceito de dupla tributação internacional, mas não o conceito de duplicação de coleta;
  2. Constata-se, igualmente, não ter sido emitida uma nova liquidação (que não seja uma liquidação adicional) pela AT, que se traduza numa nova exigência de pagamento de imposto já efetuado, sendo diferentes os credores tributários, e sendo diferentes as obrigações tributárias;
  3. In casu, o que está em causa é imposto indevidamente liquidado em Portugal, uma vez que o correspondente IVA seria devido na Alemanha (IVA alemão), não podendo assim ser aplicável o prazo de 4 anos referido no n.º 6 do art.º 78 da LGT para os cenários de duplicação de coleta;
  4. Conclui-se, portanto, existir IVA indevidamente liquidado que, à luz do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA e do n.º 2 do art.º 27 do mesmo diploma, deve ser entregue ao Estado;
  5. A regularização de IVA indevidamente liquidado deve ser efetuada pelo sujeito passivo, ao abrigo das normas previstas no n.º 7 do art.º 29 e no art.º 78 e seguintes, todos do Código do IVA, não cabendo aos Estados devolver montantes de imposto entregues de acordo com as normas legais;
  6. Não existe contradição entre esta decisão da AT e a proferida  no âmbito do processo de revisão oficiosa n.º ...2018... intentado pela Requerente com vista à anulação das autoliquidações de IVA de 2014, 2015 e 2016 (no valor de € 146.533,97) respeitante a IVA indevidamente liquidado na realização de vendas à distância a consumidores finais de nacionalidade francesa, porquanto em ambos os casos se concluiu não haver duplicação de coleta; não obstante, à data dessa (outra) revisão oficiosa ainda estava em vigor o n.º 2 do art.º 78 da LGT, que permitia à AT desencadear a revisão de atos tributários de autoliquidação em 4 anos (dada a presunção aí existente de se tratar de erro imputável aos serviços);
  7. Uma vez que a ficção jurídica do n.º 2 do art.º 78 da LGT foi revogada, e que o erro das autoliquidações resulta de comportamento negligente da Requerente no enquadramento das operações, também não se considera invocável a possibilidade de revisão do n.º 4 do referido art.º 78 que remete para situações de injustiça grave ou notória que não resultem de comportamento negligente dos sujeitos passivos.  

 

Em 26.02.2023 foi proferido despacho arbitral a (i) dispensar a reunião do art.º 18 do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão nos autos é apenas de direito, não tendo sido invocada ou identificada matéria de exceção e a (ii) convidar a Requerente ao aperfeiçoamento do seu articulado. O requerimento de aperfeiçoamento foi apresentado em 28.02.2023.

 

Em 07.03.2023 foi proferido despacho arbitral a convidar as Partes a apresentarem alegações escritas, de facto e de direito, no prazo simultâneo de 15 dias. A Requerida apresentou as suas alegações em 28.03.2023, onde reiterou a sua posição; a Requerente optou por não apresentar alegações.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea b) do CPPT.

 

As Partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

Face ao exposto, importa delimitar a questão a decidir, a qual consiste em determinar se existe duplicação de coleta quanto ao IVA pago pela Requerente à administração fiscal portuguesa, por referência a vendas de bens à distância efetuadas em 2017 e 2018 para cidadãos (consumidores finais) de nacionalidade alemã, as quais foram igualmente sujeitas a imposto naquele país.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial constituída em 04.05.2007 e registada para o exercício da atividade principal de Comércio a Retalho por correspondência ou via internet – CAE 47910, tendo ainda os seguintes CAEs secundários: 46460 (Comércio por grosso de produtos farmacêuticos), 47740 (Comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos em estabelecimentos especializados e 47540 (Comércio a retalho de eletrodomésticos), cfr. págs. 3-4 do pedido de pronúncia arbitral.
  2. Nos exercícios fiscais de 2017 e 2018, a Requerente encontrava-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periocidade mensal (cfr. pág. 4 do pedido de pronúncia arbitral).
  3. Na prossecução do seu objeto comercial, a Requerente realizou online, entre janeiro de 2017 e março de 2018, um conjunto de vendas à distância de bens para consumidores finais alemães, tendo liquidado IVA português sobre tais vendas (cfr. art.º 28 do pedido de pronúncia arbitral).
  4. Nesse período (janeiro de 2017 a março de 2018), a Requerente apresentou as respetivas declarações periódicas de IVA, cujos elementos relevantes se resumem na tabela infra (cfr. fl. 2 do PA):

 

  1. No que respeita ao ano de 2017, a Requerente efetuou vendas de bens à distância para consumidores finais alemães nos seguintes montantes (conforme quadro de fl. 141 do PA que aqui se reproduz):

 

  1. Em concreto, entre 01.01.2017 e 24.10.2017, a Requerente transmitiu bens para consumidores finais alemães num valor superior a € 100.000 (base tributável), tendo, como tal, ultrapassado o limite legal estabelecido pela Alemanha (€ 100.000) para efeitos de localização, no país de destino, das referidas vendas à distância.
  2. Em agosto de 2018, a Requerente nomeou um representante fiscal na Alemanha, com a responsabilidade de liquidação e entrega nesse país do respetivo IVA (alemão), pelo que, a partir dessa data, cessou a liquidação de IVA português nas vendas por si efetuadas a consumidores finais alemães. Sem prejuízo, entre janeiro e agosto de 2018 (i.e., até à nomeação do referido representante fiscal), a Requerente (ainda) liquidou IVA português, no montante de € 20.159,25, conforme quadro infra de fl. 141 do PA:

 

  1. Em janeiro de 2020 a Requerente foi notificada pelas autoridades fiscais alemãs de um procedimento inspetivo, no âmbito do qual lhe foi comunicada a intenção de cobrança de IVA das vendas à distância efetuadas para consumidores finais alemães em 2017 e 2018, nos valores de € 10.521,86 e € 14.550,20, respetivamente (cfr. fl. 13 do PA e Doc. 2 – não traduzido – do RO), por ultrapassagem do limite legal daquele país para efeitos de vendas à distância.
  2. Em março e abril de 2020 a Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IVA emitidas pelas autoridades fiscais alemãs por referência às mencionadas vendas à distância (cfr. fl. 13 do PA e Docs. 3 e 4 – não traduzidos – do RO), as quais foram por esta pagas em 29.04.2020 (cfr. fl. 13 do PA e Docs. 5 e 6 do RO).  
  3. Em 25.05.2020 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa (n.º ...2020...) dos atos de autoliquidação de IVA de 2017 e 2018, nos valores de € 10.521,86 e € 14.550,20 respetivamente (cobrados pelas autoridades fiscais alemãs), com fundamento em duplicação de coleta.
  4. Em 27.04.2021 a Requerente foi notificada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa (conforme fl. 193 e seguintes do PA), uma vez que a AT considerou inexistir uma situação de duplicação de coleta por estar em causa a aplicação, ao mesmo facto tributário, de duas normas distintas pertencentes a ordenamentos jurídicos também distintos.
  5. Em 24.05.2021 a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, o qual foi entretanto indeferido em 27.07.2022 pela Direção de Serviços do IVA (cfr. PA).
  6. Em 20.09.2022 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem a este processo, que tem por objeto imediato o indeferimento do referido recurso hierárquico.

 

  1. Factos não provados

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, ao invés, o dever de (i) selecionar os factos que importam para a decisão e (ii) discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

Os factos foram dados como provados ou não provados com base nos documentos juntos aos autos.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão decidenda

A Requerente imputa à decisão de indeferimento do recurso hierárquico do pedido de revisão oficiosa os seguintes vícios:

  1. Ilegalidade por duplicação de coleta;
  2. Ilegalidade por injustiça grave e notória;
  3. Falta de fundamentação;
  4. Preterição dos direitos do sujeito passivo, por omissão de pronúncia e análise da prova documental disponibilizada pela Requerente, em violação do princípio da proteção da confiança, e por incumprimento do princípio da audiência prévia.

 

  1. Enquadramento jurídico-tributário – Posição do Tribunal

 

B.1) Da duplicação de coleta

 

Determina o n.º 6 do art.º 78 da LGT que a “revisão do ato tributário por motivo de duplicação de coleta pode efetuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos”. Por sua vez, o n.º 1 do art.º 205.º do CPPT esclarece que “[h]averá duplicação de coleta (…) quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo”.

 

Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.06.2022[1], que analisou um caso de duplicação de coleta no âmbito de uma oposição à execução fiscal, a “duplicação de colecta pode configurar-se como o equivalente, no domínio do direito fiscal, ao princípio penal da proibição do "non bis in idem", sendo causa de ilegalidade do acto tributário.

A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta.

Considerada uma heresia dentro do sistema fiscal, a duplicação de colecta implica a verificação de três identidades: do facto, do imposto e do período. Não se exige, contudo, a identidade do contribuinte (cfr.A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.603 e seg.; Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, 8ª.edição, Almedina, 1996, pág.450).

De acordo com a lei (cfr.artº.287, nº.1, do C.P.Tributário; artº.205, do C.P.P.Tributário), a figura jurídico-tributária da duplicação de colecta caracteriza-se pelos seguintes vectores:

1-Unicidade do facto tributário;

2-Identidade da natureza entre a contribuição ou imposto já pago integralmente e o que de novo se pretende cobrar;

3-Coincidência temporal entre a incidência do imposto pago e o que de novo se exige (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/10/78, Acs. Douts., nº.207, pág.391; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 12/07/2006, rec.126/06; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/10/2019, rec.492/16.6BELRA; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Procedimento e de Processo Tributário comentado e anotado, Almedina, 2000, pág.502 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P. Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. Edição, 2011, pág.526 e seg.).

 

Estando em causa vendas de bens à distância para consumidores alemães, importa atentar à redação vigente à data dos factos do n.º 1 do art.º 10 do RITI, a qual dispunha o seguinte:

1 - O disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 6.º do Código do IVA não tem aplicação relativamente à transmissão de bens expedidos ou transportados pelo sujeito passivo ou por sua conta, a partir do território nacional, com destino a um adquirente estabelecido ou domiciliado noutro Estado membro quando se verifiquem, simultaneamente, as seguintes condições:

a) O adquirente não se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias no Estado membro de chegada da expedição ou transporte dos bens ou seja um particular;

b) Os bens não sejam meios de transporte novos, bens a instalar ou montar nos termos do n.º 1 do artigo 9.º nem bens sujeitos a impostos especiais de consumo;

c) O valor global, líquido do imposto sobre o valor acrescentado, das transmissões de bens efectuadas no ano civil anterior ou no ano civil em curso tenha excedido o montante a partir do qual são sujeitas a tributação no Estado membro de destino.

 

Conforme referido supra, o limite legalmente estabelecido pela Alemanha para efeitos de vendas à distância de € 100.000 (excluindo IVA) foi, de acordo com as autoridades fiscais alemãs, ultrapassado em 24.10.2017. Neste sentido, a partir dessa data, tais vendas deveriam, de acordo com a (então vigente) alínea c) do n.º 1 do art.º 10 do RITI, ter sido sujeitas a tributação no país de destino (Alemanha) e não no país de origem ou expedição (Portugal). Não obstante, tal apenas veio a suceder a partir de setembro de 2018, com a nomeação pela Requerente de um representante fiscal local. Em consequência, o incumprimento do disposto na referida norma originou, entre 26.10.2017 e 31.08.2018, a liquidação indevida de IVA português em vendas de bens a consumidores finais alemães.

 

Uma vez que as autoridades fiscais alemãs liquidaram o IVA considerado devido naquele país nas vendas de bens entre janeiro 2017 e agosto 2018, a Requerente solicitou à AT a restituição desses montantes, a saber, € 10.521,86 referente a 2017 (correspondente a € 9.574,86 + juros) e € 14.550,20 referente a 2018, num total de € 25.072,06 (valor deste processo arbitral). Alega, assim, a Requerente existir duplicação de coleta in casu, porquanto “pagou duas vezes IVA sobre as mesmas operações materiais e temporais, sendo que os consumidores finais não solicitaram qualquer reembolso” (art.º 32 do pedido pronúncia arbitral). Como tal, apelida de abuso de direito a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, que não lhe reconhece o direito a tal reembolso.

 

No caso em apreço nos autos, apesar de estarmos perante o mesmo tipo de tributo (IVA) e de existir uma coincidência temporal entre os montantes de imposto devidos em Portugal e na Alemanha, não nos encontramos perante o mesmo facto tributário. De facto, o que está em causa nos presentes autos é, por um lado, IVA indevidamente liquidado em Portugal e, por outro, IVA alemão legalmente devido pela venda de bens a consumidores finais alemães.

 

Determina o art.º 203 da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006 (“Diretiva IVA”) que o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura, ainda que esse imposto tenha sido indevidamente mencionado (e indevidamente liquidado, como no caso em apreço). Esta norma foi transposta para o ordenamento jurídico nacional pela alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA.

 

Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11.01.2023, proferido no processo 0538/14.2BECBR, onde se discutiu a noção de sujeito passivo do IVA, “a jurisprudência dos tribunais tributários portugueses, superiores, destacadamente do STA, já, afirmou (Cf., entre outros, acórdão de 27 de janeiro de 2016, processo n.º 0807/15 (convocado pela sentença recorrida).) e não encontramos motivos (particularmente, como veremos de seguida, os coligidos pelo rte) para não continuar a entender/defender, em função do estatuído no art. 2.º n.º 1 al. c) do CIVA (Cuja redação, na atualidade, é igual à vigente no ano de 2013.), que “de acordo com esta disposição legal, a simples menção do IVA nos referenciados documentos, mesmo que porventura descabida, por não haver lugar ao mesmo, origina obrigação de imposto”. Por outras palavras, o teor literal do normativo em apreço não deixa dúvidas, reservas, na afirmação de que são “sujeitos passivos”/devedores do imposto (IVA), entre outras, as pessoas singulares que o mencionem “indevidamente” em fatura (ou documento equivalente), não havendo lugar a, necessidade de, indagar e valorar as casuísticas razões da inclusão, na fatura/documento, de determinado montante a título de IVA, tanto mais que, este, no limite, até pode nem ser devido, por um conjunto lato de circunstâncias, relacionadas com os sujeitos intervenientes e/ou com a atividade económico-jurídica desenvolvida. Determinante e exclusivo, é, portanto, a menção, inscrição, de certa e determinada importância, sob o descritivo de IVA (ou equivalente), para que o emitente de uma fatura seja tido como sujeito passivo/devedor do imposto respetivo, isto é, se constitua, além do mais, na obrigação de o entregar ao Estado (Art. 27.º do CIVA.)”.

(…)

É certo que a sujeição a IVA de quem o mencionou indevidamente não deve ir para além do que é necessário para eliminar o risco de perda de receitas fiscais e não deve causar um prejuízo excessivo ao princípio da neutralidade do IVA (v., neste sentido, o acórdão supra mencionado).

O respeito pelo princípio da neutralidade, no ordenamento jurídico português, é assegurado, desde logo porque o artigo 78.º do Código do IVA prevê a possibilidade de os sujeitos passivos: (i) alterarem o valor tributável ou o imposto de uma operação, ou (ii) corrigirem uma fatura por qualquer motivo, incluindo inexatidão através da emissão de um documento retificativo de fatura. Assim, quando haja lugar à emissão destes documentos retificativos de faturas, o sujeito passivo tem a obrigação – no caso de ter liquidado imposto a menos –, ou a faculdade – no caso de ter liquidado imposto a mais – de proceder à regularização do imposto entregue ao Estado a menos ou a mais.

No caso que nos ocupa, mesmo que se admitisse que o imposto só seria devido à luz do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. c) do Código do IVA, a retificação só poderia ser efetuada se o impugnante tivesse na sua posse prova de que o adquirente (CAAD) tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto (cf. n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA). Como é expressamente referido na Informação Vinculativa exarada no processo nº 12757, a norma prevista no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA tem por objetivo evitar que o sujeito passivo fornecedor regularize a seu favor o imposto inicialmente deduzido pelo adquirente sem que este proceda à correção do correspondente valor a favor do Estado, pelo que “se o fornecedor optar por efetuar a retificação, esta tem de ser operada pelas duas partes intervenientes (fornecedor e adquirente) dentro dos prazos estabelecidos nas respetivas normas (…), sob pena de não poder ser efetuada.”.

E, como resulta do probatório, o impugnante não provou (nem alegou, diga-se), ter efetuado qualquer retificação ou ter reembolsado o imposto ao CAAD, pelo que não se pode dizer que demonstrou a sua boa-fé.”

 

 

Na sequência do supra exposto, os sujeitos que mencionem IVA indevidamente em faturas devem entregá-lo ao Estado (conforme o disposto no art.º 27 n.º 2 do Código do IVA), sem prejuízo de regras especiais de retificação de faturas ou regularização de operações (mormente o art.º 29 n.º 7 e o art.º 78 n.º 1, ambos do Código do IVA), que permitem ao sujeito passivo atuar em conformidade. Nesse sentido, a Requerente poderia – deveria – ter então corrigido as faturas em causa, de forma a regularizar o IVA por si indevidamente liquidado em território nacional relativo a vendas de bens efetuadas para consumidores finais alemães localizadas na Alemanha. Uma vez que tal não sucedeu, quer a norma de incidência constante da alínea c) do n.º 1 do art.º 2, quer o disposto no n.º 3 do art.º 97 do Código do IVA obstam à anulação destas liquidações relativas a imposto incluído na fatura passada ao adquirente e não regularizado[2].

 

Concluindo, a norma de incidência que determina a obrigação de liquidação de IVA em ambos os países não é a mesma:

  • Em Portugal, o facto tributário que originou a liquidação de IVA português foi a menção indevida de IVA nas faturas emitidas aos adquirentes [i.e., alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA];
  • Na Alemanha, o facto tributário da liquidação de imposto foi a transmissão dos bens aí considerada localizada para efeitos de IVA, após ter sido ultrapassado o limite legal do regime das vendas à distância.

 

Assim sendo, é manifesto no caso sub judice não estarem preenchidos os pressupostos da existência de uma situação de duplicação de coleta, pelo que não será de atender à pretensão da Requerente de revisão dos autos de autoliquidação com base em tal argumento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

B.2) Da injustiça grave e notória

 

A Requerente alega, ainda, que a situação em apreço configura uma injustiça grave e notória, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 78 da LGT – no âmbito do qual o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte – tal enquadramento deveria originar uma revisão oficiosa por parte da Requerida.

 

Conforme resulta do exposto, a revisão de ato tributário com fundamento em injustiça grave ou notória pressupõe que o erro em causa (i) configure uma injustiça grave ou notória, (ii) não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte e (iii) seja requerida no prazo máximo de três anos a contar do ato tributário.

 

Sucede, porém, que o erro de enquadramento jurídico-fiscal das operações em causa não é imputável à Requerida, i.e., não é diretamente imputável aos serviços da Requerida nem a orientações genéricas que estes tenham fornecido e que tenha estado na base das declarações periódicas submetidas pelo sujeito passivo. Da análise in casu, conclui-se, ao invés, que a situação em apreço resulta da errónea aplicação pela Requerente das regras do imposto aplicáveis às suas operações, ou seja, tem origem num comportamento negligente da Requerente. Como tal, ao caso sub judice não é aplicável o mecanismo de revisão oficiosa previsto no n.º 4 do art.º 78 da LGT.

 

Face ao acima exposto, entende este Tribunal não estarem reunidos os pressupostos legais para a revisão dos atos de autoliquidação de IVA de 2017 e 2018 com fundamento em injustiça grave ou notória ao abrigo da norma constante do n.º 4 do art.º 78 da LGT. 

 

 

 

B.3) Da falta de fundamentação

 

Alega, ainda, a Requerente existir omissão de fundamentação na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa. Não obstante, desde já se adianta não lhe assistir razão. 

 

Como resulta dos n.ºs 1 e 2 do art.º 77 da LGT, as decisões da AT devem ser fundamentadas por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que as motivaram, fundamentação essa que pode ser efetuada de forma sumária, mas que terá de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

 

Como se refere no acórdão do STA de 09.05.2018, proferido no recurso n.º 0572/17:

“É sabido que o direito à fundamentação, relativamente aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos tem hoje consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, tendo o respectivo princípio constitucional sido densificado nos arts. 124º e 125º do CPA e, posteriormente, nos arts. 77º nºs. 1 e 2 da LGT (acto administrativo tributário).

E como já se exarou em outros arestos (cfr., v. g. o acórdão de 14/3/2018, no proc. nº 0512/17, cujo texto passaremos a seguir), «este dever legal de fundamentação do acto administrativo cumpre uma dupla função: endógena, ao exigir ao decisor a expressão dos motivos e critérios determinantes da decisão, assim contribuindo para a sua ponderação e transparência; exógena, ao permitir ao destinatário do acto uma opção esclarecida entre a conformação e a impugnação graciosa ou contenciosa (cfr. o ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05). Daí que essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto. Ou seja, a fundamentação formal do acto tributário é distinta da chamada fundamentação substancial, devendo esta exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico.

Especificamente, também a decisão em matéria de procedimento tributário exige sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo essa fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os integrantes do relatório da fiscalização tributária, e devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo (cfr. o art. 77º da LGT), tendo-se como constitucionalmente adequada a fundamentação que respeite os mencionados princípios da suficiência, da clareza, e da congruência e que, por outro lado, seja contextual ou contemporânea do acto, não relevando a fundamentação feita a posteriori (cfr. os acórdãos do STA, de 26/3/2014, proc. nº 01674/13 e de 23/4/2014, proc. nº 01690/13). De referir, porém, que para a suficiência da fundamentação de direito da decisão do procedimento tributário ou do acto tributário não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência a princípios jurídicos ou a um regime jurídico que definam um quadro legal perfeitamente conhecido ou cognoscível por um destinatário normal, colocado na posição do destinatário real (cf. acórdão do STA, de 17/11/2010, proc. nº 1051/09 e jurisprudência nele citada).

Não devendo, ainda, esquecer-se que as características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico. É que, neste domínio da fundamentação do acto, é relevante a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto.

Sendo que, no ensinamento de Vieira de Andrade, (O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Almedina, 2003, p. 231.) o dever formal cumpre-se «... pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis; enquanto a fundamentação material exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo» (fim de citação).”

 

Analisados os atos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico, constatamos que os pressupostos da fundamentação foram plenamente cumpridos pela AT. De facto, nesses documentos foram devidamente (i) identificadas as razões de facto e de direito que justificaram a não consideração da existência de uma situação de duplicação de coleta, bem como (ii) confirmada, junto da Divisão de Inspeção Tributária II – Equipa 12, a situação concreta das vendas de bens efetuadas pela Requerente para a Alemanha, em momento prévio à tomada de decisão, estando, igualmente, (iii) devidamente identificadas as normas legais do Código do IVA e do RITI aplicáveis, quer no que respeita à norma de incidência pela menção indevida de IVA em faturas comerciais, quer quanto às normas de retificação de faturas inexatas. 

 

Face ao exposto, e ao contrário do invocado pela Requerente, entendemos que aqui não se verifica a apontada causa de ineficácia dos efeitos invalidantes que decorrem da falta de fundamentação do ato de indeferimento recorrido.

 

B.4) Da preterição dos direitos do sujeito passivo

 

Por último, alega a Requerente verificar-se a preterição dos seus direitos enquanto sujeito passivo, quer no que respeita ao seu direito à participação / audição prévia no processo, quer quanto à não realização pela AT de diligências complementares de prova – por exemplo, ao nível de troca de informações com a administração fiscal estrangeira – quer quanto à omissão de análise à prova documental carreada aos autos pela Requerente. Em complemento, a Requerente solicitou a este Tribunal que diligenciasse no sentido de requerer a junção aos autos do PA (o que foi feito) e de obter informação da AT sobre as conclusões de eventual inspeção tributária aos exercícios de 2014, 2015 e 2016 (que se entendeu não ser devido porquanto tal informação, no que respeita às vendas de bens à distância, consta do PA, em particular do projeto de indeferimento do recurso hierárquico).

 

Conforme se concluiu no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20.04.2023, proferido no processo 58/14.5 BESNT, o “direito de participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas e deliberações que lhes digam respeito tem assento constitucional no artigo 267/5 da CRP”, e “a falta de audição prévia, quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de formalidade essencial, que conduz, em regra, à anulabilidade do ato”. Não obstante, o ato tributário in casu, i.e., o ato de indeferimento do recurso hierárquico do pedido de revisão oficiosa, foi devidamente notificado à Requerente antes da sua formação. Conforme se refere no ponto 5 da informação final deste ato tributário:

   

Não tendo a Requerente exercido o respetivo direito de audição prévia nesta sede, foi proposta a conversão do projeto de indeferimento em decisão final, aqui objeto de análise, sem que tal constitua uma violação dos direitos da Requerente.

 

De igual modo, entendemos não ser de atender ao argumento da Requerente de não estar devidamente cumprido o princípio do inquisitório e o da procura da verdade material por parte da AT, na medida em que as diligências adicionais de prova que aquela alega estarem em falta, ao nível da troca de informações entre as administrações fiscais e confirmação do pagamento dos valores de IVA ao Estado alemão, não se afiguram relevantes para a confirmação do enquadramento jurídico-fiscal em causa – conforme referido acima, a norma de incidência do IVA devido em Portugal resulta da menção indevida de IVA [alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA] em faturas passadas aos adquirentes. Também por esse motivo entendeu o Tribunal não ser necessário solicitar à AT esclarecimentos adicionais sobre a matéria.

 

Acresce que da decisão de indeferimento do recurso hierárquico consta uma análise exaustiva dos vários pedidos de revisão oficiosa desencadeados pela Requerente com referência a vendas de bens à distância para consumidores franceses e alemães entre 2014 e 2018, bem como dos argumentos por esta deduzidos nos mesmos, não tendo havido lugar à alegada omissão de análise à prova documental carreada aos autos pela Requerente.

 

****

 

Face ao acima exposto, entende este Tribunal Arbitral improceder o pedido de anulação do pedido de indeferimento do recurso hierárquico formulado como objeto imediato deste pedido de pronúncia arbitral, ficando prejudicados os restantes pedidos mediatos da Requerente respeitantes ao pagamento de juros indemnizatórios e ao reembolso de quantias pagas a título de duplicação de coleta.

 

  1. DECISÃO

Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica o ato tributário de indeferimento do recurso hierárquico do pedido de revisão oficiosa recorrido.

 

Em consequência, condena-se a Requerente no pagamento das custas deste processo.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no art.º 97-A, n.º 1, do CPPT e no art.º 3, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 25.072,06, respeitante ao montante total objeto do pedido de revisão oficiosa intentado pela Requerente.

 

 

  1. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.530, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de maio de 2023

 

 

 

 

 

(Raquel Montes Fernandes



[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0915/11.0BEBRG 01037/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/885f8a7e578b74d88025886100593783?OpenDocument&ExpandSection=1.

[2] Sobre esta temática, vide o disposto na decisão arbitral proferida no processo 484/2022-T, de 30.03.2023.