Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 555/2020-T
Data da decisão: 2022-01-28   Outros 
Valor do pedido: € 70.516,76
Tema: Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético de 2019. Constitucionalidade
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Ricardo Marques Candeias e José Coutinho Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 14 de janeiro de 2021, acordam no seguinte:

               

I.             RELATÓRIO

 

A… – ENERGIAS RENOVÁVEIS SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA., pessoa coletiva número … com sede na …, Almodôvar, adiante designada por “Requerente”, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

Pretende a Requerente a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (de ora em diante “CESE”), relativo ao ano 2019, emitido sob o número …, e do tributo autoliquidado, no valor total de € 70.516,76 (setenta mil, quinhentos e dezasseis euros e setenta e seis cêntimos).  Peticiona ainda o reembolso do montante pago e a condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 20 de outubro de 2020, e, de seguida, notificado à AT.

 

Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes, notificadas dessa designação em 14 de dezembro de 2020, não manifestaram vontade de a recusar, atento o preceituado nos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico.

               

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 14 de janeiro de 2021.

 

                A Requerida apresentou a sua Resposta em 27 de abril de 2021, na qual suscita a exceção de incompetência material do Tribunal, tendo remetido o processo administrativo (“PA”).

 

                Em 25 de maio, a Requerente exerceu o contraditório sobre a matéria de exceção.

 

                O Tribunal determinou a dispensa de reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por se afigurar desnecessária, e as Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, advertindo-se a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Em 18 de junho de 2021, a Requerente apresentou as suas alegações e a Requerida contra-alegou em 5 de julho de 2021, tendo ambas as Partes reafirmado, no essencial, as posições assumidas nos articulados iniciais.

 

Por despachos de 8 de setembro, 12 de novembro de 2021 e 21 de janeiro de 2021 foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

                POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

                Como fundamento da sua pretensão a Requerente alega, em síntese, que a CESE não é uma contribuição financeira, antes uma contribuição especial que deve seguir o regime jurídico-constitucional dos impostos, constante dos artigos 165.º, n.º 1, alínea i) e artigo 103.º, n.º 2, ambos da CRP, pois não tem qualquer expressão de bilateralidade que se projete na esfera de um grupo homogéneo de sujeitos passivos, nem o respetivo regime se encontra ancorado no princípio da equivalência (de grupo).

 

                A CESE foi criada como tributo extraordinário, limitado no tempo e na sua dimensão, destinado a contribuir para a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (“SEN”) e do financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, e, também, com o objetivo mais amplo de repartir o esforço de ajustamento orçamental. Neste âmbito, a Requerente considera que as metamorfoses que o regime da CESE sofreu ao longo dos anos, designadamente a eliminação, pela LOE 2019, da isenção que vigorava para os electroprodutores que utilizam fontes de energia renováveis abrangidos por regimes de remuneração garantida, e a sua constante prorrogação suscitam a sua inconstitucionalidade.  

 

                Em relação aos fatores que estão na origem da dívida tarifária do SEN, entende a Requerente que aqueles são atribuíveis ao legislador, que veio imputar essa responsabilidade aos sujeitos passivos da CESE, cujos comportamentos não determinaram ou sequer agravaram esse défice, salientando que a dívida tarifária do SEN tem como devedores os consumidores e não a Requerente. Os atuais sujeitos passivos da CESE são heterogéneos, com patente ausência de conexão entre os grupos (díspares), pelo que esta se transformou numa “derrama energética”.

 

                Na perspetiva da Requerente as políticas sociais e ambientais do setor energético, que constituíam um dos objetivos de criação da CESE, não foram objeto de reconhecimento ou concretização e a respetiva receita não tem sido efetivamente utilizada para a amortização da dívida tarifária do SEN, o que compromete a legitimidade constitucional da CESE, enquanto tributo extraordinário.

 

                Neste âmbito, suscita as seguintes inconstitucionalidades:

 

(a)          Violação do Princípio da Tributação pelo Lucro Real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição, relativamente à existência de uma base de tributação exclusivamente alicerçada em ativos, prevista no artigo 3.º, n.º 1 do regime da CESE, por atingir indiscriminadamente quem não contribui para o défice tarifário e incidir sobre ativos independentemente da sua rendibilidade;

(b)          Violação do Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente de Proteção da Confiança, ínsito no artigo 2.º da Constituição, relativamente à reiterada violação do caráter “extraordinário” da CESE, consagrado no artigo 1.º do regime da CESE, por sucessivas prorrogações desta, e a eliminação da isenção de que a Requerente gozava nos primeiros anos de vigência da CESE;

(c)          Violação do Princípio da Proporcionalidade, inscrito no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, nas vertentes de Necessidade e Proibição do Excesso, dada a ausência de conexão entre os fundamentos fiscais ou creditícios que suportam o regime da CESE, a trajetória descendente da dívida tarifária do SEN e a ausência de afetação da receita da CESE aos fins para os quais o tributo foi criado, não se verificando o contexto de excecionalidade e de necessidade financeira a que a CESE está vinculada. Por outro lado, a perpetuação da CESE para lá de um momento em que a trajetória  da dívida tarifária já seja descendente, a acrescer à referida não afetação da receita aos fins do SEN, encerram a violação, pelo artigo 1.º do regime da CESE, do Princípio da Segurança Jurídica, na vertente de Proteção de Confiança, como decorre do artigo 2.º da Constituição; e

(d)          Violação do Princípio da Não-Consignação, tal como consagrado na Lei de Enquadramento Orçamental (“LEO”), que é uma Lei de Valor Reforçado, uma vez que a ausência do caráter temporário e extraordinário do regime da CESE envolve a ilegalidade do seu artigo 11.º, n.º 1, à luz do artigo 16.º, n.º 3 da LEO, configurando uma Inconstitucionalidade Material Indireta.

 

                POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

                A Requerida suscita a questão prévia da incompetência material do Tribunal Arbitral, por força do disposto no artigo 2.º Portaria de Vinculação, com base na configuração da CESE como contribuição financeira, tal como é qualificada, de forma unânime, pelos Tribunais Superiores e pela jurisprudência arbitral.

 

                Em relação ao mérito, a AT convoca o entendimento consolidado na doutrina de que, em princípio, não pode recusar a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade estatuído nos artigos 266.º n.º 2 da Constituição, 3.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) e 55.º da LGT.

 

                Sobre as concretas questões de inconstitucionalidade suscitadas nos autos, defende a posição adotada na decisão arbitral n.º 312/2015-T e pelo Tribunal Constitucional (v. acórdãos n.ºs 7/2019 e 539/2015).

 

                Por outro lado, sustenta que a prorrogação e alguns ajustes feitos ao regime da CESE não alteram a sua qualificação como contribuição financeira e o facto de se pretender que a receita da CESE contribua para a consolidação orçamental, não faz do tributo uma receita destinada a financiar o Estado e o exercício das suas funções públicas em geral, carecendo de suporte a tese de que se trata de um tributo que serviu apenas como fonte de receita sobre um grupo particular de contribuintes para o esforço geral de consolidação orçamental pública.

               

                A receita da CESE, ao ter ficado consignada, desde o início, ao “Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético”, visa alcançar os objetivos referidos no respetivo regime legal, sem prejuízo de, no mesmo passo, contribuir para o esforço nacional de consolidação orçamental.

 

                A CESE é uma contribuição extraordinária, justificada através das circunstâncias excecionais em que foi criada, que se confirmam anualmente através das sucessivas prorrogações, sendo certo que o contexto justificativo ainda não terá sido substancialmente alterado. Trata-se de um tributo transitório, pois se fosse um tributo “ordinário” a sua vigência não careceria de ser prorrogada.

 

                Não é de concluir que a delimitação do âmbito de incidência subjetiva da CESE seja arbitrária ou que dela resulte uma violação do princípio da igual proporcionalidade, pois, tal como resulta do conteúdo deste princípio, os esforços dos contribuintes não têm de ser idênticos, bastando que a diferença entre esses esforços não seja arbitrária ou excessiva.

 

                Posto que, dada a qualificação da CESE como contribuição financeira, decaem os argumentos arvorados pela Requerente, não sendo aquela materialmente inconstitucional sob qualquer dos pontos de vista invocados, devendo, em consequência, improceder a pretensão da Requerente.

* * *

 

                Tendo sido suscitada pela Requerida a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento tem caráter prioritário, a mesma é de seguida apreciada, logo após a fixação da matéria de facto.

 

 

II.            FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            FACTOS ASSENTES

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A A… – ENERGIAS RENOVÁVEIS SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA., aqui Requerente, é uma sociedade de direito português, que tem por atividade principal a produção e comercialização de energia através da exploração de empreendimentos e aproveitamentos de energias renováveis – cf. PA.

B.            Por deter e explorar um centro electroprodutor, com recurso a fontes de energia renovável, a Requerente beneficiou no ano de 2019, de um regime de remuneração garantida, tecnicamente conhecido por feed-in tariff (FIT) – cf. PA.

C.            A Requerente beneficiou da isenção do pagamento da CESE, aplicável aos sujeitos passivos que detivessem centros electroprodutores com recurso a fontes de energia renovável, até 31 de dezembro de 2018 – cf. PA.

D.           Em virtude das alterações introduzidas ao Regime da CESE pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (“LOE 2019”), nomeadamente com a alteração da redação do artigo 4.º alínea a) do Regime da CESE, aprovada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, a Requerente deixou de beneficiar da referida isenção – cf. PA.

E.            Em 24 de outubro de  2019, a Requerente autoliquidou a CESE relativa ao ano de 2019, no montante de € 70.516,76 – cf. documento 1 e PA.

F.            Em 30 de outubro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade daquele valor – cf. documento 2 e PA.

G.           Não obstante, por não concordar com a liquidação desse tributo, a Requerente apresentou, a 27 de março de 2020, a reclamação graciosa da autoliquidação da CESE – cf. documento 3 e PA.

H.           Após ter sido notificada para se pronunciar acerca do projeto de decisão da reclamação graciosa, a Requerente foi notificada, pelo Ofício n.º …, de 16 de julho de 2020, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, datado de 14 de julho do mesmo ano – cf. documentos 4 e 5 e PA.

I.             Tal reclamação graciosa foi indeferida com os fundamentos constantes do projeto de decisão, fundado na Informação n.º …-…/2020, de 24 de abril de 2020, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (“UGC”),  cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

“[…]

21.         Sem prejuízo de, desde já, se referir que, não cabe no elenco das atribuições e competências da Administração Tributária aferir da bondade de uma qualquer norma face ao preconizado na nossa Lei Fundamental, ainda assim, não poderemos, sem mais, deixar de tecer algum s considerações acerca do assunto que ora nos apraz, a ponto de aqui deixar bem vincado que, na verdade, relativamente ao argumentado pela ora Reclamante não é de conferir valor jurídico suficientemente bastante para resolver a questão em causa; de modo algum, pois não é isso que resulta da lógica dessa novação tributária estabelecida pelo legislador fiscal nacional.

Senão vejamos:

22.          Em primeiro lugar, de acordo com os argumentos aqui trazidos ao nosso conhecimento, é-nos sugerido um juízo acerca da bondade das normas legais em questão, face à Constituição da República Portuguesa (CRP).

Ora,

23.         A subordinação da Administração Tributária à CRP significa, desde logo, em geral, o dever de conformação da atividade administrativa, quer tenha ou não conteúdo normativo, pelas normas constitucionais, procurando conferir a máxima efetividade possível aos direitos fundamentais, significando isto, assim, em especial, nomeadamente, que são nulos e não anuláveis, todos os atos administrativos ofensivos do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.

24.          Diante desta dimensão do princípio da constitucionalidade imediata impõe-se que a Administração Tributária esteja ab initio vinculada às normas consagradoras no âmbito de direitos, liberdades e garantias.

25.          Ao invés do que sucede com os tribunais, que têm constitucionalmente o direito e o dever de fiscalização da constitucionalidade das leis, desaplicando-as, caso estejam em contradição com as normas constitucionais, à Administração Tributária, porém, não é reconhecido este direito de fiscalização prévia, impondo-se antes, como princípio geral, a observância da ei por força do denominado princípio da legalidade.

26.          A Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade e a submissão desta à Lei não visa apenas a proteção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos. A concessão ao poder administrativo de ilimitados ou vastos poderes para o controlo da constitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, invertendo a relação entre a Lei e a Administração, atentando frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na CRP.

27.          É este o entendimento que, aliás, se encontra maioritariamente firmado, quer na doutrina quer na jurisprudência, no sentido de se recusar, como regra geral, à Administração, a competência para desaplicar normas que considere inconstitucionais.

28.          É imensa a doutrina acerca desta questão.

29.          Para GOMES CANOTILHO, «(...) o princípio básico é o de recusar à administração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais».

30.          A este propósito, também JORGE MIRANDA sustenta não ser possível reconhecer à Administração um poder geral de controlo – necessariamente concreto – análogo ao dos tribunais, admitindo, apenas em determinadas situações, deixar àquela uma margem de não aplicação. A razão básica deste entendimento – justifica o autor – repousa na diferença de natureza das duas funções, a jurisdicionai e a administrativa, e na diversa estrutura dos respetivos órgãos, na necessidade de evitar a concentração de poder no Governo que adviria se se admitisse o reconhecimento aos órgãos da Administração, da faculdade de fiscalização da constitucionalidade, e por imperativos de certeza e de segurança jurídica.

31.          Se a nossa Lei Fundamental sublinhadamente aponta no sentido da necessária conformação da atividade administrativa nacional pelos preceitos e princípios constitucionais e, se são nulos, e não anuláveis (por conseguinte, não sanáveis), os atos administrativos ofensivos de direitos, liberdades e garantias, têm de ser os tribunais a decidir sobre essa conformação; e têm de ser os tribunais administrativos, e não os próprios órgãos da Administração dita ativa, a apreciar e a decidir acerca de não aplicar leis inconstitucionais e a declarar a nulidade ou a anular atos administrativos inconstitucionais.

32.          No mesmo sentido, considera MARCELO REBELO DE SOUSA, a propósito do regime jurídico da nulidade no Direito Constitucional português, que tal vício tem de ser apreciado e declarado por um órgão jurisdicional, não existindo a possibilidade de a Administração Pública se recusar a obedecer a um ato que considera inconstitucional, sob pena de, desde logo se entrar em confronto com o princípio da separação de poderes.

33.          GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA consideram que tem constituído solução tradicional e mais conforme ao sistema constitucional aquela segundo a qual, em princípio, a Administração está imediatamente subordinada à lei, não podendo deixar de cumpri-la a pretexto da sua inconstitucionalidade, não dispondo, portanto, de um poder de não aplicação de leis em razão de tal motivo.

34.          Quanto à posição que, sobre este assunto, tem sido acolhida pela Jurisprudência, veja-se, a título de  exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), proferido no âmbito do Processo n.º 0860/10, de 12 de outubro de 2011, onde, a propósito de saber se os mesmos motivos que levaram o legislador à dispensa da reclamação graciosa prévia quando existam orientações genéricas emitidas pela Administração Tributária, justifica também a dispensa quando o interessado pretenda impugnar a autoliquidação com exclusivo fundamento na inconstitucionalidade da norma, se referiu que «Nesse caso, e a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP (Diz o art. 18.º da CRP no seu n.º 1. «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas».), a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade».

35.          Fundamentando esta posição, refere-se ainda no douto Acórdão que «A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.

                É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, “Este conflito [entre constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição.” (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.)      

                No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que “a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos, 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei. Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional” (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.)

                Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados (...)». 

36.          A acrescer, também não podemos ignorar o Acórdão n.º 7/2019, do Tribunal Constitucional (TC), de 08 de janeiro de 2019, proferido no âmbito de um caso concreto - Processo n.º 141/16 - que decidiu não julgar inconstitucionais as normas ínsitas nos art.ºs 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º que modelam o Regime Jurídico da CESE, aprovado pelo art.º 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (e sucessivamente prorrogado para os anos posteriores). 

37.          Fazendo a ponte entre estas considerações e o caso concreto em análise, parece-nos então de concluir que uma qualquer nossa análise acerca desta questão, tal como nos é suscitada, fica desde logo prejudicada.

38.          Deste modo, através de uma adequada ponderação dos interesses em causa, e atendendo que a própria Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sob o espetro do princípio da legalidade, em nossa opinião, e face ao que é aqui foi dito, não subsistem razões atendíveis para os termos e efeitos de anulação do ato tributário ora colocado em crise pela Reclamante.

§ IV.II. Dos juros indemnizatórios

39.          A Reclamante peticiona, em caso de deferimento do pedido deduzido na reclamação, que lhe sejam atribuídos juros indemnizatórios nos termos do art.º 43.º da LGT.

40.          Na medida em que o pedido formulado merece proposta de indeferimento, fica, deste modo, prejudicada a análise do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.“

J.             Inconformada, em face do indeferimento da reclamação graciosa relativa à autoliquidação da CESE, a Requerente apresentou junto do CAAD, em 19 de outubro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

2.            MOTIVAÇÃO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados pela sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na posição das Partes, que é consensual, e na análise crítica da prova documental junta aos autos, conforme referenciado em cada um dos factos supra fixados, sendo a questão discutida estritamente de direito.

 

3.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

 

III.          PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

1.            SOBRE A QUESTÃO PRÉVIA DE INCOMPETÊNCIA MATERIAL

 

Partindo do pressuposto da qualificação da CESE como contribuição financeira,  a Requerida suscita a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral , por entender que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março ( “Portaria de Vinculação”), que estabelece as condições de vinculação da Requerida ao foro da arbitragem tributária, apenas compreende pretensões relativas a impostos administrados pela AT, i.e., com exclusão das demais categorias de tributos, para o que invoca os artigos 2.º e 4.º do RJAT e o artigo 2.º da Portaria de Vinculação.

Como refere a decisão arbitral n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, é pacífico que o Tribunal Arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, nos termos expressos no artigo 18.º, n.º 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (“LAV”)  que, na ausência de regulação pelo RJAT, é aplicável por analogia .

 

                A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que importa, antes de mais, proceder à respetiva apreciação (v. artigos 16.º do CPPT, 13.º do CPTA e 96.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT).

 

É conhecida a divergência existente quanto à questão da competência, em razão da matéria, dos tribunais arbitrais para conhecerem de impugnações de contribuições financeiras, como é o caso da CESE. Naturalmente que a questão só se coloca se a categoria tributária em discussão não for um imposto, como se afigura ser o caso.

 

A título meramente ilustrativo, referem-se, no sentido de considerar os Tribunais Arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD competentes para conhecer da CESE, as decisões proferidas nos processos n.ºs 312/2015-T, de 7 de janeiro de 2016 e 305/2020-T, de 15 de fevereiro de 2021. É esta a posição que adotamos.

 

Com entendimento oposto, pronuncia-se a decisão arbitral do processo n.º 248/2019-T, de 7 de fevereiro de 2020.

 

Numa perspetiva diferente, a decisão arbitral do processo n.º 146/2019-T, de 30 de setembro de 2019, considera que o âmbito de competência material, tendo sido fixado por diploma legislativo, não pode ser restringido por mera portaria, pelo que conclui pela competência material do Tribunal Arbitral. Não obstante, equaciona o problema por outro prisma, o da falta de vinculação, que constitui incompetência relativa, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, n.º 4 da Lei da Arbitragem Voluntária (“LAV”), ou no artigo 103.º do CPC, em ambos os casos aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) ou e) do RJAT.

 

Interessa começar por compulsar o texto legislativo. O artigo 2.º do RJAT, que delimita a competência dos tribunais arbitrais, contempla de forma expressa a arbitrabilidade dos tributos em geral, não distinguindo nenhuma das suas classes, designadamente, “as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas”, na terminologia do artigo 3.º, n.º 2 da LGT. É o que se retira do teor literal do preceito, infra transcrito:

 

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 –A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)            A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)           A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; […]”

 

                Contudo, o artigo 4.º, n.º 1 do RJAT faz depender a vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral dos requisitos a estabelecer em portaria, nomeadamente quanto ao tipo e valor máximo dos litígios abrangidos, o que veio a ser concretizado na Portaria de Vinculação.

 

                Dispõe esta Portaria, no seu artigo 2.º, que: “[o]s serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a)            Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b)           Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c)            Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

d)           Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e)           Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

 

                De acordo com a Requerida, o facto de a Portaria, no corpo do preceito, fazer apenas referência a impostos, consubstancia uma restrição dos litígios que a AT aceita submeter aos Tribunais Arbitrais Tributários a esta categoria de tributo, ficando excluídas as demais, como as taxas e as contribuições financeiras. Entendemos que esta posição é de contrariar por diversas razões. 

 

                Desde logo, esta interpretação restritiva não pondera o recente aditamento da alínea e) pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que exclui, de forma expressa, da vinculação à jurisdição arbitral, as pretensões relativas a tributos liquidados com base na cláusula geral anti-abuso que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa. Significa isto que se são excluídos os “tributos” que preencham as ditas condições é porque esses mesmos “tributos”, de acordo com o legislador, estavam abrangidos pela vinculação.

 

                Como assinalado na declaração de voto no processo arbitral n.º 248/2019-T, de 7 de fevereiro de 2020, que neste ponto se sufraga, esta alteração “revela que, na própria perspetiva do Governo, a competência dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária se estende ao campo dos tributos. […] Se o Governo – sublinhe-se, no mesmo artigo – sentiu necessidade de excluir do âmbito das «pretensões relativas a impostos» certos tributos, forçoso é concluir que, doutra forma, tais tributos estariam abrangidos pela cláusula geral que admite a arbitragem tributária em matéria de «impostos».

 

                Esta perspetiva que é, de igual modo, perfilhada na decisão do processo arbitral n.º 305/2020-T, de 15 de fevereiro de 2021 que considera que “[a] subscrever-se (melhor, a continuar a subscrever-se) a tese da incompetência material dos tribunais arbitrais para apreciarem da legalidade de contribuições financeiras, seríamos conduzidos a um absurdo: os tribunais arbitrais seriam materialmente incompetentes, exceto quando tais liquidações resultassem da aplicação da norma antiabuso, tendo havido prévio recurso à via administrativa. A nova norma deve, a nosso ver, ser entendida como constituindo expressão literal atualizada do âmbito de vinculação da AT aos tribunais arbitrais, isto é, que a mesma abrange quaisquer tributos de que tenha a administração.”

               

                Por outro lado, conforme se fundamenta na decisão do processo arbitral n.º 312/2015-T, de 7 de janeiro de 2016, os elementos teleológico e racional da interpretação apenas apontam para a “«limitação do âmbito de vinculação da AT através da titularidade dos poderes para administrar os tributos», sendo esse, de resto, o limite lógico da vinculação – não abrangendo a restrição assim os relacionados com “contribuições” também por ela liquidadas. O facto é que o procedimento de liquidação e cobrança dessas “contribuições” em nada se distingue, na sua natureza e estrutura, do dos “impostos” (a AT atua aí como se de impostos se tratasse), donde não há razão válida para excluir a vinculação da AT, nesses casos, à arbitrabilidade.

                […]

                Mais, a doutrina em que a AT se louva não permite sustentar uma posição diversa,

antes pelo contrário.

                Assim, p. ex., SÉRGIO VASQUES e CARLA CASTELO TRINDADE em «O âmbito material da arbitragem tributária», Cadernos de Justiça Tributária n.º 00 (Abril/Junho 2013), pág. 24, deixam claro que

«os serviços e organismos referidos no artigo anterior [hoje, a AT] vincularam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes  esteja cometida referidas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

Nos termos do art.º 2.º do DL n.º 118/2011, de 15/12, o qual aprovou a Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, esta entidade tem assim sob a sua égide a administração dos direitos aduaneiros, dos impostos sobre o  rendimento, dos impostos sobre o património e dos impostos sobre o consumo e, bem assim, dos demais tributos que lhe sejam legalmente atribuídos como, por exemplo, as contribuições especiais» .

                Nesta medida, considera-se que o âmbito da arbitrabilidade abrange, como decorre da  interpretação conjugada dos artigos 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, a apreciação das pretensões relativas a tributos cuja administração esteja cometida à AT, com exceção dos casos enunciados nas alíneas do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 ̶ abrangendo, portanto, também as pretensões relativas a “contribuições” por ela administradas.

                Consequentemente, e uma vez que a CESE, tal como resulta do artigo 7.º do respetivo regime jurídico, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (na redação entretanto atualizada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 e Dezembro e pela Lei n.º 33/2015, de 27 de Abril) é um tributo administrado pela AT, cujo procedimento de liquidação e cobrança é estruturalmente idêntico ao dos impostos, o tribunal arbitral é competente para dirimir o presente litígio, independentemente de este tributo vir a ser qualificado como contribuição ou como imposto.”

 

À face do exposto, deve considerar-se este Tribunal Arbitral competente em razão da matéria para conhecer dos vícios imputados ao ato de (auto)liquidação da CESE do período de 2019 aqui impugnado, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 2.º da Portaria de Vinculação, e, no caso de a ação ser julgada procedente, anulá-lo em conformidade.

2.            OUTROS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

O Tribunal foi regularmente constituído (cf. 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT) e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria de Vinculação).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado da notificação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, cujo ofício foi remetido a 16 de julho de 2020, tendo a ação dado entrada em 19 de outubro de 2020, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea e)).

 

IV.          DO MÉRITO

 

1.            DELIMITAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR

 

A questão a apreciar na presente ação é de direito e respeita à inconstitucionalidade do regime da CESE e consequente ilegalidade do ato de autoliquidação relativo ao período de 2019. Atenta a sucessiva prorrogação de vigência do regime, desde 2014, e as metamorfoses que este foi sofrendo com as alterações introduzidas pelo legislador, está em causa avaliar se deve manter-se o juízo de conformidade constitucional que tem sido reiterado pela jurisprudência dos tribunais superiores (Tribunal Constitucional e Supremo Tribunal Administrativo).

 

2.            BREVE ENQUADRAMENTO DA CESE

 

                A criação da CESE remonta à Lei do Orçamento do Estado para 2014 (v. artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), em vigor a partir de 1 de janeiro de 2014, assumindo o legislador, no artigo 1.º, n.º 2 do respetivo regime, o “objetivo [de] financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético.”

 

                Ficou prevista a consignação da receita ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (“FSSSE”), que veio a ser criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, tendo em vista o “objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEGs), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.” – v. artigo 11.º do regime da CESE.

                Estas finalidades foram reiteradas pelo diploma de criação do FSSSE que, no seu artigo 2.º, n.º 2, estabelece como objetivos do Fundo a “promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional”, através, quer do financiamento de políticas do setor energético, quer da redução da dívida tarifária do SEN.

 

                A vigência da CESE foi sucessivamente prolongada . Foram ainda introduzidas algumas modificações no seu regime logo na primeira prorrogação (v.  artigos 238.º e 239.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro) e, posteriormente, com a Lei n.º 33/2015, de 27 de abril, e a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro .  Por fim, com relevância para a questão decidenda, a Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, veio eliminar a isenção aplicável aos produtores de renováveis com remuneração garantida, passando a Requerente, até aí isenta, a ser tributada, nos termos da alteração efetuada à redação do artigo 4.º, alínea a) do regime da CESE. A isenção de CESE ficou restringida aos produtores de energias de fontes renováveis que vendam a sua eletricidade em contexto de mercado, o que não é o caso da Requerente . 

 

                Em rigor, está em causa aquilatar se esta alteração específica – a quebra de isenção de CESE para os produtores de energia de fontes renováveis – transmuta a natureza tributária da CESE, de contribuição financeira para imposto ou para realidade abrangida pelo regime dos impostos, como as contribuições especiais e se a mesma conduz à inconstitucionalidade da CESE.

 

                No mais, como se verá de seguida, o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciaram no sentido da não desconformidade do regime da CESE aos parâmetros constitucionais, nomeadamente da igualdade na repartição dos encargos públicos, da capacidade contributiva e tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da proteção da confiança e da segurança jurídica.

 

3.            POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA

 

A.           Sobre a qualificação tributária da CESE

               

                De acordo com o entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 7/2019, de 8 de janeiro de 2019, ao qual este Tribunal adere e que tem sido reiterado, de forma constante, pela jurisprudência posterior, a CESE enquadra-se na categoria classificatória tributária de contribuição financeira. Argumenta aquele aresto nos seguintes termos:

 

                “Ainda que não referida a uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético» (artigo 1º, n.º 2, do regime da CESE). É, a par do objetivo da redução da dívida tarifária – que é uma das suas causas –, o objetivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, que gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objetivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o caráter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respetivo pagamento. É a participação de um especial setor da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adoção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição, como veremos.

                […]

                Não estamos, por isso, perante uma cobrança de tributo para participação nos gastos gerais da comunidade, numa pura angariação de receitas, que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, que traduza o cumprimento de um dever geral de cidadania e solidariedade, como o dever de pagar impostos, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública dedicada. Isto porque não é finalidade imediata e genérica deste tributo a obtenção de receitas, a serem afetadas, geral e indiscriminadamente, à satisfação de encargos públicos.

                O facto de não ser possível individualizar-se, de forma concreta e absolutamente objetiva, uma compensação efetiva que, pelo seu conteúdo e natureza, seja especificamente dirigida aos sujeitos passivos que desenvolvam a atividade da recorrente, mas apenas as vantagens difusas, tal não retira caráter comutativo às prestações que visem financiar os objetivos que vão além da redução da dívida tarifária, já que estas contrapartidas não estão dissociadas de prestações públicas, ainda que genericamente destinadas a um grupo específico, sendo de presumir que os sujeitos passivos da CESE beneficiarão dos mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético. Ou seja, no caso da CESE, estamos perante um tributo comutativo, em virtude de, ainda que de forma difusa, ser possível identificar nos objetivos do FSSSE, a que foi consignada, contraprestações destinadas a um determinado grupo de sujeitos passivos que mantêm suficiente proximidade com as finalidades que este prosseguirá, e no qual se se incluirá a recorrente.

                […]

                O objetivo da redução da dívida tarifária e de promoção de mecanismos e medidas inseridos num setor específico os operadores económicos deste sector, entre os quais a recorrente, em virtude do seu específico objeto social, irão, presumivelmente, aproveitar, como contrapartida da CESE, de mecanismos que promovem a sustentabilidade sistémica do sector energético, de cariz social e ambiental, a desenvolver pelo Estado regulador, garante dessa sustentabilidade. Ou seja, uma vez que a atividade desenvolvida por estes agentes económicos beneficiará das ações de regulação traduzidas no desenvolvimento de políticas sociais e ambientais do setor energético, que promovam a sustentabilidade sistémica do setor, designadamente através da constituição do FSSSE dedicado ao seu financiamento, […] existem, então, razões que autorizam o legislador a estabelecer que o grupo de operadores, no qual se inclui a recorrente, deve contribuir para os custos decorrente dessas medidas regulatórias. […]”

 

                Refira-se que a idêntica conclusão se havia extraído no processo arbitral n.º 312/2015-T, de 7 de janeiro de 2016, cuja ilustrativa fundamentação se transcreve:

 

                               “Tomando em consideração os elementos estruturais caracterizadores da CESE antes mencionados, podemos inferir que a questão da sua qualificação jurídico-tributária há-de fazer-se no contexto da respetiva recondução à categoria de um imposto de receita consignada ou de uma contribuição financeira. (A qualificação de taxa é logo de afastar por manifesta inexistência de uma contraprestação individualizável, que é um dos pressupostos desses tributos).

                               Tradicionalmente, esta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou actividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários.

                               Em outras palavras, a qualificação de um tributo como contribuição exige «uma clara conexão entre a origem das receitas [o pressuposto do tributo] e o destino [finalidade] que a lei lhes assinala»; conexão que possa ser reconduzida a uma ‘relação de troca’ ou a uma ‘relação causal’ entre o Estado e o sujeito passivo.

                               Ora, a regulação económica – compreendida, seja na sua faceta de modificação na forma de intervenção geral do Estado na economia, na condução das políticas públicas e no modo de relacionamento com os agentes económicos, seja na faceta de promoção e garantia do interesse público, em particular do bem-estar da população, na aceção do cumprimento dos objetivos da regulação social, agora maioritariamente reconduzidos à garantia das obrigações de serviço público (universalidade, acessibilidade, continuidade, igualdade e adaptação às necessidades) no domínio dos serviços económicos de interesse geral explorados em ambiente privatizado e liberalizado – é justamente um sector que, impondo uma recompreensão das categorias tributárias, traz para o primeiro plano as contribuições financeiras, que surgem inevitavelmente como instrumentário típico deste novo modelo económico-social, e que, num primeiro momento, suscitaram dificuldades de integração no contexto do universo tributário vigente (cf. Thomas von Danwitz, «Die Universaldienstfinanzierungsabgaben im Telekommunikationsgesetz und im Postgesetzes als verfassungswidrige Sonderabgaben», NVwZ, 2000, pp. 615 e P. Kirchhof, «Nichtsteuerliche Abgaben», Isensee/Kirchhof (Hg) Handbuch des Staatsrechts, 3.ª ed., Band V, 2007, pp.1164ss).

                               Também entre nós a questão tem vindo a ser intensamente debatida no plano  jurisprudencial, exatamente quando os tributos surgem associados a uma função  regulatória, tendo o Tribunal Constitucional já considerado, no acórdão n.º 152/2013, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Maio de 2013, que se hão-de reconduzir à categoria de contribuições financeiras os tributos exigidos a operadores económicos de certos sectores regulados (tributos de natureza sectorial) “cujo desiderato é a consecução de objetivos extrafiscais” (entendendo que neste caso aqueles tributos consubstanciam medidas típicas da autonomia da ação governativa, pelo que o controlo judicial da respetiva conformidade jurídico-constitucional, no plano formal e material, não pode deixar de tomar em consideração este específico enquadramento). Já mais recentemente, no acórdão n.º 539/2015, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Novembro de 2015, o mesmo tribunal haveria de acrescentar – desta vez a propósito da qualificação da “taxa alimentar mais” como uma contribuição financeira – que se devem reconduzir a esta categoria os tributos que visam a “comparticipação nas receitas de um fundo destinado a financiar projetos, iniciativas e ações desenvolvidos pelas entidades que operam nesse mercado [neste caso as cadeias de distribuição de alimentos com uma dimensão superior a 2.000 m2]” e que “o que a distingue [a contribuição financeira] dos impostos é que se destina, não a financiar as despesas públicas em geral, mas a financiar despesas associadas a certos serviços públicos, por cuja execução são diretamente responsáveis determinadas entidades públicas”.

                               Com efeito, importa destacar ‘a circunstância’ que caracteriza hoje o sector dos serviços económicos de interesse geral, no qual se inclui o sector energético, e que tem como pressupostos normativos imperativos – nacionais, europeus e, ainda que maioritariamente mediatizados pelo direito europeu, também internacionais –: i) a sustentabilidade ou auto-suficiência financeira do sistema – que inviabiliza o financiamento dessas atividades a partir do orçamento do Estado (proibição geral de auxílios de Estado, exceto quando expressamente autorizados no quadro do direito europeu) e impõe a repercussão de todos os custos (princípio da aditividade tarifária) sobre os consumidores finais/utentes –, ii) a concorrência entre os operadores no quadro de uma economia livre e iii) a integração nas políticas sectoriais das políticas ambientais e de garantia do abastecimento energético (promoção das fontes energéticas endógenas), no quadro de um modelo de transição para uma economia verde (Kahl / Bews, Ökostromförderung und Verfassung, Nomos, 2015).

                               Assim, uma das regras típicas do modelo de regulação económica consiste em impor a alguns operadores económicos destes sectores inúmeras obrigações de serviço público, cujo sobrecusto pode assumir diferentes formas de financiamento (como a própria internalização de parte de custos, veja-se o caso Federutility, TJUE, Proc. C-265/08, em que o tribunal julgou conforme ao direito europeu a imposição de “preços de referência” como medida de regulação económico-social no domínio do fornecimento do gás natural, sempre que ficasse salvaguardado que tais medidas fossem claramente definidas, transparentes, não discriminatórias e verificáveis, e que estivesse garantido às empresas de gás na União um igual acesso aos consumidores), sendo uma dessas formas típicas a repartição do mesmo [do mencionado sobrecusto] pelos restantes operadores económicos, que ficam legalmente obrigados ao pagamento de contribuições – é o que sucede entre nós, e em todos os países europeus por imposição do direito comunitário, no sector das telecomunicações (v. artigo 97.º/1b) e 2 da Lei das Comunicações Electrónicas e Lei n.º 35/2012, de 23 de Agosto, ambas nas respetivas redações atualizadas) (Trute/Spoerr/Bosch, Telekommunikationsgesetz mit FTEG: de Gruyter Kommentar, Walter de Gruyter, 2001, pp. 208; Richard Staudacher, Verfassungsrechtliche Zulässigkeit von Sonderabgaben, 20004, p. 217) e no sector bancário, com a contribuição sobre o sector bancário, aprovada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro. Na mesma linha, outra situação típica consiste em fazer recair sobre os operadores económicos alguns custos relativos à regulação social — que no caso do sector energético se reconduzem, maioritariamente, às medidas sociais de apoio à pobreza energética [referimo-nos ao sobrecusto das tarifas sociais da eletricidade (Decreto-Lei n.º 138-A/2010, de 28 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 172/2014, de 14 de Novembro) e das tarifas sociais do gás natural (Decreto-Lei n.º 101/2011, de 30 de Setembro) e ao Apoio Social Extraordinário ao Consumidor de Energia (Decreto-Lei n.º 102/2011, de 30 de Setembro); em Espanha, o modo como o legislador concebeu a repercussão destes custos, o ‘bono social’, sobre os operadores do sector elétrico suscitou controvérsia, com uma primeira decisão do Tribunal Supremo a considerar que as diferenças de tratamento, porque não justificadas, eram arbitrárias, mas depois, já na vigência das modificações legislativas introduzidas pelo Real Decreto Ley 9/2013, o Tribunal Supremo não encontrou fundamentos para sustentar um juízo de inconstitucionalidade relativamente à cobrança daquelas quantias] — e custos relativos à regulação socio-ambiental, como sucede com as licenças de emissões, do regime europeu de comércio de licenças de emissões, suportadas por alguns produtores de energia elétrica (artigo 17.º/3a) e anexo IV do Decreto-Lei n.º 38/2013, de 15 de Março) (também sobre a não qualificação das “penalizações” por emissões excedentárias de dióxido de carbono como impostos, v. acórdão n.º 80/2014, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 12 de Março de 2014).

                               Neste novo contexto – o do Estado regulador – as contribuições financeiras impostas aos operadores económicos, quer para financiar os sobrecustos do sistema, quer para financiar novos encargos no contexto da regulação social, cumprem ainda a exigida “conexão entre a origem das receitas [o pressuposto do tributo] e o destino [finalidade] que a lei lhes assinala”; conexão que neste caso é reconduzida a uma ‘relação causal’ entre o Estado, na qualidade de garantidor do funcionamento eficiente e socialmente equitativo do sistema (neste caso do sector energético), e o sujeito passivo.

                               Ora, a CESE ao ser exigida aos operadores do sector energético com o intuito de financiar políticas do sector energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética e com a redução do stock da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, inscreve-se claramente neste tipo de contribuições exigidas pelo modelo económico-social do Estado regulador.

                                Assim, há-de reconduzir-se à categoria jurídico-dogmática das contribuições financeiras a favor de entidades públicas.

                               1.3. Entretanto, não se diga, contra a conclusão a que acabou de chegar-se, que – consoante alega a Requerente – «pelo menos para efeitos do Orçamento do Estado para 2014, a CESE constitui fundamentalmente uma medida de consolidação orçamental desenhada pelo Governo português ‘para cumprir o limite do défice de 4%’», o que vale por dizer, «uma receita destinada a financiar o Estado e o exercício das suas funções públicas em geral». Tratar-se-ia assim de um tributo «que serviu apenas como fonte de receita sobre um grupo particular de contribuintes para o esforço geral de consolidação orçamental do Estado português» ̶ o que deveria então (dir-se-á, consequentemente) levar a qualificá-la antes como um «imposto».

                               Um tal argumento não procede, desde logo porque a receita da CESE ficou consignada ab initio, já em 2014, e logo por força da Lei Orçamental para esse ano (veja-se o artigo 11.º do Regime da CESE, aprovado pelo artigo 228.º dessa Lei: a Lei nº 83-C/2013), ao «Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético» ̶ nos termos e para o cumprimento dos objetivos antes descritos. Ora, este «destino» ou esta «função» da receita, normativamente definidos, é que hão-de contar para a sua qualificação – sendo irrelevantes, face a eles, quaisquer considerações, de enquadramento mais geral da medida no contexto da necessidade de consolidação orçamental, que constem de textos oficiais, incluindo o preâmbulo de diplomas legais, relativas a esse contexto e à apresentação das medidas atinentes a esse genérico desiderato.

                               Mas depois, e em segundo lugar, o facto é que não há contradição necessária entre o destino ou destinos imediatos a que ficou afeta a CESE e esse objetivo mais amplo da consolidação orçamental – o que perfeitamente explica a referência a ambos (ou a articulação entre ambos) no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 55/2014. Não é, com efeito, pelo facto de as receitas da CESE serem consignadas ao Fundo, e de ser através deste que as mesmas vão ser alocadas à realização do objetivo central por elas visado (o financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sistema energético) – não é por isso (como bem se compreende) que elas deixam de contribuir menos para a consolidação das contas públicas portuguesas em geral.”

 

                Interessa notar que a qualificação da CESE como contribuição financeira implica que a sua parametria seja o princípio da equivalência e não a capacidade contributiva e/ou a tributação das empresas pelo seu lucro real, estes respeitantes à categoria de imposto.

 

B.            Sobre a não desconformidade constitucional da CESE

 

A não inconstitucionalidade da CESE tem sido declarada, de forma constante, pela jurisprudência contemporânea do Tribunal Constitucional e acolhida, por idênticas razões, pelo Supremo Tribunal Administrativo. Sem preocupações de exaustividade, enumeram-se os seguintes arestos:

 

a)            Do Tribunal Constitucional

             Acórdão n.º 7/2019, de 8 de janeiro de 2019 (CESE 2014)

             Acórdão n.º 436/2021, de 22 de junho de 2021 (CESE 2016)

             Acórdão n.º 437/2021, de 22 de junho de 2021 (CESE 2014)

             Acórdão n.º 438/2021, de 22 de junho de 2021 (CESE 2015)

             Acórdão n.º 513/2021, de 9 de julho de 2021 (CESE 2014, 2015, 2016)

             Acórdão n.º 532/2021, de 13 de julho de 2021 (CESE 2016)

             Acórdão n.º 735/2021, de 22 de setembro de 2021 (CESE 2015)

             Acórdão n.º 736/2021, de 22 de setembro de 2021 (CESE 2017)

             Acórdão n.º 756/2021, de 23 de setembro de 2021 (CESE 2016)

b)           Do Supremo Tribunal Administrativo

             Processo n.º 386/17.8BEMDL, de 8 de janeiro de 2020 (CESE 2016)

             Processo n.º 387/17.6BEMDL, de 16 de setembro de 2020 (CESE 2015)

             Processo n.º 0415/16.2BEVIS, de 16 de dezembro de 2020 (CESE 2015)

             Processo n.º 03037/16.4BELRS, de 13 de julho de 2021 (CESE 2015)

             Processo n.º 01587/18.7BEPRT, de 8 de setembro de 2021 (CESE 2017)

             Processo n.º 545/19.9BEPRT, de 8 de setembro de 2021 (CESE 2014)

               

                A Requerente não ignora esta jurisprudência, que segue a pronúncia do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 7/2019. Porém, considera-a intransponível para a CESE de 2019, objeto dos autos, pois a conclusão de não inconstitucionalidade aí alcançada assenta na relevância do caráter extraordinário da CESE, condição que, a seu ver, deixou de se verificar em consequência das sucessivas prorrogações do regime, das metamorfoses a que foi sujeito e da trajetória descendente do défice tarifário do SEN. 

 

                A questão que se coloca é a de, neste contexto, aferir se se verificou uma “alteração de circunstâncias” que justifique uma mudança no juízo de não inconstitucionalidade para a CESE de 2019, ora em apreciação, com a consequente desaplicação do seu regime.

 

                Importa, antes de mais, antecipar que, contrariamente ao que a Requerente alega, a jurisprudência mais recente sobre a matéria repondera e equaciona o regime da CESE tendo em conta as renovadas prorrogações e alterações no mesmo introduzidas até à Lei n.º 71/2018, mantendo o entendimento de que continua a revestir a natureza de um tributo temporário e extraordinário, bem como o julgamento de não inconstitucionalidade.

 

                A este respeito, declara o Tribunal Constitucional sobre a CESE de 2016, no acórdão n.º 756/2021, que:

 

                “[…] o caráter excecional da CESE não é infirmado pela prorrogação da medida até ao momento. Dados os objetivos financeiros e de políticas públicas em que se funda – redução do défice tarifário do SEN, e, com maior importância no caso dos operadores económicos desempenhando a atividade da recorrente, os encargos com os mecanismos de promoção da sustentabilidade do setor energético - não parece, nem resulta dos dados dos autos, que o período até agora decorrido consubstancie um prazo excessivo, ou desproporcionado para a sua prossecução.

                No entanto, mesmo que a recorrente tivesse razão – e que a evolução do regime jurídico e da prática de aplicação da CESE venha a comprovar, sem margem para dúvidas, e ao contrário do que pode afirmar-se com firmeza neste momento, a sua consolidação no ordenamento jurídico, não podendo, a partir de então, negar-se, o seu caráter permanente –, tal não implicaria, sem mais, a sua desconformidade constitucional. Na realidade, isso reforçaria o paralelismo com as demais contribuições financeiras exigidas a privados para financiamento da regulação de determinados setores de interesse geral – nomeadamente, e como se viu, o setor energético, entendido em termos latos, cuja sustentabilidade sistémica (e não meramente financeira, ou tarifária) se configura como uma forma de cumprimento do dever estadual de proteção do direito fundamental ao ambiente e à qualidade de vida, consagrado no artigo 66.º da Constituição. Nestes termos, a adoção de políticas de cariz social e ambiental direcionadas para o setor energético, bem como de medidas relacionadas com a eficiência energética, constitui, nesta sede, uma forma – de entre todas as que podem ser desenhadas pelo legislador no âmbito da sua larga margem de atuação nesta matéria – de dar cumprimento à obrigação de “promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações” e ainda de “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida”, previstas, respetivamente, nas alíneas d) e f) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP. Para a avaliação da constitucionalidade da medida nesse cenário, sempre seria, pois, indispensável uma análise detalhada dos concretos elementos atinentes ao regime de tributação, o que, naturalmente, não tem lugar na resolução do caso dos autos, que respeita apenas aos anos iniciais de vigência da CESE, em particular o de 2016.

                Ou seja, ao contrário da argumentação da recorrente, não se afigura decisivo o elemento da excecionalidade para um julgamento de não inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE. Tal caraterística reforça a argumentação plasmada no Acórdão n.º 7/2019, mas está longe de constituir o seu único pilar de sustentação. Para o juízo de não inconstitucionalidade então proferido – e que agora se renova – contribui, sobretudo, a caraterização dogmática do tributo como contribuição financeira, e o objetivo de financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor da energia, já que este permite afirmar a sinalagmaticidade do tributo, ainda que não referida a uma contraprestação específica.

                Assim, e independentemente do incumprimento da legislação que possa ter ocorrido, nos primeiros anos de vigência da CESE, quanto a transferências da receita obtida por via da sua cobrança para o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, a verdade é que, desde esta perspetiva, resulta plenamente aplicável a este caso tudo o que este Tribunal Constitucional disse acerca daquela contribuição em 2019.”

 

                Na mesma linha, o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.º 01587/18.7BEPRT, salienta (por apelo aos últimos acórdãos do Tribunal Constitucional), em síntese, o seguinte:

 

             O Tribunal Constitucional “não faz depender expressamente a conformidade constitucional das normas que instituem a CESE de especiais características orçamentais ou financeiras do exercício fiscal em que a respectiva exigibilidade se inscreve, ou seja, não associa o carácter extraordinário deste tributo a uma expressa temporalidade ou circunstância”;

             A subsistência de algumas medidas extraordinárias pode ser justificada “mesmo após o mais rigoroso período de contenção orçamental. Assim, por exemplo, a propósito da derrama estadual, concluiu o Tribunal (v. o Acórdão n.º 430/2016, II, 10.2) (…)”;

             Cabe na liberdade de conformação do legislador a possibilidade de agravar ou desagravar a carga fiscal, não se mostrando “manifestamente irrazoável” pressupor “que o sector energético, pelas características da atividade que desenvolve, se mostra especialmente capaz de suportar […] o encargo da CESE”;

             “[D]a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional não resulta que a excepcionalidade da CESE esteja associada a limites temporais ou circunstanciais expressos ou que a razoabilidade na exigibilidade do tributo, no âmbito da margem de livre conformação do legislador, se afigure afastada por algum dos princípios fundamentais indicados pela Recorrente”.

 

                De igual modo, a jurisprudência arbitral tem decidido pela não desconformidade constitucional da CESE, conforme as decisões nos processos n.º 312/2015-T, de 7 de janeiro de 2016, e n.º 151/2019-T, de 30 de setembro de 2019.

 

                Convém mencionar ainda que no processo arbitral n.º 248/2019-T, apesar de não ter sido conhecida a questão de mérito, em virtude de o tribunal se ter declarado materialmente incompetente, o recorte e a qualificação da CESE foram efetuados de harmonia com a citada jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, e bem assim, com a decisão arbitral no processo n.º 312/2015-T, que a enquadram como contribuição financeira a favor de entidades públicas.

 

                Tendo o regime da CESE sido objeto de escrutínio da jurisprudência, nos moldes acima sintetizados, resta analisar, em concreto, a argumentação com base na qual a Requerente pretende o seu afastamento.  

4.            ANÁLISE CONCRETA

 

A.           A tributação dos produtores de renováveis a partir de 2019

 

Do ponto de vista do direito constituído, constata-se que as únicas modificações relevantes do regime da CESE, operadas pela Lei n.º 71/2018, respeitam à eliminação da isenção (de que a Requerente beneficiava) aplicável aos electroprodutores de fontes renováveis com remuneração garantida (“feed in tariffs”) e à menção, no n.º 3 do artigo 313.º, de que “[a]tendendo ao seu caráter transitório, as necessidades da contribuição extraordinária para o setor energético acompanham a evolução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional e a consequente necessidade de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético.”

 

Começando pelo alargamento do âmbito subjetivo da CESE, convém relembrar que a Requerente exerce uma atividade de produção de energias renováveis inserida no setor energético e está abrangida por um regime de remuneração garantida, não se podendo considerar arbitrário o critério de seleção do alargamento da incidência subjetiva, tendo em conta que as entidades do setor da energia ligadas às fontes renováveis foram altamente subsidiadas através de um mecanismo gerador de déficit tarifário acumulado e que a “maior parte da dívida tarifária corresponde atualmente à produção em regime especial. Ou seja, aos subsídios que são pagos às produtoras de energias renováveis e à produção em cogeração” .

 

Deste modo, não se pode concordar com a afirmação da Requerente de que a CESE atinge indiscriminadamente quem não contribuiu para o défice tarifário, pois os centros electroprodutores renováveis estão na génese de sobrecustos significativos que para o mesmo contribuíram. É irrelevante, neste âmbito, a imputação de responsabilidade ao legislador pela criação do défice tarifário, pois, ainda que fosse o caso, o facto de as opções políticas e legislativas gerarem despesa, não constitui causa de invalidade dos tributos e dos impostos, são, até, diga-se, a sua razão de ser.

 

É fácil perceber também que a Requerente e os demais electroprodutores de fontes renováveis se enquadram no setor energético, fazendo parte do grupo de entidades que colhem os benefícios da atividade regulada exercida neste domínio, mantendo-se o vínculo sinalagmático e a bilateralidade (de grupo) essencial à caracterização da CESE como contribuição financeira, ancorada no princípio da equivalência. Adicionalmente, como acabou de se referir, os produtores renováveis inserem-se num subgrupo que contribuiu de forma mais do que significativa para o défice tarifário, atentos os sobrecustos gerados pela sua atividade .

 

Nestes termos, a incidência da CESE sobre os produtores de energia de fonte renovável, que passou a vigorar a partir de 2019, está em linha com os desígnios de conformação legislativa deste tributo: promover a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, não se vislumbrando qualquer elemento distintivo, face ao formato da CESE dos anos anteriores, que milite para a afastar da classificação de contribuição financeira.

 

B.            A perda do atributo “extraordinário” da CESE. Prorrogações e alteração de conjuntura

 

                Resulta do anteriormente exposto que a legitimação e caracterização da CESE como contribuição financeira assume uma “vocação conjuntural e vigência limitada” que, ao contrário do que a Requerente reclama, não é “determinada por um critério temporal”, circunscrito a um dado ano ou período, “mas conjuntural – a verificação periódica de um certo estado de coisas” .

 

                Em relação à dimensão temporal, a vigência da CESE desde 2014, assegurada através de sucessivas prorrogações, não constitui condição necessária e suficiente do desaparecimento do caráter extraordinário do tributo que depende, antes, da não subsistência do contexto que justificou a sua adoção. O que se prende com a demonstração de razões válidas que conduzam a critérios decisórios distintos daqueles que foram aplicados pela jurisprudência precedente, o que se afigura não ter sido logrado pela Requerente.

 

                Com efeito, no tocante à alegação de que as transferências das receitas da CESE do FSSSE para o SEN são residuais face aos montantes em causa e de que não têm sido com as mesmas financiadas políticas que contribuam para a sustentabilidade do setor energético, louvamo-nos no entendimento já expresso pelo Tribunal Constitucional de que não cabe indagar “se, de facto, a receita da CESE tem servido ou não para os fins legalmente previstos”, quando está em discussão um juízo sobre a constitucionalidade das leis, “e não o cumprimento das leis pelos órgãos administrativos, garantida através de meios contenciosos próprios” .

 

                Acresce que o subsequente argumento que a Requerente utiliza, reportado à trajetória descendente da dívida tarifária do SEN, que constitui um dos principais objetivos que presidiram à criação da CESE, indicia que estão a ser progressivamente alcançadas as metas a que o legislador se propôs e não o contrário , indiciando a valia da CESE na aproximação às metas traçadas.

 

                Todavia, isso não significa que tenha desaparecido a conjuntura justificativa da CESE, pois existe um caminho gradual a percorrer até à eliminação total da dívida tarifária, inicialmente prevista para 2020 no programa de resgate, perspetivada para 2022 no relatório de monitorização do FMI de 2015 e, em 2016, postergada para 2025 nos termos declarados pelo presidente da ERSE, como data possível, mas “muito exigente”. É certo que a conjuntura de contenção orçamental mais rigorosa está ultrapassada, porém, os propósitos da CESE permanecem válidos, pois ainda não foram alcançados os fins para que foi criada.

                A conexão da CESE à dívida tarifária sai reforçada com o n.º 3 do artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, ao tornar o respetivo regime dependente da evolução que se verifique. Assim, ao contrário da tese da Requerente, mantém-se a natureza circunstancial e extraordinária da CESE e os fundamentos de sustentabilidade do setor energético que suportam o seu regime, não tendo a Requerente demonstrado que os ainda cerca de três mil milhões de euros de défice tarifário acumulado registados em 2019 afastam a necessidade do mecanismo reditício da CESE para garantir o reequilíbrio (vg. económico) do sistema.

 

                Dito de outra forma, não basta, como a Requerente afirma, iniciar-se uma trajetória descendente da dívida tarifária, para que se considerem atingidos os fins para que a CESE foi criada: a sustentabilidade sistémica do setor energético. Nem a relativa melhoria da conjuntura orçamental é de molde a dispensar a contribuição e esforço adicional pedido aos operadores do setor em termos tais que não o fazendo o legislador estivesse a incorrer numa inconstitucionalidade por omissão da revogação do regime da CESE.

 

C.            Da alegada inconstitucionalidade da CESE de 2019

 

                Firmada a qualificação da CESE como contribuição financeira e não como imposto ou contribuição impositiva (equiparada), de natureza estritamente unilateral, fica prejudicado o conhecimento das inconstitucionalidades suscitadas que tenham essa qualificação [de imposto] como pressuposto, nomeadamente a violação do princípio da tributação pelo lucro real. 

 

                Relativamente ao recorte da base de tributação ser exclusivamente alicerçada em ativos, no caso, ativos regulados, independentemente da sua rendibilidade, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no citado acórdão n.º 7/2019 como sendo um critério adequado, posição que na íntegra se subscreve. Declara ainda que o facto de a sujeição à CESE depender do valor dos elementos do ativo, afastando assim “a imposição de um encargo à generalidade dos contribuintes, e ajustando a base de incidência em função dos diferentes grupos de sujeitos passivos do tributo, não é, ao contrário do que sustenta a recorrente, indício de desigualdade, mas, antes, de delimitação da base de incidência em função da presumida contraprestação, cujo benefício/custo respeita ao setor energético, desde logo, não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos.” Mais refere que não cabe ao Tribunal controlar as opções do legislador na escolha que este faz para estabelecer o quantum dos tributos, exceto se o critério definidor do montante for “manifestamente injusto, flagrante” ou ocorrer uma “desproporção intolerável”, o que, adianta-se, não sucede na situação vertente.

 

                No que se refere à violação do Princípio da Segurança Jurídica, na vertente de Proteção da Confiança, é incorreta a perspetiva da Requerente de que o caráter extraordinário da CESE implicaria uma limitação temporal fechada, como acima explicitado, ou, noutra perspetiva, de que se teria constituído na sua esfera uma expetativa fundada de manutenção prospetiva do regime de isenção.

 

                Relembra-se, que para haver lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança é necessário, de acordo com a jurisprudência constitucional , que se reúnam quatro requisitos essenciais: i) que o Estado (mormente o legislador) tenha adotado comportamentos passíveis de fundar nos particulares «expectativas» de continuidade; ii) tais expectativas devem ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; iii) devem ter sido feitos planos tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; e, por último, iv) não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

               

                Condições que, à face do que foi supra exposto, não se encontram satisfeitas, pois não foram alegadas razões válidas para se concluir diversamente do que o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal Administrativo decidiram, nesta matéria, em relação à CESE de 2015, 2016 e 2017.

 

                Releva, ainda, neste ponto que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados”  , o que representaria uma incomportável cristalização ad eternum da ordem jurídico-tributária e uma compressão inaceitável da margem de opção legislativa.

 

                Sobre a violação do Princípio da Proporcionalidade, nas vertentes de necessidade e proibição do excesso, e da Segurança Jurídica, à semelhança do que antecede, a Requerente não demonstrou circunstâncias passíveis de alicerçar o que alega, constatando-se que os fundamentos e objetivos legitimadores da CESE se mantêm idênticos após as alterações da Lei n.º 71/2018.

 

                Por fim, no tocante à suscitada violação do Princípio da Não-Consignação, a mesma depende da ausência do caráter temporário e extraordinário do regime da CESE. Concluindo-se pela não verificação deste pressuposto, fica prejudicado o seu conhecimento (v. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

D.           Juros indemnizatórios

 

A Requerente, peticiona, como decorrência da invocada anulabilidade do ato de autoliquidação da CESE, a restituição da importância paga, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

Dispõe, neste âmbito, o artigo 43.º da LGT que os juros indemnizatórios são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, circunstância que, na presente situação, não ocorreu, uma vez que se concluiu pela validade e manutenção do ato tributário sindicado, improcedendo, em consequência, os pedidos dependentes de restituição do tributo pago e de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

V.           DECISÃO

 

                Em face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)          Julgar improcedente a exceção de incompetência material;

(b)          Julgar improcedente o pedido de anulação do ato tributário de autoliquidação da CESE do ano de 2019, no valor de € 70.516,76, e do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa que o confirmou; e

(c)          Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios,

tudo com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

De acordo com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) o valor atendível, para efeitos de custas, quando seja impugnada a liquidação, é o da importância cuja anulação se pretende. Assim, dirigindo-se o pedido anulatório exclusivamente ao ato tributário de autoliquidação da CESE que totaliza € 70.516,76, é esse o valor da causa, que é, aliás, o indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.

               

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 2.448,00 a cargo da Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 28 de janeiro de 2022

 

Notifique-se.

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Ricardo Marques Candeias

José Coutinho Pires