Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 836/2014-T
Data da decisão: 2015-06-24  IUC  
Valor do pedido: € 39.643,66
Tema: IUC – Incidência subjetiva
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Processo n.º 836/2014-T

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…, S.A. (doravante designada por «requerente»), com sede na Rua …., n.º …, …-… Lisboa, com o número de pessoa colectiva …, tendo sido notificada da decisão de indeferimento de reclamação graciosa n.º … 2014 …, apresentada contra as liquidações de IUC identificadas no quadro 1 (constante da p.i.), relativas a IUC dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, acrescidas dos respectivos juros compensatórios, apresentou, em 9/2/2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 5.º, n.º 2, als. a) e b), 6.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, todos do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “declaração de ilegalidade das referidas liquidações”, assim como a devolução “do montante desembolsado, acrescido de juros indemnizatórios.”

 

            1.2. Em 20/4/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 22/5/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da requerente.

 

            1.4. Por despacho de 17/6/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c) e e), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 24/6/2015 para a prolação da decisão arbitral.

           

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “os atos tributários em apreço respeitam a IUC devido sobre veículos matriculados nos anos de 2009 a 2012, cuja alienação pela Requerente aos seus clientes ocorreu até ao termo do prazo legal de 60 dias após a atribuição da matrícula”; b) “nalgumas dessas situações, a alienação dos veículos em nome dos clientes foi registada, também, até ao termo do prazo de 60 dias após a atribuição da matrícula”; c) “noutras, por motivos em regra alheios à Requerente, esse registo só se efectuou após o termo desse prazo ou não chegou a realizar-se”; d) “a interpretação que os serviços da administração tributária fazem [dos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 6.º do CIUC] padece de erro e inquina de ilegalidade os atos tributários em apreço”; e) “com efeito, estando em causa apurar quem é o sujeito passivo do IUC no ano da matrícula dos veículos, aquelas normas impõem a conclusão – inversa – de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário do veículo no termo do prazo de 60 dias após a atribuição da matrícula”; f) “o que resulta [dos artigos 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 3, 17.º, n.º 1, e 18.º, todos do CIUC, e artigo 42.º, n.º 1 e 2, do RRA] é que a propriedade é o facto que desencadeia a obrigação de imposto e que, no ano da matrícula, o IUC é devido por um período anual que se inicia com a data da matrícula”; g) “a propriedade do veículo para efeitos de incidência subjectiva não é legalmente sujeita ao mesmo teste que a propriedade para efeitos de nascimento da obrigação de imposto. Com efeito, ao invés de prever que aquela propriedade fosse atestada pela matrícula ou pelo registo, como sucede para efeitos de nascimento da obrigação de imposto (cf. artigo 6.º do Código do IUC), estabeleceu-se apenas uma presunção de propriedade (ilidível) a favor daqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados”; h) “uma interpretação conjugada e sistemática dos artigos 3.º, n.º 1, 4.º, n.º 2 e 6.º, n.º 1 e 3, todos do Código do IUC, com o n.º 1 do artigo 17.º e o n.º 1 do artigo 18.º, ambos do mesmo Código, leva de imediato à conclusão de que a incidência subjectiva do IUC no ano da matrícula deve ser aferida no prazo de 60 dias após a matrícula e, por conseguinte, no início do prazo de 30 dias para a liquidação do imposto”; i) “se tivesse sido intenção do legislador que a incidência subjectiva não fosse determinada no termo daquele prazo [de 60 dias após a atribuição da matrícula], mas antes, este teria previsto que o prazo de 30 dias para pagamento do imposto tivesse início logo que a propriedade do veículo estivesse registada”; j) “demonstrado que no caso em apreço as viaturas [...] foram alienadas aos clientes da Requerente até ao termo daquele prazo de 60 dias (cf. docs. n.º 5, 6 e 7), conclui-se que esta não é o sujeito passivo do IUC devido no ano da matrícula e, como tal, são ilegais os atos tributários relativos aos aludidos veículos, os quais devem ser anulados”; l) “[quanto aos 282 veículos que, embora alienados até ao termo do prazo de 60 dias após a tribuição da matrícula, não foram registados a favor dos aquirentes no referido prazo, como] o registo de propriedade não é facto constitutivo do direito e limita-se a presumir a sua existência, podendo ser afastado mediante prova em contrário [e] uma vez evidenciado que a Requerente não era proprietária dos veículos no termo daquele prazo de 60 dias, a presunção derivada do registo fica ilidida e, como tal, fica demonstrada a ilegalidade dos atos tributários em apreço”; m) “a propriedade dos automóveis em causa transferiu-se para os clientes da Requerente por efeito dos respectivos contratos de compra e venda, de que constituem prova as correspondentes faturas de venda (cf. doc. n.º 6), bem como os extratos contabilísticos da conta «clientes» (cf. doc. n.º 7 da reclamação graciosa)”; n) “da conjugação dos [...] artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75 e 7.º do Código do Registo Predial conclui-se que a função do registo é [...] a de dar publicidade à situação dos veículos, não tendo aquele natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa [...]. Deste modo, se os adquirentes, novos proprietários dos veículos, não providenciarem o registo do seu direito de propriedade, presume-se que este direito continua a ser do vendedor, podendo, todavia, esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário, ou seja, prova, por qualquer meio, da respectiva venda”; o) “em suma, afigura-se evidente que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC consagra uma presunção juris tantum ou ilidível”; p) “sendo procedente o presente pedido de constituição de tribunal arbitral [...], deve a Requerente ser reembolsada do montante indevidamente pago. Acresce que, decorrendo as liquidações contestadas de erro imputável aos serviços do qual resultou o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, assiste ainda à Requerente, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, o direito a juros indemnizatórios”.      

 

            2.2. Conclui a ora requerente que “deve o presente pedido de constituição de tribunal arbitral ser deferido e, em consequência, ser determinada a anulação dos atos tributários acima melhor identificados, bem como a Requerente reembolsada do montante desembolsado, acrescido de juros indemnizatórios.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que “da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorrem, inequivocamente, do art. 6.º do CIUC, as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a atribuição de matrícula ou o registo em território nacional”; b) que “o registo inicial de propriedade de veículos admitidos (como é o caso dos autos), tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo. Ou seja, a emissão de certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV por parte da Requerente e o pagamento do correspondente ISV e origina, automaticamente, o registo da propriedade do veículo ao abrigo do art. 24.º do RRA em nome da entidade que procedeu à sua importação [...] e à formulação do pedido de matrícula, ou seja, a Requerente”; c) que “nos termos do art. 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído no art. 3.º e art. 6.º, ambos do CIUC, sujeito passivo de imposto”; d) que “a atribuição, à Requerente, de um certificado de matrícula [constitui], nos termos do disposto no art. 6.º do CIUC, [...] o facto gerador do imposto, pelo que, tendo a Requerente solicitado a emissão de certificado de matrícula e encontrando-se o mesmo registado em nome desta, estão indubitavelmente reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto”; e) que “o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado no fim dos 60 dias a que alude o n.º 2 do art. 42.º do RRA, o qual seria pago nos 30 dias posteriores nos termos do art. 17.º do CIUC. E muito menos ficcionou que os importadores, não obstante procedam à venda dos vceículos antes da atribuição do certificado de matrícula, possam assim ver excluída a incidência subjectiva de IUC. O que o legislador consagrou é que o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo, consagrando expressamente o art. 24.º do RRA que tendo sido pago o ISV e pedida a matrícula, fica automaticamente o veículo registado em nome do importador, ou seja, da Requerente”; f) que, “independentemente de a Requerente proceder à venda do veículo aos seus clientes até ao termo do prazo legal após a atribuição da matrícula, tal circunstância, à luz do facto gerador consignado no art. 6.º do CIUC, é manifestamente inócuo, na medida em que o legislador consagrou expressamente que o facto gerador do imposto é atestado pela matrícula”; g) que “pese embora a Requerente alegue que até ao termo do prazo legal de 60 dias após a atribuição da matrícula ter já vendido os veículos aos seus clientes, tal facto é irrelevante para efeitos de aplicação do disposto no art. 6.º do CIUC”; h) que “estabelecendo o [art.] 6.º do CIUC a matrícula como facto gerador do imposto, este é exigível com a sua emissão independentemente de ocorrer registo em nome de outro proprietário”; i) que “a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição [uma vez que] o entendimento propugnado pela Requerente visa afastar a incidência subjectiva e tributação do IUC, não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas”; j) que “o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado [pelo que] o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida. [...] a Requerida limitou-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registal que lhe foi fornecida por quem de direito”; l) que “não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços [pelo que] não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios”.

 

2.4. A AT conclui, por fim, que “deverá ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.”

 

            2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A ora requerente é a distribuidora oficial da marca de automóveis «B…» em Portugal. No âmbito da sua actividade, a requerente importa automóveis da referida marca e, posteriormente, procede à alienação dos mesmos aos seus clientes.

 

            ii) Os veículos ora em causa (413) estão identificados no «Quadro 1» constante da p.i. – quadro que se considera aqui reproduzido, por não ter sido contestado e por envolver um número muito elevado de viaturas.

 

            iii) As liquidações em causa ascendem ao montante de €39.643,66, do qual €12.531,78 respeitam a 131 viaturas matriculadas entre os anos de 2009 e 2012, as quais foram alienadas e registadas a favor do cliente até ao termo do prazo de 60 dias após a data de atribuição da matrícula, como se pode verificar pela leitura do «Quadro 2», constante do ponto 27.º da p.i. – quadro que aqui se considera reproduzido, por não ter sido contestado e envolver um número elevado de viaturas. O valor remanescente (€27.111,88) respeita, por seu lado, a 282 viaturas, igualmente matriculadas nos anos de 2009 a 2012 e alienadas até ao termo do prazo de 60 dias após a data de atribuição da matrícula, mas registadas a favor do cliente após esse prazo (ou ainda sem qualquer registo posterior a seu favor), as quais estão discriminadas no «Quadro 3», constante do ponto 29.º da p.i. – quadro que aqui também se considera reproduzido, por não ter sido contestado e envolver um número elevado de viaturas.  

 

            iv) Em momento anterior ao ano e mês da tributação do imposto em causa, as viaturas em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da ora requerente, conforme se observa pela leitura dos Quadros supra referidos. Todas as vendas mencionadas nas listas dos «Quadros» 2 e 3 encontram-se suportadas pelas cópias das respectivas facturas de venda e das certidões de Registo Automóvel (docs. 5-7 da reclamação graciosa apensa ao PA instrutor). A autenticidade desses documentos não foi posta em causa pela AT, nem na reclamação graciosa, nem nos presentes autos.

 

            v) Ainda que inconformada, a ora requerente procedeu ao pagamento voluntário do imposto em causa, ao abrigo do regime excepcional de dívidas fiscais e à segurança social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31/10 – pelo que beneficiou da dispensa de pagamento dos correspondentes juros compensatórios (doc. 1 da reclamação graciosa apensa).

 

            vi) Não se conformando com os referidos actos tributários, a ora requerente deduziu reclamação graciosa a 31/3/2014, a qual foi indeferida por despacho da Sra. Chefe de Divisão a 3/10/2014.

 

            2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se, como alega a AT, as vendas, ainda que comprovadas por facturas e realizadas dentro do prazo para registo, são “irrelevante[s] para efeitos de aplicação do disposto no art. 6.º do CIUC”; 2) saber se o artigo 3.º do CIUC encerra uma presunção e se a mesma pode ser ilidida; 3) saber se – como também alega a AT – houve, por parte da requerente, uma “interpretação [...] contrária à Constituição”; 4) saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente. 

 

 

 

 

 

            Vejamos, então.

 

            1) Atendendo ao que dispõe o artigo 6.º, n.º 1, do CIUC, verifica-se que constitui facto gerador da obrigação do imposto a propriedade do veículo, conforme atestado pela respectiva matrícula em território nacional.

 

Contudo, como se refere, em caso similar, na DA relativa ao processo n.º 43/2014-T, de 14/7/2014, que aqui se reproduz, por com ela se concordar:

 

“[Como] o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção ilidível, cumpre ainda analisar se esta presunção foi efectivamente ilidida por parte da Requerente, conforme resulta do disposto no artigo 73.º, da Lei Geral Tributária que «as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis». Assim, deve a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veiculo e, nesse sentido, que foi considerada pela Requerida como sujeito passivo de imposto, demonstrar mediante elementos de prova disponíveis que não é o real proprietário do veiculo e, bem assim, que a propriedade foi transferida para outrem. Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu prova documental [...] que demonstr[a] que à data das liquidações não se considerava proprietária dos veículos em causa. [...]. [...] entendemos que as facturas de venda apresentadas [...] gozam de presunção de veracidade e, neste sentido, de idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária. Neste sentido, considera-se que a Requerida, ao não ter tido em consideração a prova documental junta pela Requerente, se encontra em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação. Por outro lado, em matéria de liquidação e de pagamento do imposto, estabelece o n.º 1 do artigo 17.º do Código do IUC que, no ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o imposto é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respectivo registo. Sendo que, de acordo com o artigo 42.º, n.º 2, do Regulamento do Registo de Automóveis, tratando-se de registo inicial de propriedade, o veículo deverá ser registado no prazo de 60 dias a contar da data da atribuição da matrícula. Ou seja, no ano da matrícula, apenas é possível determinar o sujeito passivo do Imposto Único de Circulação findo o prazo para registo, ou seja, o prazo de 60 dias, contados da matrícula, pelo que apenas nesse momento o imposto se mostra exigível. Corroborando este mesmo entendimento, o Código do Imposto Único de Circulação estabelece no seu artigo 18.º, n.º 1, alínea a), («Liquidação Oficiosa») que, «Na ausência de registo de propriedade do veículo efectuado dentro do prazo legal, o imposto devido no ano da matrícula do veículo é liquidado e exigido: a) Ao sujeito passivo do imposto sobre veículos com base na declaração aduaneira do veículo, ou com base na declaração complementar de veículos em que assenta a liquidação desse imposto, ainda que não seja devido». Ou seja, de acordo com esta disposição legal, apenas nas situações em que a propriedade do veículo não é registada no prazo legal de 60 dias (artigo 42.º, n.º 2, do Regulamento do Registo de Automóveis) é que o imposto é exigido ao sujeito passivo do Imposto sobre Veículos. No entanto, não pode confundir-se o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos (in casu o Operador Registado) com o sujeito passivo do Imposto Único de Circulação. Na verdade, a Lei é clara, o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos apenas fica responsável pelo pagamento do imposto se não for possível determinar o sujeito passivo do Imposto Único de Circulação findo o prazo legalmente estabelecido para registo. Deste modo, nas situações em que o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos logra demonstrar que transmitiu os veículos em causa a terceiros antes do termo do prazo para registo, deverá concluir-se que logrou ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação. Aqui chegados, impõe-se concluir que a Requerente [...] logrou demonstrar, através da junção dos meios de prova identificados [...] que no prazo de 60 dias para registo transmitiu os veículos a terceiros. Ou seja, a Requerente logrou demonstrar que os veículos em apreço foram transmitidos dentro do prazo de 60 dias para registo e, consequentemente, antes do imposto se tornar exigível. Em face do exposto, e no que diz respeito à exigibilidade do imposto, conclui-se que a propriedade dos veículos em apreço foi transmitida mediante contrato de compra e venda e, bem assim, que à data em que o IUC se tornou exigível a Requerente já não era proprietária, conforme resulta da prova documental junta por esta.” (Itálicos nossos.)

 

            Nestes termos, com os quais se concorda, conclui-se, do mesmo modo, que:

 

A) No caso das situações em análise (vd. pontos iii) e iv) da matéria de facto provada), tendo a ora requerente apresentado, nomeadamente, as cópias das facturas de venda – as quais constituem meios de prova idóneos à luz do art. 75.º da LGT, para demonstrar que, no prazo de 60 dias, tinha transmitido os referidos veículos a terceiros –, conclui-se que logrou provar que já não era, à data em que o IUC em causa se tornou exigível, a proprietária dos mesmos, tendo, por esta via, afastado, validamente, a presunção que sobre ela incidia.

 

Esta conclusão abrange a totalidade dos veículos em causa (413) dado que, como se referiu, no momento de exigibilidade do imposto – que é o do registo –, a ora requerente fez prova bastante de que não era a efectiva proprietária nem, por essa razão, a responsável pelo pagamento do imposto.

 

2) Em reforço da conclusão retirada em A), justifica-se apurar a interpretação do art. 3.º do CIUC, para: i) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece uma presunção; ii) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a unidade do regime legal ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; iii) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita, no caso aqui em análise, a ilisão da mesma.

           

            i) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução da questão em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (vd. Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            ii) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico).

 

Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se notou na DA proferida no processo n.º 73/2013-T, de 5/12/2013: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            iii) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados – ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores –, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação.

 

            O registo gera, portanto, apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA relativa ao processo n.º 14/2013-T, de 15/10/2014, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de “prova bastante” das transmissões alegadas) foi realizada através da apresentação, nomeadamente, de cópias das facturas de venda, pelo que se demonstra que, à data do imposto, a ora requerente já não era a proprietária dos veículos.

 

            Por outro lado, o Tribunal também não vê razão para questionar tais documentos (nem foram apresentados elementos que permitam, fundadamente, duvidar da sua veracidade), e entende, por isso, que os mesmos são prova suficiente para demonstrar que a ora requerente não era, como se disse anteriormente, à data do imposto, a proprietária dos veículos em causa. A este respeito, vd., v.g., a DA proferida no âmbito do processo n.º 27/2013-T, de 10/9/2013: “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos veículos referenciados], [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

3) Conclui-se, em face do que foi supra exposto [em 1) e 2)], não existir “interpretação [...] contrária à Constituição”, ao contrário do que é alegado pela requerida nos pontos 70.º a 82.º da sua resposta.

 

            4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).

 

            A este respeito, assinala a DA proferida no processo n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.” No mesmo sentido, ver, por exemplo, as DA proferidas nos processos: n.º 170/2013-T, de 14/2/2014; n.º 136/2014-T, de 14/7/2014; n.º 230/2014-T, de 22/7/2014; e n.º 140/2014-T, de 29/8/2014.

 

            Atendendo à justificação citada, e com a qual se concorda, conclui-se, igualmente no presente caso, pela improcedência do referido pedido de pagamento de juros indemnizatórios.  

 

 

***

 

            V – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação relativos aos 413 veículos supra identificados, e o reembolso das respectivas importâncias indevidamente pagas.

            - Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €39.643,66 (trinta e nove mil seiscentos e quarenta e três euros e sessenta e seis cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €1836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 24 de Junho de 2015.

 

 

O Árbitro

 

(Miguel Patrício)

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.