Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 831/2014-T
Data da decisão: 2015-05-20   
Valor do pedido: € 557.403,78
Tema: IRS - Indemnização por garantia indevida; Mais-valias mobiliárias
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Paulo Lourenço e Dr. José Rodrigo de Castro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 26-02-2015, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A, NIF …, com domicílio na Rua …, na …, …, ..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro (doravante RJAT), e 95.º, 99.º e 102.º do CPPT, em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

A Requerente pretende que seja declarada a inexistência ou nulidade ou anulação da liquidação de IRS e juros compensatórios com o n.º 2014 …, de 08-08-2014, bem como indemnização pelos custos suportados com a eventual constituição e manutenção de uma garantia destinada a suspender um processo de execução fiscal originado pela referida liquidação ou juros indemnizatórios, no caso de a Requerente optar pelo pagamento da quantia liquidada.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-12-2014.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 10-02-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 26-02-2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a sua absolvição do pedido.

Por despacho de 20-04-2015, decidiu-se dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações.

As partes apresentaram alegações.

O Tribunal é competente e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)     Foi realizada ação de inspeção interna, pelos serviços de inspeção da Direção de Finanças de ..., em que foi elaborado um relatório que consta do processo administrativo cujo teor se dá como reproduzido, de que consta, além do mais, o seguinte:

Contudo, consultada a declaração de rendimentos do vendedor das ações (com referência ao ano de 2010), constatou-se que não consta na mesma a indicação de qualquer alienação de ações.

Assim, através do ofício n." …, de 2014-05-15, solicitaram-se elementos a A solicitando o seguinte, no prazo de 10 dias:

" Documento comprovativo da data da aquisição das quotas que deram origem ás ações resultantes da transformação da sociedade B…, por quotas em

"Cópia do contrato de venda das 9.920 participações sociais da B…, no montante de €2.590.913,09”

Este ofício enviado por carta registada, foi recebido na morada do sujeito passivo em 21 de abril, conforme "pesquisa de objetos nos CTT". Estes documentos juntam-se ern anexo III. O sujeito passivo até á data não cumpriu com o que lhe foi solicitado, nem estabeleceu qualquer contato com a AT para prestar qualquer esclarecimento.

III - 2) Enquadramento Fiscal

O ganho obtido com a alienação onerosa de 9.920 ações da B…, SA, constitui uma mais-valia/incremento patrimonial, nos termos da alínea a) do n,° 1 do art.° 9.° e alínea b) do n.°1 do art.°10º do código do IRS, considerando-se o mesmo obtido no momento da sua alienação: 15-01-2010 (n.°3 do art.° 10.° do código do IRS).

(...)

III - 3) Valor de Realização

Nos termos do n.º1 do art.° 43.° do código do IRS, o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, correspondendo o montante de realização ao valor da respetiva contraprestação (alínea f) do n.°1 do art° 44.º do código do IRS.

A alienação das ações por contrapartida monetária representou um ganho constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, conforme define a alínea a) do n.°4 do art.°10.° do código do IRS.

O valor de realização corresponde, em caso de venda, ao valor da respetiva contraprestação. Deste modo, o valor de realização das 9.920 ações alienadas em 15-01-2010, correspondeu ao valor recebido de €2.590.913,09, de acordo com o já mencionado contrato que juntamos no anexo II.

III -4) Valor de Aquisição

Quanto ao valor de aquisição das ações alienadas, as mesmas correspondem ao custo suportado para a sua obtenção, nos termos do art.°48.° do código do IRS:

"No caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 10°, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:

(...)

b) Tratando-se de quotas ou de outros valores mobiliários não cotados em bolsa de valores, o custo documentalmente provada ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;"

Tal como descrito no capítulo III - 1.1), a contribuinte foi notificada para exibir comprovativo documental do custo das ações alienadas.

Não deu qualquer resposta que comprove o valor de aquisição das ações alienadas conforme solicitado por ofício.

De acordo com o art.° 48°, al. b) do CIRS, tratando-se de quotas ou de outros valores mobiliários não cotados na bolsa, o valor de aquisição é o custo documentalmente provado

(não é o caso) ou na sua falta, o valor nominal.

No entanto por via da Direção de Finanças da Guarda, que efetuou a ação de inspeção a C…, obteve-se o documento do registo das ações que se junta em anexo IV. Neste, consta a data da primeira inscrição de titularidade e identificação do respetivo titular e o valor nominal de €5,00.

III - 5) Apuramento da Mais-Valia

Face ao exposto, a mais-valia não declarada resultante da alienação das 9.920 ações da B… SA, corresponde à diferença entre o valor de realização e de aquisição cias ações em questão, o que totaliza €2.541.313,09.

Deste modo, auferiu em 2010 uma mais-valía não declarada de €2.541.313.09 € mas nos nos termos do art.° 72.° do código do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) (com a redação aplicável ao ano de 2010) está isento de IRS, até ao valor € 500,00, o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias resultantes da alienação de acões e quando resultantes de operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10° do CIRS, é tributado à taxa especial de 20% nos termos do n.º 4 do artigo 72° do CIRS, pelo que o valor a corrigir de imposto (IRS) do ano de 2010 é de 205.775,00 €, conforme cálculos seguintes:

€ 2.541.313,09 - €500,00 = €2.540.813,09 X 20%= €508.162,62

(...)

Para que

Não restem dúvidas no que respeita à data de aquisição e respetivo valor da(s) quota(s) que estiveram na origem das ações resultantes da transformação da sociedade por quotas em anónima, dado fundamental por força do disposto na al.b] do n.° 4 do art. 43º do CIRS (Mais-Valias), foi no âmbito do presente direito de audição solicitado à Conservatória do Registo Comercial de ..., os registos das alterações ao pacto social e de outros acontecimentos, tendo sido enviados â AT, diversos documentos,

Com relevância para as seguintes Informações:

Na escritura de constituição em 1983, consta que o capital social da sociedade B…, Lda é de 1.100.000$00, integralmente realizado em dinheiro e representado por duas quotas, uma de 1.075.000500 pertencente à sócia, D e outra, de 25.000$00 pertencente à sócia, filha daquela, A.

Em 1993, a sócia D, prevendo a sua morte, efetua o testamento - registado em cartório notarial da …, deixando a esta filha, A, a sua quota de 1.075.000$00 e ao seu marido, E, o seu usufruto. Efetivamente é declarado o óbito em 06/05/1993. O marido, E renuncia gratuitamente ao usufruto da quota em 17/03/1998, conforme registo na Conservatória do Registo Predial de …, de 01/07/1998.

Em relação à situação agora descrita,

A quota de 25.000$00 que passou a pertencer ao sujeito passivo na data da constituição da sociedade em 1983, fica fora da tributação, por força do disposto no art.° 5° regime transitório da categoria G - do Decreto-Lei n.° 442-A/88, de 30 de novembro, situação que não foi considerada no projeto enviado ao sujeito passivo mas que agora irá ser tida em conta.

Em resultado,

No … Cartório Notarial de ..., em 17/03/1998, o sujeito passivo, Drª A, faz elaborar a escritura de Unificação e Transformação, em que diz ser a única sócia e gerente da sociedade comercial por quotas, B…, Lda, e que comparticipa com duas quotas, uma de 1.075.0000$00 e outra de 25.000,00 que unifica e concentra na sua titularidade numa só de valor nominal de 1.100.000$00 (€5.486,78) e ainda que a sociedade passa a Unipessoal, Lda.

Logo,

Considera-se que a quota no valor de 1.075.000$00 (€5.362,08) foi adquirida em 1998 e que sendo posterior ao Decreto-Lei n.° 442-A/88, não beneficia do regime transitório.

Por último,

E no que respeita ao valor da quota em consequência da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, para cumprir com o disposto no art.° 276° do Código das Sociedades Comerciais, o capital social de €5.486,78 teve de ser aumentado para €50.000,00, que, de acordo com o Relatório Justificativo da Transformação, na sua alínea F) é efetuado por duas vias: incorporação de reservas livres, no montante de €5.825,10 e de reservas legais, de €38.288,12, num total de €44.113,22.

                                                                                          '

Assim sendo,

Quota final = Quota inicial: €5.486,78 + aumento do capital social de €44.113,22 = €49.600,00.

Sendo que,

O restante, € 400,00 subscritos por entradas em dinheiro de novos sócios.

No ponto 5 do mesmo relatório, cada um dos sócios recebe da nova sociedade ações de valor nominal ao valor das quotas que irão deter após o aumento do capital social e que cada ação terá um valor nominal de €5,00, sendo que a sócia, Dra A recebeu 9.920 ações, num valor total de €49.600,00,

Valor este,

Igual ao apurado pela AT, no ponto III.4).

Apenas com a diferença que,

Para efeitos de cálculo da mais valias (MV) tem de ser expurgado do valor da mais valia que se apurou, à parte que corresponde à da venda da quota de 25.000$00 (= €124,70) que por ter sido adquirida antes de 1988, fica fora da sujeição aquando da sua alienação.

E este novo facto, leva-nos a recalcular a mais valia e o imposto em falta, o que nos leva ao ponto seguinte:

IX.2.3. Cálculo da mais valia, tendo em conta o disposto no art.° 5° - regime transitório da categoria G do DL n.º 442-A/88, de 20 de novembro

Considerando que:

1. Na transformação de sociedade por quotas para sociedade anónima, procederam ao aumento do capital social para €50.000, obrigatórios por lei, por incorporação de reservas livres e legais.

2. Que o capital social respeitante às quotas do sujeito passivo, €49.600,00 é igual ao somatório da quota inicial (una) com aumento do capital social, ou seja = €5,486,78 + €44.113,22.

3. Que a alienação da parte das acões que tem como origem uma quota no valor de €124,70, cuja alienação não está sujeita a IRS, então a MV que lhe corresponde tem de ser expurgada do total.

Assim sendo, há que distinguir os valores de realização, de aquisição e a mais-valia, correspondentes a parte da quota sujeita e da não sujeita.

Partindo dos valores conhecidos - coluna do total dos quadros seguintes - obtém-se os valores da parte sujeita e não sujeita, através da proporção entre as partes:

Optou-se por este método de cálculo, porque põe em evidência os valores de aquisição e de realização que irão para o anexo G da declaração modelo 3 - documento de correcão, em vez dum método mais direto, mas cuja conclusão seria a mesma.

Conclui-se então que a MV correspondente à alienação das ações que tiveram origem na parte da quota sujeita é de €2.483.565,60. É este valor a ser considerado no ponto 1.4.1., para efeitos de cálculo do IRS em falta.

Todos os referidos documentos se juntam em anexo V ao presente relatório pela ordem que foram sendo mencionados.

IX.3 • Conclusão

O direito de audição apresentada pelo sujeito passivo, não veio apresentar nenhum facto novo, com exceção da escritura de constituição da sociedade da B…, donde retiramos a informação da repartição de quotas que constituíam o capital social inicial da B… e que deram origem às acões, aquando da transformação da sociedade por quotas em anónimas, sendo que utilizamos essa informação para alterar o valor do imposto em falta, a favor do sujeito passivo.

Pelo que,

Se mantém a proposta de tributar a alienação das ações em causa, em sede de IRS, embora com a alteração no valor do imposto apurado, como decorre do ponto anterior e que passa de €508.102,62 para €496.611,12.

b)     Refere-se anda no Relatório da Inspeção Tributária:

Muito embora os rendimentos em análise serem mais-valias que podem ser tributadas por uma taxa especial fixa - art.°72.° do código do l RS -, sendo englobados por opção, o valor a apurar sujeito a imposto resulta de um saldo que vai sendo formado, pelo que os efeitos de liquidação e pagamento referentes a mais-valias realizadas apenas se esgotam no final de cada ano.

A não ser assim, tal também significaria que quem tivesse obtido uma menos valia até 27 de julho, também não a pudesse saldar com uma eventual mais valia obtida posteriormente e dentro do mesmo ano.

Conclui-se assim que o IRS é um imposto periódico com periodicidade regular anual, sendo o apuramento do rendimento efetuado no final do ano em que a mais-valia ocorreu, correspondendo o rendimento ao saldo apurado entre as mais valias e as menos valias realizadas no mesmo ano, o que significa que o facto tributário ocorre somente em 31 de dezembro, relevando assim a legislação em vigor nessa mesma data.

Estando a lei n. °15/2010, de 26 de julho, plenamente em vigora 31-12-2010, entende-se que a revogação da disposição normativa em análise, que excluía do rendimento as mais-valia auferidas com a alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, aplica-se às mais/menos valias ocorridas durante todo o ano de 2010.

Acrescenta-se ainda que,

Tendo sido aplicadas ao ano completo as novas taxas de IRS aprovadas pela Lei n.°11/2010, de 15 de junho, com entrada em vigor a 16 de junho, e a Lei n.°12- A/2010, de 30 de junho, com entrada em vigor a 01 de julho, tal também será de aplicar à revogação da exclusão de tributação das mais valias provenientes da alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses.

 

c)     Em 15-01-2010, por escritura pública celebrada nessa data, a Requerente e alienou as 9 920 ações de sua titularidade ã sociedade "C…, Lda", com sede na freguesia de …, concelho de Gouveia, renunciando, simultaneamente ao cargo de administradora;

d)     O preço global dessa alienação corresponde:

– 200 000,00 € liquidados e pagos em 16-12-2009 aquando da assinatura do respetivo contrato promessa,

– 2 390 913.90 € que a Requerente recebeu na data da escritura pública;

 

e)     A sociedade em causa teve origem na sociedade por quotas “B… Lda”, que foi constituída por escritura pública em 1983, com o capital social de 1 100 000 escudos, distribuído por duas quotas: uma de 25 000 escudos pertencente à ora Requerente A e outra de 1 075 000 escudos, pertencente à sua mãe D;

f)      Em 07-04-1993, a mãe da Requerente D legou em testamento a nua propriedade da sua quota à ora Requerente e o usufruto da mesma ao seu genro E, marido ao tempo da Isabel;

g)     A testadora veio a falecer em 26-05-1993 e o usufrutuário renunciou ao seu direito por escritura de 16-03-1998;

h)     A Requerente não declarou a alienação das ações referidas na declaração de IRS relativa ao ano de 2010;

i)      Na sequência da inspeção referida, foi elaborada a liquidação de IRS e juros compensatórios n.º 2014 …, cuja cópia foi junta com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

j)      A Requerente não alienou quaisquer outras partes sociais, no ano de 2010;

k)     A notificação da liquidação foi efetuada nos termos que constam do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, indicando-se, como meios de reação, que a Requerente «poderá reclamar ou impugnar nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 140.º do CIRS e 70.º e 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)»;

l)      Em 24-11-2014, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que a Requerente tivesse pago a quantia liquidada nem que tivesse prestado qualquer garantia para suspender execução fiscal relacionada com a liquidação referida nos autos.

 

 2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

Quanto aos factos não provados, não foi junto qualquer documento comprovativo de que tivesse sido paga a quantia liquidada ou tivesse sido prestada garantia.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Questão da ilegalidade da aplicação das alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de julho

 

3.1.1. Questão a decidir

 

Em 15-01-2010, a Requerente alienou ações de uma sociedade anónima que detinha há mais de doze meses.

Na redação do CIRS vigente naquela data, o artigo 10.º estabelecia, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 10.º

Mais-valias

 

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

(...)

b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia; (redação da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro)

(...)

2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:

a)        Ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; (Redação do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro)

 

A Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, revogou este n.º 2.

Com base neste contexto legislativo, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que os ganhos resultantes da referida alienação, ocorrida em 15-01-2010, antes da entrada em vigor desta Lei, estão sujeitos a tributação em IRS no ano de 2010.

A Requerente entende que os ganhos que obteve não estão sujeitos a tributação por lhes ser aplicável a exclusão de tributação que se previa na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 10.º, defendendo, em suma:

– que esse ganho ocorreu antes da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010 e não houve qualquer outro ganho no mesmo ano;

– que o facto tributário gerador de mais-valias em sede de IRS é constituído apenas pela transmissão, sendo com ele constituída a relação jurídica tributária e que, no caso, a lei vigente no momento em ele ocorreu que regulava a incidência real do IRS não sujeitava os ganhos obtidos a tributação;

– que o regime da Lei n.º 15/2010, de 26 de julho só vale para o futuro, nos termos dos artigos 103.º, n.º 3, da CRP e 12.º, n.º 2, da LGT; ( [1] )

– que a Autoridade Tributária e Aduaneira considera que são a mesma coisa normas de determinação da matéria tributável e normas de incidência e que ao processo de determinação da matéria tributável se aplica a proibição da retroatividade, no plano da substância, que não da forma (LGT, artigo 12º, n.ºs 1, 2 e, sobretudo, o seu n.º 4);

– que a Autoridade Tributária e Aduaneira viola também e ostensivamente a proibição do n.º 2 do artigo 36.º da LGT, segundo o qual "os elementos essenciais da relação jurídico- t0ributária não podem ter alterados por vontade das portes";

– que a Lei n.º 15/2010 estabelece que a sua entrada em vigor ocorre em 27-07-2010 e não 01-01-2010, nada havendo elementos interpretativos que permitam atribuir-lhe efeitos retroativos;

– que o artigo 12.º, n.º 2, da LGT ao referir que «se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor» só se aplica a normas de determinação da matéria tributável;

– a doutrina, jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e de Tribunais Arbitrais, é no sentido defendido pela Requerente.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, a posição assumida no Relatório da Inspeção Tributária

 

 

3.1.2. Antecedentes jurisprudenciais

 

A questão que é objeto do presente processo tem sido decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo no sentido defendido pelos Requerentes, designadamente nos acórdãos de 04-12-2013, proferido no processo n.º 01582/13, e de 08-01-2014, proferido no processo n.º 01078/12.

A jurisprudência arbitral não é uniforme sobre esta questão, pois, enquanto nos processos 25/2011-T, e 135/2013-T se decidiu no sentido defendido pelos Requerentes, nos processos arbitrais n.ºs 107/2014-T e 340/2014-T aplicou-se o entendimento contrário.

A tese defendida naquela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo é, em síntese, a seguinte:

«A Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, nada estabeleceu quanto à sua aplicação no tempo senão que entraria em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (cfr. o seu artigo 5.º), razão pela qual se deve entender, em conformidade com o disposto no n.º 1 dos artigos 12.º da Lei Geral Tributária e do Código Civil, que as alterações por ela introduzidas ao regime tributário em IRS das mais-valias mobiliárias se aplicam apenas aos factos tributários ocorridos em data posterior à sua entrada em vigor.

É certo que o IRS incide sobre o valor anual dos rendimentos das várias categorias legalmente previstas (artigo 1.º do Código do IRS), incluindo-se as mais-valias na categorias dos incrementos patrimoniais (artigos 9.º e 10.º do Código do IRS), havendo que, para determinação do rendimento coletável das mais valias, apurar o saldo entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano (artigo 43.º n.º 1 do Código do IRS).

Daí que, tendo os recorridos obtido também mais-valias tributáveis resultantes da alienação de ações ocorridas em data posterior à da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, a tais ganhos será já plenamente aplicável o regime tributário instituído pela Lei n.º 15/2010, pois que sendo o rendimento anual para efeitos de IRS um facto complexo de formação sucessiva, na ausência de norma expressa em sentido diverso, poderá aplicar- -se, sem retroatividade própria ou autêntica, a lei nova aos factos que o integram ocorridos a partir da sua entrada em vigor (artigo 12.º n.º 2 da Lei Geral Tributária)».

 

3.1.3. A ocorrência do facto tributário e a formação da relação jurídica tributária

 

A relação jurídica tributária é integrada pelos direitos e obrigações indicados no n.º 1 do artigo 30.º da LGT: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios.

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, da LGT «a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário».

Assim, antes de mais, é necessário apurar quando se constitui o facto tributário.

ALBERTO XAVIER ensina:

«Para que um facto desencadeie efeitos tributários é, pois, indispensável a sua correspondência a um dos tipos ou modelos de tributo criados pelo legislador. Assim, o que caracteriza a tipicidade no Direito Tributário não é tanto a necessidade da conformação do facto à norma para que o efeito se produza (...) antes é o facto de os efeitos tributários se não produzirem sem que essa conformação se reporte a normas expressamente formuladas com a força e sob a forma de lei.

O facto tributável é necessariamente um facto típico: e para que revista esta natureza é indispensável que ele se ajuste, em todos os seus elementos, ao tipo abstrato descrito na lei.

A tipicidade do facto tributável pressupõe, por conseguinte, uma descrição rigorosa dos seus elementos constitutivos, cuja integral verificação é indispensável para a produção dos efeitos: - basta a não verificação de um deles para que não haja, pela ausência de tipicidade, lugar à tributação. O facto tributável, com ser facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos que, por esta nova ótica, se convertem em elementos do próprio facto»

(...)

Os tipos legais de impostos contêm em si os elementos indispensáveis ou necessários à tribu­tação: é, já o vimos, a regra do numerus clausus ; os tipos legais de imposto encerram em si os elementos suficientes à tributação: é (...) o princípio do exclusivismo.

Por via deste princípio, os tipos legais de imposto contêm uma descrição completa dos elementos necessários à tributação: e, se em verdade se afirma que só os factos previstos na lei desencadeiam efeitos tributários, em não menor verdade se afirmará que bastam esses mesmos factos para o referido desencadear, com exclusão de quaisquer outros (e daí a designação por princípio do exclusivismo). Quer dizer: cada tipo tributário contém uma valoração definitiva das situações jurídicas que são seu objeto, para certos fins. ( [2] )

 

Nesta linha, deve entender-se, como bem se conclui no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22-05-2012, processo n.º 5232/11, que «o ato tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstrata e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objetivos (cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Ato Tributário, pág.324; Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1996, pág.57; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág. 269). Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efetuada».

Em sede de IRS, o facto tributário é, em regra, complexo, tendo por objeto o rendimento anual, decorrente de uma série de factos ocorridos em cada ano, a que é aplicada uma taxa global.

Mas, há várias situações em que o IRS incide sobre factos autónomos, com taxas diferentes da taxa global, embora, em regra, seja concedida a possibilidade de opção pelo englobamento.

Uma destas situações é, precisamente, a do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias obtidas em cada ano derivadas de factos enquadráveis nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS ( [3] ), que são autonomizadas para efeitos de tributação, nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS, mesmo em relação às restantes mais-valias e menos-valias de outros tipos previstas no n.º 1 do mesmo artigo 10.º. Na verdade, só por opção dos sujeitos passivos aquela saldo é englobado no rendimento geral de IRS, nos termos do n.º 7 daquele artigo 72.º, o não sucedeu no caso em apreço.

Mas, como decorre deste n.º 4 do artigo 72.º e também do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, o facto tributário é constituído pelo eventual saldo positivo que se apure no final de cada ano e não por cada uma das operações efetuadas ao longo do ano que proporcionam mais-valias, já que estas, só por si, não geram qualquer obrigação de imposto, apenas surgindo eventualmente um facto tributário, no final do ano, se a soma de todas as mais-valias obtidas de factos enquadráveis nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º do exceder a soma das menos-valias dos mesmos tipos.

Este regime não se altera nos casos, como o dos autos, em que ocorreu um único facto enquadrável naquelas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º que gerou mais-valias: também aqui, só no fim do ano se pode concluir pela existência de um saldo positivo que constitui facto tributário para efeitos de tributação nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS.

Assim, como se entendeu no acórdão do CAAD proferido no processo n.º 340/2014-T:

«O facto tributário não se traduz na mais-valia gerada e considerada de forma isolada e singular, através do ato da alienação, mas como um facto de formação sucessiva, não se revendo na alienação das ações em causa qualquer facto gerador de eventual incidência de imposto, já que, como dito, o mesmo resultará de um saldo apurado num determinado período de tributação, em conformidade com a característica de anuidade do imposto, que obviamente está presente do âmbito do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

Da mesma forma por efeito da regra da anualidade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ter-se-á que entender que o facto gerador ocorreu em 31 de dezembro de 2010, dada a incidência complexa do tributo em questão, e exigência que o mesmo acarreta em termos de visão unitária e global, não se compaginando tais características com qualquer autonomização ou cisão por períodos temporais dentro do mesmo exercício fiscal. [4]»

 

A esta luz, a Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, ao revogar o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, que excluía de tributação em IRS as mais-valias provenientes da alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, regula a formação de um facto tributário relativo ao ano de 2010 que é constituído pelo saldo entre mais-valias e menos-valias com tributação autónoma, antes de ele ocorrer, pois só se apura no final desse ano, pelo que a sua aplicação a todas as mais-valias e menos-valias daqueles tipos geradas em 2010 não envolve retroatividade, em face do sentido restrito que o Tribunal Constitucional tem atribuído à proibição de impostos retroativos que consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que tem entendido só abranger a retroatividade em sentido próprio, que se reconduz à aplicação da lei a factos cujos efeitos constitutivos de situações jurídicas já se produziram no passado, integrando todas as outras situações em que há ponderação de factos passados num conceito benevolente de retrospetividade. ( [5] )

A propósito da retrospetividade ensina SÉRGIO VASQUES que:

Um fenómeno distinto da retroatividade da lei fiscal é aquele que entre a doutrina se designa por vezes de retrospetividade da lei fiscal. Como vimos, a retroatividade produz-se quando a lei dispõe sobre factos tributários passados, seja aqueles que se formaram já por completo, seja aqueles cuja formação se encontra ainda em curso. O fenómeno da retrospetividade da lei fiscal, por seu lado, dá-se quando a lei nova, dispondo embora quanto a factos futuros, lesa expectativas fundadas no passado. (…) O problema da retrospetividade da lei fiscal coloca-se com maior acuidade ainda nos casos de eliminação de benefícios fiscais. Através da criação de benefícios o legislador encoraja diretamente certo comportamento por parte do sujeito passivo, considerado meritório por razões variadas de ordem extrafiscal. O contribuinte não pode ter a expectativa de que se mantenham intocados para todo o sempre os benefícios de que aproveita, amarrando-se o legislador a um princípio continuidade (Kontinuitätsgebot) incompatível com a evolução da economia, da sociedade e do próprio sistema político. Mas é verdade que a eliminação súbita de benefícios fiscais pode acarretar uma lesão grave das expectativas dos contribuintes, com consequências económicas de relevo[6].

Com efeito, este é um problema sobre o qual o Tribunal Constitucional se debruçou já por mais que uma vez, sempre sustentando que este problema escapa à proibição da retroatividade e deve antes ser avaliado em face do princípio da segurança jurídica resultante do artigo 2.º da CRP.

Sobre a análise do Tribunal Constitucional a propósito deste tema refere Sérgio Vasques que:

Em face deste princípio, a lesão das expectativas dos contribuintes deve considerar-se inadmissível sempre que (a) estejamos perante uma alteração da ordem jurídica com a qual os destinatários das normas razoavelmente não possam contar e (b) essa alteração não seja ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Com base neste teste de proporcionalidade, o tribunal tem entendido que para que uma medida seja censurada com base no artigo 2º é necessário “em primeiro lugar, que o estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas’ de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do ‘comportamento’ estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. [em nota de roda-pé salienta o mesmo Autor que: “Assim no acórdão do Tribunal Constitucional nº128/2009, de 12 de março, sublinhando a inexistência de “um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradouras”, ou no acórdão nº85/2010, de 3 de março, do maior interesse, relativa à introdução de uma alteração no Código do IRC pela Lei n°32-B/2002, de 30 de dezembro, nos termos da qual “a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital (...) concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”. Sustentava-se então que a aplicação desta regra a participações adquiridas antes da sua entrada em vigo violava o princípio constitucional da não aplicação retroativa da lei fiscal bem como o princípio da segurança jurídica, estabelecido no art.2º da Constituição da República, na medida em que “os contribuintes adquiriram participações sociais com base num determinado quadro legal, que era, aliás, o quadro normal ou típico, segundo o qual os ganhos da alienação dessas participações eram tributados e as perdas eram dedutíveis”. O Tribunal Constitucional descarta a retroatividade, por não encontrar sequer facto complexo de formação sucessiva, e recusa a violação do princípio da segurança jurídica, por inexistir encorajamento claro por parte do estado e ser de recusar uma qualquer “proibição de retrocesso” em matéria de deduções fiscais. A decisão parece-nos correta, enxuta e materialmente justa.”]”.[7]

Sendo assim, o único obstáculo a que sejam consideradas para o saldo anual das mais-valias e menos-valias as concretizadas anteriores da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010 só poderá advir da norma do artigo 11.º, n.º 2, da LGT, que estabelece que «se o facto tributário for de formação sucessiva a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor».

No entanto, da conjugação da regra da coincidência do ano fiscal com o ano civil, que vigora quanto ao IRS (artigo 143.º), com o n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, em que se estabelece que «o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes», conclui-se que não pode deixar de ser considerado o período anual integral, não havendo suporte legal mínimo para tributar com base em mais que um saldo nem com base um saldo de dimensão inferior ao ano.

Na verdade, a norma do artigo 43.º, n.º 1, do CIRS consagra manifestamente a tributação anual do saldo das mais-valias e menos-valias e realizadas em cada ano, pelo, afastando explicitamente a aplicação do princípio pro rata temporis, previsto no artigo 11.º, n.º 2, da LGT, constitui uma norma especial que a derroga no seu específico domínio de aplicação.

Esta interpretação, que resulta do teor literal do artigo 43.º, n.º 1, do CIRS, é corroborada pela discussão da Proposta de Lei n.º 16/XI, que veio a dar origem à Lei n.º 15/2010, em que explicitamente foi assumida pelo Governo a intenção de aplicar o novo regime ao saldo das mais-valias e menos valias da totalidade do ano de 2010, como se vê pelos seguintes excertos da discussão na generalidade que constam do Diário da Assembleia da República I série, Nº 55/XI/1, de 08-05-2010, referentes à intervenção do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Professor Sérgio Vasques:

 

«a receita a arrecadar com esta proposta depende, sobretudo, do regime de aplicação da lei no tempo e que, nessa matéria, nós insistimos num regime de aplicação da lei no tempo que previna a «lavagem» das mais-valias, de modo a que, ao fim e ao cabo, em vez de um sistema de tributação, tenhamos um novo sistema de isenção a vigorar daqui em diante» (página 17);

«o principal fator de evasão que aqui pode ser criado resultaria, isso, sim, de um regime de aplicação da lei no tempo que apenas sujeitasse as mais-valias que fossem produzidas com participações adquiridas depois da entrada em vigor da lei. Esse, para nós, é o ponto crucial, ou seja, é o de evitar que, dessas regras, não resulte uma «lavagem» imediata das mais-valias latentes (páginas 17-18);

«Desde há bom tempo que a doutrina moderna, um pouco na sequência da doutrina alemã e também da jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, tem vindo a entender que há uma diferença — essa, clara — entre retroatividade e retrospetividade da lei fiscal. E essa diferença explica-se rapidamente: lei fiscal retroativa é aquela que se aplica a factos passados; retrospetiva é aquela que se aplica a factos futuros, pondo, embora, em causa expectativas fundadas no passado.

Isso significa, muito simplesmente, que, quando olhamos a proposta aqui formulada pelo Governo, ela não é, evidentemente, retroativa, porque se aplica ao saldo apurado entre mais e menos-valias que se verifiquem no final do ano. E ç a esse saldo, aliás, que se aplica também a isenção dos 500 €, que figura na proposta.

Mas há uma coisa ainda mais clara, Sr. Deputado, do que aquilo que figura no artigo 103.º da Constituição: é que, se qualquer partido ou se o Governo viessem propor a esta Câmara a tributação das mais-valias produzidas com a alienação de participações adquiridas após a entrada em vigor desta lei, seguramente, quando a lei entrasse em vigor, já não haveria qualquer mais-valia a tributar. E, Sr. Deputado, essa é uma solicitação à qual o Governo, seguramente, não está disposto a responder» (páginas 20-21)

 

Por outro lado, a intervenção da Senhora Deputada Assunção Cristas foi expressamente defendida a posição contrária, dizendo «A bem da segurança jurídica, a bem da estabilidade legislativa, é avisado e seguro considerar que a lei só se aplica a aquisições efetuadas depois da sua entrada em vigor. Ou, no limite, é imperioso considerar que, pelo menos, a lei não se pode aplicar a valores mobiliários vendidos antes da sua entrada em vigor» (página 28 do referido Diário da Assembleia da República), o que confirma que a intenção do Governo era a aplicação imediata. ( [8] )

A redação final do diploma não consagra qualquer destas propostas de restrição dos efeitos da aplicação imediata da nova lei, pelo que a entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação que permaneceu no seu artigo 5.º, que já constava da Proposta de Lei, tem inequivocamente o alcance de expressar a intenção de aplicação do novo regime ao saldo das mais-valias e menos-valias gerados no ano de 2010.

Na verdade, se fosse outra a intenção legislativa, seguramente que se estabeleceria um regime especial de aplicação da lei no tempo, como desde há muito era usual relativamente às normas sobre a tributação de mais-valias. ( [9]

Por outro lado, no contexto de crise financeira acentuada que se vivia em 2010, não pode deixar de se concluir que as condições em que lei foi elaborada explicam a adoção de uma solução deste tipo.

Conclui-se, assim, que a liquidação de IRS cuja decisão de ilegalidade e pedida no presente processo, não enferma do vício que a Requerente lhe imputa.

O mesmo sucede com a liquidação de juros compensatórios, já que o único vício que lhe é imputado o que afeta o ato de liquidação de IRS.

 

3.2. Questão da preterição de formalidades legais

 

A Requerente imputa ao ato impugnado ilegalidade por preterição de formalidades legais que consiste em a notificação à ora Requerente, constante de folhas 2 do Documento n° 1 anexo ao pedido de pronúncia arbitral, não conter referência, para além dos meios de defesa aí citados (reclamação e impugnação), à possibilidade de requerer a constituição e pronúncia de Tribunal Arbitral Tributário, entendendo a Requerente que foi violado o n.º 2 do artigo 36.º do CPPT que estabelece que a notificação deve conter, além do mais, «os meios de defesa e prazo para reagir contra o ato notificado».

As irregularidades de natureza formal, designadamente as praticadas durante o procedimento de liquidação de tributos, podem repercutir-se nestes atos, afetando a sua validade.

Mas, como é óbvio, as irregularidades de atos posteriores à prática dos atos de liquidação não podem afetar a sua validade, pois o ato notificado tem o conteúdo que tem, legal ou ilegal, independentemente da notificação.

Na verdade, como decorre do disposto nos artigos 77.º, n.º 6, da LGT e 36.º, n.º 1, do CPPT, a notificação destina-se a assegurar a eficácia de atos de liquidação, a produção de efeitos em relação aos contribuintes, não tendo qualquer influência na legalidade ou ilegalidade dos atos que devem ser notificados.

Por outro lado, o artigo 37.º, n.º 1, do CPPT prevê um regime específico para a relevância dos vícios dos atos de notificação, inclusivamente para os casos de omissão de indicação dos meios de reação contra o ato notificado, que é o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.

Se o destinatário do ato não requerer (no prazo de 30 dias ou dentro do prazo de reação contra o ato notificado, se for inferior) a notificação dos elementos omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, deixará de ser relevante o vício da notificação, não podendo o destinatário aproveitar-se da sua invalidade, designadamente não podendo invocá-la para defender que o ato é ineficaz por ter sido invalidamente notificado.

De resto, tendo a Requerente efetivamente utilizado o direito de requerer a constituição de tribunal arbitral, o alegado vício da notificação sempre seria irrelevante por ter sido atingido o fim a que a formalidade omitida se destinava, que era informar a Requerente de tal possibilidade.

Por isso, a omissão referida, não tem qualquer efeito a nível da legalidade do ato notificado, pelo improcede o pedido de pronúncia arbitral, na parte em que é pedida a eliminação jurídica do ato de liquidação com este fundamento.

 

4. Juros indemnizatórios e indemnização por garantia indevida

 

Não enfermando os atos de liquidação de IRS e juros compensatórios do vício que os Requerentes lhes imputam, não há fundamento para atribuir indemnização decorrente da garantia prestada para suspender a execução fiscal nem juros indemnizatórios, pois os juros indemnizatórios e a indemnização por garantia indevida dependem de o ato de liquidação enfermar de erro imputável aos serviços (artigos 43.º, n.º 1, e 53.º, n.ºs 1 e 2, da LGT), o que não sucedeu.

Improcedem, assim, os pedidos de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

 

5. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral;

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em

a)     julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, quanto pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRS n.º 2014… e de juros compensatórios n.º 2014… e respetiva demonstração de acerto de contas;

b)     julgar improcedente o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 557.403,78.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.568,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

 

Lisboa, 20 de maio de 2015

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

 

(Paulo Lourenço)

 

 

 

(José Rodrigo de Castro)

 

 



[1]             A Requerente faz ainda uma referência ao artigo 100.º do CPPT, que estabelece que «sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado».

Não se vislumbra como possa ter relação com a questão em apreço, pois aquela norma visa apenas definir o ónus da prova nos casos em que há dúvidas a nível da matéria de facto sobre a existência ou quantificação de facto, o que não sucede no caso em apreço, em que há acordo quanto aos factos que ocorreram, estando em causa apenas a sua relevância jurídica, matéria que não se abrange no âmbito do referido artigo 100.º.

[2]             Conceito e Natureza do Ato Tributário, páginas 323-324 e 325-326.

[3]             Saldo este para que não relevam as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita no país, território ou região de domicílio a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista provada por portaria do Ministro das Finanças, como decorre do n.º 5 do artigo 43.º do CIRS.

[4]             Artigo 143º do CIRS: Para efeitos do IRS, o ano fiscal coincide com o ano civil.

[5]             Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 523/2010, de 27-10-2010, proferido a propósito de alterações ao IRS de 2010 introduzidas no decurso do ano, em que se conclui:

Em suma, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroatividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroativa tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos diretos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos).

               Na mesma linha, podem ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 28/2009, 85/2010, 524/2010 e 399/2010.

[6] Sérgio Vasques – Manual de Direito Fiscal, Almedina, páginas 299 e 300.

[7] SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, páginas 300 e 301.

[8]             Segue-se, nalguns pontos, o voto de vencido proferido pelo Senhor Dr. João Menezes Leitão no processo do CAAD n.º 135/2012-T.

[9]             Por exemplo:

– o artigo 2.º, §§ 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 46373, de 09-06-1965, que aprovou o Código do Imposto de Mais Valias, que estabelecem que os ganhos a que respeitam os n.ºs 1.º e 2.º do artigo 1.º do código só ficam sujeitos a imposto quando o terreno tiver sido adquirido ou a transmissão onerosa tenha ocorrido após a data deste diploma;

– o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, ao estabelecer que «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efetuado depois da entrada em vigor deste Código»;

– o artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, em que se estabelece que «A nova redação dos artigos 10.º, 41.º e 75.º do Código do IRS é apenas aplicável às partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos após a data de entrada em vigor da presente lei, mantendo-se o regime anterior de tributação para as mais-valias e menos-valias de partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos antes dessa data»;

– no Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro, estabeleceu-se, no artigo 3.º que produzia efeitos a partir de 1 de janeiro de 2003.