Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 552/2021-T
Data da decisão: 2022-07-11  IRS  
Valor do pedido: € 51.673,73
Tema: IRS - presunção de notificação e admissibilidade de prova em contrário; exercício do direito de audiência.
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SUMÁRIO: 

 

I. Sendo suscitada, no exercício do direito de audiência, a questão de saber se foi ou não válida a notificação do sujeito passivo do resultado da avaliação oficiosa de prédio de cuja alienação resultaram mais-valias tributáveis em sede de IRS, deve a administração tributária e aduaneira pronunciar-se sobre ela na fundamentação da decisão de proceder às correcções que deram origem à liquidação adicional de IRS. 

 

II. A consideração por parte da administração tributária de que a presunção de notificação do n.º 3 do artigo 39.º do CPPT é inilidível, quando na verdade admite prova em contrário, por inviabilizar o esforço de ilisão da presunção do sujeito passivo, constituiu um vício de lei que inquina o acto tributário, determinando a sua ilegalidade. 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

1.              Relatório

 

 

A - Geral

 

 

1.1.         A..., contribuinte fiscal número ..., e B..., contribuinte fiscal número ..., casados entre si e residentes na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., Vila Nova de Gaia (de ora em diante designados “Requerentes”), apresentaram no dia 03.09.2021 um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, a declaração de ilegalidade e anulação do acto de liquidação de Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (de ora em diante “IRS”), referente ao ano de 2018, n.º 2021..., no valor de € 48.410,55 , da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., no valor de € 141,22 e € 3.121,96, respectivamente, como adiante melhor se verá. 

 

1.2.         Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.         Por despacho de 27.09.2021, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. ... e Dra. ... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.         Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 17.11.2021.

 

1.5.         No dia 22.11.2021 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Requerida para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional. 

 

1.6.         No dia 30.12.2021 a Requerida juntou aos autos o processo administrativo e a 06.01.2021 a sua resposta. 

 

 

B – Posição dos Requerentes

 

 

1.7.         No início do ano de 2015, os Requerentes e a sociedade comercial por quotas que gira sob a firma “C..., UNIPESSOAL, LDA., NIPC ... (de ora em diante, “C...”), negociaram a compra e venda de um prédio rústico, da propriedade daqueles, denominado de “...”, composto por terreno de eucaliptal, pinhal, mato e pastagem, situado no Lugar ... freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º, da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º..., da dita freguesia de ..., com valor patrimonial tributário de € 683,40 (seiscentos e oitenta e três euros e quarenta cêntimos) e com a área total de 1.600.000 m2.

 

1.8.         Como condição para a realização do referido negócio, convencionou-se a transformação de parte desse prédio rústico em urbano, mais concretamente, da área de 9.750 m2, a fim de ser construída uma unidade de produção de energia a biomassa para o exercício da actividade comercial da referida sociedade.

 

1.9.         Foi convencionado entre os Requerentes e a dita sociedade que tal obrigação de transformação de parte do identificado prédio ficava a cargo da referida sociedade comercial, comprometendo-se os Requerentes a prestar a colaboração necessária a tal fim.

 

1.10.      A C... procedeu, a expensas exclusivamente suas, à transformação de parte do prédio rústico, com a dita área de 9.750 m2, em prédio urbano, o que deu origem ao prédio urbano, composto por terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º, da identificada freguesia.

 

1.11.      Foi acordado entre os Requerentes e a C... que o preço da compra e venda do imóvel em causa era de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a ser integralmente pago na data da outorga da escritura pública.

 

1.12.      No dia 03.08.2018, por escritura pública, foi celebrado o contrato de compra e venda do imóvel, referido como prédio rústico, pelo preço de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

 

1.13.      O preço foi pago pela C... aos Requerentes por cheque, que estes depositaram em conta por si titulada. 

 

1.14.      Entretanto, a Requerida promoveu oficiosamente a alteração da tipologia do prédio rústico para terreno para construção, pelo que o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º deu origem ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...º da freguesia de ..., concelho de ... . 

 

1.15.      O prédio inscrito sob o artigo ...º foi avaliado oficiosamente, tendo-lhe sido atribuído um valor patrimonial tributário (de ora em diante, “VPT”) de € 290.420,00 (duzentos e noventa mil quatrocentos e vinte euros), do que os Requerentes não foram notificados. 

 

1.16.      No dia 02.04.2020, os Requerentes instauraram procedimento visando a prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (de ora em diante “CIRC”), aplicável por força do disposto no artigo 44.º, n.º 6, do Código do IRS (de ora em diante “CIRS”), mediante envio da petição por correio electrónico e via postal.

 

1.17.      O procedimento referido no ponto anterior foi rejeitado pela Requerida, que o julgou intempestivo, por ter considerado que os Requerentes haviam sido notificados do resultado da avaliação / Valor Patrimonial Tributário, bem como dos meios de defesa que tinham, caso não concordassem com o valor atribuído, tendo a notificação ocorrido com a assinatura do Aviso de Recepção, ou seja, a 05.12.2019.

 

1.18.      Sucede que a carta foi recebida e o dito Aviso de Recepção assinado por uma funcionária de uma sociedade comercial de que os Requerentes são gerentes. 

 

1.19.      Assim, os Requerentes, titulares do imóvel em causa, nunca foram notificados do resultado da avaliação / Valor Patrimonial Tributário, nem dos meios de defesa que tinham, caso não concordassem com o valor atribuído, não tendo alguma vez acusado a recepção de qualquer notificação da Requerida com esses fins, já que a carta entregue no domicílio fiscal dos mesmos não chegou ao seu conhecimento.

 

1.20.      Por não se conformarem com a decisão de arquivamento do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, os Requerentes instauraram, a 13.01.2021, acção administrativa especial de impugnação desse acto, a qual, sob o processo n.º ..../21.6BEBRG, corre termos na Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

 

1.21.      Não obstante, a Requerida procedeu à liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2018 e dos respectivos juros compensatórios, tendo notificado os Requerentes dos actos de liquidação ora postos em crise.

 

1.22.      Os Requerentes não procederam ao pagamento das quantias que lhes eram exigidas, tendo sido contra si instaurado processo de execução fiscal para o qual foram citados no dia 15.07.2021.

 

1.23.      Acresce que à data da avaliação oficiosa do imóvel supra identificado, o respectivo proprietário era a C..., que também não foi notificada do resultado da avaliação e do respectivo VPT.

 

1.24.      Tendo a liquidação adicional de IRS sido emitida sem que estivesse fixado definitivamente o VPT, a mesma está inquinada de ilegalidade e deve, por isso, ser anulada.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

1.25.      Considerando a pendência de acção administrativa para decidir sobre a tempestividade do procedimento de prova do preço efectivo de venda, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 44.º do CIRS e, por remissão, do artigo 139.º do CIRC, fica prejudicada a pronúncia arbitral sobre o mesmo acto tributário, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do RJAT.

 

1.26.      Embora o objecto do presente pedido arbitral seja o acto tributário de liquidação de imposto e o da acção administrativa a decisão de arquivamento do procedimento de prova, o efeito útil que se pretende em ambos é o mesmo: discutir o valor de realização considerado oficiosamente pela Requerida na liquidação de IRS do ano 2018.

 

1.27.      Assim, no âmbito do pedido de pronúncia arbitral cumpre apenas analisar a legalidade da liquidação de IRS do ano 2018, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º do RJAT.

 

1.28.      Uma vez que havia sido emitido pela Câmara Municipal de ... alvará de licenciamento de obras n.º .../2017, com data 10.07.2017, uma vez que o sujeito passivo não cumpriu a sua obrigação declarativa, a Requerida promoveu oficiosamente a alteração da tipologia de prédio rústico para terreno para construção (prédio urbano), com efeitos à data da atribuição do alvará de licenciamento de obras.

 

1.29.      Ora, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do CIRS, para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização o valor da respectiva contraprestação, estabelecendo o n.º 2 da mesma disposição que prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (de ora em diante “IMT”), sem prejuízo de poder ser feita prova de que o valor de realização foi inferior ao ali previsto, fazendo-se uso do procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC, com as necessárias adaptações.

 

1.30.      O direito de fazer a prova a que se refere o ponto anterior deve ser exercido nos prazos referidos no n.º 3 do artigo 139.º do CIRC, estando a tempestividade do pedido formulado pelos Requerentes com esse objectivo a ser apreciado na acção administrativa especial de impugnação que, sob o processo nº..../21.6BEBRG, corre termos na Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

 

1.31.      Considerando a Requerida que os Requerentes não apresentaram, em tempo, o pedido tendente a ser feita prova de que o valor de realização foi inferior ao VPT resultante da avaliação, é este, à data da venda, mas apurado com efeitos a 10.07.2017, que deve servir de base à liquidação de IRS do ano 2018. 

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

1.32.      O tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º RJAT, por entender que as Partes haviam carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, afigurando-se desnecessária a inquirição de testemunhas, porquanto não havia qualquer dissídio entre as Partes quanto à matéria de facto.

 

1.33.      Tendo os Requerentes apresentado um requerimento visando a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão arbitral prolatada no processo n.º 296/2021-T (que juntaram aos autos), o tribunal concedeu à Requerida prazo para sobre ele se pronunciar, o que fez nos termos seguintes:

 

1.33.1.  A decisão arbitral proferida no processo arbitral nº 296/2021-T transitou em julgado a 29.04.2022 e não fixou um novo valor patrimonial tributário ao imóvel nem se pronunciou sobre nenhuma das questões em que assenta o presente pedido arbitral;

 

1.33.2.  No que respeita à prova do preço efectivo da venda, trata-se de uma questão pendente de decisão do TAF de Braga, no âmbito do processo n.º ..../21.6BEBRG, sendo esta uma questão prejudicial relativamente ao presente pedido de pronúncia arbitral;

 

1.33.3.  No que respeita à fixação do VPT do imóvel, os ora Requerentes impugnaram a liquidação adicional de IMI de 2017 com fundamento no facto de não terem sido notificados da avaliação oficiosa do imóvel, o que os impediu de reclamar dessa avaliação ou de pedir uma segunda avaliação, questão igualmente pendente de decisão do TAF de Braga, no âmbito do processo n.º ..../20.3BEBRG. 

 

1.34.      No dia 03.06.2022, os Requerentes requereram a junção aos autos de documento notificado pela Requerida à compradora do imóvel em causa, demonstrativo de que o VPT não se achava definitivamente fixado à data das liquidações impugnadas, o que se defere.  

 

1.35.      Tendo sido convidadas a apresentar, querendo, alegações escritas, ambas as Partes o fizeram. 

 

1.36.      Nas suas alegações os Requerentes, além de respigarem o vertido nas peças por si apresentadas, sustentam que: 

 

1.36.1.  Em execução do decidido no processo arbitral nº 296/2021-T, a Requerida notificou a compradora do imóvel em referência, a C..., da avaliação do prédio e para, querendo, reclamar da mesma ou requerer ou promover uma segunda avaliação, nos termos do artigo 76.º do CIMI;

 

1.36.2.   Nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 1, do CIMI, “enquanto não tiver decorrido o prazo de 30 dias contados a partir da notificação da primeira avaliação ou não se tornar definitivo o resultado da segunda avaliação, quando requerida, fica suspensa a liquidação do imposto (…)”, o que demonstra que o VPT resultante da avaliação ainda não se consolidou na ordem jurídica;

 

1.37.      Por requerimento de 06.06.2022, os Requerentes, no exercício do direito ao contraditório, entendem que as acções que correm termos no TAF de Braga não são causas prejudiciais relativamente ao que cumpre decidir na presente acção arbitral:

 

1.37.1.  No processo n.º ..../20.3BEBRG, pede-se a declaração de anulabilidade das liquidações de IMI e de AIMI de 2017 e 2018, com fundamento na preterição de formalidade legal, consubstanciada na falta de notificação do VPT do imóvel, questão que se mostra despicienda em virtude do trânsito em julgado da decisão arbitral prolatada no processo nº 296/2021-T, que considera que o VPT não se encontra ainda definitivamente fixado;

 

1.37.2.  Já no que se refere ao processo n.º ..../21.6BEBRG, impugna-se a decisão de arquivamento do procedimento para prova do preço efectivamente pago na compra e venda do imóvel, com fundamento de que seria intempestivo, alegando-se a falta de notificação do VPT do prédio, o que se mostra irrelevante pelo trânsito em julgado da mencionada decisão arbitral, podendo até a acção administrativa vir a extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, dependendo do resultado da segunda avaliação do imóvel que venha a ser promovida pela comprador do prédio. 

 

1.38.      O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

1.39.      As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, estão regularmente representadas, não padecendo o processo de qualquer nulidade.

 

 

2.              Matéria de facto

 

2.1.      Factos provados

 

2.1.1.     No início do ano de 2015, os Requerentes e a sociedade comercial por quotas “C..., LDA., NIPC ..., negociaram a compra e venda de um prédio rústico, da propriedade daqueles, denominado de “...”, composto por terreno de eucaliptal, pinhal, mato e pastagem, situado no ... freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º, da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., da dita freguesia de ..., com valor patrimonial tributário de € 683,40 (seiscentos e oitenta e três euros e quarenta cêntimos) e com a área total de 1.600.000 m2 (art.º 10.º do pedido de pronúncia arbitral, não impugnado).

 

2.1.2.     As Partes convencionaram a transformação de parte do mencionado prédio rústico em urbano, mais concretamente, da área de 9.750 m2, a fim de ser construída uma unidade de produção de energia a biomassa para o exercício da actividade comercial da sociedade adquirente (art.º 11.º do pedido de pronúncia arbitral, não impugnado).

 

2.1.3.     Ficou acordado que a obrigação de transformação de parte do prédio rústico em prédio urbano ficava a cargo da sociedade adquirente (art.º 12.º do pedido de pronúncia arbitral, não impugnado). 

 

2.1.4.     As partes convencionaram a venda de um prédio rústico, comprometendo-se os Requerentes a prestar total colaboração à adquirente para o cumprimento da obrigação de transformação de parte do prédio de rústico em urbano (art.º 12.º do pedido de pronúncia arbitral, não impugnado). 

 

2.1.5.     A sociedade adquirente procedeu, a expensas exclusivamente suas, à transformação de parte do prédio rústico, com a dita área de 9.750 m2, em prédio urbano, o que deu origem ao prédio urbano, composto por terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...º, da identificada freguesia (art.ºs 13.º e 14.º do pedido de pronúncia arbitral e anexos n.ºs 6 e 7 do doc. n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.6.     Foi acordado entre os Requerentes e a sociedade adquirente que o preço da compra e venda do imóvel em causa era de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a ser integralmente pago na data da outorga da escritura pública (art.º 15.º do pedido de pronúncia arbitral, não impugnado). 

 

2.1.7.     No dia 03.08.2018, por escritura pública, foi celebrado o contrato de compra e venda do imóvel, havido como prédio rústico, pelo preço de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) (doc. n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.8.     O preço foi pago pela adquirente aos Requerentes por cheque, que estes depositaram em conta por si titulada (art.º 19.º do pedido de pronúncia arbitral, doc. n.º 4 e anexos n.ºs 9 e 10 ao doc. 5, ambos juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.9.     A Requerida, em Julho de 2019, promoveu oficiosamente a alteração da tipologia do prédio rústico para terreno para construção, pelo que o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º deu origem ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...º da freguesia de ..., concelho de ... (art.º 21.º do pedido de pronúncia arbitral, doc. n.º 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral e conteúdo de fls 15/103 do processo administrativo).

 

2.1.10.  O prédio inscrito sob o artigo ...º foi avaliado oficiosamente em Dezembro de 2019, tendo-lhe sido atribuído um valor patrimonial tributário de € 290.420,00 (duzentos e noventa mil quatrocentos e vinte euros) (art.º 22.º do pedido de pronúncia arbitral e doc. n.º 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.11.  O resultado da avaliação oficiosa foi enviado por via postal, com Aviso de Recepção, para o domicílio dos Requerentes (acordo das Partes).

 

2.1.12.  Quem assinou o Aviso de Recepção foi D..., funcionária de uma sociedade de que os Requerentes são gerentes (art.º 30.º do pedido de pronúncia arbitral e doc. a fls 35/103 do processo administrativo).

 

2.1.13.  No dia 02.04.2020, os Requerentes instauraram procedimento visando a prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 3, do CIRC, aplicável por força do disposto no artigo 44.º, n.º 6, do CIRS, mediante envio da petição por correio electrónico e via, no qual se pede que a administração tributária e aduaneira «se digne considerar provado que o preço efetivo na transmissão do direito de propriedade sobre o bem imóvel alienado por escritura pública de 03.08.2018, f oi de €50.000,00 (cinquenta mil euros), e, em consequência, se digne ordenar que se considere como valor de realização, para efeitos de determinação de ganhos sujeitos a IRS, este mesmo valor de €50.000,00 (cinquenta mil euros)» (art.º 25.º do pedido de pronúncia arbitral e fl. 5/11 do Relatório de Inspecção Tributária, a fls 11/103 e 54/103  do processo administrativo e doc. n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.14.  O procedimento referido no ponto anterior foi rejeitado pela Requerida, que o julgou intempestivo, por ter considerado que os Requerentes haviam sido notificados do resultado da avaliação / Valor Patrimonial Tributário, bem como dos meios de defesa que tinham, caso não concordassem com o valor atribuído, tendo a notificação ocorrido com a assinatura do Aviso de Recepção, ou seja, a 05.12.2019 (art.º 25.º do pedido de pronúncia arbitral e fl. 5/11 do Relatório de Inspecção Tributária, a fls 11 do processo administrativo).

 

2.1.15.  No Relatório de Inspecção Tributária refere-se que a decisão de rejeição liminar do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel apresentado pelos Requerentes e referido no ponto 2.1.13, teve por fundamento o seguinte:

 

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2.1.16.  Os Requerentes instauraram, a 13.01.2021, acção administrativa especial de impugnação da decisão de arquivamento do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, a qual, sob o processo nº..../21.6BEBRG, corre termos na Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (doc. n.º 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral e doc. a fls 60/103 e segs. do processo administrativo).

 

2.1.17.  No dia 01.03.2021, os Requerentes foram notificados do Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, referente à Ordem de Serviço n.º OI2019..., relativamente ao qual exerceram o direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT e do artigo 60º do RCPITA, no dia 11.03.2021(art.º 6.º do pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.18.  Tendo sido notificados do Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, os Requerentes, no dia 12.03.2021, exerceram o seu direito de audição prévia, tendo alegado que não foram notificado do resultado da avaliação que deu origem ao novo VPT do imóvel (art.º 4.º do doc. a fls 54/103 e segs. do processo administrativo).

 

2.1.19.  No dia 09.04.2021, os Requerentes foram notificados da correcção à matéria tributável em sede de IRS, resultante da acção de inspecção e, ainda, do Relatório de Inspecção Tributária, nos termos do artigo 62.º do RCPITA, de onde resultou a alteração do rendimento, efectuada nos termos do artigo 65.º, n.º 4 do CIRS, relativamente ao ano de 2018 (art.º 7.º do pedido de pronúncia arbitral e docs. a fls 34/103 e 37/103 do processo administrativo).

 

2.1.20.  A Requerida procedeu à liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2018 e dos respectivos juros compensatórios, tendo notificado os Requerentes dos actos de liquidação ora postos em crise (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.21.  Os Requerentes não procederam ao pagamento das quantias que lhes eram exigidas, tendo sido contra si instaurado processo de execução fiscal para o qual foram citados no dia 15.07.2021 (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.22.  À data da avaliação oficiosa do imóvel supra identificado, o respectivo proprietário era a C..., que também não foi notificada do resultado da avaliação e do respectivo VPT (doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral e doc. n.º 2 junto com a Resposta).

 

2.1.23.  Os Requerentes impugnaram as liquidações adicionais do IMI relativas ao prédio em causa, cujo processo, sob o n.º ..../20.3BEBRG, corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

 

2.1.24.  A sociedade adquirente do imóvel, a C..., impugnou as liquidações adicionais de IMT e de Imposto do Selo (de ora em diante “IS”) (art.º 43.º do pedido de pronúncia arbitral e doc. n.º 7, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.2.      Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a prolação da decisão que tenham sido dados como não provados.

 

2.3.      Fundamentação da fixação da matéria de facto 

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados, não havendo qualquer dissídio entre elas relativamente a essa matéria.

 

 

3.             Matéria de direito

 

3.1.      Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes:

a)     A de saber se o trânsito em julgado da decisão arbitral prolatada no processo n.º 296/2021-T se repercute ou exerce alguma autoridade na presente acção arbitral, como sugerido pelos Requerentes;

b)    A de apreciar se a instância deve ser suspensa em virtude da existência de uma acção pendente de decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito do processo n.º ..../20.3BEBRG, na qual os Requerentes impugnaram a liquidação adicional de IMI de 2017;

c)     A de avaliar se a instância deve ser suspensa em virtude de os Requerentes terem instaurado uma acção administrativa especial de impugnação da decisão de arquivamento do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel que nos vem ocupando, que corre termos na Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito do processo n.º ..../21.6BEBRG;

d)    Caso nenhuma das questões referidas nas alíneas anteriores impeça a apreciação do mérito da causa, a de apurar se as liquidações ora postas em crise são ilegais

 

3.2.      A decisão arbitral prolatada no processo n.º 296/2021-T e a sua eventual repercussão na presente acção arbitral

 

Por requerimento de 24.03.2022[1], os Requerentes juntaram aos autos a decisão arbitral prolatada no processo n.º 296/2021-T. Nessa acção, a C..., adquirente do prédio cuja alienação está na origem das liquidações ora impugnadas, peticionou a ilegalidade das liquidações adicionais de IMT e de IS, as quais se fundaram no novo VPT do dito prédio. Considerou o douto tribunal arbitral que os actos de liquidação postos em crise pela C... eram ilegais, uma vez que se demostrou que a C... não havia sido notificada da avaliação oficiosa promovida pela Requerida, como devia ter sido.

 

De resto, “a AT, em execução do julgado, notificou o comprador «C... (…)» que, em resultado da avaliação efectuada ao prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo ...º da freguesia de ..., foi atribuído ao prédio o valor patrimonial tributário de € 290.420,00 (…) e para, querendo, requerer segunda avaliação (…)[2]”.

 

No entender dos Requerentes, “o resultado da avaliação não se tornou definitivo, nem se consolidou na ordem jurídica, nos termos do artigo 118.º do CIMI, pelo que a AT actuou ilegalmente ao proceder à correcção ao rendimento colectável do IRS dos sujeitos passivos/Requerentes”[3].  

 

Entendem ainda os Requerentes que o trânsito em julgado da decisão arbitral do processo n.º 296/2021-T torna despiciendo saber se houve ou não notificação dos sujeitos passivos do resultado da avaliação oficiosa do imóvel, uma vez que ela permite ao presente tribunal considerar que o VPT do imóvel não se encontra definitivamente fixado[4].

 

A Requerida, por seu turno, entende que a decisão arbitral proferida no processo arbitral nº 296/2021-T, e que transitou em julgado a 29.04.2022, não se repercute na presente instância arbitral.

 

Tem razão a Requerida. 

 

Na presente instância arbitral impugnam-se liquidações referentes ao IRS de 2018 dos Requerentes, que se fundam nas correcções promovidas pela inspecção tributária ao abrigo da ordem de serviço OI 0I2019... . 

 

Já no processo arbitral n.º 296/2021-T a compradora do imóvel logrou obter a declaração de invalidade das liquidações de IMT e de IS devidos pela aquisição, por ter ficado demonstrado não ter sido notificado do novo VPT do imóvel, como era forçoso ter acontecido. Tal significa que a compradora poderá reclamar do valor fixado ou requerer uma segunda avaliação do imóvel para efeitos de fixação do VPT. E, por força do exercício desses direitos de defesa, o VPT poderá ser alterado, sendo evidente que a eventual redução desse valor sempre iria aproveitar aos Requerentes. Na verdade, não há dois prédios, há só um prédio e, consequentemente, não pode haver dois VPT – um para efeitos de determinação da mais-valia tributável em sede de IRS do alienante e outro para efeitos de cálculo do IMT e do IS devidos pelo adquirente aquando da aquisição. Sendo um prédio só pode haver um VPT. 

 

Contudo, entende o tribunal que as vicissitudes processuais da decisão que julgou ilegais as liquidações adicionais de IMT e IS se projectam e circunscrevem apenas na relação jurídica tributária entre o adquirente do imóvel e a fazenda pública. Como é evidente, a declaração de ilegalidade das ditas liquidações, com a possibilidade de vir a ser alterado o VPT do imóvel, não obsta à liquidação do IRS devido pelo alienante, sendo porém certo que essa alteração, para menos, se vai repercutir também na esfera jurídica do vendedor. Mas apenas se e quando for fixado ao prédio um VPT inferior ao que esteve na base da liquidação do IRS. Quer isto dizer que a ordem jurídica tem mecanismos que permitem resolver essa aparente contradição. E aparente porque na verdade, a decisão arbitral prolatada no processo n.º 296/2021-T não fixou nenhum outro VPT. O VPT que foi fixado pela avaliação oficiosa permanece válido e, no caso vertente, no que respeita ao IRS do alienante, eficaz até ser eventualmente substituído por outro. E é no momento dessa substituição que importa resolver o eventual problema decorrente da fixação de um VPT inferior ao que resultou da primeira avaliação, a avaliação oficiosa.   

 

Assim, como bem conclui a Requerida, não existindo qualquer identidade de causas de pedir, nem sendo as questões analisadas no processo arbitral n.º 296/2021-T questões prévias quanto à pretensão submetida a juízo no processo arbitral ora em apreço, não se pode concluir que aquele caso julgado tenha alguma autoridade sobre a presente instância. 

 

3.3.      As acções pendentes de decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga no âmbito dos processos n.º ..../20.3BEBRG e n.º ..../21.6BEBRG e a sua eventual repercussão, por prejudicialidade, na presente acção arbitral

 

Recordemos que os Requerentes intentaram duas acções que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, uma sob o n.º ..../20.3BEBRG, em que impugnam a liquidação adicional de IMI de 2017 e outra, sob o n.º ..../21.6BEBRG, correspondente a uma acção administrativa especial de impugnação da decisão de arquivamento do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel que nos vem ocupando.  

 

Os Requerentes, segundo alegam, terão tomado conhecimento da avaliação oficiosa promovida pela administração tributária e aduaneira do prédio objecto da compra e venda que está na origem dos presentes autos, pela notificação das notas demonstrativas de liquidação de AIMI, relativas aos anos de 2018 e 2019 e de IMI referentes aos anos de 2017 e 2018[5]

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Na sequência dessas liquidações, os Recorrentes reagiram impugnando-as judicialmente (o referido processo n.º ..../20.3BEBRG) e requerendo a instauração de procedimento para prova do preço efectivo na transmissão de imóvel, que foi indeferido por intempestividade, tendo os Requerentes igualmente impugnado essa decisão administrativa (o mencionado processo n.º ..../21.6BEBRG).     

 

No processo n.º ..../20.3BEBRG, os Requerentes sustentam a ilegalidade das liquidações de AIMI e de IMI com fundamento no facto de não terem sido notificados da avaliação oficiosa do imóvel, o que os impediu de reclamarem dessa avaliação ou de pedir uma segunda avaliação. Entende a Requerida que esta questão constitui uma questão prejudicial relativamente ao presente pedido de pronúncia arbitral, o que justifica a suspensão da instância, quanto a esta causa de pedir até que seja proferida decisão transitada em julgado naquela instância jurisdicional, a qual teve o seu início em data anterior à dos presentes autos. 

 

No processo n.º ..../21.6BEBRG, os Requerentes consideram ilegal a decisão administrativa de rejeição do seu pedido de ser instaurado procedimento para prova do preço efectivo na transmissão de imóvel, por extemporaneidade. Esse procedimento havia sido requerido com o objectivo de ser ilidida a presunção pela qual seria o VPT, por ser de montante superior ao declarado no contrato, o relevante para efeitos de cálculo do IRS a liquidar. 

 

É sabido que a “a instauração do procedimento previsto no art.º 139.º do CIRC é a forma legal da ilisão da presunção consagrada no art.º 64.º, n.º 2 do mesmo Código. Tal procedimento, é uma garantia da conformidade desta presunção com o disposto no art.º 73.º da LGT, na medida em que faculta aos interessados um meio adequado e suficiente para, sentindo-se prejudicados pela presunção em questão, demonstrarem, em procedimento próprio, a falta de aderência à realidade do facto por aquela presumido. O referido procedimento, previsto no art.º 139.º do CIRC, é um direito potestativo do contribuinte que, dentro do prazo previsto para o efeito, pode apresentar o seu pedido para que o mesmo seja levado a cabo, impondo-se, a realização do mesmo, nos termos legais, à AT”[6].  

 

Está bom de ver que saber se o pedido de instauração do dito procedimento foi ou não intempestivamente apresentado depende da resposta a dar à seguinte pergunta: foram ou não foram os Requerentes válida e regularmente notificados do resultado da avaliação na data em que um terceiro, no domicílio dos Requerentes, recebeu a carta e assinou o aviso de recepção?

 

Neste sentido, de facto, em ambos os processos judiciais tudo gira em torno de saber se os Requerentes foram ou não notificados do resultado da avaliação oficiosa do imóvel. E, não pode esconder-se, é também essa a pergunta que constitui o pano de fundo dos presentes autos arbitrais. 

 

Ora, existindo questão prejudicial numa causa, no caso até eventualmente duas, anteriormente proposta, é forçoso avaliar se se justifica ou não a suspensão da instância. A este propósito vale a pena citar, e beneficiar da sua clareza, o que foi decidido no processo arbitral n.º 944/2019, que correu termos no CAAD: 

 

Os artigos 272.º, n.ºs 1 e 2, do CPC estabelecem o seguinte, sobre a possibilidade de suspensão da instância por pendência de causa prejudicial: 

1 – O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. 

2 – Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens. 

Resulta do teor expresso do n.º 1, designadamente do uso da palavra «pode», usualmente utilizada na técnica legislativa para exprimir a atribuição de poderes discricionários, a suspensão da instância por pendência de causa prejudicial é de natureza facultativa[7].

 

Também noutra decisão arbitral do CAAD, prolatada no processo n.º 379/2019, se lê:

 

Ora, existindo questão prejudicial numa causa anteriormente proposta, nos termos do art.º 272.º do CPC, a suspensão da instância é um poder do Tribunal, e não uma imposição legal absoluta, como no caso da litispendência. Poder que obviamente não é de natureza discricionária. E por isso nos socorremos neste juízo do nº 2 do preceito citado, o qual nos diz que, “não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se (...) a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”.

 

Sendo a presente a causa dependente e encontrando-se tal causa em fase de decisão, afigura-se que os prejuízos da suspensão poderiam superar as vantagens, nomeadamente o prejuízo decorrente de se ver prejudicada a obtenção, por parte da Requerente, de uma definição célere da sua situação jurídica, sendo que tal constitui o principal escopo da jurisdição arbitral tributária.

 

(…)

 

No sentido da não suspensão da instância, consideramos dever pesar também, de modo decisivo, o princípio pro actione ou de prevalência da justiça material.

 

Há que recordar que o princípio pro actione, decorrendo do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados, consagrado no art.º 268.º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, está consagrada no texto constitucional especificamente a propósito do contencioso administrativo (“direitos e garantias dos administrados”). Não sem razão, pois num contexto, como o administrativo, em que as partes na relação controvertida se encontram em desigualdade, gozando a administração do privilégio de execução prévia, uma abordagem formalista da relação processual favorecerá sempre a administração pública.

 

A importância do princípio pro actione, e uma certa cultura formalista instalada, tem levado o legislador a tomar medidas enérgicas na sua defesa, sendo disso expressão o art.º 7.º do CPTA, que dispõe que, “para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.”

 

Não há dúvida de que esta norma (aplicável ao processo arbitral tributário em virtude do art.º 29º,  nº 1, al. c) do RJAT), enraizando-se no enunciado abstrato do princípio pro actione consagrado na lei constitucional, vai além deste, dirigindo ao julgador, seu destinatário, um comando de ação concreto: em caso de dúvida, deve ser privilegiada a interpretação das normas processuais mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva (Carlos Carvalho, juiz conselheiro do STA, Princípios do Processo Administrativo, in Direito e Processo Administrativo, Centro de Estudos Judiciários, 2016).

 

Assim sendo, considerando não existir identidade de pedido, considerando apenas existir identidade parcial da causa de pedir, e ponderando ainda o prejuízo que a suspensão da instância, em processo arbitral tributário, traz ao sujeito passivo (como já se explicou o prejuízo será sempre, por natureza, apenas do sujeito passivo), julga-se que todas as razões pesam no sentido da não suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º do CPC. 

 

Pelas razões expostas, entende o tribunal não suspender os presentes autos arbitrais até ao trânsito em julgados das acções acima identificadas. 

 

3.3.      Da legalidade das liquidações impugnadas

 

Por estar o tribunal em condições de poder proferir decisão sobre o mérito da causa, há que ajuizar da legalidade das liquidações ora postas em crise. 

 

É útil rememorar que o pedido de instauração do procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, apresentado a 02.04.2020 na sequência da notificação das liquidações de AIMI e de IMI, é anterior à notificação do Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, referente à Ordem de Serviço n.º OI2019..., que é de 01.03.2021, relativamente ao qual exerceram o direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT e do artigo 60º do RCPITA. 

 

No exercício do direito de audição, os Requerentes sustentam não corresponder “à verdade que os sujeitos passivos (…) tenham sido notificados do VPT e que o mesmo se tenha tornado definitivo em 2020-01-06”, respigando a petição que deu origem ao procedimento para prova do preço, em que alegaram nunca ter sido notificados do resultado da avaliação efectuada oficiosamente ao prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, tendo tomado conhecimento do dito VPT apenas quando foram notificados das Notas Demonstrativas de Liquidação de AIMI, relativas ao ano de 2018 e 2019, e de IMI referentes aos anos de 2017 e 2018.

 

Tanto no que se refere ao procedimento para prova do preço efectivo na transmissão do imóvel como no que esteve na base da liquidação adicional de IRS, os Requerentes levaram ao conhecimento da Requerida a sua alegação de que não foram notificados do resultado da avaliação oficiosa do imóvel. Ainda antes de se apurar se houve ou não houve notificação, esta alegação não pode ser ignorada. E parece que a Requerida a ignorou em absoluto. 

 

O n.º 3 do artigo 39.º do CPPT, que tem por epígrafe “perfeição das notificações”, dispõe o seguinte:

 

3 - Havendo aviso de recepção, a notificação considera-se efectuada na data em que ele for assinado e tem-se por efectuada na própria pessoa do notificando, mesmo quando o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro presente no domicílio do contribuinte, presumindo-se neste caso que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.

 

No caso dos autos, há aviso de recepção presumindo-se, portanto, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário, quando o dito aviso haja sido assinado por terceiro presente no domicílio do contribuinte. Não há qualquer dissídio quanto aos factos aqui referidos. A autoridade tributária e aduaneira remeteu para o domicílio, por carta com aviso de recepção, o resultado da avaliação oficiosa do imóvel, tendo a carta sido recebida e o aviso sido assinado pela Sra. D..., que presente estava no domicílio daqueles. É quanto basta para que a Requerida entenda que a notificação em apreço é considerada efectuada na pessoa do Requerente marido. Mais refere a Requerida, como vimos já, que à presunção subjacente neste n.º 3 do artigo 39.º do CPPT não é aplicável o disposto no n.º 2 do mesmo artigo. Quer isto dizer que, na leitura que faz a Requerida da norma em presença, a presunção é inilidível:  

 

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Segundo ensina o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, “as cartas registadas com aviso de recepção podem ser assinadas por qualquer terceiro presente no domicílio do destinatário, cujo número de documento de identificação oficial será anotado pelo distribuidor do serviço postal (n.º 4 deste artigo), o que foi cumprido, presumindo-se que a carta foi entregue à pessoa a quem é dirigida. Esta presunção poderá ser ilidida, demonstrando que a carta não chegou ao poder do destinatário”[8]. Estamos perante uma presunção legal que é, por regra, nos termos do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário. E o ónus dessa prova caberá a quem dela pretende beneficiar, ou seja, ao contribuinte. 

 

Claro está que para a demonstração da prova em contrário, todos os meios de prova se mostram idóneos, nomeadamente a inquirição de testemunhas. Não causará espanto que os Requerentes, para demonstrar que a carta expedida para o seu domicílio e recebida por pessoa nele presente nunca chegou ao seu efectivo conhecimento, tenham requerido a audição da pessoa que recebeu a carta e assinou o respectivo aviso de recepção. Claro que o depoimento da pessoa em causa, como não pode deixar de ser, é depois livremente apreciado por quem tem de tomar a decisão. O que não pode o decisor fazer é deixar de apreciar esse meio de prova, revelando a razão por que o toma por bom ou o motivo pelo qual não se fia nele. 

 

A Constituição da República, no n.º 5 do artigo 267.º, reconhece aos cidadãos o direito de participação na formação das decisões que lhes disserem respeito. Também no procedimento tributário se assegura o direito de participação do contribuinte na formação da decisão (artigos 45.º do CPPT e 60.º da LGT). No exercício do direito de audição, o contribuinte pode tomar posição sobre todas as questões relevantes para a decisão, sejam elas de facto ou de direito. 

 

Se o titular do direito de audiência, no exercício deste direito, suscitar elementos novos, eles deverão ser considerados na fundamentação da decisão. A apresentação de um elemento novo poderá justificar a realização de novas diligências que deverão ser realizadas oficiosamente ou a requerimento dos interessados, caso se devam considerar como convenientes para o apuramento da matéria factual em que deve assentar a decisão[9]. Saber se houve ou não houve notificação é, convenhamos, da maior importância. O direito à notificação constitui uma garantia não impugnatória dos contribuintes, que se destina não apenas a levar ao seu conhecimento o acto praticado pela administração tributária e aduaneira como a permitir-lhes reagir contra ele em caso de discordância. 

 

Os Requerentes, no exercício do direito de audiência, suscitaram a importante questão de não terem sido notificados do resultado da avaliação oficiosa. E, num outro procedimento em que a questão foi também suscitada pelos Requerentes, o relativo à prova do preço efectivo na transmissão do imóvel, chegaram a ser inquiridas testemunhas, sem que a Requerida considerasse, sequer, a possibilidade de ser ilidida a presunção de notificação. Nem nesse procedimento (que poderia ser aproveitado de harmonia com o princípio de aproveitamento do acto[10]) nem neste a Requerida se mostrou aberta a promover a descoberta da verdade material, ou seja, saber se os Requerentes foram ou não notificados, encostando-se na comodidade de uma presunção legal que entendeu, erradamente, ser inilidível. 

 

Assim, têm razão os Requerentes quando fazem notar que não tendo sido notificados do resultado da avaliação oficiosa do imóvel, a liquidação adicional de IRS é inválida. Daí que resulte óbvia a necessidade de se apurar se houve ou não notificação, porque disso depende a legalidade das liquidações ora impugnadas. Não se estranha, pois, que tenha sido requerida nesta acção arbitral a inquirição da pessoa que recebeu a carta e assinou o aviso de recepção e que alegadamente a não entregou aos Requerentes[11]. Contudo, ao considerar que a presunção de notificação é inilidível, a Requerente labora num erro que, acrescente-se, inquina a validade das liquidações em causa. 

 

Note-se que o tribunal não chega a apreciar a questão de saber se os Requerentes foram ou não foram notificados do resultado da avaliação oficiosa do prédio. Não ajuíza se deve ou não deve considerar-se ilidida a presunção (presunção que manifestamente existe) de notificação, cujo ónus da ilisão, naturalmente, impende sobre os Requerentes. Aliás, como é dito no art.º 35.º do pedido de pronúncia arbitral, “no procedimento para prova do preço, os Requerentes quiseram ilidir a presunção legal da notificação, tendo, para o efeito, sido inquiridas as duas testemunhas indicadas em sede de audição, uma das quais a própria Sr.ªD..., a qual corroborou o alegado pelos sujeitos passivos, ou seja, a notificação em apreço não foi entregue ao notificando A..., nem à esposa – aqui Requerentes -, fosse no dia 05/12/2019, fosse em dia posterior à data presumida, por razões que lhes não são imputáveis”. 

 

O mesmo foi referido no exercício do direito de audição que precedeu a decisão de proceder às correcções constantes do Relatório de Inspecção referente à Ordem de Serviço n.º OI2019..., que os Requerentes exerceram nos termos do artigo 60.º da LGT e do artigo 60º do RCPITA e que consta do processo administrativo junto aos autos. O direito de audição constituiu uma formalidade essencial pelo que a violação da referida norma procedimental ou a sua incorrecta realização tem como consequência normal a ilegalidade do próprio acto final e a sua consequente anulabilidade[12].

 

O juízo ora formulado opera a montante desse momento decisivo. O que o tribunal verificou é que não foi dada sequer a possibilidade aos Requerentes de ilidirem a presunção de notificação, pela simples razão de a Requerida ter essa presunção por inilidível.       

 

 

4.     Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

a)      Não suspender a instância até ao trânsito em julgado das acções pendentes de decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga no âmbito dos processos n.º ..../20.3BEBRG e n.º ..../21.6BEBRG;

b)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando a liquidação de IRS, referente ao ano de 2018, n.º 2021..., no valor de € 48.410,55, a demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., no valor de € 141,22 e € 3.121,96, respectivamente;

c)     Condenar a Requerida nas custas. 

 

 

5.     Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 305.º e no n.º 2 do art.º 306.º, ambos do Código de Processo Civil, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 51.673,73 (cinquenta e um mil seiscentos e setenta e três euros e setenta e três cêntimos).

 

 

6.     Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 5 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

 

Lisboa, 11 de Julho de 2022 

 

 

 

O Árbitro

 

 

 

______________________________

(Nuno Pombo)

 

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 



[1] No art.º 8.º do Requerimento é sublinhado que “da factualidade provada decorre a falta de notificação, quer ao alienante [os ora Requerentes], quer ao adquirente, do acto de fixação do valor patrimonial tributário do artigo...º”, o que ditou a ilegalidade dos actos de liquidação objecto da acção arbitral que correu termos no CAAD sob o n.º 296/2021-T. O mesmo é reiterado no ponto H) das suas alegações e no art.º 5.º do Requerimento de 06.06.2022. 

[2] Art.º 3.º do Requerimento de 03.06.2022, apresentado pelos Requerentes. 

[3] Ponto K) das suas alegações. 

[4] Art.º 9.º do Requerimento de 06.06.2022.

[5] Como se pode ler no requerimento de instauração de procedimento para prova do preço efectivo na transmissão de imóvel, que constitui o doc. n.º 5 junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral.  

[6] Decisão arbitral prolatada no processo n.º 89/2018-T.

[7] Neste sentido, LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil – Anotado, Vol. I, 2.ª edição, página 544

[8] Código de Procedimento e Processo Tributário, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, págs. 383 e seg.. Admitindo também a susceptibilidade de prova em contrário neste caso, veja-se o voto de vencido do Conselheiro Vítor Meira, no acórdão do STA n.º 0500/05, de 06.10.2005.

[9] JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e Processo Tributário, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, pág. 437.

[10] Idem, pág. 439.

[11] Com a inquirição da dita testemunha pretendiam os Requerentes demonstrar o vertido no art.º 34.º do pedido de pronúncia arbitral: “tal como se alegou perante a AT e aqui se reitera, os Requerentes nunca acusaram a recepção de qualquer comunicação da AT a notificá-los do VPT do referido prédio, já que a carta entregue, no domicílio fiscal dos mesmos, à Sr.ª D... não chegou ao conhecimento dos Requerentes”. 

[12] V. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte n.º 00029/06.5BEPNF, de 17.09.2015 e Acórdão do STA de 02.02.2022, prolatado no processo n.º 0208/04.0BEPRT.