Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 544/2021-T
Data da decisão: 2022-09-07  IMI  
Valor do pedido: € 69.917,24
Tema: AIMI – Valor Patrimonial Tributário – Terrenos para Construção
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo, Dra. Adelaide Moura e Dra. Maria Manuela do Nascimento Roseiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral, acordam, por maioria, com voto de vencido da árbitra auxiliar Dra. Maria Manuela do Nascimento Roseiro, o seguinte:

 

  1. Relatório

 

No dia 01-09-2021, A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., e B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., ambas com sede na ..., ..., ...-... ..., ..., e ambas Requerentes, apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).

 

Após indeferimento tácito das reclamações submetidas, e que incidiam sobre as liquidações de AIMI (Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis) n.º 2020..., de 30-06-2020, no valor de € 121.187,65, e n.º 2020..., de 30-06-2020, no valor de € 72.021,96, respetivamente, as Requerentes, discordando, apresentaram pedido de pronúncia arbitral contra tais atos tributários e decisões da Requerida.

 

O pedido de constituição do Tribunal foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 03-09-2021 e notificado à Requerida em 09-09-2021.

 

As Requerentes não procederam expressamente à nomeação de árbitro.

 

Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, foram designados, em 07-09-2021, pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o Árbitro Presidente Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo, e as Árbitras Auxiliares Dra. Adelaide Moura e Dra. Maria Manuela do Nascimento Roseiro, que comunicaram ao Conselho Deontológico de Arbitragem Administrativa a aceitação do respetivo encargo no prazo legalmente estipulado.

 

As partes foram notificadas dessas designações, não tendo, qualquer delas, manifestado vontade de as recusar, vindo o Tribunal a ser constituído em 15-11-2021, de harmonia com as disposições contidas no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

Em 16-11-2021 foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional.

 

Em 10-12-2021 foi apresentada a respetiva resposta pela Requerida, vindo o Tribunal em 13-12-2021 a proferir despacho para as Requerentes se pronunciarem, querendo, sobre a matéria de exceção suscitada, no prazo de 10 dias. As Requerentes pronunciaram-se em 12-01-2022.

 

Foi proferido novo despacho pelo Tribunal, em 13-01-2022, após ter sido exercido o contraditório quanto à matéria de exceção, a apreciar a final, e dado que as questões são essencialmente de direito ou podem ser documentalmente provadas, e não foi requerida qualquer prova testemunhal, dispensou-se a reunião do artigo 18.º do RJAT, podendo as partes apresentar alegações escritas, se assim o entenderem, no prazo de 10 dias sucessivos.

 

As Requerentes apresentaram alegações escritas em 31-01-2022 e a Requerida em 14-02-2022.

 

Em 21-02-2022 foi proferido novo despacho arbitral a solicitar à Requerida a junção aos autos da denominada Instrução de Serviços n.º 60318, emitida pela Direção de Serviços de Justiça Tributária (DSJT), no prazo de 10 dias.

 

Em 02-03-2022 as Requerentes apresentaram requerimento avulso em resposta às alegações escritas da Requerida.

 

Por despacho do Tribunal, em 02-05-2022, foi designado o dia 15-07-2022 para prolação da decisão arbitral.

 

  1. Das posições das Partes

 

  1. Da posição das Requerentes

 

  1. As Requerentes reputam totalmente ilegais as liquidações contestadas e as decisões tácitas de indeferimento das reclamações graciosas que mantiveram tais liquidações na ordem jurídica.

 

  1. Os valores patrimoniais tributários corretos dos terrenos para construção, em respeito pelas normas legais aplicáveis, devem resultar da aplicação da fórmula prevista no artigo 45.º do Código do IMI, sob a epígrafe “Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção”, na redação à data dos factos.

 

  1. O facto de as Requerentes não terem contestado o resultado de eventuais avaliações dos terrenos para construção que tenham sido concretizadas pela Requerida, em violação grosseira das normas legais que postulam a avaliação dos terrenos para construção, não faz precludir o seu direito de apresentar reclamações graciosas das liquidações emitidas por referência a valores patrimoniais tributários fixados de forma ilegal.

 

  1. Resulta da jurisprudência consolidada dos Tribunais superiores que na fórmula de cálculo do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é de afastar a fórmula geral prevista no artigo 38.º do Código do IMI, sendo ilegal a aplicação dos coeficientes de afetação, de localização e de qualidade e conforto na avaliação dos terrenos para construção.

 

  1. Na determinação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção a Requerida não poderia ter aplicado os coeficientes multiplicadores, nem poderia ter considerado a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1 do Código do IMI, em violação do princípio da legalidade tributária.

 

  1. O valor patrimonial tributário agregado de terrenos para construção da Requerente A..., S.A., por referência a 01-01-2020, devia ter sido fixado pela AT em € 12.951.130,00, ao invés do valor agregado que foi ilegalmente fixado pela AT de € 22.698.410,00, pelo que o valor fixado em excesso ascende a € 9.747.280,00.

 

  1. Também o valor patrimonial tributário agregado de terrenos para construção da Requerente B..., S.A., por referência a 01-01-2020, devia ter sido fixado pela AT em € 10.273.460,00, ao invés do valor agregado que foi ilegalmente fixado pela AT de € 18.005.490,00, pelo que o valor fixado em excesso ascende a € 7.732.030,00.

 

  1. A Instrução de Serviço n.º 60318 emitida pela Direção de Serviços da Justiça Tributária nesta matéria, conjugada com a posição assumida pela Requerida na respetiva resposta, assume particular relevância nos presentes autos.

 

  1. Com a emissão da referida Instrução de Serviço, é a própria Requerida que reconhece os erros imputáveis aos serviços da AT, quer na emissão das liquidações, quer na conclusão dos procedimentos de avaliação que serviram de base a tais liquidações.

 

  1. Não obstante não se conformarem com a ilegalidade das liquidações contestadas, as Requerentes procederam ao pagamento das mesmas, tendo a A..., S.A. pago AIMI no valor de € 121.187,65, estando em excesso a quantia de € 38.989,12, e a B..., S.A. pago AIMI no valor de € 72.021,96, estando em excesso a quantia de € 30.928,12.

 

  1. As liquidações contestadas assentam em valores patrimoniais tributários fixados de forma ostensivamente ilegal, sendo os erros na fórmula aplicada exclusivamente imputáveis à Requerida, e consubstanciando o excesso de AIMI liquidado e cobrado pela Requerida uma situação de injustiça grave e notória.

 

  1. A ilegalidade de que padecem as liquidações contestadas deriva única e exclusivamente da ilegal aplicação e interpretação que a Requerida fez das normas de avaliação dos terrenos para construção previstas no Código do IMI e, por conseguinte, não teve origem em qualquer comportamento negligente das Requerentes.

 

  1. Importa considerar também o direito a revisão oficiosa contra liquidações de IMI e de AIMI, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c) do Código do IMI.

 

  1. Nestes termos, e demais fundamentos enunciados, as liquidações contestadas devem assim ser parcialmente anuladas, sendo devidos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor, ao abrigo dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

  1. Da posição da Requerida

 

  1. A Requerida invoca que as Requerentes pretendem a anulação das liquidações com fundamento em vícios, não das liquidações impugnadas, mas sim dos atos que fixaram os valores patrimoniais tributários em causa.

 

  1. A ação apresentada pelas Requerentes não é sustentada nem fundamentada em qualquer vício dos atos de liquidação ou da decisão de indeferimento das reclamações graciosas.

 

  1. Os vícios próprios dos valores patrimoniais tributários não são suscetíveis de ser impugnados nos atos de liquidação que sejam praticados com base nos mesmos.

 

  1. Os atos de fixação dos valores patrimoniais tributários são destacáveis e autonomamente impugnáveis, e encontram-se consolidados na ordem jurídica.

 

  1. Não tendo as Requerentes colocado em causa os valores patrimoniais obtidos pela primeira avaliação, não requerendo uma segunda avaliação, os mesmos fixaram-se, não sendo possível conhecer, na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação, ou seja, a errónea qualificação e quantificação dos valores patrimoniais apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da segunda avaliação e não na posterior liquidação consequente.

 

  1. As avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, conforme decorre do artigo 168, n.º 1 do CPA.

 

  1. A administração tributária, vinculada ao princípio da legalidade, não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou e que estejam em vigor no ordenamento jurídico, como se verificou no caso em apreço.

 

  1. Conclui assim que não se verifica qualquer erro imputável aos serviços.

 

  1. Os atos impugnados não padecem dos vícios que lhe foram assacados pelas Requerentes, nem de nenhuns outros, devendo o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, com todas as devidas e legais consequências.

 

  1. Saneamento

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, 10.º e 11.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

  1. As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos legais aplicáveis.

 

  1. A coligação de autores e a cumulação de pedidos é legalmente admissível, conforme artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.

 

  1. O processo não enferma de qualquer nulidade.

 

  1. Quanto às invocadas exceções de incompetência do Tribunal Arbitral e de inimpugnabilidade dos atos com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário: genericamente, a Requerida considera que a presente ação não é sustentada nem fundamentada em qualquer vício dos atos de liquidação ou da decisão de indeferimento das reclamações graciosas, sendo que aos atos impugnados não são imputados quaisquer vícios específicos.

 

  1. A Requerida considera também que tais atos não são suscetíveis de ser impugnados nos posteriores atos de liquidação que sejam praticados com base naqueles.

 

  1. A Requerida entende assim que o Tribunal Arbitral é incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do valor patrimonial, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis e que se encontram consolidados na ordem jurídica.

 

  1. Ora, consultados os autos, cumpre mencionar que, como decorre da lei e jurisprudência, o indeferimento tácito, enquanto ficção de ato, com caráter lesivo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, é suscetível de impugnação judicial. O legislador até admite expressamente que o pedido de pronúncia arbitral seja apresentado após a formação da presunção de indeferimento tácito, conforme artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e artigo 102.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT.

 

  1. A apreciação dessa impugnação insere-se na competência dos tribunais arbitrais tributários, que se encontra limitada às matérias enunciadas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, englobando a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, e a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais, não estando excluída a apreciação da legalidade de atos de segundo ou de terceiro graus.

 

  1. Tendo as Requerentes impugnado os atos de liquidação de AIMI, bem como as decisões de indeferimento tácito das reclamações graciosas deduzidas, afigura-se que os atos tributários são impugnáveis, nos termos legalmente aplicáveis, sendo o Tribunal Arbitral competente.

 

  1. Explicite-se que o ato ficcionado, quando ocorre indeferimento tácito de reclamação graciosa, é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação reclamado. Ora, pretendendo as Requerentes a reapreciação da legalidade das liquidações em causa, o meio de tutela adequado é efetivamente a impugnação, de onde resulta a competência, em razão da matéria, deste Tribunal Arbitral.

 

  1. Assim sendo, não deverá julgar-se verificada a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, como acima explanado.

 

  1. Relativamente à exceção inominada de inimpugnabilidade dos atos com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário, considere-se o disposto na decisão arbitral de 02-07-2021, proferida no âmbito do processo n.º 760/2020-T (acessível em www.caad.pt):

 

A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto –, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.

Há, pois, que ponderar sobre a ratio das normas que preveem a impugnabilidade judicial autónoma de atos administrativos que constituem pressuposto de outros atos administrativos.

Estas razões serão, essencialmente, três:

(i) O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.

(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida).

(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).

Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores.

Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê.

Assim, tal previsão legal não deve ser entendida – salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso – como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação). Num quadro interpretativo da lei que procura dar relevância à sua conformidade com os princípios constitucionais, não podemos subscrever, como constituindo uma regra sem exceções, o pensamento do distinto Autor em que a Requerida, no essencial, se louva.

Como referido no citado acórdão do TCA, há que não esquecer que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de um tributo, que foi exigido à Requerente.”

 

  1. Realce-se ainda o teor do referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31-10-2019, proferido no âmbito do processo n.º 2765/12.8BELRS (acessível em www.dgsi.pt):

 

De facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado (…). Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir.”

 

  1. Mais se destaca a conclusão da decisão arbitral de 11-12-2021, proferida no âmbito do processo n.º 405/2021-T (acessível em www.caad.pt):

 

Efectivamente, as liquidações em questão foram emitidas (…), tendo o contribuinte, nos termos do art. 99º, a) CPPT, o direito de as impugnar com fundamento em qualquer ilegalidade, designadamente a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários. Não nos parece assim, em conformidade com o princípio da tutela judicial efectiva, que o contribuinte fique impedido de invocar a ilegalidade das liquidações, com fundamento no facto de ter ocorrido previamente uma fixação do valor patrimonial.”

 

  1. Concordando-se inteiramente com o vertido acima, que se reproduz para fins de celeridade e economia processual, também consideramos improcedente a exceção de inimpugnabilidade das liquidações em causa nos presentes autos arbitrais. As matérias atinentes a outras exceções invocadas serão apreciadas de seguida.

 

  1. Não há assim qualquer obstáculo à apreciação da causa. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

 

  1. Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

  1. Em 01-01-2020, a A..., S.A. era proprietária, entre outros, dos prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., os quais correspondem aos lotes n.ºs AH2, AH5, AH6, AT1, AT2 e AT3, respetivamente, do alvará de loteamento n.º .../2006, emitido pela Câmara Municipal de..., o qual foi objeto de seis aditamentos.

 

  1. A A..., S.A. foi notificada da liquidação de AIMI n.º 2020 ..., de 30-06-2020, relativa ao ano de imposto de 2020, no valor global de € 121.187,65, cujo prazo de pagamento terminou em 30-09-2020.

 

  1. Em 01-01-2020, a B..., S.A. era proprietária dos prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob os artigos matriciais U-..., U-... e U-..., os quais correspondem aos lotes n.ºs AH1, H3 e AH4/AE1/AE2, respetivamente, do alvará de loteamento n.º .../2006, emitido pela Câmara Municipal de ..., o qual foi objeto de seis aditamentos.

 

  1. A B..., S.A. foi notificada da Liquidação de AIMI n.º 2020 ..., de 30-06-2020, relativa ao ano de imposto de 2020, no valor global de € 72.021,96, cujo prazo de pagamento terminou em 30-09-2020.

 

  1. Ambas as Requerentes procederam ao pagamento integral das liquidações em causa.

 

  1. A Requerida, na determinação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção identificados nas liquidações em causa aplicou, por referência a 01-01-2020, um coeficiente de localização de 1,30 e um coeficiente de afetação de 1,10, e majoração.

 

  1. As avaliações que determinaram cada um dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção indicados e sobre os quais incidiu o AIMI constante das liquidações em causa foram todas realizadas no ano de 2018.

 

  1. Em 27-01-2021, as Requerentes apresentaram reclamações graciosas relativamente aos atos tributários em causa.

 

  1. As Requerentes foram notificadas, em 29-03-2021, dos projetos de indeferimento das reclamações graciosas, para efeitos de exercício do direito de audição.

 

  1. Em 20-04-2021, as Requerentes apresentaram requerimentos para audição prévia junto da Requerida.

 

  1. Após os períodos de audição prévia, e até à presente data, não foram as Requerentes notificadas de qualquer decisão final quanto às reclamações graciosas apresentadas.

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

  1. Factos não provados

 

Não se verificaram factos não provados com relevância para a decisão da causa.

 

  1. Fundamentação da fixação da matéria de facto provada e não provada

 

Os factos pertinentes para julgamento da causa foram apurados em função da sua relevância jurídica, sendo que a convicção do Tribunal Arbitral deriva da análise crítica dos documentos juntos aos autos pelas partes – não foi apresentado o correspondente processo administrativo –, bem como no acordo das partes, expresso ou por falta de impugnação, quanto aos respetivos factos alegados.

 

De realçar ainda que, por despacho de 21-02-2022, o presente Tribunal Arbitral solicitou à Requerida a junção aos autos da denominada Instrução de Serviços n.º 60318, emitida pela Direção de Serviços de Justiça Tributária (DSJT), no prazo de 10 dias, ao abrigo não apenas do disposto no RJAT, mas, também, complementarmente, do CPC, CPPT e LGT.

 

O facto de a Requerida não ter procedido à junção do documento só pode ser relevado pelo Tribunal Arbitral como implícita recusa da entrega desse documento nos autos, sendo que:

 

  1. A Requerida não desmentiu a existência do documento invocado pelas Requerentes;

 

  1. A Requerida não desconhece, presumivelmente, outros processos em que documentos de teor similar foram apresentados; e,

 

  1. Sem prejuízo das regras do ónus da prova, competia à Requerida cooperar no processo no sentido do apuramento da verdade, quando, por razões que as Requerentes expuseram, fosse virtualmente impossível a estas apresentarem certo documento que circula internamente no seio da AT e, portanto, e em contrapartida, fosse possível, mais fácil até, à Requerida apresentar tal documento, conforme artigo 16.º, alínea f) do RJAT.

 

A falta de cooperação da AT afigura-se reveladora e manifesta-se como evidente violação do princípio da cooperação processual, nos termos do artigo 16.º, alínea f) do RJAT, assim como por força das alíneas a), c) e e) do artigo 29.º do RJAT e demais legislação supletivamente aplicável.

 

Sem prejuízo, seguindo o princípio da livre apreciação dos factos, respeitando a livre convicção dos árbitros, nos termos do artigo 16.º, alínea e) do RJAT, e impondo-se, conforme o princípio da livre condução do processo, para se evitar impasses que resultariam de uma irredutível e reiterada recusa de cooperação por uma das partes, ou até por ambas, por força do artigo 19.º, n.º 1 do RJAT, “a falta de produção de qualquer prova solicitada” não obsta “ao prosseguimento do processo e à consequente emissão de decisão arbitral com base na prova produzida”.

 

  1. Matéria de direito

 

  1. Objeto e âmbito do processo

 

As questões essenciais em crise no presente processo são saber se a fórmula de apuramento do valor patrimonial tributário foi corretamente aplicada ou não pela AT, atendendo à redação da lei aplicável naquele momento, e se o alegado vício da fórmula é ou não vício relevante quanto aos atos impugnados, que poderão ou não ser parcialmente anulados.

 

  1. Do Direito

 

  1. Da alegada ilegalidade das liquidações de AIMI

 

As Requerentes alegam que a Autoridade Tributária, Requerida, que está vinculada ao princípio da legalidade tributária, violou a lei ao aplicar fórmula incorreta para efeitos de apuramento dos valores patrimoniais tributários de terrenos para construção.

 

Ora, para efeitos de prévio enquadramento do tributo relevante, refira-se que são sujeitos passivos do AIMI as pessoas singulares ou coletivas que sejam proprietários, usufrutuários ou superficiários de prédios urbanos situados no território português, incidindo sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos de que o sujeito passivo seja titular, nos termos dos artigos 135.º-A e 135.º-B do Código do IMI.

 

O valor tributável corresponde à soma dos valores patrimoniais tributários, reportados a 1 de janeiro do ano a que respeita o AIMI, dos prédios que constam nas matrizes prediais na titularidade do sujeito passivo, conforme artigo 135.º-C do Código do IMI.

 

O AIMI é liquidado anualmente, pela AT, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios, ao abrigo do artigo 135.º-G do CIMI. E o pagamento do AIMI é efetuado no mês de setembro do ano a que o mesmo respeita, ao abrigo do artigo 135.º-H, n.º 1 do CIMI.

 

Ora, para cálculo do AIMI a pagar pelas Requerentes, a AT teve por base os valores patrimoniais tributários dos terrenos em causa, os quais foram fixados em 2018.

 

Nesse mesmo ano, em 2018, no âmbito da fixação do valor patrimonial de terrenos para construção, vigorava o artigo 45.º do Código do IMI, com a seguinte redação:

 

Artigo 45.º

Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção

 

1 – O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.

2 – O valor da área de implantação varia entre 15/prct. e 45/prct. do valor das edificações autorizadas ou previstas.

3 – Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º

4 – O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º

5 – Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respectiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente.”

 

Sendo que se entendem ser “terrenos para construção”, aqueles “situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos”, como prescrito pelo artigo 6.º, n.º 3 do Código do IMI.

 

O valor patrimonial tributário dos prédios, incluindo os terrenos para construção, é determinado nos termos do Código do IMI, conforme artigo 7.º, n.º 1 do referido Código. Sendo o artigo 45.º do Código do IMI a disposição legal especial referente aos terrenos para construção, apenas a fórmula de cálculo aí prevista deve ser aplicada pela AT, e aos exercícios em que tal redação da lei for aplicável – a redação acima transcrita manteve-se vigente até 31 de dezembro de 2020. Vejamos.

 

Segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA), “o legislador consagrou para a determinação do valor patrimonial tributário desta espécie de prédios a regra específica constante do supra referido artigo 45.º do CIMI e não outra, onde reitera-se se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação, bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no n.º 3 do artigo 42.º, tendo em conta o projecto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no n.º 2 do artigo 45.º do C.I.M.I., mas não outras características ou coeficientes”, sendo que “não podem ser considerados para efeitos de avaliação patrimonial factores ainda não materializados”, conforme Acórdão do STA de 21-09-2016, acessível em www.dgsi.pt.

 

Em sentido idêntico, o Acórdão do STA de 28-06-2017, acessível em www.dgsi.pt, defende que “O artigo 45.º do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção”. Mais concretiza que “Os coeficientes de afectação e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI (…), não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto”, pelo que “Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no n.º 3 do art. 45.º do CIMI.”

 

Também o Acórdão do STA de 12-03-2014, acessível em www.dgsi.pt, evidencia que “Relativamente à avaliação de terrenos para construção, sobre o que regula o art. 45.º do C.I.M.I., não são de aplicar os coeficientes ou características não especificamente previstos”.

 

O mesmo entendimento foi sendo adotado em variados acórdãos dos Tribunais superiores, considerando a redação do artigo 45.º em vigor antes da alteração do Código do IMI por força da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2021).

 

Assim sendo, a aplicação dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI tem sido afastada, pois os fatores multiplicadores contidos na expressão matemática do artigo 38.º não podem ser considerados na avaliação de terrenos para construção, relevando apenas na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação, nos termos e para efeitos do n.º 3 do artigo 45.º do CIMI (vide decisão arbitral de 07-02-2021, proc. n.º 760/2020-T, acessível em www.caad.pt).

 

Considere-se ainda o disposto na decisão arbitral de 11-12-2021, proc. n.º 405/2021-T (acessível em www.caad.pt): “É manifesto que esta norma não prevê a aplicação dos coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto aos terrenos para construção, os quais estão apenas previstos no art. 38.º CIMI, como aplicáveis aos prédios urbanos. Assim sendo, a utilização destes coeficientes corresponde a uma aplicação analógica de uma norma de incidência, a qual é vedada pelo princípio da tipicidade fiscal.”

 

Adicionalmente, o artigo 39.º, n.º 1 do Código do IMI, na redação anterior à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, estabelece que “O valor base dos prédios edificados (Vc) corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25/prct. daquele valor”. Como emerge desta disposição legal, a majoração aí prevista relava apenas para prédios edificados, não incluindo, por isso, terrenos para construção.

 

Entendemos, por conseguinte, que a fórmula de avaliação dos terrenos para construção prevista no artigo 45.º do CIMI, na redação vigente até à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, não incluía a aplicação dos coeficientes enquadrados pelos artigos 41.º e 42.º do CIMI, nem a majoração do n.º 1 do artigo 39.º do CIMI (vide decisão arbitral de 05-05-2022, proc. n.º 532/2021-T, acessível em www.caad.pt).

 

Conclui-se assim que a AT aplicou efetivamente fórmula errónea na fixação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, tendo liquidado imposto em montante diverso do efetivamente devido pelas Requerentes.

 

  1. Da revisão oficiosa das liquidações

 

O artigo 115.º do CIMI prevê que “Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, as liquidações são oficiosamente revistas: (…) c) Quando tenha havido erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”.

 

E o artigo 78.º, n.º 1 da LGT dispõe que “A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada (…) por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

 

O n.º 4 do artigo 78.º da LGT determina ainda que “O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte”. Sendo que “apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade”.

 

Desde já se afirme que a revisão oficiosa é um efetivo poder-dever da AT. A administração tributária está vinculada a rever oficiosamente atos tributários emitidos, como sejam as liquidações dos tributos em causa, quando padecem de ilegalidades, ou se baseiam em erro, incluindo na matéria tributável apurada, mesmo na ausência de impulso próprio do particular.

 

Atente-se ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15-04-2021, acessível em www.dgsi.pt, defendendo expressamente que “A revisão oficiosa é um poder-dever da Administração fiscal, atento o princípio da legalidade”. Também o Supremo Tribunal Administrativo configura a natureza vinculada da revisão oficiosa ao exprimir que “os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a Fazenda Pública tem de observar na globalidade da sua actividade (art. 266.º, n.º 2 da C.R.P., art. 55.º da L.G.T.), impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei” (cf. Acórdão do STA de 03-02-2021, acessível em www.dgsi.pt).

 

E, como já decidido em Acórdão do STA de 17-02-2021 (acessível em www.dgsi.pt), nem a dita excecionalidade da revisão oficiosa prevista no artigo 78.º, n.º 4 da LGT afasta o “poder-dever, que implica a sua aplicação a todos os casos, verificados que sejam os referidos requisitos”.

 

Considere-se, por fim, a título de exemplo, o teor da decisão arbitral de 05-05-2022, proc. n.º 532/2020-T, acessível em www.caad.pt, apreciando caso semelhante: “no prazo de três anos após o ano em que foi lançado o acto tributário da liquidação do imposto, pode (poder-dever), ao abrigo do disposto no artigo 78.º, números 4 e 5, da LGT, ser autorizada a revisão da matéria tributável que lhe serviu de base, desde que verificada injustiça grave ou notória, não devendo a revisão ser recusada se se verificar que a manutenção do referido acto configura esse tipo de injustiça.”

 

Na ausência de efetivo pedido de revisão oficiosa, o prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o decorrente no n.º 1, mas sim o prazo previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que se basta com os “três anos posteriores ao do acto tributário”.

 

Sem prejuízo, a Requerida invoca que as avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que tenham sido considerados coeficientes na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, por força do artigo 168.º, n.º 1 do CPA.

 

Esta alegação da AT é totalmente inócua, pois, como resulta dos factos provados, as avaliações dos terrenos em causam ocorreram em 2018, portanto, há menos de cinco anos. Todavia, sempre se entenderia que a apreciação de erros e ilegalidades dos atos de fixação da matéria tributável, e dos atos de liquidação, obedeceria apenas ao artigo 78.º da LGT, e não ao disposto no artigo 168.º do CPA. A LGT prevalece sobre o CPA, que apenas é aplicável supletivamente às relações jurídico-tributárias.

 

A fixação da matéria tributável foi efetuada pela Requerida, com base em fórmula errónea. E nada foi demonstrado no sentido de que as Requerentes facultaram ou instruíram qualquer informação errada relativamente aos prédios. Com efeito, o erro na aplicação na fórmula de avaliação não pode ser considerado imputável a conduta negligente das Requerentes. O erro é exclusivamente imputável à AT, que praticou os atos de fixação dos valores patrimoniais tributários com base em fórmula não coincidente com o prescrito na lei.

 

Por outro lado, afigura-se como manifesta a gravidade da injustiça gerada com as erradas avaliações dos terrenos para construção em causa, pois, compulsados os autos, constata-se que a liquidação de AIMI quanto a esses prédios foi, por esse motivo, e em pura lógica aritmética, bastante agravada. Os valores patrimoniais tributários fixados encontram-se sobrevalorizados, verificando-se uma diferença próxima de 50%. Essa sobrevalorização reflete-se numa coleta de AIMI superior ao que seria devido pelas Requerentes caso a lei fiscal vigente à época tivesse sido devidamente aplicada pela Requerida.

 

Não obstante, a injustiça também não deixa, em certa medida, de ser notória. A AT deve ter conhecimento da interpretação jurisprudencial da lei fiscal. É aos Tribunais que cabe, em última análise, interpretar a lei. E a jurisprudência, nos últimos vários anos, tem sido bastante unívoca. Sendo que existem até indícios da existência de instruções internas da AT, com vista ao cumprimento deste entendimento jurisprudencial, visando a aplicação da lei em estrita conformidade com o disposto no Código do IMI, na redação anterior à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro.

 

Assim sendo, e confirmando-se a aplicação incorreta da fórmula de cálculo dos valores patrimoniais tributários, independentemente de se tratar de atos destacáveis e autonomamente impugnáveis – o que já foi analisado e decidido supra –, e estando cumpridos os demais pressupostos e requisitos legais, cabe a anulação parcial dos atos impugnados pelas Requerentes.

 

  1. Do reembolso e juros indemnizatórios

 

Por desconsideração dos coeficientes e majoração em crise nos presentes autos, as Requerentes calcularam e quantificaram em € 69.917,24 o quantitativo parcial de AIMI que pagaram indevidamente. Esta operação aritmética não foi contestada pela Requerida. As Requerentes têm direito a ser reembolsadas, na parte que lhes cabe, respetivamente.

 

As Requerentes requereram ainda o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, que prevê expressamente: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Ora, conforme anteriormente explanado, a Requerida tinha, ou devia ter, conhecimento da jurisprudência constante, incluindo de Tribunais superiores, que pugna pela impossibilidade de aplicação os coeficientes de localização, de afetação e de qualidade e conforto previstos no artigo 38.º Código do IMI, e da majoração prevista no artigo 39.º do mesmo Código, aos terrenos para construção. Tendo erroneamente aplicado tais coeficientes multiplicadores, a AT não interpretou e não aplicou de forma correta as normas jurídico-fiscais em vigor. Tal representa um erro imputável aos serviços da Requerida, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

Ao abrigo do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT, verificado o erro imputável aos serviços da AT, e daí resultando o pagamento de tributo em montante superior ao legalmente exigível, consideramos que as Requerentes têm direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, desde o pagamento do imposto em excesso até à sua integral e efetiva restituição.

 

  1. Decisão

 

Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral em:

– Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral das Requerentes, julgando improcedentes as exceções invocadas pela Requerida;

– Anular a decisão de indeferimento tácito das reclamações graciosas apresentadas pelas Requerentes;

– Anular parcialmente a liquidação de AIMI n.º 2020..., de 30-06-2020, e a liquidação de AIMI n.º 2020 ..., de 30-06-2020, quanto aos valores em excesso;

– Julgar procedente o pedido de reembolso das quantias pagas em excesso pelas Requerentes e condenar a AT a efetuar o respetivo reembolso;

– Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Requerida a proceder ao respetivo pagamento às Requerentes, à taxa legal, desde o pagamento do imposto em excesso até à sua integral e efetiva restituição.

 

  1. Valor

 

Fixa-se o valor do processo em € 69.917,24, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  1. Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4 do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4 do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 7 de setembro de 2022

 

Os Árbitros,

 

 

(Fernando Borges de Araújo)

 

(Adelaide Moura)

 

(Maria Manuela do Nascimento Roseiro)

(com declaração de voto de vencido)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto 

 

1. Não votei favoravelmente a presente decisão porque mantenho sobre esta matéria uma visão diferente da perfilhada pelos Ilustres Colegas de colectivo.

A minha discordância não significa propriamente a defesa da interpretação do artigo 45.º do CIMI subjacente à fixação dos valores patrimoniais que estão na base das liquidações de Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) referentes ao ano de 2020, cuja declaração de ilegalidade é objecto do pedido de pronúncia arbitral, já que entendo que a uniformização de jurisprudência quanto à interpretação daquela norma - na redacção vigente até 2020 - reafirmada em sucessivos Acórdãos proferidos pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, impor-se-á em situações de impugnação do acto de fixação do valor patrimonial tributário, após utilização do procedimento administrativo previsto no CIMI (artigos 76.º e 77.º).

Mas, como identificado na presente decisão, para além de «saber se a fórmula de apuramento do valor patrimonial tributário foi corretamente aplicada ou não pela AT, atendendo à redação da lei aplicável naquele momento», colocava-se, no presente caso, a questão de «saber se o alegado vício da fórmula é ou não vício relevante quanto aos atos impugnados que poderão ou não ser parcialmente anulados».

E, quanto a esta questão, divergindo da posição maioritária nesta decisão, defendo que, existindo uma relação de prejudicialidade entre a fixação do valor patrimonial dos prédios em causa e as liquidações de AIMI referentes a 2020 aqui objecto de pedido de declaração de ilegalidade, deveria antes decidir-se em sentido idêntico ao adoptado no processo arbitral nº 510/2021-T, assim sumariado: «1.Os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos. 2. Os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais não podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de IMI e AIMI que os têm como pressupostos.3. A não impugnação tempestiva dos referidos atos de avaliação conduz à formação de caso decidido ou resolvido sobre a avaliação do prédio em causa».

2. Também me afasto da decisão tomada por maioria porque, atendendo ao histórico da aplicação das normas do CIMI - questão que desenvolvi em declaração de voto no processo arbitral n.º 459/2021-T - mantenho as maiores reservas acerca de que a interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIMI, adoptada durante um longo período pela AT na fixação do Valor Patrimonial Tributário, deva ser qualificada como um caso de “injustiça grave ou notória”, para efeitos de fundamento de pedido de revisão oficiosa (n.º 4 do artigo 78.º da LGT).

É que parece-me excessiva a interpretação que vem sendo feita da referida norma, abrigando no conceito de injustiça grave ou notória qualquer aplicação normativa anteriormente realizada ainda que maioritariamente aceite, invocando-se uma posterior consolidação doutrinal em sentido diverso, com uniformização interpretativa consagrada pelo STA. 

Como tentei demonstrar na declaração de voto no proc. 459/2021, com citação da evolução da jurisprudência, não me parece curial, em casos como o deste processo, a aplicação do n.º 4 do artigo 78.º aos actos de fixação de valor patrimonial com fundamento em errada interpretação dos artigos 45.º e 38.º do CIMI, mas cuja aplicação cumulativa foi durante largo período desconhecida pela doutrina, apenas tendo sido objecto de aplicação uniformizada a partir da decisão do Pleno do STA, em 21/09/20, no processo n.º 01083/13, na apreciação de recurso interposto com fundamento em oposição de acórdãos do próprio STA (um de 25/06/2015, no proc. 01083/13, e de 18 de Novembro de 2009, no processo nº 0765/09). 

Ou seja, como se disse no processo 667/2021-T, num caso idêntico ao tratado nestes autos: «Não é, assim, o princípio da justiça mas o princípio da legalidade que é violado, quando na fixação do valor patrimonial tributário, não obstante o n.º 3 do art. 45.º do CIMI, a administração fiscal considere  outras qualidades dos prédios urbanos para além das ponderadas  na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação. A tal violação aplica-se, não o n.º 4 mas o  n.º 1 do art.º 78.º da LGT».

3. A situação parece ainda mais duvidosa no caso de impugnação de actos de liquidação invocando-se ilegalidade ocorrida na fixação do VPT, em avaliação que não foi objecto de impugnação, precedida da obrigatória reclamação e pedido de 2ª avaliação (cf. artigos 15.º e 77.º do CIMI, art.º. 86.º da LGT e 134º do CPPT).

É que, a aceitação de invocação de injustiça grave ou notória ao caso de avaliação efectuada com aplicação cumulativa dos artigos 45.º e 38.º do CIMI, entendendo-se simultaneamente que a caracterização da avaliação como acto destacável não impede a invocação dos respectivos vícios como fundamento de ilegalidade de posteriores actos de liquidação, conduz a resultados que parecem desafiar o equilíbrio desejável entre justiça e segurança na aplicação do Direito.

Com efeitos dificilmente descortináveis na segurança das receitas públicas (questão relevante para o sistema jurídico, expresso mesmo em normas da CRP, como a norma travão do nº 2 do art. 167º ou a limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de normas, face a interesse público relevante).   

4. Ainda sobre a aplicabilidade (que não defendemos, como analisado supra) do nº 4 do artigo 78º da LGT no prazo de 3 anos, a data de 2018 indicada pelas Requerentes como a da avaliação - altura em que terá sido cometido o agora invocado erro de aplicação de coeficientes – suscita-me dúvidas porque pareceria mais provável corresponder a data de mera actualização de VPT atendendo a que a inscrição na matriz foi em 2011.

Ora – e essa seria outra questão embora eventualmente passível de controvérsia - a data da avaliação é que parece ser a relevante para a eventual aplicação do n.º 4 do art. 78.º da LGT. 

Contudo, se é certo que a reprodução das cadernetas prediais no PPA não permite ver as datas da entrega da modelo 1 nem da avaliação, a Requerida também não apresentou elementos probatórios quanto à situação, nem juntou o processo administrativo.

5. Por outro lado, concordo com a parte da decisão do colectivo quando considera «que não é ao caso aplicável o prazo de cinco anos para anulação administrativa, por força do artigo 168.º, n.º 1 do CPA», porque também entendo que havendo lugar a apreciação de erros e ilegalidades dos atos de fixação da matéria tributável, e dos atos de liquidação ao abrigo do artigo 78.º da LGT, não se aplicaria o disposto no artigo 168.º do CPA, e que «a LGT prevalece sobre o CPA, que apenas é aplicável supletivamente às relações jurídico-tributárias».

6. Cabe ainda salientar que a posição aqui sustentada não corresponde à defesa da perpetuidade da aplicação do VPT fixado, impondo-se a (actualmente) considerada errada avaliação a sucessivos actos de liquidação decorrentes daquele valor, com privação de meio de defesa adequado.

Também aqui remeto para o teor da decisão do CAAD no proc. 667/2021-T, quanto à possibilidade de utilização de processo específico de reclamação, embora com efeitos para o futuro:

«Com efeito, qualquer incorreção da inscrição matricial dos prédios urbanos  pode ser reclamada,  nos termos do nº 3 do art. 130º do CIMI,  com base em qualquer dos fundamentos previstos nessa norma legal: valor patrimonial tributário considerado desatualizado; indevida inclusão do prédio na matriz, erro na designação das pessoas e residências ou na descrição dos prédios, erro de transcrição dos elementos cadastrais ou das inscrições constantes de quaisquer elementos oficiais, duplicação ou omissão dos prédios ou das respetivas parcelas, não averbamento de isenção já concedida ou reconhecida, alteração na composição dos prédios em resultado de divisão, anexação de outros confinantes, retificação de estremas ou arredondamento de propriedades, não discriminação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos por andares ou divisões de utilização autónoma, passagem do prédio ao regime de propriedade horizontal, erro na representação topográfica, confrontações e características agrárias dos prédios rústicos, erro nos mapas parcelares cometidos na divisão dos prédios referidos na alínea anterior, erro na atualização dos valores patrimoniais tributários ou erro na determinação das áreas de prédios rústicos ou urbanos, desde que as diferenças entre as áreas apuradas pelo perito avaliador e a contestada sejam superiores a 10% e 5%, respetivamente»

«A enumeração feita nessa norma dos fundamentos de reclamação das incorreções  não é taxativa,  mas apenas exemplificativa,  como resulta da expressão “nomeadamente (…) Assim, o erro de avaliação dos terrenos para construção, por indevida aplicação dos coeficientes previstos no art.  38 do CIMI, não obstante ser meramente de direito,  pode ser fundamento dessa reclamação, devendo no entanto, o chefe de finanças, por a pretensão do reclamante implicar nova avaliação.,  notificar o contribuinte notificar o contribuinte para apresentar a  Declaração modelo 1 (Ofício- circulado nº 40.083, de 29/3/2006, da Direção de Serviços do Imposto Municipal sobre Imóveis, DSIMI). Com efeito, a 21/3/2021, integrando a Ficha de Avaliação nº..., com base na Declaração modelo 1 deduzida  pela Requerente a 21/12/2020,  resulta do exercício por esta desse direito de reclamação.

Idêntica faculdade  é simetricamente reconhecida ao chefe do serviço de finanças competente, através da correção oficiosa prevista no nº 5 desse art. 130.º.

Essa reclamação, bem como a correção oficiosa prevista nesse nº 5,  pode ser deduzida a todo o tempo, salvo quando o fundamento for o erro na atualização dos valores patrimoniais tributários a que se refere a alínea m) desse nº  3,  caso em que  o valor patrimonial inscrito na matriz só pode ser alterado por meio de nova avaliação decorridos três anos após a data do encerramento da matriz em que tenha sido inscrito o resultado daquela avaliação».

7. E, justificando simultaneamente a não aplicação do processo revisão oficiosa e a aplicação não retroactiva dos efeitos da alteração de VPT ocorrida por aplicação do artigo 130.º do CIMI, diz ainda a referida decisão, no proc. n.º 677/2021-T:

«No entanto, segundo o nº 8 dessa norma, os efeitos dessas reclamações e correções só se produzem na liquidação do ano em que for apresentado o pedido ou promovida a retificação, não tendo  os efeitos retroativos típicos do regime de anulação dos atos tributários ou em matéria tributária.

Não é  consequentemente aplicável, em virtude dessa ausência de quaisquer efeitos retroativos da reclamação que não anula mas apenas substitui a avaliação anterior, o mecanismo de revisão oficiosa do nº 1 do art. 78º da LGT, salvo em caso de liquidação do IMI posterior à reclamação ou entrega da Declaração  modelo 1 de que tiver resultado o  novo valor patrimonial tributário apurado (….). Também por isso não é aplicável a alínea b) do nº 1 do art. 115º,  .já que o fundamento da revisão oficiosa da liquidação previsto nessa norma legal que é uma nova avaliação  é expressamente excluído pelo nº 8 do art. 130º do CIMI.

A correção do  erro na inscrição matricial solicitada a  21/12/2020, data da entrega da apresentação da declaração modelo 1, à qual ainda se aplicaria  a redação do art. 45.º do CIMI anterior à dada pelo art. 392.º da Lei n 75-B/2020, abrange, assim, somente as liquidações de IMI desse ano e dos anos subsequentes e não as liquidações de 2016, 2017, 2018 e 2019, havidas como validamente realizadas

É a consequência lógica dos efeitos apenas  “ex nunc” dessas correções, justificados, quando a  iniciativa for do contribuinte, pela necessidade de facultar  aos municípios uma adequada previsão das suas receitas,  e, quando a  iniciativa for da administração fiscal, pela tutela das  expetativas legalmente protegidas do contribuinte a  quem essas correções são dirigidas». (fim de citação).

8. Concluindo, considero que esta justificação, das correcções de VPT produzirem apenas efeitos ex nunc, concilia-se com as observações e receios supra manifestados (cf. ponto 3) sobre os efeitos de uma aplicação do n.º 4 do art.º 78.º da LGT que julgo exceder a mens legis, pela forma como pode abalar os princípios de confiança e segurança no direito, designadamente quanto à previsão de receitas públicas disponíveis para prossecução do interesse público.

 

7 de Setembro de 2022

 

Manuela Roseiro