Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 137/2023-T
Data da decisão: 2023-11-17  IRS  
Valor do pedido: € 19.338,86
Tema: IRS – Residente não habitual; Definição de “quadros superiores de empresa.”
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DECISÃO ARBITRAL

Sumário:

I – Constituem indícios para a densificação do conceito de “quadros superiores de empresa” as funções exercidas e a remuneração auferida.

II - O artigo 81º, nº 5, al. a), do CIRS não exige a tributação efetiva por outro Estado Contratante, bastando para a sua aplicação a possibilidade de tributação ou a tributação potencial por esse outro Estado.

 

1. Relatório

 

A... e B..., contribuintes fiscais números ... e ..., respetivamente, residentes na ..., n.º..., ..., União das freguesias de ... e ..., ..., apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 3.º, alínea a) do n.º1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei n.º10/2011, de 20 de Janeiro - Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), visando a anulação da de liquidação de IRS n.º 2022..., relativa ao período de tributação de 2019, com o valor a pagar de € 18.703,58.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

2. Como fundamento do pedido, apresentado em 08-03-2023, os Requerentes alegam, em síntese, que o ato tributário que constitui o objeto do presente processo se encontra ferido de ilegalidade, porquanto, não foi aplicado aos rendimentos auferidos no Reino Unido o método da isenção, tendo os rendimentos auferidos fora do território nacional sido indevidamente tributados em Portugal.

Em concreto, alegam o seguinte:

           

2.1 Até 2020, os Requerentes foram residentes na República Federal da Alemanha.

2.2 Em 2020, ao abrigo do Estatuto do Residente Fiscal não Habitual, os residentes tornaram-se residentes em Portugal.

2.3 O Requerente A... exerce a sua atividade como prestador de serviços na C..., Londres, na qual assume as funções de “Senior Market Analyst”.

2.4 Esta categoria de serviços prestados é considerada no cômputo do exercício de funções de elevado valor acrescentado, nos termos e para os efeitos da Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho.

2.5 Todos os rendimentos auferidos pelo Requerente A... são auferidos no estrangeiro, sendo-lhes aplicável o método de isenção previsto no artigo 81.º, n.º 5.

2.6 No dia 17/10/2022, o Requerente apresentou, através do Portal das Finanças, a declaração de rendimentos referente ao período de 2019, cfr. Doc. 6 que junta.

2.7 Por erro, declarou rendimentos na Categoria A no Anexo J da Declaração Modelo 3.

2.8 Aquela declaração foi validada pela AT e originou a liquidação n.º 2022..., com o imposto a pagar objeto da presente impugnação.

2.9 Após contacto com o seu contabilista, verificou declarou erradamente como trabalho por conta de outrem (cat. A) os rendimentos de prestação de serviços (cat. B) e não preencheu o Anexo L da declaração modelo 3 com a opção de aplicação do método de isenção.

2.10 Apresentou, em 16/12/2022 e 28/12/2022, declarações de substituição (Cfr. Doc. 11 e 12) que não foram validadas por erros de preenchimento; em 02/02/2023 foi submetida uma nova declaração de substituição, com a informação correta (Cfr. Doc. 13).

2.11 Atendendo a que estão enquadrados no regime do Residente Não Habitual, por preencher os respetivos requisitos, é-lhe aplicável o artigo 81.º, n.º 5 do CIRS que determina a aplicação do método de isenção (para eliminação da dupla tributação) relativamente aos rendimentos da categoria B, desde que possam ser tributados no outro estado contratante (neste caso, no Reino Unido), nos termos definidos na convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre os dois países.

2.12 Nos termos do artigo 14.º da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre o Estado Português e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, “os rendimentos obtidos por um residente de um Estado Contratante pelo exercício de uma pessoa liberal ou de outras atividades independentes de caráter similar só podem ser tributados nesses Estado…”.

2.13 Neste sentido, cita as decisões do CAAD, relativas aos processos n.ºs 401/2020-T, 392/18-T e 46/2018-T.

2.14 Relativamente à prova e respetivo ónus, consideram os Requerentes que, face ao artigo 75.º, n.º 1, da LGT, presumem-se verdadeiras as declarações do contribuinte, pelo que fica demonstrado que não assiste razão à AT.

2.15 Terminam requerendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

3. Em resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, considerando dever manter-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado e, em conformidade, decidindo-se pela absolvição da entidade requerida, nos seguintes termos:

3.1 O princípio do ónus da prova (cfr. artigo 342.º da CC e n.º 1 do artigo 74.º da LGT) consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem necessidade de prová-lo.

3.2 Ou seja, em momento algum o Requerente apresentou os meios de prova solicitados pela AT para provar a sua suposta alegada prossecução de atividade de valor acrescentado.

3.3 Com efeito, o Requerente assevera que teria desempenhado as funções de “Senior Market Analys” na empresa “C..., Londres, Reino Unido”, o que se enquadraria no elenco definido na Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho.

3.4 Ora, tal não poderá verificar-se já que estamos a discutir a liquidação do IRS de 2019 e a referida Portaria apenas entrou em vigor a 01/01/2020.

3.5 Não é também compreensível em que hipóteses o Requerente se enquadrada face à lista prevista na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro. A menção a “Senior Market Analyst” é uma referência genérica e abstrata, desprovida de conteúdo; as funções de “General Director” não qualificam para o previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro mas apenas para a Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho.

3.6 Não obstante, a jurisprudência tem associado o exercício de funções de direção à vinculação da empresa e desempenho de funções de direção. Neste contexto, a possibilidade de o Requerente vincular a sociedade não ficou demonstrada; também não resulta dos autos a existência de uma posição de domínio sobre os trabalhadores da C... .

3.7 Por outro lado, existe uma errónea interpretação do artigo 14.º da CDT com o Reino Unido: o artigo 14.º, n.º 1, estabelece que só há tributação exclusiva no Estado da residência se o sujeito passivo não tiver uma instalação fixa no Reino Unido para o exercício da atividade, no país de origem dos rendimentos.

3.8 No caso, o Requerente não demonstra a disponibilidade dessa instalação no Reino Unido, o que constitui um óbice à aplicação do método de isenção, previsto no artigo 81.º, n.º 5, al. a) do CIRS.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 08-03-2023, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral foi constituído em 17-05-2023.

 

8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

9. As partes, devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

10. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, considerando que a “posição das partes estar plenamente definida nos Autos e suportada pelos meios de prova documental juntos”, “ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º2 e 29.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), por despacho de 01-11-2021 decidiu dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do referido Regime, tendo as partes apresentado alegações finais.

 

11. Foi indicada como data limite para prolação da decisão arbitral o dia 17-11-2023.

 

II. Matéria de facto

 

12. Com relevância para a apreciação da questão suscitada, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base no acervo documental junto aos autos, mormente o processo administrativo e documentos que o integram, se consideram provados:

 

12.1 Por despacho de 25/05/2020, da Direção de Serviços de IRS, o Requerente A... foi enquadrado no Regime do Residente Não Habitual a partir de 2019 até 2028.

12.2 No dia 17/10/2022, o Requerente apresentou, através do Portal das Finanças, a declaração de rendimentos referente ao período de 2019 (Doc. 6, junto à P.I.).

Esta declaração foi validada pela AT e originou a liquidação n.º 2022..., com o imposto a pagar objeto da presente impugnação.

12.3 Em 16/12/2022 e 28/12/2022, o Requerente apresentou declarações de substituição (Cfr. Doc. 11 e 12 junto à P.I.) que não foram validadas por erros de preenchimento; em 02/02/2023 foi submetida uma nova declaração de substituição, (Cfr. Doc. 13 anexo à P.I.).

12.4 Por ofícios de 20/12/2022 e 02/02/2023, o Serviço de Finanças de Lisboa notificou o Requerente para “apresentar, no prazo de 15 dias, o original ou fotocópia autenticado do comprovativo dos rendimentos auferidos e do imposto pago no estrangeiro emitido pela Autoridade Tributária desse país, bem como o comprovativo que certifique o cargo de direção e os poderes de vinculação de pessoa coletiva.”

12.5 Em resposta os Requerentes solicitaram o adiamento do prazo para a respetiva entrega, atendendo à dificuldade de obter uma resposta das Autoridades do Reino Unido.

12.6 Em 3 de abril, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa da liquidação n.º 2022..., em que apresentaram como Documento n.º 4 o contrato de prestação de serviços celebrado com a sociedade C... e Doc. n.º 5 uma Declaração assinada pelo Diretor desta entidade a declarar que o Requerente A... “presta serviços à sociedade como Senior Market Analyst e directoria em geral”.

12.7 Em 07/03/2023, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

13. A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada, designadamente a constante do processo administrativo junto pela Requerida.

 

14. Não foi provado pelos Requerentes o pagamento do imposto liquidado (apesar se referir na lista de documentos juntos ao Pedido arbitral “Doc. 15 – Comprovativo de pagamento da dívida exequenda”, tal documento não consta da documentação).

 

III. Matéria de direito

 

No pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes submetem à apreciação deste tribunal a legalidade do ato de liquidação de IRS do ano de 2019, solicitando, consequentemente, a declaração de ilegalidade desse ato, com os fundamentos supra expostos.

 

A questão essencial é a de determinar se, relativamente ao ano de 2019, o Requerente fez, ou não, prova de preenchimento dos requisitos (residente não habitual, quadro superior da empresa desempenhando funções de elevado valor acrescentado, com o Código de Actividade “802”) de que depende o direito a ser tributada de acordo com o regime especial previsto no artigo 72º, n.º 10, do CIRS e na Portaria nº 12/2010, de 7 de Janeiro.

 

O regime fiscal do residente não habitual foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que aprovou o Código Fiscal do Investimento.

 

Posteriormente, pela Lei n.º 20/2012, de 14/05, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º, e 81.º do Código do IRS, complementado com a Portaria n.º 12/2010, de 07/01, que aprovou a tabela de atividades de elevado valor acrescentado.

 

A questão controvertida reconduz-se ao artigo 72.º, n.º 10 do Código do IRS, que prevê que “os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20%”.

 

Com a publicação da Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, foi aprovada a “tabela de actividades de elevado valor acrescentado”.

 

A atividade de elevado valor acrescenta relevante para o caso é que se deverão destacar, com relevância para o presente caso é “802- Quadros superiores de empresas.”

 

Através da Circular n.º 2/2010, de 6 de Maio de 2010, a AT clarificou que “os quadros superiores de empresas (Código 802), são as pessoas com cargo de direção e poderes de vinculação da pessoa coletiva”.

 

Posteriormente a AT, através de uma nova Circular, n.º 4/2019, de 8 de Outubro de 2019, veio clarificar os meios de prova exigíveis:

No caso das atividades de EVA previstas na Portaria n.º 12/2010, de 07 de janeiro, em conjugação com os pontos 7 e 8 da Circular n.º 2/2010, de 6 de maio, constituem elementos de prova, designadamente, os seguintes:

a) Contrato de trabalho ou de prestação de serviços que identifique objetivamente as funções exercidas, acompanhado de documento comprovativo de inscrição em Ordem Profissional, no caso de exercer atividade que careça dessa inscrição;

b) Documento comprovativo do exercício do cargo de direção (por exemplo contrato de trabalho) e procuração onde conste que o requerente possui poderes de vinculação da pessoa coletiva, no caso de atividade "Quadro Superior de Empresa" (ponto 7 da Circular n.º 2/2010, de 06 de maio), sendo considerada prova bastante uma procuração com poderes conjuntos;

(…)

f) Outros documentos idóneos que comprovem o exercício efetivo da atividade invocada.”

 

Caberá ressalvar que estas interpretações da AT não são vinculativas, já que as circulares administrativas não podem determinar interpretações vinculativas da lei.

 

No caso, o Requerente apresentou cópia do contrato de prestação de serviços com a descrição das atividades exercidas, honorários devidos (€ 19.000,00 mensais, a que acrescem dois meses adicionais no valor de 38.000,00, sujeitos ao cumprimento de objetivos), bem como uma declaração da Direção da empresa a declarar que o Requerente A...“presta serviços à sociedade como Senior Market Analyst e directoria em geral”.

 

Ora, não decorrendo da lei que um “quadro superior da empresa” tenham que necessariamente ter poderes para vincular a empresa, os demais indícios - elevada remuneração e descrição das funções exercidas – são suficientes, na nossa opinião, para comprovar o exercício de uma atividade de elevado valor acrescentado.

 

Não procede, por isso, a argumentação de AT, que deveria ter reconhecido que o Requerente era, no ano de 2019, um quadro superior da empresa, devendo, por isso, beneficiar do regime de residente não habitual.

 

Quanto à prova de tributação dos rendimentos no Reino Unido, a isenção prevista no artigo 81º nº 5 a) do CIRS não exige qualquer tributação efetiva, bastando-se com a possibilidade de tal tributação (“Possam ser tributados no outro Estado contratante...”).

 

Da letra da lei não resulta qualquer dúvida de que a aplicação do método da isenção não está dependente de qualquer tributação efetiva pelo outro Estado Contratante, bastando-se com a possibilidade de tal tributação, isto é, com uma tributação potencial. 

Deve então presumir-se que a lei pretendeu efetivamente aplicar o método da isenção quando se verifica uma tributação potencial do outro Estado Contratante.

Em consequência, não é devido aos Requerente que façam prova de tributação efetiva porque tal não decorre da lei.

 

IV. Decisão

 

Julgar procedente o pedido de anulação do ato de liquidação de IRS IRS n.º 2022..., relativa ao período de tributação de 2019, com o valor a pagar de € 18.703,58.

 

Valor do processo:

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) fixa-se ao processo o valor de € 19.338,86.

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 1.224,00 a cargo dos Requerentes.

 

Lisboa, 17 de novembro de 2023

 

 

O Árbitro

 

 

 (Amândio Silva)