Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 135/2022-T
Data da decisão: 2022-10-19  IRC  
Valor do pedido: € 152.477,54
Tema: IRC - Incompatibilidade do n.º 3, do artigo 22º do Estatuto dos Benefícios Fiscais com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; Juros indemnizatórios.
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SUMÁRIO:

 

1. As normas dos artigos 94.º nº 1 alínea c), 94.º nº 3 alínea b), 94.º nº 4 e 87.º nº 4 do CIRC e artigo 22.º do EBF, na medida em que determinam  a tributação em sede de imposto sobre o rendimento, através de retenção liberatória dos dividendos de origem nacional, quando são auferidos por OIC não residentes, ao mesmo tempo que preveem  uma isenção de tributação, quando os dividendos de origem nacional são auferidos por OIC residentes em Portugal, estão em desconformidade com o artigo 63.º do TFUE.

2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever  de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia.

3. Em caso de ilegalidade praticada em atos de retenção na fonte, os respetivos juros indemnizatórios devem ser contados nos termos do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

***

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. No dia 4.03.2022, o Requerente, A..., Organismo de Investimento Coletivo, com sede em ..., ... ..., Alemanha, atualmente com o número de identificação fiscal português ... (doravante designado de “Requerente”), representado por B... GmbH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, anteriormente designado C... e com o número de identificação fiscal português..., na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2019 e 2020, bem como da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra os referidos atos de retenção na fonte, no valor total de € 152.477,54.

 

A Requerente peticiona ainda a restituição do montante referente às retenções na fonte em causa, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros os signatários, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 17.05.2022.

 

3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:

  1. O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária, comumente designado de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país.
  2. O Requerente é um fundo aberto autónomo, gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade igualmente com sede na Alemanha que se baseia num contrato entre a entidade gestora, os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários.
  3. O objeto do fundo de investimento prende-se exclusivamente com a administração, gestão e com o investimento do seu património.
  4. Do ponto de vista tributário, o Requerente está sujeito a imposto sobre as pessoa coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido, todavia, concedida uma isenção (nos termos da Secção 11 parágrafo 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão – German Corporate Income Tax Act” – e da secção 11 parágrafo 2 do Código Fiscal de Investimento Alemão – German Investment Tax Act”).
  5. O Requerente detém diversos investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal.
  6. Os dividendos recebidos no decorrer dos anos de 2019 e 2020 pelas referidas participações sociais foram sujeitos a tributação em IRC, por retenção na fonte liberatória à taxa de 25% e, em parte, à taxa de 35%, ambas previstas no artigo 87.º do Código do IRC (“CIRC”) tendo a Requerente suportado, em Portugal, nos anos de 2019 e 2020, a quantia total de imposto de EUR 152.477,54, a qual constitui objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
  7. Na ótica do Requerente, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu a Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia, conforme tem sido entendimento unânime do Tribunal de Justiça da União Europeia.

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese com os fundamentos seguintes:

  1. Remete para os factos constantes do processo administrativo e para os fundamentos de direito constantes do PA, que se dá por integralmente reproduzidos.
  2. A Requerente descreve o regime fiscal dos organismos de investimento coletivo (“OIC”), que se constituem e operam de acordo com a legislação nacional, recorrendo para o efeito, aos normativos do Código do IRC e artigo 22.º do EBF.
  3. Porém, refere que existem dois aspetos de grande relevância para a definição completa do quadro fiscal dos OIC, a que importa dar o devido relevo.
  4. Um tem a ver com a opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, mediante a subtração à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS) conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, deslocando a tributação para a esfera do Imposto do Selo.
  5. Com efeito, foi aditada à TGIS a Verba 29 de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.
  6. Ora, a tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
  7. O outro prende-se com a tributação incidente sobre os dividendos, porquanto, além de não integrarem a matéria coletável do IRC, também beneficiam da isenção de retenção na fonte (cf. n.º 10 do artigo 22.º do EBF).
  8. No entanto, os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF – tal como ocorre com os fundos de pensões - por beneficiarem de isenção parcial de IRC, estão obrigados a liquidar e entregar a tributação autónoma incidente sobre os lucros distribuídos, quando as correspondentes partes sociais não sejam detidas, de modo ininterrupto, há pelo menos um ano, face ao disposto no n.º 11 do artigo 88.º do CIRC.
  9. Os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso da Requerente, não está sujeito a tributação autónoma sobre os dividendos.
  10. Os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos na Alemanha, não são genericamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que, aparentemente, os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos.
  11. Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
  12. Assim, contrariamente ao afirmado pela Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes, pelo contrário.
  13. O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância.
  14. Além do mais, o imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.
  15. Por outro lado, a administração tributária não pode deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada.
  16. A administração tributária, como qualquer órgão da Administração Pública, encontra-se estritamente vinculada ao cumprimento da lei, de acordo com o artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável subsidiariamente às relações jurídico-tributárias [ex vi do artigo 2.º alínea c) da LGT] e tem que aplicar o disposto nos códigos fiscais que se encontram em vigor e as disposições deles constantes que regulam determinada relação jurídico-tributária, de acordo com o artigo 2.º alínea b) da LGT, in casu, as normas constantes do Código do IRC e do EBF acima citadas.
  17. Na verdade, tem a administração tributária que considerar que no processo de elaboração das normas em questão o legislador doméstico terá tido em atenção todo o ordenamento jurídico, quer nacional quer internacional, pelo que essas normas devem respeitar os mesmos, sendo certo, também, que não cabe à administração tributária a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia.

 

5. Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), por despacho de 28.06.2022 foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18 e a apresentação de alegações.

6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

7. Cumpre solucionar as seguintes questões:

1) Ilegalidade dos atos de retenção na fonte objeto do processo.

2) Direito do Requerente à restituição dos montantes objeto de retenção na fonte.

3) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.

 

II – A matéria de facto relevante

 

8. Consideram-se provados os seguintes factos:

8.1. O Requerente é uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país (cfr. certificado de residência fiscal relativo aos anos de 2019 e 2020, junto na  a petição inicial como documento n.º 1 e teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa junto na petição inicial como documento n.º 15).

8.2. O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade com sede na Alemanha (cfr. certificado de residência fiscal relativo aos anos de 2019 e 2020, cópia do registo comercial, junto na petição inicial como documento n.º 2,  teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa e teor dos documentos juntos pelo Requerente no exercício do direito de audição no mesmo procedimento  constantes  do documento juntos pela Requerente como doc. n.º 14).

8.3. O Requerente é um fundo aberto autónomo que se baseia num contrato entre a entidade gestora os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários (cfr. certificado emitido pelas autoridades fiscais de Frankfurt, junto com a petição inicial como documento n.º 3, e teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa).

8.4. O Requerente está sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido, todavia, concedida uma isenção (nos termos da Secção 11 parágrafo 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão – German Corporate Income Tax Act” – e da secção 11 parágrafo 2 do Código Fiscal de Investimento Alemão – German Investment Tax Act”) (cfr. documento n.º 4 e teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa).

8.5. Nos anos de 2019 e 2020, o Requerente era detentor de lotes de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal:

 

D..., S.A.

391.710

E...

 38.021

F..., SGPS S.A.

 65.554

G... S.A.

330.000

(cfr. documentos juntos com a petição inicial como documentos números 7, 8, 9, 10 e 11º e teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa).

8.6.Nos anos de 2019 e 2020, o Requerente recebeu dividendos e suportou em Portugal IRC por retenção na fonte no montante total a seguir discriminado:

 

Ano da retenção

 

Valor Bruto do Dividendo

Data de Pagamento

Taxa de Retenção na Fonte

Guia de pagamento

Valor da retenção (€)

2019

 

72.466,35

30.04.2019

25%

...

18.116,59

2019

 

12.356,83

09.05.2019

25%

...

  3.089,21

2019

 

23.435,56

09.05.2019

25%

   ...

  5.858,89

2019

 

62.700,00

15.05.2019

25%

...

15.675,00

2019

 

20.731,45

10.09.2019

25%

...

 5.182,86

2019

 

34.378,08

19.12.2019

35%

...

12.032,33

2020

 

62.700,00

14.05.2020

35%

...

21.945,00

2020

 

76.791,35

14.05.2020

35%

...

26.876,97

2020

 

25.156,35

21.05.2020

35%

...

 8.804,72

2020

 

 7.870,35

15.07.2020

35%

...

 2.754,62

2020

 

86.585,55

20.07.2020

35%

...

30.304,94

2020

 

 5.246,9

16.12.2020

35%

...

 1.836,41

 

 

TOTAL                      152.477,54

 

               

 

(cfr. documentos juntos com o PPA como documentos números 7, 8, 9, 10 e 11 e teor da decisão que indeferiu a reclamação graciosa).

8.7. Em 14.06.2021, o Requerente apresentou, reclamação graciosa contra os referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos aos anos de 2019 e 2020, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (documento n.º 12 junto com o PPA).

8.8. No dia 27.10.2021, foi o Requerente notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada (cfr. documento n.º 13 junto com o PPA).

8.9. Na sequência desta notificação, o Requerente exerceu o direito de audição (cfr. documento n.º 14 junto com o PPA).

8.10. Em 02.12.2021 (através de envio de carta registada de 01.12.2021), o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa cujo teor se dá por integralmente reproduzido (documento n.º 15 junto com o PPA).

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados

 

9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto considerada provada alicerçou-se, quer nos documentos constantes do processo (acima indicados relativamente a cada ponto do probatório, juntos com o pedido de pronúncia arbitral e que constam, igualmente, do processo administrativo que a Requerida juntou aos autos), quer na posição da Requerida sobre tais factos, alegados pela Requerente.

Na decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa, a Requerida não contestou o quadro factual alegado pela Requerente, antes o aceitou inequivocamente, assentando o indeferimento da reclamação graciosa, exclusivamente, em fundamentos de direito.

Igualmente, na resposta apresentada no presente processo a Requerida apenas manifestou desacordo com o Requerente relativamente à matéria de direito.

Em suma, a decisão da matéria de factos assenta quer nos documentos constantes do processo, quer nas posições de ambas as partes sobre os mesmos.

 

III- O Direito aplicável

 

10. Quer face ao alegado pelo Requerente, quer à luz fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa, a questão jurídica que importa solucionar, no que respeita à legalidade dos atos tributários em apreciação, é a de saber se Portugal ao sujeitar a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal, viola o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia, como sustenta o Requerente ou se, como defende a Requerida, não se está na presença de situações objetivamente comparáveis “porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente”, existindo apenas uma “aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância”.

 

11. Em 17 de Março de 2022 foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça no referido processo n.º C-545/19[1] tendo por objeto idêntica questão jurídica em causa, onde se pode ler, além do mais, o seguinte:

 “Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11      A AllianzGI‑Fonds AEVN é um organismo de investimento coletivo (OIC) de tipo aberto, constituído ao abrigo da legislação alemã e com sede na Alemanha. É gerido por uma entidade gestora cuja sede também se situa na Alemanha, não sendo essa entidade residente nem possuindo um estabelecimento estável em Portugal.

12      Uma vez que tem residência fiscal na Alemanha, a AllianzGI‑Fonds AEVN está isenta do imposto sobre o rendimento das sociedades nesse Estado‑Membro ao abrigo da regulamentação alemã. Este estatuto fiscal impede‑a de recuperar os impostos pagos no estrangeiro sob a forma de crédito fiscal por dupla tributação internacional, ou de formular um pedido de reembolso desses impostos.

13      Nos anos de 2015 e de 2016, a AllianzGI‑Fonds AEVN era detentora de participações sociais em diversas sociedades residentes em Portugal. Os dividendos recebidos a este título durante esses dois anos foram sujeitos, em conformidade com o artigo 87.°, n.° 4, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25 %, pelo valor total de 39 371,29 euros.

14      Relativamente ao ano de 2015, a AllianzGI‑Fonds AEVN obteve o reembolso de 5 065,98 euros ao abrigo da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, na qual se prevê a taxa máxima de 15 % para a tributação dos dividendos.

15      Em 29 de dezembro de 2017, a AllianzGI‑Fonds AEVN apresentou, na Autoridade Tributária e Aduaneira, uma reclamação graciosa dos atos através dos quais esta última procedeu à retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. Pedia a anulação desses atos por violação do direito da União, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal. Essa reclamação foi indeferida por Decisão de 13 de novembro de 2018.

16      Em 12 de fevereiro de 2019, a AllianzGI‑Fonds AEVN recorreu ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), pedindo a anulação dos atos de retenção na fonte pela quantia remanescente, de 34 305,31 euros.

17      Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a AllianzGI‑Fonds AEVN alega que, nos anos de 2015 e 2016, os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estavam sujeitos a um regime fiscal mais favorável do que aquele a que foi sujeita em Portugal, na medida em que, relativamente aos dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, esses organismos estavam isentos, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 3, do EBF, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. A AllianzGI‑Fonds AEVN considera que, sendo tributada à taxa de 25 % sobre os dividendos que lhe são pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, é objeto de um tratamento discriminatório proibido pelo artigo 18.° TFUE, bem como de uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE.

18      A Autoridade Tributária e Aduaneira afirma, por sua vez, que o regime fiscal português aplicável aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação nacional e o regime aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são, por natureza, comparáveis, uma vez que o primeiro destes regimes também não exclui a tributação dos dividendos a cargo dos organismos que abrange, seja através do imposto do selo ou do imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas. Tendo em conta que a tributação dos dividendos é feita segundo modalidades diferentes, nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa seja mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por um organismo como a AllianzGI‑Fonds AEVN. A Autoridade Tributária e Aduaneira acrescenta que também não está demonstrado que a parte do imposto não recuperada pela AllianzGI‑Fonds AEVN não possa ser recuperada pelos investidores desta última.

19      O órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a questão de saber se, ao isentar do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas os dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal a OIC com sede neste Estado‑Membro e que foram constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa, ao mesmo tempo que tributa à taxa de 25 % os dividendos pagos por essas sociedades a OIC com sede noutro Estado‑Membro da União, não sendo assim constituídos nem operando de acordo com a legislação nacional, o regime fiscal português é contrário ao artigo 56.° TFUE relativo à livre prestação de serviços ou ao artigo 63.° TFUE relativo à livre circulação de capitais.

(…)

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

36      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 49 e jurisprudência referida).

37      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

40      Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].

42      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].

 

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis

(…)

72      Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).

73      Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

74      Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.

 

Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral

75      Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 56 e jurisprudência referida].

(…)

78      A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C‑375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 87).

79      Ora, no presente processo, como resulta do n.° 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C-190/12, EU:C:2014:249, n.° 93).

80      Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.° 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.

81      A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.

82      No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 57 e jurisprudência referida, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.° 59).

83      No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 71 e jurisprudência referida).

84      Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.

(…)

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

 

Acompanhando-se esta decisão do Tribunal de Justiça, claramente aplicável ao presente processo, consideramos que procede o vício de violação de lei alegado pelo Requerente, por incompatibilidade do n.º 3, do artigo 22º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, com a consequente anulação dos atos tributários objeto do processo.

 

13. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida ao reembolso da quantia indevidamente arrecadada, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de retenção na fonte objeto do processo, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

14. No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

Dispõe o n.º 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Considerou-se no acórdão do STA de 8 de março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia  com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:

“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”[2]

Por outro lado, consta do  acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018,no processo C-378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida:

38      Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).

39      Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado-Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”

Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, pode também ler-se:

 “há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C-224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.º 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).[3]

Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:

“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.”[4]

No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que sobre o princípio do primado do direito comunitário escreve:

”(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”[5]

Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever consubstancia de erro de direito imputável aos serviços.

Assim tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, pois, como se pode ler  no acórdão do STA proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14:

“desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12/12/2001, no recurso n.º 026233, pois «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.”

Assim, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços[6], que se verificou, pelo menos, na data da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.

15. Quanto à data a partir da qual a contagem dos juros deve ser efetuada em caso de ilegalidade praticado em atos de retenção na fonte, como é o caso dos presentes autos, a jurisprudência encontra-se dividida, havendo decisões arbitrais no sentido de que os juros são contados desde a data do pagamento indevido, nos termos do artigo 61.º, nº. 5, do CPPT (cfr. decisões proferidas nos processos 951/2019-T, 18 de Setembro de 2020, 926/2019-T, de 19 de outubro de 2020, 903/2019-T de 27 de novembro de 2020) e outras que sustentam que a contagem dos juros se deve iniciar a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou a partir do dia seguinte à data em que a decisão deveria ter sido decidida de acordo com o disposto no artigo 57.º da LGT (cfr. decisões proferidas nos processos 952/2019-T, de 10 de julho de 2020 e 345/2021-T de 1 de fevereiro de 2022), havendo ainda decisão arbitral que entendeu que a contagem de indemnizatórios só começa a partir de ano após a data do pedido de reclamação graciosa, à luz da alínea c), do n.º 3, do art.º 43.º da LGT, que regula a contagem de juros indemnizatórios nos casos de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte (Decisão arbitral proferida no processo 252/2014-T de 2 de fevereiro de 2015).

Adiantamos desde já que é nosso entendimento que os juros devem ser contados desde a data da retenção na fonte que é, economicamente, equivalente a pagamento, uma vez que o substituído fica, em função dela, privado da quantia em causa em moldes substancialmente idênticos ao que ocorre quando qualquer contribuinte realiza  um pagamento de imposto.

É certo que é de ponderar que na data da retenção na fonte ainda não havia, ainda, ocorrido qualquer ato expresso da administração quanto à situação tributária em causa, o que só veio a verificar-se com a decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa. A esta luz, é sustentável que na  retenção na fonte haverá erro da entidade que procede à retenção mas que tal erro não é imputável à Requerida.

Acontece que, para a situação em apreço, inexiste norma que expressamente preveja que a contagem dos juros se inicie em momento diverso do previsto no artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.

Por outro lado, a própria lei admite a ocorrência de erro imputável aos serviços em situação em que os serviços não se pronunciaram expressamente, como acontece na situação prevista no n.º 2 do artigo 43.º da LGT, nos casos em que o contribuinte seguiu no preenchimento de declaração fiscal as orientações genéricas da administração tributárias devidamente publicadas. A situação dos autos, em que o substituto tributário seguiu na sua declaração a própria lei, por este tribunal considerada inaplicável por violação do direito europeu, não deixa de ter -até por maioria de razão - similitude substantiva com aquela situação em que também se seguiu um comando genérico.

Acresce, ainda, que inexiste norma que determine que a contagem dos juros se inicia a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou a partir do dia seguinte à data em que a decisão deveria ter sido decidida de acordo com o disposto no artigo 57º da LGT. Esta solução, para além de não  estar prevista legislativamente, deixaria nas mãos da AT, com a maior ou menor celeridade da decisão, o inicio da contagem do prazo, o que não se afigura razoável.

Por último, entendemos, ainda, que os artigos 99.º e 103.º do CIRC, interpretados à luz dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade - que a administração tributária não pode deixar de observar na sua atuação - impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação em montante superior ao que seria devido face à lei aplicável, sendo certo que as entidades obrigadas a efetuar retenções na fonte estão obrigadas a entregar à Requerida uma declaração de modelo oficial, referente aos rendimentos pagos ou colocados à disposição e respetivas retenções na fonte, em cumprimento dos artigos 128.º do CIRC e 119.º do CIRC e da Portaria n.º 372/2013 de 27/12 (atualmente Portaria n.º 98/2021 de 5 de maio). A Requerida, ao receber tal declaração e omitir qualquer correção à mesma, adere tacitamente à retenção[7], tanto mais que a mesma é efetuada no cumprimento de dever de colaboração de entidades privadas em funções de gestão fiscal, cujo controlo cabe à Administração tributária.

Assim sendo, afigura-se que a Requerida não é alheia à ilegalidade cometida nas retenções na fonte efetuadas, cuja licitude implicitamente aceitou, ao contrário da Requerente que, essa sim, é totalmente alheia aos atos tributários em causa.

Face ao exposto e inexistindo norma para situação em apreço que determine que a contagem dos juros seja feita em termos mais desfavoráveis para o contribuinte do que aquele que consta do artigo 61.º, nº 5, do CPPT, entende-se que deve ser este regime o aplicável, sendo que a solução que do mesmo decorre, ao atribuir ao contribuinte o direito ao pagamento de juros indemnização a partir da data em que o mesmo fique privado das quantias retidas, é a que se  afigura materialmente mais justa e adequada à natureza indemnizatória dos juros em questão.

 

IV- Decisão

 

Termos em que se julga procedente o pedido de pronuncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de retenção na fonte objeto do processo, bem como da decisão da reclamação graciosa que incidiu sobre os mesmos, condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente os respetivos valores, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data da retenção até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

Valor da ação: EUR 152.477,54 (cento e cinquenta e dois mil, quatrocentos e setenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos), nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

Custas pela Requerida, no valor de 3 672.00 €, nos termos do nº 4 do artigo 22.º do RJAT.

 

Notifique-se as partes.

 

Nos termos e para efeitos do artigo 17.º, n.º 3 do RJAT, notifique-se, ainda, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual.

 

Lisboa, 19 de outubro de 2022

                                                          

 

 

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(Regina de Almeida Monteiro - Árbitro Presidente)

 

 

 

 

 

 

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(José Almeida Fernandes - Árbitro Adjunto)

 

 

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(Marcolino Pisão Pedreira - Árbitro Relator)

 

 

 



[1] Este acórdão, tal como os demais do TJUE citados na presente decisão podem ser consultados em  “https://curia.europa.eu/.”

[2] Os acórdãos do STA citados nesta decisão arbitral podem ser consultados em “www.dgsi.pt.”

[3] Nosso sublinhado.

[4] DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA, Almedina, 2004, pág. 530.

[5] DIREITO DA UNIÃO, Almedina, 8.ª edição, 2017, pág. 365.

 

[6] Neste sentido, entre outras, a decisão arbitral de 1 de Abril de 2021, proferida no proc. 457/2020-T, de 1 de Abril de 2021.

[7] Em termos que nos parecem aplicáveis à retenção na fonte efetuada a titulo definito, escreve o Professor Casalta Nabais a propósito da  autoliquidação:

“(…) relativamente à (…) natureza da autoliquidação, (…) estamos em crer que se trata dum acto tributário (…) relativamente ao qual, por via de regra, se verifica uma homologação implícita pela administração tributária decorrente da aceitação do pagamento do imposto.”(DIREITO FISCAL, 3.ª Ed., 2005, Almedina, págs. 326-327, itálico do autor).