Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 509/2014-T
Data da decisão: 2015-02-27  IRS  
Valor do pedido: € 115.639,60
Tema: IRS – Mais-valias - Transmissão onerosa de acções – Exclusão de tributação por detenção superior a 12 meses
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AS PARTES

 

Requerente:  «A», NIF …, com domicílio na …

Requerida:    Autoridade Tributária e Aduaneira

Tema:            Mais-valias - Transmissão onerosa de acções - Exclusão de tributação por detenção superior a 12 meses

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I -      Objecto do pedido e tramitação processual

 

Em 23 de Julho de 2014, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, requerendo:

i)          A título principal, a declaração de ilegalidade e consequente anulação da nota de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respectivos juros compensatórios n.º 2014 ...;

ii)        Subsidiariamente, a anulação parcial da nota de liquidação controvertida, de forma a reflectir o regime especial de apuramento dos ganhos e perdas na transmissão onerosa de participações sociais em micro ou pequenas empresas.

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico foram designados os árbitros do tribunal arbitral colectivo, que ficou constituído em 25 de Setembro de 2014.

 

A Administração Tributária e Aduaneira (doravante a designar, abreviadamente, por AT) apresentou a sua Resposta em 29 de Outubro.

 

A reunião arbitral (artigo 18.º do RJAT) foi inicialmente fixada para 24 de Novembro e subsequentemente alterada para 11 de Dezembro.

Em 5 de Dezembro as partes prescindiram da referida reunião arbitral.

 

Em 10 de Dezembro foi aceite o pedido formulado pela AT, de junção aos autos da decisão arbitral 453/2014-T, cujo objecto é similar ao presente caso controvertido.

 

Mediante despacho de 19 de Dezembro e no exercício do princípio do inquisitório, o Tribunal Arbitral dirigiu um conjunto de perguntas à Requerente, com o propósito de esclarecer a matéria de facto subjacente (alínea f) do artigo 16.º do RJAT).

 

Em 13 de Janeiro a AT contestou o despacho do Tribunal Arbitral, alegando que as perguntas e esclarecimentos solicitados configuravam uma ampliação da causa de pedir em virtude do défice probatório que suportara o pedido de pronúncia arbitral da Requerente.

Considerou a AT estar perante uma insanável violação do princípio da igualdade das partes. Pelo que solicitou a revogação do despacho.

 

Em 15 de Janeiro a Requerente prestou os esclarecimentos que julgou apropriados, tendo ainda anexado alguns documentos que, em seu entender, dariam suporte às respostas apresentadas.

 

Após o que a AT, reforçando o protesto anteriormente apresentado, solicitou, em 22 de Janeiro, o desentranhamento de tais documentos.

 

Em 23 de Janeiro, a Requerente manifestou a sua discordância para com a pretensão da AT.

 

 

II – Saneamento

 

As partes gozam de capacidade e legitimidade jurídicas.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não padece de qualquer nulidade. Não foram suscitadas pelas partes quaisquer excepções que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

Questão preliminar

Foi suscitada uma questão preliminar pela AT, nos seguintes termos:

1)      A  AT apresentou em 13 de Janeiro um requerimento em que defendeu a ilegalidade do despacho proferido pelo Tribunal em 19 de Dezembro de 2014

 em que este solicitava à Requerente determinados elementos aí discriminados;

2)      E requereu a revogação do despacho antes referido;

3)      Em 15 de Janeiro  a Requerente veio responder ao solicitado no despacho de 19 de Dezembro;

4)      Notificada a  AT, a mesma, no seu requerimento de 21 de Janeiro,  reafirmando o que argumentara no requerimento de 13 de Janeiro, solicitou que os documentos juntos pela Requerente fossem desentranhados, acrescentando que em qualquer caso impugnava esses documentos;

5)      Em 23 de Janeiro a Requerente veio juntar requerimento respondendo ao requerimento da AT;

6)       Em relação ao despacho de admissão do requerimento de 23 de Janeiro, a Requerida veio, em requerimento também de 23 de Janeiro, solicitar o desentranhamento do requerimento  da Requerente, por entender que a admissão do mesmo constituía "manifesta violação do princípio da igualdade entre as partes";

7)      Em requerimento de 12 de Fevereiro, a  AT criticou a atuação do Tribunal por violação do princípio da celeridade processual e da devida diligência. Não formulou, no entanto, qualquer pedido;

8)      Tem razão a AT nesta parte, por não ter sido em devido tempo inserida a decisão sobre os requerimentos de 13 e de 21 de Janeiro. Com efeito, este Tribunal Arbitral deliberou em coletivo sobre os mesmos. Todavia,  a decisão a que chegou não foi inserida em momento oportuno na plataforma de gestão processual do CAAD;

9)       Cumpre, pois, no seguimento do requerido pela AT emitir pronúncia sobre:

a)      O requerimento de 23 de Janeiro;

b)      Os requerimentos da AT de 13  e de 21 de Janeiro

          Apreciação

 

a) Quanto ao requerimento de 23 de Janeiro

 

Não tem razão a AT quanto à violação do princípio da igualdade das partes. Sempre a AT foi notificada em tempo oportuno para se pronunciar sobre os documentos e requerimentos da Requerente.

No requerimento em análise, a Requerida diz não se pronunciar sobre a substância do que argumenta a Requerente, por tal não se mostrar necessário. Protesta, porém, contra a forma do requerimento a que responde, por se tratar de "o contraditório do contraditório" e que se verifica uma "ilegalidade por manifesta violação do princípio da igualdade das partes".

Não tem razão nesta parte: a AT foi notificada do requerimento do S.º P.º e respondeu pela forma que entendeu; não se pronunciou quanto à substância, por tal se mostrar desnecessário, mas pronunciou-se pelo desentranhamento pelas razões que refere. Teve, portanto, igual tratamento e igual oportunidade que o S.º P.º.

Quanto à questão da junção aos autos do Requerimento do S.º P.º, como a própria AT reconhece na sua substância, o requerimento em causa nada vem acrescentar ao que está em causa nos autos, nomeadamente quanto à questão da junção do requerimento e documentos. A sua permanência nos autos, como a própria AT reconhece, não prejudica quanto à substância o conhecimento do mérito. O seu desentranhamento por meras razões de forma iria introduzir mais formalidades e diligências num processo que se pretende simples.

Em consequência, o Tribunal decide manter nos autos o requerimento do S.º P.º de 23 de Janeiro de 2015.

 

b) Quanto aos requerimentos de 13  e de  21 de Janeiro

 

Tendo as partes dispensado a reunião do artigo 18.º do RJAT, o Tribunal proferiu o despacho de 19 de Dezembro, dirigido à Requerente e notificado a ambas as partes.

A AT veio pronunciar-se sobre esse despacho, por requerimento de 13 de Janeiro, pedindo a revogação do mesmo.

A Requerente veio, em 15 de Janeiro, apresentar as suas respostas às questões colocadas e juntou documentos.

Notificadas as partes da junção dos requerimentos referidos, vieram pronunciar-se:

·         A AT em requerimento de 22 de Janeiro, pedindo o desentranhamento dos documentos e, supletivamente, impugnando para todos os efeitos legais os documentos juntos.

·         A Requerente, em 23 de Janeiro, opondo-se ao indeferimento do requerido pela AT.

Concluindo:

Não tendo sido realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o Tribunal considerou necessário complementar a instrução do processo e solicitou à Requerente, ao abrigo do princípio do inquisitório, as informações e documentos a que se refere o despacho de 19 de Dezembro (cf. art.º 6º “dever de gestão processual” e art.º 7º “princípio da cooperação processual”, ambos do Código de Processo Civil).

Face à argumentação expendida pela AT, e com o máximo respeito pela douta jurisprudência citada, importa referir que:

      - No relatório do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (Dec. Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro) afirma-se "... tendo em vista conferir à arbitragem tributária a necessária celeridade processual, é adoptado um processo sem formalidades especiais, de acordo com o princípio da autonomia dos árbitros na condução do processo...";

      - Na alínea c) do citado artigo 18.º do RJAT dispõe-se que constitui princípio do processo arbitral "A autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas", e na sua alínea e) refere-se ainda que o tribunal arbitral tem poderes para"A livre apreciação dos factos e a determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras de experiência e a livre convicção dos árbitros".

Tudo isto está em consonância com os princípios da oficialidade e do inquisitório que inspiram o processo tributário: artigo 13.º do CPPT - V. Lopes de Sousa, Cod. Proc. Tributário, vol. I, 2011, p. 173, anotação a este artigo.

Sobre o alcance do princípio do inquisitório  pronuncia-se no seu artigo 99.º a Lei Geral Tributária, Anotada e comentada, de Diogo Leite Campos et al., 2012, p. 859, onde se lê na nota 2 que "o princípio do inquisitório vale para todos os tribunais fiscais que conheçam da matéria de facto”.

Pelo exposto, indeferem-se os dois requerimentos antes referidos, admitindo-se a resposta e a junção dos documentos.

 

    Quanto ao mérito da causa

 

III -   Enquadramento fáctico

 

A.      Factos considerados provados

Em face das alegações e dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:

i)          A Requerente era co-titular de acções (valor nominal total de 18.300 €) representativas do capital social (49.850 €) da «B, S. A.»;

ii)        Em 13 de Março de 2009 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda da referida participação social à «C, S. A.», tendo-se convencionado que o contrato prometido seria firmado nos 365 dias seguintes;

iii)      Em 12 de Março de 2010 foi celebrado o contrato prometido de compra e venda da participação social pelo preço de 2.160.000 €, a pagar ao longo do tempo e em diferentes tranches, a última das quais venceria em 30 de Novembro de 2010 (conforme disposto na cláusula segunda);

iv)      As acções foram entregues sem quaisquer ónus ou encargos e sem qualquer limitação quanto à sua livre disposição (n.º 2 da cláusula primeira);

v)        Nos termos dos n.º 1 e n.º 2 da cláusula terceira, respectivamente, “com a outorga do presente contrato é efectuada a transmissão das acções” e “em caso de não pagamento do preço das acções, os vendedores poderão não abdicar da propriedade e exigir a entrega dos títulos”;

vi)      Na cláusula quarta os vendedores declaram que “desde a data de celebração do contrato promessa até à celebração do contrato definitivo, a gestão da sociedade limitou-se à mera gestão corrente”;

vii)    A compradora inscreveu o sinal pago com a celebração do contrato promessa (108.000 €) numa conta de “adiantamento por conta de investimentos financeiros”, conforme a respectiva Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2009;

viii)  Dessa IES decorre ainda que, da nota 16 do Anexo ao Balanço e à Demonstração de Resultados (ABDR), a compradora identifica uma outra participação de 49% no capital social de uma empresa do grupo. Essa participação está registada no ABDR pelo valor de 80.602,40 €;

ix)      Em 26 de Março de 2010 a compradora submeteu a declaração modelo 4, na qual identifica a aquisição da totalidade das acções representativas do capital social da «B, S. A.»;

x)        Da IES de 2010 da compradora constata-se, conforme a linha A5106 do Balanço, a detenção de participações financeiras registadas pelo método da equivalência patrimonial no valor de 2.800.505,57 € (contrastando com o valor de 80.602,40 € registado no exercício anterior);

xi)      A compradora incumpriu na sua obrigação de pagamento pontual do preço, de que resultou a interposição de uma acção judicial pelos vendedores, a qual foi concluída mediante transacção e estipulação de um novo calendário de pagamentos. A compradora apenas pagou 65.000 € previstos no termo de transacção, incumprindo no demais;

xii)    Do procedimento de inspecção interna realizado pela AT, resultou a notificação, em 21 de Março de 2014, da proposta de correcção do rendimento tributável da Requerente, aumentando-o pela mais-valia (699.086,75 €) proveniente da transmissão onerosa das acções da «B»;

xiii)  O direito de audição prévia, notificado à AT em 31 de Março de 2014, foi exercido pelo mandatário da Requerente;

xiv)  Conforme o subsequente relatório final que foi notificado à Requerente, a AT analisou os fundamentos por aquela apresentados em sede de audição prévia, tendo decidido pela manutenção da anterior proposta de correcção;

xv)    Foi notificada a demonstração de acerto de contas n.º 2014 ... no valor de 155.639,60 €, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e juros compensatórios resultantes da referida mais-valia, a par do estorno do reembolso de IRS proveniente da anterior liquidação (ano de 2010) e respectivos juros compensatórios;

xvi)  No exercício de 2010 a Requerente apenas alienou as acções detidas na «B», não tendo praticado outras operações de transmissão onerosa de participações sociais.

 

B.      Factos não provados

O Tribunal Arbitral considera que os seguintes factos alegados não foram, em face da informação e documentação carreadas para o processo, provados:

i)     As acções da «B» foram entregues à compradora no momento da celebração do contrato promessa, tendo esta tomado posse das mesmas.

Estamos perante títulos emitidos ao portador, embora a Requerente alegue que os mesmos foram fisicamente entregues aquando da assinatura do contrato promessa, não foi apresentado qualquer dado objectivo e susceptível de suportar uma tal alegação.

Acresce que os contrato promessa e prometido são omissos quanto a esta transferência física dos títulos. Na verdade, o contrato definitivo refere que o não pagamento do preço acarretará a devolução dos títulos (sob cominação de estes serem anulados e emitidos novos títulos), o que indicia que a entrega física das acções não teria ocorrido previamente.

Note-se ainda que o contrato promessa não regula as consequências decorrentes do incumprimento do prazo para a celebração do contrato definitivo, o que seria expectável, senão mesmo exigível, caso à compradora tivesse sido atribuída a posse dos títulos e - como analisaremos no ponto seguinte - confiada a prática de actos de gestão corrente ou extraordinária da sociedade, na medida em que a não realização do contrato prometido seria susceptível de deixar uma indelével incerteza jurídica, tanto perante as partes como para com as entidades terceiras que se relacionassem com a «B».

Por último, o termo de transacção celebrado entre as partes em 1 de Fevereiro de 2012 refere, na sua cláusula terceira, que à data da celebração do contrato promessa ocorreu a “posse efectiva das acções, com todos os direitos e deveres às mesmas inerentes”.

Pese embora a declaração das partes realizada através deste documento particular, entendemos que a mesma se apresenta como um facto isolado e insusceptível de descaracterizar a ausência de quaisquer outros factos demonstrativos de uma posse real e efectiva, mormente pela falta de externalização da prática de actos de gestão por parte da compradora.

 

ii)    Com a celebração do contrato promessa, a compradora passou a encarregar-se da gestão corrente da «B», actuando, nos planos económico e factual, como titular dos direitos e deveres ínsitos ao exercício do direito de propriedade.

Mais uma vez, não foi apresentada evidência documental quanto à gestão da «B» no período que mediou entre a celebração dos contratos promessa e prometido.

Não só as partes não convencionaram ou regularam os termos da transferência, total ou parcial, da gestão societária no âmbito do contrato promessa, como não foi ainda demonstrada a real e efectiva prática de actos de gestão por parte da compradora.

Adicionalmente, também não foi exibida prova do conhecimento, por entidades terceiras e conhecedoras da «B», do acordado pelas partes e apto à comprovação da gestão desta sociedade pela compradora após a celebração do contrato promessa.

E, como vimos, os vendedores explicitaram que “desde a data de celebração do contrato promessa até à celebração do contrato definitivo, a gestão da sociedade limitou-se à mera gestão corrente”, o que demonstra que a gestão corrente se manteve na esfera dos vendedores.

 

iii)   A «B» é susceptível de ser qualificada como micro ou pequena empresa na acepção do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro.

A Requerente disponibilizou o balanço do exercício de 2009, do qual se retira o valor total de 65.673,76 €, sem actualizar essa informação para o exercício de 2010. E não apresentou a demonstração de resultados que permitisse conhecer o volume de negócios.

Não foi, igualmente, apresentado suporte no que respeita ao número de empregados da «B».

A condição de micro ou pequena empresa poderia ser satisfeita mediante certificação pelo IAPMEI (o que não aconteceu) ou por via da declaração prevista no n.º 5 do artigo 3.º do Anexo à citada legislação, embora a Requerente tenha afirmado estar em condições de emitir uma tal declaração (reportada aos factos ocorridos em 2010), não o fez.

 

 

 

 

 

 

 

IV -   Síntese dos fundamentos de direito alegados pelas partes

 

A.      O entendimento da Requerente

A compradora tomou posse das acções aquando da celebração do contrato promessa, em 13 de Março de 2009, tendo-lhe sido confiada a prática de diversos actos de gestão.

 

Esta transmissão económica e material da participação social configura a tradição do direito de propriedade subsequentemente (e formalmente) adquirido na celebração, já em 12 de Março de 2010, do contrato prometido.

 

Pelo que a mais-valia fiscal seria tributável no exercício de 2009 e não no exercício de 2010, conforme disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS.

Razão pela qual a liquidação do correspondente imposto apenas poderia ser notificada até 31 de Dezembro de 2013, por respeito ao prazo geral de 4 fixado no instituto da caducidade regulado no artigo 45.º da Lei Geral Tributária (LGT).

 

Ainda que se considerasse ter a transmissão onerosa ocorrido em 2010, a tributação da mais-valia estaria precludida pelo efeito ex nunc das alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

 

Esta legislação revogou a norma que, desde a vigência do Código do IRS, isentava de tributação as mais-valias fiscais decorrentes da transmissão onerosa de acções detidas pelo respectivo titular há mais de 12 meses.

 

Essa revogação não pode abranger as posições jurídicas constituídas em momento anterior à vigência da lei nova, sob pena de violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal. Princípio este que se encontra dotado da tutela constitucional preceituada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.

 

Acrescem as regras de sucessão da lei no tempo, vertidas no artigo 12.º da LGT e que, mais uma vez, consagram o princípio de que a lei nova apenas dispõe para o futuro.

No caso dos impostos periódicos que, como sucede no IRS, se caracterizam pela formação sucessiva do facto tributário até ao respectivo nascimento no último dia do exercício, o n.º 2 da citada norma da LGT mantém a restrição de aplicabilidade da lei nova aos factos ocorridos a partir da sua entrada em vigor.

 

No caso controvertido, o facto tributável consubstancia-se e esgota-se num momento único: a transmissão onerosa das acções. Com efeito, uma mais-valia reveste a natureza de uma operação extraordinária (rendimento-acréscimo), não se reconduzindo à figura do rendimento proveniente do exercício reiterado de uma dada actividade económica (rendimento-produto).

 

Embora o IRS se apresente como um imposto de natureza periódica, o mesmo resulta da agregação do rendimento de um conjunto de categorias, o qual pode resultar da prática de actividade económicas num contínuo temporal ou, como sucede com os incrementos patrimoniais a cuja figura se reconduzem as mais-valia, uma operação de efeito único.

 

Cada operação de transmissão onerosa de acções constitui um facto tributário autónomo. Realizando-se diversas operações desta natureza, os correspondentes resultados, positivos e negativos, são agregados no final do exercício fiscal. Apurando-se um resultado global positivo, o mesmo será passível de tributação mediante aplicação de uma taxa especial ou, por opção do sujeito passivo, englobamento aos demais rendimentos e aplicação da respectiva taxa marginal e progressiva.

 

Constituindo o facto gerador da obrigação tributária a transmissão onerosa das acções, não estamos perante um facto tributário de formação sucessiva e complexa, mas antes perante factos tributários isoladamente nascidos no momento da transmissão onerosa (princípio da realização).

 

A referida Lei n.º 15/2010 não contém qualquer disposição transitória quanto à sua aplicabilidade no tempo, sendo, consequentemente, aplicável o princípio geral segundo o qual a lei nova não é aplicável a factos tributários de natureza instantânea e já formados antes da respectiva entrada em vigor, sob pena de estarmos perante a figura da retroactividade autêntica.

 

Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 4 de Dezembro de 2013.

 

Sem prescindir, a Requerente outorgou procuração forense ao seu mandatário, o qual subscreveu o exercício do direito de audição prévia. Todavia, o relatório final do procedimento inspectivo foi notificado à Requerente, ao invés do seu mandatário conforme preceituado no artigo 40.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), tudo se passando como se o relatório final não tivesse sido notificado ao sujeito passivo. Uma preterição de formalidades essenciais do procedimento tributário, atenta a relação garantística que o mesmo encerra, e que determina a invalidade do acto de liquidação subsequente.

 

Por último, e sem prescindir, a «B» constitui uma micro ou pequena empresa na acepção do Decreto-Lei n.º 372/2010, de 6 de Novembro, o que faculta ao sujeito passivo a possibilidade de redução, para 50%, do saldo anual positivo das mais e menos-valias apuradas em 2010.

 

Malgrado a inexistência de certificação pela «B», não compete ao sujeito passivo a prova dos factos constitutivos do referido benefício fiscal, bastando-lhe sindicar a actuação da AT sempre que esta, como sucede, não respeita o princípio da legalidade.

 

 

B.      O entendimento da Requerida

Quanto ao primeiro fundamento invocado pela Requerente, o facto tributário não ocorreu em 2009, dado não se ter verificado a tradição dos bens objecto do contrato promessa, enquanto conceito economicamente equiparado à transmissão onerosa.

 

Não será de mais esclarecer que a tradição configura, enquanto facto tributário autónomo, uma presunção em favor da AT, com o propósito de vedar às partes o adiamento da liquidação tributária, por via do protelar da celebração do contrato subjacente.

 

A Requerente não apresenta prova adequada à verificação da presunção estabelecida em favor da AT, mostrando-se incapaz de concretizar os elementos susceptíveis de demonstrar, inequívoca e substantivamente, a saída dos bens da sua esfera patrimonial.

 

A Requerente remete-se para um contrato promessa, do qual não se descortina quer a entrega material das acções, quer o subsequente exercício, pela compradora, dos direitos e deveres decorrentes da propriedade da «B».

 

Acresce que o termo de transacção se cinge a uma acção judicial decorrente do incumprimento da obrigação de pagamento do preço.

 

As IES de 2009 e 2010, a par da declaração modelo 4 submetida pela compradora, confluem no sentido de demonstrar que os efeitos económicos e translativos ocorreram, em 2010, com a celebração do contrato prometido.

 

Quanto ao fundamento de violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal, a inexistência de um regime transitório serve para demonstrar a vontade legislativa de abarcar todas as transmissões onerosas ocorridas em 2010.

 

E não será de esquecer o elemento histórico, vertido no facto de a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, ter revogado o regime de excepção vigente desde 1989, no que tange ao benefício de exclusão de tributação, em sede de IRS, dos ganhos decorrentes da transmissão onerosa de acções detidas há mais de 12 meses.

 

A legislação em apreço não é retroactiva (por se aplicar a factos futuros), mas antes retrospectiva (por atingir meras expectativas fundadas em factos passados).

 

É certo que à data em que foi celebrado o contrato prometido, o regime fiscal vigente consistia na isenção de tributação da mais-valia fiscal subjacente. Todavia, o IRS apresenta-se como um imposto periódico, de formação complexa e temporalmente sucessiva, sendo pacificamente reconhecido pela jurisprudência e doutrina que o facto tributário se verifica em 31 de Dezembro.

 

O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 399/2010 considera que o IRS assenta em factos tributários de formação sucessiva, que se completam no último dia do ano. Estando em causa a tributação de um rendimento anual, em que não se tributa cada rendimento per se, mas antes o englobamento de todos os rendimentos auferidos num dado ano.

 

O facto gerador da obrigação tributária, que despoleta a norma de incidência e subsequente sujeição a IRS, ocorre em 31 de Dezembro e não na data de transmissão onerosa das acções. Não há colisão com o artigo 12.º da LGT, dado estarmos perante uma retroactividade inautêntica ou imprópria - a retrospectividade - que atinge os factos não inteiramente verificados ao abrigo da lei antiga.

 

A aplicabilidade, sem mais, do n.º 2 da citada norma conduziria a uma impraticável segregação pro rata temporis do rendimento anual, contrariando a natureza própria do IRS enquanto imposto periódico de formação sucessiva no tempo, além de condicionar as opções legislativas futuras (o direito à variabilidade do sistema fiscal)

 

A periodicidade do IRS implica a aglutinação de todos os factos geradores e rendimentos obtidos até 31 de Dezembro de um dado ano. Estamos perante um “princípio de anualidade” vertido num “arco temporal” e cujo “pensamento unitário” abarca a totalidade dos rendimentos, conforme consta do voto de vencido da decisão arbitral 135/2013-T.

 

Já no capítulo da falta de notificação do relatório final ao mandatário da Requerente, não se compreende como tal omissão possa redundar na preterição de formalidades essenciais e, enquanto tal, susceptíveis de afectar a legalidade do acto tributário.

Tanto assim, que a Requerente, no artigo 72.º do seu pedido de pronúncia arbitral, reconhece estar perante uma mera irregularidade, que em nada diminuiu as garantias que lhe estão legalmente atribuídas, como se confirma pela tempestiva submissão do pedido de pronúncia arbitral.

 

Por fim, a mais-valia em apreço não pode ser considerada por 50% do correspondente valor, pois para além de não possuir qualquer certificação da qualidade de micro ou pequena empresa, a Requerente não apresentou os elementos probatórios que lhe permitiriam demonstrar o preenchimento dos requisitos materiais de que dependeria a referida certificação.

 

Cabendo-lhe a alegação e prova da factualidade (micro ou pequena empresa) de que depende a constituição do direito invocado (redução em 50% do ganho anual tributável), a Requerente remeteu-se ao silêncio, não apresentando qualquer documento idóneo à comprovação dos requisitos substantivos que, à data a que se reporta a transmissão onerosa da participação social, permitiria a aplicação do regime excepcional de apuramento da mais-valia fiscal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

V -    Do direito

 

a)      Caducidade do direito à liquidação

Tendo por base o probatório subjacente ao caso controvertido, é forçoso concluir que as acções da «B» foram transferidas pelas partes em 2010 e não em 2009, como contende a Requerente.

 

Pelos motivos supra expostos a propósito da apreciação da matéria probatória, verifica-se uma coincidência temporal - em Março de 2010 - nas transmissões jurídica e económica da participação social na «B». E na medida em que os efeitos económicos da transmissão onerosa das acções não se materializaram em 2009 aquando da assinatura do contrato-promessa, mas antes em 2010 no momento da celebração do contrato prometido, não há lugar à aplicação do regime contido no n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS.

 

Com efeito, e como bem salienta a Requerida, esta norma traduz um princípio de substância sobre a forma, fazendo recair a tributação sobre a realidade e efeitos económicos pretendidos pelas partes, sempre que tal preceder a mera formalização da operação, sob pena de às partes ser oferecida a possibilidade de postergar, no limite sine die, a tributação inerente a uma operação cujos efeitos económicos pretendidos há muito se haviam consolidado.

 

Caberia à Requerente a apresentação de meios probatórios idóneos à comprovação dessa substância económica, o que esta manifestamente não logrou alcançar, conforme decorre da matéria que o Tribunal considera como não provada.

 

Termos em que o acto tributário não padece de caducidade, dado que o mesmo foi notificado à Requerente dentro do prazo de 4 anos estatuído no artigo 45.º da LGT.

 

b)      Da irretroactividade da lei fiscal

Resolvido o tema da caducidade, o cerne da questão controvertida pode ser encerrado na seguinte pergunta: qual a lei aplicável à transmissão onerosa de acções realizada em 12 de Março de 2010?

 

O que implica a análise de um conjunto de questões prévia e concorrentes:

i)     O facto tributário ocorre no momento da transmissão onerosa das acções ou em 31 de Dezembro?

ii)    O facto tributário é constituído pelo rendimento conforme as regras de cada categoria ou o rendimento englobado de todas as categorias?

iii)   A aplicação da lei nova configura uma irretroactividade autêntica ou uma mera retrospectividade?

iv)   O facto tributário reporta-se à venda ou ao apuramento do saldo anual dessa categoria de rendimentos? Esta questão mantém-se nos casos em que é realizada uma única operação num dado ano?

v)    A norma de incidência confunde-se com a norma de quantificação da obrigação tributária?

vi)   A LGT apresenta-se, por vontade legislativa, como o documento condensador dos princípios estruturais ou constitui uma simples peça de legislação ordinária?

vii)  A Lei Geral Tributária impõe a lei ex nunc ou pode ser derrogada por qualquer lei posterior?

 

Na perspectiva da Requerente, o facto tributário é unicamente constituído pela alienação das acções, esgotando-se nesse momento, consolidando na esfera do sujeito passivo o direito à tributação pela lei vigente à data da referida alienação. A aplicação da legislação publicada 4 meses após a data de ocorrência dos factos encontrar-se-ia ferida de ilegalidade e inconstitucionalidade por violação, respectivamente, dos artigo 12.º da LGT e 103.º da Constituição.

 

Já para a Requerida o facto tributário não pode ser dissociado da natureza do IRS enquanto imposto periódico. Ao abranger períodos de um ano, o IRS é composto por um conjunto de factos complexos - atentas as regras inerentes às diversas categorias de rendimento - e de formação sucessiva no tempo, culminando em 31 de Dezembro com o englobamento de todas as categorias e liquidação do imposto pelas respectivas taxas marginais progressivas.

 

Cumpre decidir.

 

O artigo 10.º do Código do IRS - na redacção vigente à data da alienação - apresenta o seguinte teor:

“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

(…)

b)    Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários (…)

2 -   Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:

a)    Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses

(…)

12 - A exclusão estabelecida no n.º 2 não abrange as mais-valias provenientes de acções de sociedades cujo activo seja constituído, directa ou indirectamente, em mais de 50%, por bens imóveis ou direitos reais sobre bens imóveis situados em território português”. 

 

A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, cuja vigência se iniciou no dia seguinte ao da publicação, alterou a redacção daquela norma nos seguintes termos:

2 - (Revogado)

12 - (Revogado)

 

Concomitantemente, o artigo 72.º foi alterado para:

4 -   O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 20%

 

Donde se conclui que a citada Lei n.º 15/2010 é omissa relativamente a quaisquer regras especiais de aplicação da lei no tempo, pese embora uma tal questão tenha sido abordada no quadro do debate parlamentar que precedeu a aprovação da mesma.

 

O artigo 12.º da LGT dispõe que:

“1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.

2 -   Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

(o sublinhado é nosso)

3 -   Não são abrangidos pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.

 

Iniciamos a nossa apreciação pelo momento em que ocorre o facto tributário. Capítulo em que, desde já, nos socorremos do acórdão n.º 85/2010 do Tribunal Constitucional, o qual versou sobre a não dedutibilidade fiscal - em sede de IRC - de 50% do saldo negativo entre as mais e as menos-valias fiscais apuradas mediante a transmissão onerosa de participações sociais.

 

Concretamente, a Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, alterou o normativo fiscal vigente, passando a restringir, para metade, a dedutibilidade fiscal do saldo anual negativo decorrente da transmissão onerosa de participações sociais por parte dos sujeitos passivos de IRC.

 

Termos em que se colocou a questão de saber qual o regime aplicável às partes de capital adquiridas em momento prévio ao da entrada em vigor da referida lei, mas alienadas após essa vigência. Tudo isto, no quadro de um imposto periódico, de formação complexa e sucessiva, cujo facto tributário ocorre no último dia do exercício (conforme o n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC).

 

Uma factualidade análoga à situação controvertida, pelo que o acórdão do Tribunal Constitucional é merecedor de leitura quando refere que:

No que se refere à problemática da proibição da retroactividade, parece claro que a hipótese de uma qualquer aplicação retroactiva do disposto no artigo 42º, n.º 3, do CIRC, no caso concreto e nos termos proibidos pelo n.º 3 do artigo 103º da Constituição - retroactividade própria ou autêntica, ou seja, aplicação de lei nova a factos anteriores à entrada em vigor da lei nova -, não se pode colocar. Na verdade, por um lado, o facto gerador da obrigação - a alienação - ocorre indubitavelmente na vigência da lei nova. Por outro, não é sustentável afirmar a existência de um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva. Na verdade, não basta que se verifique uma aquisição anterior e uma alienação posterior para que se possa afirmar a existência de um único facto, embora complexo. A ser assim, qualquer aquisição que, no futuro, próximo ou longínquo, desse origem a uma alienação seria um facto complexo, não obstante serem distintos o primeiro alienante e o segundo adquirente, não obstante o conteúdo da contratação ser diverso na primeira e na segunda alienação, não obstante ocorrer um lapso de tempo mais ou menos prolongado entre tais operações. A intermediação meramente casual de uma pessoa (no caso, o primeiro adquirente/segundo alienante) não pode ser elemento suficientemente capaz de produzir a união de factos que são juridicamente distintos, quer do ponto de vista dos intervenientes, quer, acima de tudo, do ponto de vista da sua substância.

(os sublinhados são nossos)

 

A mesma questão volta a colocar-se no Acórdão n.º 137/2014 do Tribunal Constitucional, cujo tema a decidir se centrou nas alterações trazidas pela mesma Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro. Desta vez, no que respeita à não dedutibilidade fiscal das menos-valias apuradas por sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) na alienação onerosa de partes de capital adquiridas antes da vigência desta Lei (n.º 2 e 3 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais).

 

Note-se que neste acórdão já não está em causa a dedutibilidade fiscal do saldo anual (negativo) das diversas mais e menos-valias resultantes de transmissões onerosas realizadas pelo sujeito passivo de IRC ao longo do exercício fiscal, antes se tratando da não dedutibilidade fiscal de determinadas operações de alienação de partes de capital, i. e. da não relevação, para efeitos de cômputo do saldo anual, da menos-valia obtida numa dada operação.

 

O Tribunal Constitucional manteve-se fiel ao seu entendimento anterior, citando o acórdão n.º 85/2010 e decidindo que:

Também nos presentes autos é de concluir que a norma em apreciação não viola a proibição constitucional da retroatividade autêntica (artigo 103.º, n.º 3, da CRP): o facto tributário - a transmissão onerosa - releva indubitavelmente na vigência da lei nova, não podendo afirmar-se a existência de um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva, quando as participações sociais sejam adquiridas em momento anterior à da entrada em vigor da lei que cria a indedutibilidade das menos-valias para a formação do lucro tributável das sociedades SGPS. E tão pouco releva que a detenção das partes de capital por período não inferior a um ano se consume antes da existência da regra da indedutibilidade das menos-valias”.

 

Note-se que idêntico entendimento - quanto ao momento da produção do facto tributário - já constava do acórdão de 20 de Maio de 2009 do STA (processo n.º 0204/09). Este aresto versou sobre a restrição da dedutibilidade das menos-valias obtidas (em 2003) na alienação de partes de capital adquiridas em exercício anterior. Um caso inteiramente coincidente com a matéria de facto sobre a qual se pronunciou, no ano seguinte, o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 85/2010.

 

Diz-nos o STA que “não estamos perante um facto tributário complexo. Facto tributário aqui relevante é sim a venda. (…) A retroactividade pressupunha que se estivesse perante um facto complexo de formação sucessiva, o que não tem sustentação na hipótese dos autos”.

(os sublinhados são nossos)

                                                     

À primeira vista, poder-se-ia entender que a jurisprudência do Tribunal Constitucional não tem aderência ao caso controvertido. Afinal, tratar-se-ia apenas de relevar o óbvio: a inexistência de um nexo de causalidade entre os momentos de aquisição e transmissão de partes de capital, quando o que está em causa nos autos não é aplicabilidade da lei vigente à data de aquisição das partes de capital, mas antes a aplicabilidade da lei antiga ou da lei nova no próprio exercício em que ocorre a alienação.

 

Julgamos, todavia, que o raciocínio tem o seu acento tónico na fixação do momento em que ocorre o facto gerador: a transmissão onerosa das partes de capital, sendo neste momento que ocorre o facto tributário, por que se regerá a sujeição ou não a imposto,  que em nada se confunde com a regra de quantificação de um rendimento sujeito a imposto, por via da adição dos ganhos e perdas para efeitos de apuramento de um dado saldo positivo ou negativo, porquanto esse saldo apenas pode ser composto por ganhos tributáveis e perdas dedutíveis.

 

Dito de outra forma, a liquidação do imposto a um dado saldo exige a prévia sujeição a esse imposto das operações previamente realizadas (e que concorrem para a formação desse saldo), sendo que algumas dessas operações são excluídas do apuramento do saldo, conforme sucede com a exclusão de tributação das mais-valias - e, convém não o esquecer, das menos-valias - decorrentes da alienação de acções detidas há mais de 12 meses.

 

Ora, inexistindo uma relação causal entre a aquisição e a alienação de uma participação de capital - ao ponto de uma e outra não se apresentarem como um acto de formação complexa ou sucessiva no tempo - haverá, por maioria de razão, que estender este raciocínio à alienação de diferentes partes de capital ocorridas na vigência da lei antiga.

 

Com efeito, se cada alienação não apresenta relação causal com a aquisição precedente, as diversas operações de alienação de diferentes partes de capital não comportam, entre si, qualquer relação causal.

 

Note-se que o Tribunal Constitucional mantém uma jurisprudência uniforme no tempo,  englobando tanto a dedução de menos-valias no saldo anual negativo, como a dedução de menos-valias que são subtraídas ao saldo anual (positivo ou negativo).

 

Jurisprudência esta que é posterior ao acórdão 399/2010, que versou sobre a inconstitucionalidade das Leis n.º 11/2010, de 15 de Junho e n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, as quais modificaram os escalões de IRS e as correspondentes taxas marginais.

 

Aqui não oferece dúvidas que o Tribunal Constitucional caracterizou o IRS como um imposto periódico e de formação complexa e sucessiva no tempo, pelo que “o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova, como acontece nos presentes autos”.

 

Continua o Tribunal Constitucional que “a relação jurídica fonte da obrigação de imposto tem na sua base situações estáveis que se prolongam no tempo”.

E “nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do CIRS, o rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos. Ou seja, trata-se de um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si (embora a retenção na fonte possa, por vezes, obnubilar esta realidade), mas sim o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano. O que significa que só no final do ano de 2010 se pode apurar a taxa do imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere”.

(os sublinhados são nossos)

 

O acórdão n.º 399/2010 centra-se na sucessão da lei no tempo no que respeita à definição dos escalões de rendimento e respectivas taxas marginais e progressivas, afastando a divisão temporal do facto tributário e consagrando o nascimento do mesmo no final do ano fiscal.

 

Chegados aqui, o que devemos concluir quanto ao nascimento do facto tributário decorrente de uma mais-valia obtida com a transmissão onerosa de partes de capital?

 

Em primeiro lugar, o IRS - malgrado a sua denominação como imposto único -  incide sobre o valor anual das rendimentos das diversas categorias tributáveis (ex vi do n.º 1 do artigo 1.º).

Cada uma dessas categorias de rendimento rege-se por um normativo autónomo, no que respeita:

(i)    Ao momento em que o rendimento é obtido.

A título exemplificativo, basta atentar nos diferentes momentos em que se consideram obtidos os rendimentos das categorias A e B (respectivamente, pagamento e exigibilidade do IVA). Ou ainda nos rendimentos de capital, que se podem considerar auferidos, consoante os casos, no pagamento, vencimento ou apuramento.

(ii)   Às regras e critérios de quantificação do rendimento.

Mais uma vez de forma exemplificativa, atentemos nas deduções específicas destinadas à tributação pelo rendimento líquido e cuja amplitude varia consoante as diferentes categorias.

 

É precisamente esta divisão sistemática que o Código do IRS acolhe: primeiro fixa-se a regra de incidência (sujeição a imposto) de um facto tributário, seguindo-se os critérios de quantificação do rendimento tributável de cada categoria.

 

Saliente-se, por fim, as regras de agregação do rendimento tributável das diferentes categorias.

Ora impedindo a sua agregação, por via da não comunicabilidade das perdas de determinadas categorias (contraposto com a possibilidade de reporte dessas perdas aos rendimentos futuros dessa categoria), ora evitando a tributação agregada do rendimento, através do estabelecimento de taxas liberatórias, especiais e autónomas, com ou sem opção pelo englobamento.

 

Passemos esta organização estrutural do Código do IRS para os ganhos ou perdas resultantes da transmissão onerosa de partes de capital.

 

Começando pela incidência, e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º, os ganhos de mais-valias constituem incrementos patrimoniais sujeitos a IRS (categoria G), desde que não considerados como rendimentos de outras categorias. Com efeito, uma mais-valia constitui o produto de uma operação irregular e não prevista pelo sujeito passivo no momento da aquisição do bem. Em suma, um ganho ocasional e inesperado (trazido pelo vento, no dizer anglo-saxónico).

 

Contrariamente à prática reiterada de operações de compra e venda de bens, a qual é passível de enquadramento na categoria B, porquanto os bens já não configuram activos fixos, mas antes existências adquiridas com o propósito de subsequente revenda.

 

O artigo 10.º define, no seu n.º 1, o conceito de mais-valia tributável, o qual é encabeçado pela alínea b): “Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários (…)”.

 

Ora, o momento em que o ganho sujeito a imposto se considera obtido é enunciado no n.º 3 do artigo 10.º como reportado à data “da prática dos actos previstos no n.º 1”, não oferecendo dúvidas que o facto gerador ocorre no momento em que as partes de capital são objecto de transmissão onerosa.

 

Esclarecido que está o nascimento do facto gerador - a transmissão onerosa das partes de capital -, o qual é consistente com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, podemos passar às regras de quantificação do correspondente rendimento.

 

Também aqui é notária a variabilidade das regras plasmadas no Código do IRS, porque se é verdade que as normas de quantificação da obrigação tributária divergem consoante as diferentes categorias de rendimento, não é menos verdade que é no âmbito dos ganhos que compõem a categoria G que tais diferenças se engrandecem.

 

Assim, nos termos do artigo 43.º, os ganhos e perdas resultantes das várias operações sujeitas a imposto são adicionados para efeitos de apuramento de um saldo positivo ou negativo.

Esse saldo não é, todavia, único para as mais-valias apuradas pelo sujeito passivo. Com efeito, a transmissão onerosa de partes de capital é segregada dos demais rendimentos igualmente qualificados como mais-valias. Desta divisão resultam duas consequências relevantes para as mais-valias que não provêm da transmissão onerosa de partes de capital: (i) o valor positivo ou negativo do saldo é considerado em 50% e (ii) tal rendimento é sujeito a englobamento obrigatório e consequente liquidação do imposto às taxas marginais previstas para os diferentes escalões de rendimento.

 

Para as mais e menos-valias resultantes da transmissão onerosa de partes de capital está reservado um fim diametralmente oposto: (i) o saldo positivo ou negativo é relevado pelo respectivo valor integral e (ii) tal saldo é tributado a uma taxa especial, ou seja, é subtraído à regra de englobamento.

E se é verdade que ao sujeito passivo é permitida a opção pelo englobamento, há que salientar que o não englobamento constitui o regime supletivo e - até à Reforma Fiscal de 2015 - o exercício dessa opção implicava o englobamento dos rendimentos de capital. Acresce que a opção era condição necessária para o reporte (para os dois exercícios seguintes) do saldo negativo.

 

Face ao exposto, retiramos que, apesar de o IRS se apresentar como um imposto periódico, o mesmo encerra diferentes factos geradores da sujeição a imposto consoante as diversas categorias de rendimento.

 

Tratando-se da transmissão onerosa de partes de capital, o facto gerador que determina a exigibilidade do imposto (e subsequente quantificação do rendimento tributável) reporta-se, precisamente, à data desse acto translativo.

Teremos assim, num dado exercício, tantos factos geradores quantas as transmissões onerosas de partes de capital,  as quais serão agregadas para efeitos de determinação de um saldo positivo ou negativo, o qual, se positivo, será sujeito a uma taxa especial, excepto se o sujeito passivo optar pelo englobamento.

 

Temos assim que um imposto de natureza periódica, como o IRS, é compatível com - e na verdade composto por - rendimentos de formação instantânea e outros de formação sucessiva.

 

Com efeito, alguns rendimentos são - pela natureza do seu facto gerador - de formação sucessiva no tempo. Basta atentar nos rendimentos das categorias A, B, F ou H, em que os rendimentos e respectivas deduções se vão sucedendo no tempo, sendo o imposto liquidado em função dos escalões e taxas marginais que resultam da agregação destas categorias.

 

Contrariamente, as mais-valias provêm de operações isoladamente realizadas - instantâneas - em que cada facto gerador se apresenta como autónomo e completo, i. e. sem exigência de qualquer facto ou ocorrência posterior, sendo que, como vimos, o apuramento do saldo anual releva apenas em sede de liquidação da obrigação tributária.

E não existindo facto gerador precedente, não há qualquer obrigação passível de quantificação.

 

Quer isto dizer que a alienação das acções da «B», realizada em Março de 2010, configura um facto gerador autónomo e completo, que em nada carece de qualquer evento posterior ocorrido após a vigência da lei nova, sob pena de uma regra de quantificação de uma obrigação tributária e/ou de liquidação do imposto por via da aplicação de uma taxa especial de 20% (por subtracção ao englobamento obrigatório), se transformar numa autêntica norma de incidência (facto gerador).

 

E na situação controvertida há que destacar o facto de a Requerente ter realizado um só ganho, decorrente de uma só transmissão onerosa de partes de capital, pelo que não se entenderia que essa única operação relevasse para o apuramento de um saldo anual, porquanto ambos se reconduziriam à mesma realidade e idêntico quantum.

 

Na verdade, a existência de uma única operação reforça a natureza instantânea do facto gerador, na medida em que retira qualquer sentido e relevância ao domínio temporal da lei nova, não subsistindo qualquer facto, realidade ou momento que - após a vigência da lei nova - se apresente como necessário para completar o facto gerador (alienação onerosa das partes de capital) ocorrido ao abrigo da lei antiga.

Insiste-se que a quantificação da obrigação tributária, a realizar no final do ano e ao abrigo da lei nova, não pode se pode estender a um facto gerador - a transmissão onerosa - temporalmente verificado no período de vigência da lei antiga.

 

Temos assim que a aplicação da lei nova a um facto gerador integralmente ao abrigo da lei antiga, não reconduz ao conceito de retroactividade em terceiro grau (retrospectividade, na linguagem contabilística). Para mais quando estamos perante a prática de uma única operação realizada em Março de 2010. Mas sempre diríamos que mesmo que  assim não fosse - e ocorressem diversas operações de alienação ao abrigo das leis antiga e nova - cada facto gerador seria integrado na lei vigente à respectiva data de ocorrência, não identificando qualquer dos obstáculos que suportam uma pretensa impraticabilidade na quantificação do rendimento tributável, atenta a simplicidade inerente à restrição do apuramento do saldo final às operações ocorridas ao abrigo da lei nova.

Trata-se de um argumento que, para além de não colher, não poderia ser esgrimido com o propósito de se sobrepor ao princípio da irretroactividade acolhido no quadro constitucional, no Código do IRS e na LGT.

 

Note-se ainda que a regra de caducidade prevista no n.º 4 do artigo 45.º da LGT não remove a consideração de cada transmissão onerosa como constituindo um facto tributário instantâneo e autónomo. A referida norma postula que, nos impostos periódicos, a caducidade conta-se “a partir do termo do ano em que se verificou a facto tributário”. Tal não significa que o facto tributário ocorre no final do ano. Outrossim, denota que, na ausência desta norma, a caducidade contar-se-ia a partir do momento da verificação de cada facto tributário, o que explica a necessidade de inserção desta norma excepcional, no sentido de forçar a contagem da caducidade - nos impostos periódicos - a partir do último dia do ano em que se verificou o respectivo facto tributário.

Em suma, esta regra de caducidade apenas reforça a compatibilidade de um imposto periódico com a conjugação de factos tributários de formação tanto sucessiva como instantânea,  em que os primeiros se completam no último dia de cada exercício, ao passo que os segundos ocorrem na data de realização da operação económica subjacente.

 

Tanto assim, que a contagem do prazo de caducidade do Imposto sobre o Valor Acrescentado e das retenções na fonte (a título liberatório) se inicia no primeiro dia do ano civil seguinte (conforme o citado n.º 4 do artigo 45.º da LGT). Trata-se de uma excepção que não prejudica a consideração destes tributos como impostos de obrigação única.

 

Chegados aqui, não será demais singularizar que este entendimento volta a estar alinhado com a jurisprudência, desta vez do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que nos seus acórdãos de 4 de Dezembro de 2013 (processo n.º 1582/13) e de 8 de Janeiro de 2014 (processo n.º 1078/12), decidiu pela inaplicabilidade da lei nova a factos tributáveis instantâneos e prévios à sua vigência, conforme sucede com a alienação de partes de capital.

 

É de salientar que estas decisões decorrem de recursos apresentados pela AT, facto que permite constatar o alinhamento jurisprudencial dos tribunais superior e de primeira instância. Acresce a unanimidade das decisões do STA.

 

No acórdão de 4 de Dezembro de 2013 podemos ler que “o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroactivos, prevendo a tributação de actos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua actuação de acordo com as novas regras”.

 

Esta questão não é, de todo, despicienda, atento o facto de a Requerente ter alienado as partes de capital em Março de 2010, data em que era manifestamente desconhecida qualquer intenção de alteração legislativa do regime de tributação de mais ou menos-valias. Pelo que a preocupação de “lavagem” da mais-valia, por vezes invocada como motivo justificativo da aplicação retroactiva (ou retrospectiva), carece de sentido. De facto, esta alienação fora prometida em 2009, com a obrigatoriedade de celebração do contrato prometido até Março de 2010 (conforme veio a ocorrer). Tudo isto na constância da lei antiga.

 

Continua o referido aresto que “em sede de IRS, o art. 10.º, n.º 1, al. b) do Código insere no campo de incidência da tributação as mais-valias de partes sociais e valores mobiliários, sendo que esta incidência supõe a realização da mais-valia, ou seja, a sua alienação onerosa. E é esta alienação onerosa o facto gerador”.

No que respeita ao momento em que o imposto é exigível […] rege o n.º 3 do artigo 10.º, que estabelece, como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1”. Quer dizer, o facto gerador reporta-se ao momento do ato que “realiza” a mais-valia. Dir-se-á, em termos gerais, que o momento relevante é, pois, o da alienação do activo em que se apuraram mais-valias tributáveis, ou operação a ela equiparada”.

 

Mais salienta o STA que “ora, é bom de ver que no caso das mais-valias de participações sociais sendo o facto gerador do imposto a sua alienação onerosa, não estamos perante um facto tributário complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas sim perante um facto tributário instantâneo”.

O facto tributário que dá origem ao imposto esgota-se na realização da mais-valia (Atente-se que já o imposto de mais-valias era tido como de obrigação única - cf. Ac. do STA de 18.1.1995, P. 18287)”.

 

Conforme supra salientámos, a norma de quantificação do rendimento tributável não se confunde com o normativo de incidência, i. e. com a  regra de sujeição a imposto, que precede a quantificação da obrigação tributária e sem a qual esta não pode operar (por falta de rendimento tributável e, logo, passível de quantificação).

Também aqui alinhamos com o STA, para o qual “a este entendimento não obsta a circunstância de ser tributado “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”, pois que o que está em causa no art. 43.º, n.º 1 do CIRS é, ao lado das normas que regem a determinação do ganho sujeito a imposto, a determinação da matéria coletável no que se reporta aos rendimentos resultantes de mais-valias”.

 

De seguida o STA arrola a comparabilidade entre o apuramento do saldo anual das diversas operações realizadas no exercício fiscal e a liquidação das tributações autónomas, constatando tratar-se “a nosso ver, de uma situação semelhante às tributações autónomas em sede de IRC, onde se concluiu que “o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação [...]” [cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 310/2012].

 

Concluindo o STA que “também nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeito de apuramento da matéria colectável, sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias”.

 

É verdade que o apuramento do saldo anual assenta na soma das mais-valias e dedução das menos-valias apuradas no exercício. O saldo positivo será tributado a uma taxa especial ou mediante englobamento, ao passo que o saldo negativo poderá ou não ser reportado para os dois exercícios seguintes.

Contrariamente, a tributação autónoma consiste na adição de despesas que partilham uma dada natureza, a cujo valor total é liquidado imposto a uma determinada taxa.

 

Trata-se, todavia, de diferenças na aritmética de apuramento do rendimento colectável, que em nada contende com o facto de - em ambos os casos - estarmos perante regras de quantificação da obrigação tributável, como consequência da sujeição a imposto de uma dada operação (norma de incidência) decorrente da qualificação dessa operação como um facto tributário (facto gerador).

 

O alinhamento com o sentido da decisão do STA é ainda mais contundente quando este salienta que “a similitude com as situações de tributação autónoma é ainda maior quando, como in casu, o contribuinte não opta pelo englobamento”.

E aplicando-se uma taxa especial ao saldo anual, fica definitivamente afastada a aplicabilidade do acórdão n.º 399/2010 do Tribunal Constitucional, na medida em que não existe qualquer escalão de rendimento ou taxa marginal e progressiva, cuja aplicabilidade dependa da formação sucessiva de uma dada corrente de rendimento.

 

Para mais quando, há que não o esquecer, no caso controvertido a Requerente realizou uma única operação em 2010, caindo por terra a necessidade de apurar um qualquer saldo anual no decurso da vigência da lei nova. Não só um tal cálculo não chega a ocorrer, mas, acima de tudo, trata-se de uma operação de quantificação de uma matéria colectável proveniente de um facto tributário ocorrido na vigência da lei antiga.

 

Por fim, a decisão arbitral do CAAD no Processo n.º 135/2013-T, aporta um contributo adicional, mormente, ao ressaltar que “(…) certo é que existe lei expressa que nos dá a solução do caso sub judice, o art.º 12.º, n.º 2, da LGT: se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da entrada em vigor. (…) Ou seja, o art.º 12.º, n.º 2, da LGT manda que, nos impostos periódicos (i.e., relativamente a factos tributários de formação sucessiva), o período de tributação seja cindido, aplicando-se a lei antiga aos factos geradores de imposto ocorridos antes da alteração legislativa e a lei nova aos posteriores”.

 

Transcrevemos ainda que “As normas legais que regem a tributação devem assegurar que quem pratica em ato potencialmente gerador de obrigação de imposto possa “ter a certeza” das consequências fiscais daí resultantes. Condição primeira para tal é, obviamente, que a lei que regerá tais obrigações seja conhecida, seja a que está em vigor naquele momento (...) A tese de que o facto gerador do imposto, nos impostos periódicos, apenas ocorre no último dia do ano, tem como consequência implícita a aceitação de um certo grau de retroactividade da lei fiscal (a chamada retroactividade imprópria ou de 3.º grau) (...) Sabemos que tal “grau” de retroactividade é considerado constitucionalmente admissível pela nossa jurisprudência. Mas para que tal aplicação retroactiva exista é necessário que exista um ‘dictum’ legislativo que a tal obrigue (...) Ora, tal não acontece no presente caso, pois que a regra geral constante do n.º 2 do art.º 12.º da LGT visa, precisamente, evitar situações de retroactividade da lei fiscal (ainda que “moderada”), sempre que o legislador não determine, especialmente, o contrário (...) O art.º 12.º, n.º 2 da LGT é, pois, uma norma totalmente conforme aos princípios constitucionais que presidem à tributação, é mesmo, a que, nesta específica questão, melhor dará tradução a tais princípios, ao prevenir a ocorrência de situações de aplicação retroactiva da lei fiscal”.

 

E continua esse aresto arbitral, em linha com a jurisprudência do STA:

  “(...)Apesar de a matéria colectável (mais-valias mobiliárias) a ser tributada em IRS corresponder ao saldo das mais e menos valias realizadas pelo sujeito passivo ao longo do ano, o certo é que, no caso concreto, só houve uma única alienação em 2010:, ou sejam o facto tributário, em abstracto de formação sucessiva, “esgotou-se” numa única transacção (...) sendo as mais-valias obtidas com a alienação de participações sujeitas a uma tributação autónoma (a uma taxa proporcional, não sendo aqui tidos em conta os elementos de personalização que, por princípio, deviam estar presentes na tributação de todos os rendimentos, caso o IRS fosse um verdadeiro imposto único - estamos perante uma das traduções do carácter dual deste imposto), nenhuma dificuldades se colocam relativamente às demais operações que a liquidação (entendido o termo em sentido amplo) do imposto implica, quando feita com observância do disposto no n.º 2 do art.º 12.º da LGT(...) Inviabilizar a aplicação do preceito (art.º 12.º, n.º 2, da LGT) em casos como o presente significaria, “ignorar” a sua existência, o que é vedado a qualquer Tribunal (...) Em resumo, entende-se que nada obsta à aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 12 da LGT, da regra geral aí contida, a qual - repete-se - o legislador entendeu não afastar na Lei n.º 15/2010 (...)”.

 

 

Deparamo-nos agora com um novo fundamento que pugna pela inaplicabilidade da lei nova ao facto tributário que a precede.

Com efeito, ainda que fosse de sufragar a tese do facto jurídico-fiscal complexo e de natureza sucessiva, não poderíamos deixar de entrar em linha de conta com o disposto no n.º 2 do artigo 12.º da LGT, ao abrigo do qual “se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.

 

Há doutrina que destaca o facto de a LGT não revestir a natureza de lei reforçada, pelo que estaríamos perante uma lei ordinária, regida pelos princípios de sucessão da lei no tempo (a lei nova derroga a lei antiga) e da hierarquia (a lei especial derroga a lei geral).

 

Acontece que, conforme resulta do preâmbulo da LGT, “a reforma fiscal da tributação directa de 1989 não foi precedida da instituição de uma lei geral tributária que clarificasse os princípios fundamentais do sistema fiscal, as garantias dos contribuintes e os poderes da administração tributária”.

 

Pretendia-se “a concentração, clarificação e síntese em um único diploma das regras fundamentais do direito fiscal (…)”, de forma a permitir “(…) a uniformização dos critérios de aplicação do direito tributário, de que depende (…) a estabilidade e coerência do sistema tributário”.

 

Pelo que “a presente lei não se limita à sistematização e aperfeiçoamento de normas já existentes (…)”.

E “no título I, procede a presente lei, em conformidade com esses objectivos, à definição dos princípios fundamentais da ordem tributária, acolhendo as normas da Constituição fiscal e clarificando as regras de aplicação das leis tributárias no tempo e no espaço”.

 

É, precisamente, no Capítulo I que se situa a norma de sucessão da lei no tempo plasmada no citado artigo 12.º.

 

A LGT foi, naturalmente, aprovada no uso de uma lei de autorização, cujo objecto se centrou na publicação de “(…) uma lei geral tributária donde constem os grandes princípios substantivos que regem o direito fiscal (…)”.

Acima de tudo “a lei geral tributária visará aprofundar as normas constitucionais tributárias e com relevância em direito tributário (…)”.

 

Face ao exposto, não oferece dúvidas de que à LGT foi atribuído um estatuto de supraordenção sobre a demais legislação ordinária, sempre que esta disponha em sentido contrário.

 

Nos planos formal e material, a LGT configura a consecução do imperativo constitucional, não sendo permitido que uma qualquer legislação ordinária subsequente a derrogue.

 

Note-se que tal não eleva a LGT a um pedestal de inalterabilidade. Todavia, será exigível que a legislação por que se operem tais alterações subsequentes se revista de uma natureza e conteúdo semelhantes. Ou seja, que tal legislação vise o estabelecimento da relação jurídico-tributária fundamental.

Dito de outra forma, que o sentido e alcance da norma modificadora esteja em plano equivalente ao da LGT.

 

Resulta, assim, clara a inaplicabilidade dos princípios pelos quais a lei nova prevalece sobre a lei antiga e a lei especial derroga a lei geral.

Concretamente, a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, não derroga o n.º 2 do artigo 12.º da LGT.

 

Quanto ao argumento de que o legislador pretendeu, in casu, que a lei nova se aplicasse a todas as transmissões onerosas de partes de capital realizadas em qualquer linha temporal de 2010, haverá que contrapor que o legislador não conformou uma tal vontade no texto legislativo, nem expressa, nem sequer tacitamente.

 

Acresce que o mesmo legislador estruturou, através da LGT, o quadro fundamental de obediência e conformação das relações jurídico-tributária, sendo despiciendo discutir se a LGT dispõe ou não do estatuto de lei de valor reforçado, porquanto nos planos material e substantivo, não oferece duvidas que a LGT possui uma tal natureza, na medida em que, insiste-se, lhe coube o papel de positivar os princípios da Constituição fiscal.

 

E dado que o facto tributário se apresenta como instantâneo, completando-se ao abrigo da lei antiga, a lei nova teria de excepcionar o n.º 2 do artigo 12.º da LGT,

porquanto, nesse caso, dúvidas não restariam que o legislador pretenderia, através de lei posterior e especial, dispensar a lei nova do cumprimento do princípio da irretroactividade da lei fiscal.

 

 

VI -   Decisão

Aplicando-se as considerações supra ao caso sub juditio, logo se evidencia a ilegalidade da liquidação decorrente da aplicação retroactiva do regime fiscal aprovado pela citada Lei nº 15/2010, de 26 de Julho.

 

A transmissão onerosa das partes de capital ocorreu em Março de 2010. Esta operação de alienação constitui, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS, o momento em que ocorre o facto tributário, o qual se apresenta como único e instantâneo, não revestindo a natureza de acto complexo e ou de formação sucessiva.

Pelo que à data da realização da mais-valia fiscal, que constitui o facto gerador da tributação, vigorava o regime de exclusão de tributação plasmado no n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS.

 

Este normativo é conjugado com os n.º 1 e 2 do artigo 12.º da LGT, o qual afasta a aplicação da lei nova a factos tributários plenamente verificados na constância da lei antiga.

 

Assim, e ao contrário do que entende a Requerida, à Lei n.º 15/2010 apenas estava permitida a tributação das operações efectuadas após a respectiva entrada em vigor.

 

O sentido desta nossa decisão acompanha a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do STA no que respeita ao momento da ocorrência do facto tributário, e do STA no que concerne ao mesmo thema decidendum.

Um alinhamento que contribui para interpretação e aplicação uniformes do direito, reforçando a correspondente unidade de sentido, conforme postulado no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil.

Nem seria compreensível que um tribunal arbitral, como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária e que decide de iure constituto, se pudesse afastar da jurisprudência dos tribunais judiciais superiores.

 

Fica prejudicada a análise dos demais fundamentos e pedidos aduzidos pela Requerente.

 

Termos em que, o Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral; e

b)    Anular o acto tributário de liquidação de IRS e respectivos juros compensatórios.

 

 

Valor:  € 115 639,60 ( cento e quinze mil, seiscentos e trinta e nove euros e sessenta cêntimos)

 

Custas pela Requerida no montante de € 3060,00 (três mil e sessenta euros)

 

Notifiquem-se as partes.

 

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2015

 

 

O Tribunal Arbitral Colectivo

 

 

 

 

Manuel Luís Macaísta Malheiros (presidente)

 

 

 

 

José Rodrigo de Castro (relator)

 

 

 

 

José Luís Ferreira (relator)