Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 504/2020-T
Data da decisão: 2021-11-22  IMI  
Valor do pedido: € 92.942,02
Tema: IMI. Terrenos para construção. Determinação do VPT. Revisão do ato tributário - Artigos 45.º, 38.º e 39.º do CIMI e 78.º da LGT.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Cristina Aragão Seia e André Festas da Silva (co-árbitros), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de dezembro de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., S.A., pessoa coletiva número ..., com sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, na qualidade de sociedade gestora e em representação do FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO B..., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal número..., requereu a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), ambos na redação vigente, na sequência da formação da presunção de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado em relação às liquidações de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), referentes ao ano 2016 e emitidas em 2017, das quais contestam o valor parcial de € 92.942,02.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, adiante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, em 6 de outubro de 2020, e, de seguida, notificado à AT.

 

Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo, não tendo as Partes, notificadas dessa designação, manifestado vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 23 de dezembro de 2020.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

Em 15 de abril de 2021, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por exceção e por impugnação. Pugna pela absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido. Juntou subsequentemente o processo administrativo (“PA”).

 

O Requerente exerceu o contraditório sobre a matéria de exceção, em 3 de maio de 2021.

 

Em 7 de maio de 2021, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade, ao que as Partes não se opuseram. De seguida, por despacho de 2 de junho de 2021, foram as Partes notificadas para apresentarem alegações, facultativas e sucessivas, no prazo de 10 dias, e da data limite para prolação da decisão, advertindo-se o Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

Por despacho de 11 de junho de 2021 foi prorrogado por dois meses o prazo para prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivada da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica (Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro).

 

Em 18 de junho de 2021, o Requerente apresentou alegações, mantendo o já por si alegado no pedido de pronúncia arbitral (“ppa”).

 

Em 21 de junho de 2021, a Requerida contra-alegou e reiterou o que disse em sede de Resposta.

 

Em 25 de outubro de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a prorrogação por dois meses adicionais do prazo de prolação da decisão arbitral, dadas as vicissitudes processuais.

 

POSIÇÃO DO REQUERENTE

 

O Requerente pretende a anulação da decisão silente de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado com vista à anulação parcial, no valor agregado de € 92.942,02, das liquidações de IMI infra identificadas , que também aqui peticiona, com a consequente restituição da referida importância, acrescida de juros indemnizatórios, à taxa de 4%.

Para tanto invoca, em síntese, o seguinte:

(a)          Impende sobre a AT o dever de revisão dos atos tributários que enfermem de ilegalidade, conforme preceituam os artigos 78.º, n.ºs 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”), e 115.º do Código do IMI e de acordo com os princípios constitucionais da legalidade tributária, igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé consagrados nos artigos 103.º, 165.º e 266.º, n.º 2 da Constituição. Este dever é independente da iniciativa do procedimento ser da AT ou do contribuinte;

(b)          O pedido de revisão oficiosa apresentado preenche todos os requisitos, pois tem origem em diversos erros de direito exclusivamente imputáveis aos serviços da Requerida e foi apresentado no prazo de 4 anos a contar da data das liquidações. O procedimento de revisão deve ser admitido, de acordo com o entendimento sufragado no acórdão de 31 de outubro de 2019, do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”), proferido no processo n.º 2765/12.8BELRS;

(c)          O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa é sindicável no Tribunal Arbitral;

(d)          O artigo 45.º do Código do IMI estabelece normas de determinação do valor patrimonial tributário (“VPT”) dos terrenos para construção, que são diferentes e especiais em relação às regras aplicáveis aos prédios urbanos edificados;

(e)          A AT incorreu em erro de direito ao aplicar aos terrenos para construção as normas legais de avaliação dos prédios edificados, em concreto, a fórmula geral prevista no artigo 38.º do Código do IMI, e os coeficientes de afetação e localização aí mencionados,

(f)           A aplicação destes coeficientes na determinação do VPT dos terrenos para construção viola o princípio da legalidade e da reserva de lei consagrado no artigo 103.º, n.º 2 da Constituição;

(g)          Este entendimento foi já corroborado pela doutrina e jurisprudência consolidada dos tribunais superiores à qual a Requerida está vinculada, atento o disposto no artigo 68.º-A, n.º 4 da LGT;

(h)          Foi adicionalmente considerado, de forma indevida, no cálculo do VPT dos terrenos para construção do Requerente, o valor base dos prédios edificados (€ 603,00), determinado nos termos do artigo 39.º, n.º 1 do Código do IMI, ao invés do valor médio de construção (€ 482,40) em vigor até 2018 (i.e., sem aplicação da majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação);

(i)           O facto de não terem sido contestados os atos de avaliação dos Terrenos para Construção não faz precludir o direito a solicitar a revisão oficiosa das liquidações emitidas por referência a VPT’s fixados de forma ilegal e recuperar o IMI pago em excesso nos últimos 4 anos;

(j)           Em resultado dos erros de direito assinalados, a liquidação de IMI resultou em coleta muito superior à devida, o que é igualmente suscetível de configurar uma injustiça grave ou notória, nos termos e para os efeitos do artigo 78.º, n.º 4 da LGT, fundamento que é suscitado pelo Requerente a título subsidiário.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

A Requerida começa por invocar matéria de exceção, relativa à incompetência do Tribunal, caducidade do direito de ação e inimpugnabilidade dos atos tributários.

 

(a)          A incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa

 

Neste âmbito, a Requerida invoca a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual os atos que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação não podem ser objeto de impugnação judicial, devendo ser utilizada a forma processual da ação administrativa. Partindo da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral (um ato que, nos termos do CPPT não possa ser objeto de impugnação judicial, também não é arbitrável), conclui que um ato de indeferimento tácito não aprecia a legalidade da liquidação, pelo que não pode ser objeto de impugnação judicial, nos termos previstos no artigo 97.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, nem de ação arbitral, atento o disposto no artigo 2.º do RJAT.

 

(b)          A caducidade do pedido de pronúncia arbitral

 

A Requerida sustenta que o prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1 do RJAT, deve ser contado a partir das datas de pagamento dos atos de liquidação de IMI impugnados, emitidos em 2017 (relativos a 2016), pelo que, tendo o pedido arbitral dado entrada no CAAD em 1 de outubro de 2020, o mesmo é extemporâneo.

 

(c)          Inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI

 

A discordância do Requerente em relação às liquidações de IMI impugnadas, prende-se apenas com o VPT fixado para os terrenos para construção. Deste modo, a causa de pedir e o pedido respeitam ao ato destacável que determinou o VPT, que é diretamente impugnável, nos termos dos artigos 86.º, n.º 1 da LGT e 134.º do CPPT, no prazo de 90 dias após a sua notificação ao contribuinte, não o sendo por via da impugnação dos atos de liquidação de IMI, tendo aí de ter-se como pressuposto o valor fixado na avaliação.

 

Em relação ao mérito, a Requerida sustenta que do artigo 45.º do Código do IMI, em particular do seu n.º 2, decorre que na avaliação dos terrenos para construção não está afastada a metodologia de avaliação dos prédios urbanos em geral, pelo que devem ser tidos em conta os coeficientes a que se refere o artigo 38.º do Código do IMI, abrangendo, quer o coeficiente de afetação, quer o de localização, não podendo, de igual forma, deixar de ser considerado o valor-base dos prédios edificados previsto no artigo 39.º, n.º 1 do referido Código.

 

Considera também que não assumem relevância os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé, atendendo a que as liquidações foram efetuadas com base na lei aplicável, à qual a administração está vinculada, pelo princípio da legalidade, nos termos do artigo 55.º da LGT e 266.º da Constituição, não podendo recusar a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.

 

Por fim, sobre o pedido de juros indemnizatórios entende não se verificar qualquer erro imputável aos serviços, pressuposto essencial à aplicação do artigo 43.º da LGT, que, no caso, é regido pela alínea c) do seu n.º 3. Acresce que, se fossem devidos, seria apenas a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão.

 

II.            SANEAMENTO – QUESTÕES PRÉVIAS

 

1.            DA COMPETÊNCIA MATERIAL

 

A Requerida parte do pressuposto de que o objeto imediato da ação, consubstanciado no indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa submetido pelo Requerente, não contém, em si, nenhuma apreciação de um ato tributário e muito menos uma apreciação da legalidade de um ato de liquidação, pelo que não é sindicável por via do processo arbitral, face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Este preceito circunscreve a competência dos tribunais arbitrais a pretensões de declaração de ilegalidade de atos tributários: de liquidação (incluindo autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta) e de fixação da matéria tributável, de determinação da matéria coletável ou de fixação de valores patrimoniais.

 

Segundo a Requerida esta interpretação é a que está em sintonia com a autorização legislativa ao abrigo da qual foi aprovado o RJAT que estabelece a identidade dos campos de aplicação da forma processual de impugnação judicial e da ação arbitral, considerando esta última como um meio processual alternativo àquela impugnação (v. artigo 124.º da Lei n.º 2-B/2010, de 28 de abril). 

 

Assim, o referido indeferimento tácito também não pode ser objeto de impugnação judicial, nos termos do artigo 97.º, n.º 1 do CPPT, para o que invoca, em confirmação da sua tese, a doutrina  e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo  e arbitral.

 

Entendemos que a posição da Requerida não é de sufragar, nem a doutrina citada e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo se pronunciam no sentido por esta indicado.

 

Começando pelo entendimento do Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA, este refere que a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT “abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o indeferimento de pedido de revisão oficiosa de ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir” , mencionando, ainda, que “[a]pesar de o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT fazer referência apenas a declaração de ilegalidade de atos, é inequívoco que nela se abrange a declaração de ilegalidade de indeferimentos tácitos, pois o n.º 1 do artigo 10.º do RJAT faz referência aos «factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» e a «formação de presunção de indeferimento tácito» vem indicada na alínea d) do n.º 1 deste artigo 102.º».”

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo manifesta-se no sentido de que o meio de reação contra a decisão de um pedido de revisão que não comporte a apreciação do ato de liquidação é a ação administrativa e não a impugnação judicial, como ambas as Partes reconhecem. No entanto, tal jurisprudência refere-se a situações em que esse pedido de revisão é indeferido de forma expressa com fundamento exclusivo em extemporaneidade, extraindo-se a mesma conclusão quanto a qualquer outro ato de segundo ou de terceiro grau, como a decisão de uma reclamação graciosa ou de um recurso hierárquico que sejam rejeitados (unicamente) por serem intempestivos . Não permite, contudo, que se extrapole tal argumentação para as situações de omissão do dever de decidir (ato silente).

 

Com efeito, no que se refere ao meio processual idóneo para se reagir contra o indeferimento tácito de um pedido de revisão, aquele Supremo Tribunal pronuncia-se, de forma inequívoca, no sentido de ser a impugnação judicial, pois “[o] ato contenciosamente impugnado é aquele que o […] requerido deixou de praticar no lapso de tempo de que dispunha, e que, nos termos do artigo 57º nº 5 da LGT, fez presumir o indeferimento” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de fevereiro de 2005, processo n.º 1171/04 . 

De acordo com a jurisprudência constante do Supremo, na omissão do dever de decidir está em causa “mediatamente, a legalidade do ato tributário de liquidação: apreciar o ato recorrido – saber se a pretensão […] de que fosse revisto aquele ato, merecia, ou não ser indeferida (ainda que presumidamente) – implica sindicar a legalidade da liquidação. Daí que, conforme a jurisprudência do Tribunal, […] o ato tácito contenciosamente atacado o devesse ser pela via da impugnação judicial, e não pela do recurso contencioso de anulação [atual ação administrativa]” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de julho de 2009, processo n.º 0306/09 .

 

Acresce que “não apenas o pedido de revisão apresentado dentro do prazo de reclamação administrativa, mas também o pedido de revisão oficiosa da liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços apresentado no prazo de 4 anos, aproveitam ao sujeito passivo para efeitos de lançar mão da impugnação judicial em caso de indeferimento tácito” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de junho de 2014, processo n.º 01950/13.

 

À face do exposto, não sendo decidido o pedido de revisão oficiosa no prazo geral previsto no artigo 57.º, n.º 5 da LGT, formou-se um ato “ficcionado” de indeferimento cujo objetivo consiste tão-só em permitir ao contribuinte o acesso à via contenciosa – a da impugnação judicial – para apreciação do ato de liquidação que a AT se absteve de conhecer. 

 

Esta construção é expressa de forma elucidativa, em diversas decisões arbitrais, destacando-se, a título ilustrativo, a proferida no processo n.º 487/2020, de 10 de maio de 2021, numa situação em tudo idêntica à dos presentes autos:

 

“No caso de impugnação administrativa direta de um ato de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do ato de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito de meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objeto direto [o] ato de liquidação que se baseia em razões substantivas e não por razões formais.

[…]

De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objeto direto atos de liquidação, é de considerar que o ato ficcionado conhece da legalidade de atos de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o por arbitral.

Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo […].

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o ato ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral.

Nestes termos, improcede a exceção de incompetência invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

 

Em moldes idênticos, se pronuncia a decisão arbitral n.º 500/2020-T, de 24 de junho, que, em relação ao silêncio da administração, distingue a construção tradicional do ato ficcionado de indeferimento, da conceção contemporânea, em que é tratado como omissão pura e simples, ou seja, “como um mero facto” , concluindo, em ambos os casos, pela adequação da impugnação judicial como meio de tutela, “[d]o que resulta a competência, em razão da matéria, deste tribunal arbitral”. 

Não há razão para aqui se decidir de outra forma, pelo que improcede a alegada exceção de incompetência material, concluindo-se que o Tribunal é competente em razão da matéria para conhecer das liquidações de IMI impugnadas (com as legais consequências no ato silente de segundo grau), à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

Acresce que as partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março), sendo admissível a cumulação de atos, uma vez que a procedência dos pedidos deduzidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito.

 

2.            DA CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO

 

A Requerida alega que o prazo para apresentação da ação arbitral, contado em 90 dias a partir do termo do prazo voluntário das prestações de IMI controvertidas, nos termos do artigo 10.º, n.º 1 do RJAT, a partir dos factos previstos no artigo 102.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT para o qual o RJAT remete, estava há muito ultrapassado quando foi deduzido o pedido de pronúncia arbitral, em 1 de outubro de 2020, atendendo a que os atos de liquidação de IMI impugnados foram emitidos em 2017.

 

Todavia, tendo em conta que foi iniciado um procedimento de segundo grau (através da submissão de um pedido de revisão oficiosa), e sendo omitido o dever de decidir este ato no quadro temporal legalmente previsto, o prazo de 90 dias não se conta do termo do prazo de pagamento voluntário, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, mas da data da formação da presunção de indeferimento (alínea d) do preceito em referência).

 

O pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 3 de março de 2020, não tendo sido posta em causa pela Requerida a tempestividade deste em relação ao fundamento invocado (artigo 78.º da LGT). Formou-se, deste modo, a presunção de indeferimento em 3 de julho de 2020. Assim, o pedido arbitral, entrado no CAAD a 1 de outubro de 2020, é tempestivo, pois ainda não tinha transcorrido o prazo de caducidade de 90 dias, sendo a norma aplicável a alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT e não a sua alínea a)).

 

É, por esta razão, improcedente a exceção de intempestividade da ação suscitada pela Requerida.

 

3.            SOBRE A INIMPUGNABILIDADE DOS ATOS TRIBUTÁRIOS

 

A Requerida invoca que o Requerente não imputou aos atos sindicados qualquer vício específico das liquidações de IMI, questionando apenas o VPT, cuja fixação configura um ato destacável, para efeitos de impugnação contenciosa, do procedimento de liquidação de IMI. Neste âmbito, invoca o artigo 15.º, n.º 2 do Código do IMI, segundo o qual, nos prédios urbanos, categoria em que se inserem os terrenos para construção , a avaliação é direta, e o artigo 86.º, n.º 1 da LGT, que refere que a avaliação direta é suscetível de impugnação contenciosa direta. Aduz que os atos de fixação dos valores patrimoniais são, nos termos estipulados no artigo 134.º, n.º 1 do CPPT, objeto de impugnação autónoma, no prazo de três meses  após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.

 

Alicerçada na base legal descrita, a Requerida sustenta que, na medida em que a atribuição da natureza de ato destacável tem por fim, precisamente, autonomizar os vícios deste ato para efeitos de impugnação contenciosa, os vícios do VPT não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo. Não haverá, assim, a possibilidade legal de apreciação do ato de fixação do VPT na impugnação do ato de liquidação de IMI, tendo aí de ter-se como pressuposto o valor fixado na avaliação.

 

O entendimento da Requerida é, prima facie, correto, verificando-se o efeito preclusivo, caso o sujeito passivo, que não concorde com a determinação de um dado VPT, não use, em tempo, os meios próprios de reação previstos na lei.

Estes meios são, primeiramente, administrativos, de acordo com o disposto no artigo 86.º, n.º 2 da LGT, que estabelece que a “impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão”. Tratando-se da avaliação de prédios urbanos, o sujeito passivo que não se conforme com o resultado da avaliação direta pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado, como prescreve o artigo 76.º, n.º 1 do Código do IMI.

 

É do resultado das segundas avaliações que cabe impugnação judicial, a seguir os termos definidos no CPPT, como contém, de forma expressa, o artigo 77.º, n.º 1 do Código do IMI. A impugnação dos atos de fixação de valores patrimoniais é regida pelo artigo 134.º do CPPT, podendo fundar-se em qualquer ilegalidade, compreendendo o erro de facto e de direito. Como antes referido, este último preceito consagra, para este efeito, no seu n.º 1, o prazo de três meses e estipula no n.º 7 que a impugnação não tem efeito suspensivo e só pode “ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação”.

 

A este respeito refere a fundamentação das decisões arbitrais n.ºs 487/2020-T e 540/2002-T, de 10 de maio de 2021 e de 30 de abril de 2021, o seguinte:

 

“[…] os actos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são actos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objecto de impugnação  autónoma, não podendo na impugnação dos actos de liquidação que com base neles sejam efectuadas discutir-se a legalidade daqueles actos.

 

Assim, o sujeito passivo de IMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes actos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT.

 

Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o acto de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que «o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita» (artigo 113.º do CIMI).

 

A natureza de actos destacáveis que é atribuída aos actos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, desde o tempo em que regime idêntico ao do artigo 134.º, n.ºs 1 e 7 do CPPT, previsto nos n.ºs 1 e 6 do artigo 155.º do Código de Processo Tributário de 1991, quer em sede de Sisa, quer de contribuição autárquica, quer de IMI quer de IMT,  como pode ver-se pelos seguinte acórdãos:

 

– de 30-06-1999, processo n.º 023160;

– de 02-04-2003, processo n.º 02007/02;

– de 06-02-2011, procsso n.º 037/11;

– de 19-09-2012, processo n.º 0659/12;

– de 5-2-2015, processo n.º 08/13;

– de 13-7-2016, processo n.º 0173/16;

– de 10-05-2017, processo n.º 0885/16.”

 

No caso concreto, as ilegalidades que o Requerente imputa aos atos de liquidação de IMI controvertidos (ou, dito de outro modo, a causa de pedir da presente ação) referem-se unicamente à sua base de incidência, à fixação do VPT desses terrenos, que é posto em causa por ter sido calculado de acordo com uma fórmula incorreta. De notar que a aplicação, pela AT, de uma específica fórmula de cálculo de avaliação dos terrenos para construção não é, como o Requerente afirma na réplica, uma questão prévia, distinta e separável dessa avaliação, pois a avaliação consiste precisamente na aplicação da dita fórmula, e a mesma, em caso de discordância, poderia (e deveria) ter sido rebatida em sede de segundas avaliações.

Afigura-se, pois, inequívoco que o Requerente pretende a anulação das liquidações de IMI por vício do VPT. Encontrando-se o objeto do processo configurado nestes moldes, é aplicável a jurisprudência citada. Não porque o Requerente tenha impugnado diretamente o ato de fixação do VPT, pois dirige o seu pedido aos atos de liquidação, mas porque o fundamento (único) que invoca para a invalidade (parcial) destes atos de liquidação respeita tão-só ao VPT fixado, o qual tem como pressuposto. E, como acabado de se referir, o legislador estabeleceu um regime específico para a contestação do ato – destacável – (e procedimento) de fixação do VPT, que constitui um desvio, por opção legislativa, ao regime da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT, não cabendo a sua apreciação na impugnação judicial da subsequente liquidação de IMI.

 

Também não se identifica paralelismo com a situação de erro nas inscrições matriciais que podem ser objeto de pedidos de correção (e de impugnação) a todo o tempo – v. artigos 134.º, n.ºs 3 a  5 CPPT e 130.º, n.º 3 do Código do IMI – conforme confirmado por diversa jurisprudência arbitral e do Supremo Tribunal Administrativo referenciada pelo Requerente. De facto, esta jurisprudência sublinha que a exigência de esgotamento dos meios graciosos previstos no procedimento de avaliação não se aplica aos casos em que a impugnação não se funde na errónea fixação do valor patrimonial, i.e., “em que o sujeito passivo não discorda da quantificação do valor patrimonial”, o que não sucede manifestamente na situação vertente. Desta forma, quando esteja em discussão essa discordância do procedimento de avaliação conducente à fixação do VPT, tal exigência se mantém – v. acórdãos do Supremo de 29 de março de 2017, processo n.º 0312/15; de 2 de março de 2016, processo n.º 930/13; de 15 de janeiro de 2014, processo n.º 1101/13; de 8 de janeiro de 2014, processo n.º 1685/13; de 19 de outubro de 2011, processo n.º 311/11; de 16 de abril de 2008, processo n.º 4/08; e de 6 de novembro de 2002, processo n.º 968/02 .

 

No entanto, como se aprofunda de seguida na apreciação do mérito, o legislador mitigou o mencionado efeito preclusivo, contemplando uma válvula de escape do sistema, ao instituir  o poder/dever de revisão oficiosa dos atos tributários ilegais, independentemente de ser desencadeado por iniciativa da AT ou dos sujeitos passivos. Assim, conquanto se verifiquem determinados pressupostos, designadamente o “erro imputável aos serviços” ou a “injustiça grave ou notória”, admite-se a revisão dos atos tributários no quadro do artigo 78.º, n.ºs 1 e/ou 4 da LGT, ponto que será de seguida analisado, logo após a fixação da matéria de facto.

 

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            DE FACTO

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A.           Em 31 de dezembro do ano 2016, o FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO B..., aqui Requerente, era proprietário dos prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-... os quais correspondem aos lotes n.ºs 1, 2, 2A, 3, 4, 4A, 5, 6, 7, 9 e 10, respetivamente, do Alvará de Loteamento n.º .../2010 – cf. Documento 2 junto pelo Requerente – cadernetas prediais.

B.            Os referidos artigos matriciais (com exceção do U-... ) deram origem aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-...– cf. Documentos 4 e 5 juntos pelo Requerente.

C.            Na determinação dos VPT's dos terrenos para construção do Requerente foi aplicada uma fórmula que considerou os coeficientes multiplicadores do VPT - de afetação, de qualidade e conforto e de localização, conforme aplicável - previstos nos artigos 38.º, n.º 1 e 41.º a 43.º do Código do IMI, e a majoração do valor-base dos prédios edificados constante do artigo 39.º, n.º 1 do mesmo Código – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

D.           Especificamente, na determinação dos VPT's dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e..., a AT aplicou um coeficiente de afetação de 1,2 e um coeficiente de localização de 1,9 nas parcelas dos terrenos para construção com edificação prevista ou autorizada para comércio – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

E.            Com referência aos mesmos prédios do ponto que antecede, a AT aplicou também um coeficiente de localização de 2 e um coeficiente de qualidade e conforto de 1,03 nas parcelas dos terrenos para construção destinadas a habitação – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

F.            Na determinação do VPT do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo matricial ..., a AT aplicou um coeficiente de afetação de 1,2 e um coeficiente de localização de 1,9 na parcela para construção com edificação prevista ou autorizada para comércio – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

G.           Neste prédio aplicou também um coeficiente de localização de 2 e um coeficiente de afetação de 1,2 na parcela do terreno para construção destinada a serviços – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

H.           Na determinação do VPT do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo matricial..., a AT aplicou um coeficiente de afetação de 1,1 e um coeficiente de localização de 1,9 – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

I.             A fórmula de cálculo do VPT utilizada pela AT não expurgou a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1 do Código do IMI, prevista para os prédios edificados, tendo sido considerado o valor de € 603,00, como valor base dos prédios edificados (Vc) – cf. Documento 2 junto pelo Requerente.

J.             O Requerente apresentou, em 29 de dezembro de 2019, pedidos de avaliação para alguns dos terrenos para construção acima identificados (artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., todos da freguesia de...) – cf. Documento 4 junto pelo Requerente.

K.            Foram emitidas e notificadas ao Requerente as liquidações de IMI n.ºs 2016..., 2016 ... e 2016..., de 3 de março de 2017 e de 22 de setembro de 2017, relativas ao ano de imposto de 2016, no valor agregado de € 155.103,75 – cf. Documento 3 junto pelo Requerente – liquidações prediais.

L.            Do valor global de IMI liquidado, de € 155.103,75, € 152.094,15 diz exclusivamente respeito aos terrenos para construção – cf. Documentos 1, 3 e 5 juntos pelo Requerente.

M.          O IMI liquidado ao Requerente, referente ao ano 2016, foi o produto da aplicação das taxas de IMI em vigor nesse ano, de 0,30% aos VPT’s, que, relativamente à categoria de prédios de Terrenos para Construção, perfaziam o montante de € 50.698.050,00 – cf. Documentos 1, 3 e 5 juntos pelo Requerente.

N.           O Requerente procedeu ao pagamento das liquidações de IMI nas seguintes datas e valores – cf. Documento 1 junto pelo Requerente:

a)            €50.698,05 – 28 de abril de 2017;

b)           €50.698,05 – 28 de julho de 2017;

c)            €53.707,64 – 23 de novembro de 2017.

O.           No dia 3 de março de 2020, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI acima identificados, com vista à sua anulação parcial, fundamentos idênticos aos do presente pedido arbitral (erro imputável aos serviços e injustiça grave ou notória) – cf. Documento 1 junto pelo Requerente.

P.            Até à presente data, o Requerente não foi notificado da decisão do pedido de revisão oficiosa apresentado – provado por acordo.

Q.           Por não concordar parcialmente com as identificadas liquidações de IMI e com a omissão do dever de decidir o pedido de revisão oficiosa, o Requerente apresentou no CAAD, em 1 de outubro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do ppa no SGP do CAAD.

2.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, considerando as soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se, essencialmente, na análise crítica da prova documental junta aos autos, tendo em conta as posições consensuais assumidas pelas Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões decidendas estritamente de direito. 

 

3.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão, não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

4.            DO MÉRITO

 

4.1.        Admissibilidade da revisão oficiosa das liquidações de IMI

Sem prejuízo de a lei consagrar a via da impugnação contenciosa direta do ato destacável de fixação do VPT e a condicionar ao esgotamento dos meios administrativos  (leia-se, ao pedido de segunda avaliação de prédios urbanos) com efeitos preclusivos, não pode acolher-se, sem mais, a consequência de que as liquidações a coberto desse VPT fariam caso decidido, consolidando-se juridicamente .

 

Como decidiu o TCA Sul no acórdão de 31 de outubro de 2019, no processo n.º 2765/12.8BELRS, “o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.”

 

É a esta luz que tem de apreciar-se o mecanismo de revisão dos atos tributários, conformado, em geral, pelo artigo 78.º da LGT, e, em matéria de IMI, pelo preceituado no artigo 115.º do Código deste imposto. A inclusão de normas deste tipo nos compêndios tributários é justificada pelo reforço das garantias de defesa dos contribuintes e elevação dos meios de tutela das respetivas posições substantivas, sem que tal colida com o princípio fundamental da segurança jurídica, inerente ao Estado de Direito, pois é circunscrita a um quadro temporal pré-definido, de 4 ou 3 anos, consoante esteja em causa a aplicação do n.º 1 ou do n.º 4 do artigo 78.º da LGT.

 

Neste contexto, compulsa-se o artigo 78.º da LGT que, sob a epígrafe “Revisão dos atos tributários”, na parte relevante para a apreciação das questões decidendas, dispõe o seguinte:

 

“1 - A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

2 – [revogado]

3 - A revisão dos atos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respetivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior. 

4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional. […]”

 

O instituto da revisão oficiosa está, de igual modo, previsto no artigo 115.º do Código do IMI (“Revisão oficiosa da liquidação e anulação”) que, no seu n.º 1, alínea c), determina que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, as liquidações são oficiosamente revistas […] c) Quando tenha havido erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido” .

 

Estamos perante “um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um ato ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respetivos montantes, que não estejam previstos na lei.” – v. acórdão do TCA Sul, processo n.º 2765/12.8BELRS.

 

Quer em relação ao artigo 78.º, n.º 1 da LGT, quer ao artigo 115.º, n.º 1, alínea c) do Código do IMT, a revisão oficiosa reporta-se, no seu sentido literal, a ilegalidades dos atos tributários stricto sensu - atos de liquidação de IMI  - e não à avaliação (ou a atos de avaliação) de valores patrimoniais, que consubstanciam atos administrativos em matéria fiscal .

 

Já no que se refere ao n.º 4 do artigo 78.º da LGT, este faz referência à “revisão da matéria coletável” e não a “atos tributários”, pelo que abrange, sem dúvida, atos de fixação de valores patrimoniais. Aqui, não constitui requisito constitutivo do direito à revisão a ocorrência de “erro imputável aos serviços”, porém, requer-se o fundamento de “injustiça grave ou notória”, sendo o prazo encurtado para três anos (posteriores ao do ato tributário).

 

Relativamente a este ponto – do enquadramento da situação em análise no n.º 1 ou no n.º 4 do artigo 78.º da LGT – a jurisprudência diverge.

 

O acórdão do TCA Sul, que se acompanha, preconiza uma interpretação extensiva, segundo a qual o artigo 78.º, n.º 1 da LGT é invocável também no domínio dos atos de fixação de valores patrimoniais, não obstante estar em causa matéria de avaliação de VPT, “visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.” Assim, na medida em que esses atos de avaliação se repercutem em liquidações de imposto de valor superior ao que resultaria da correta aferição da base de incidência, não existe razão para que não mereçam um nível de tutela similar.

 

Neste sentido, segundo o citado acórdão do TCA Sul [processo n.º 2765/12.8BELRS]: “ultrapassada que está actualmente a questão de saber se a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.

O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.

Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente desta, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável.

O que reforça o entendimento de que o direito que a recorrida reclamou, de ver as últimas quatro liquidações anteriores à reclamação serem anuladas, ter pleno apoio legal.”

 

Esta posição tem eco na decisão arbitral n.º 500/2020-T, de 24 de junho de 2021, com os fundamentos que parcialmente se transcrevem:

 

“Sendo o pedido de revisão oficiosa meio próprio para se obter a revisão de uma liquidação, mesmo quando inquinada por vício na quantificação da matéria coletável que lhe serve de base, é meio próprio para conhecer de tais questões o recurso judicial ou arbitral interposto no seguimento do silêncio administrativo quanto a tal pedido.

Fazemos nosso o entendimento do TCAS no acórdão que pôs termo ao processo 2765/12, de 31-10-2019, segundo o qual a errada fixação do VPT pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação.

[…]

Assim, no plano do Direito o artigo 115.º do CIMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela Administração, por sua iniciativa ou a impulso do interessado. Ora, uma das hipóteses contempladas neste normativo é a eliminação de erros de que resulte uma colecta de montante superior ao devido [al. c) do n.º 1].

(…)

Restringir ou eliminar essa impugnabilidade constituiria, outrossim, uma agressão manifesta ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, plasmado nessa norma constitucional.

Mesmo que assim não se entenda, sempre teríamos que a revisão oficiosa seria possível com fundamento no disposto nº 4 do art.º 78º da LGT: o apuramento da matéria coletável consubstanciar «injustiça grave ou notória».

No caso, verificam-se os dois pressupostos legais: a gravidade, pois o imposto liquidado será mais de 35% superior ao devido no caso da A... quase 60% superior ao devido no caso da B...; a notoriedade, uma vez que estão em causa questões de direito, sendo que o cálculo do VPT foi feito de forma que contraria frontalmente jurisprudência consolidada do STA. Não está em causa um qualquer “comportamento negligente do contribuinte”, pois que este(s) nenhuma intervenção tiveram na fixação dos VPT’s em causa. Note-se, por último, que a “negligência” que a lei se refere é relativa ao contributo do contribuinte para o “erro” e não à negligência na utilização atempada dos meios normais de reação.

Assim, mesmo admitindo – o que não se concede – que o pedido de revisão oficiosa apenas poderia ser feito ao abrigo do n.º 4 do art.º 78º da LGT, temos que, sempre seria tempestivo (as liquidações em causa relativas a 2016 – as mais antigas - são datadas de 2017, tendo os pedidos de revisão oficiosa das liquidações sido apresentados, respetivamente, em , em 02.03.2020 e 04.03.2020, ou seja, dentro dos três anos posteriores aos dos atos tributários cuja revisão se pretendia.”

 

Concordamos com esta posição, verificando-se, na situação dos autos, erro imputável aos serviços, na medida em que (como adiante analisado), não obstante a Requerida ter efetuado as liquidações de IMI com base nos VPT que constavam das matrizes, a 31 de dezembro do ano em causa [2016], como determina o artigo 113.º, n.º 1 do Código do IMI , esta incorreu em erro de direito no procedimento de avaliação e fixação do VPT, que condicionou diretamente a sobrevalorização dos VPT e a liquidação de IMI em excesso e, em consequência, o pagamento de prestação tributária indevida.

 

Interessa sublinhar que, para este desfecho, não contribuiu o Requerente. Efetivamente a fixação do VPT foi efetuada pela Requerida, não sendo alegado nem demonstrado que o Requerente tivesse declarado algum elemento de informação errado em relação aos terrenos para construção avaliados, pelo que o eventual erro da fórmula aplicada não pode ser imputado a um comportamento negligente daquele.

 

Adotando um entendimento diferente, assente na aplicação do n.º 4 do artigo 78.º da LGT (em vez do seu n.º 1), destacam-se as decisões arbitrais nos processos n.ºs 41/2021-T, de 27 de julho de 2021; 487/2020-T, de 10 de maio de 2021; e 540/2020-T – de 30 de abril de 2021. Neste caso, a norma aplicada postula que o pedido seja alicerçado no fundamento de injustiça grave ou notória, o que também se verifica na situação vertente, atendendo a que, em média, o valor das liquidações de IMI foi superior em mais do dobro  do que aquele que resultaria após expurgados os vícios alegados pelo Requerente.

 

De notar neste ponto que, não obstante o Requerente, a título principal, alegar o enquadramento no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, também invoca, ainda que em segundo plano (subsidiariamente), o n.º 4 deste preceito, afirmando que “dos erros na aplicação do direito (exclusivamente imputáveis à AT, e que já foram reconhecidos pela mesma no contexto dos procedimentos de avaliação dos Terrenos para Construção iniciados em 2019 - cf. Docs. 4 e 5 juntos) resultou uma coleta em IMI bastante superior àquela que seria devida nos termos legais, o que é igualmente suscetível de configurar uma situação de injustiça grave ou notória.” (v. artigo 103.º do ppa).

A ser esta a norma aplicada ao caso [o n.º 4 do artigo 78.º da LGT], o pedido de revisão oficiosa do Requerente referente ao IMI de 2016 continua a ser tempestivo, pois os atos tributários foram praticados em 2017 (ainda que se refiram a 2016) e a revisão pode ser pedida nos três anos subsequentes (2018 a 2020), tendo-o sido em 3 de março de 2020, portanto, dentro do referido quadro temporal.

 

Porém, não é esta a posição que se propugna, pois, em rigor, o Requerente não pediu a revisão do ato de fixação do valor patrimonial, antes a revisão parcial dos atos de liquidação de IMI, ou seja, de atos tributários proprio sensu, que têm plena cobertura no n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Esta é também a interpretação que, segundo entendemos, melhor se coordena com o nível de proteção acrescido dos contribuintes que está subjacente à instituição do regime de revisão oficiosa e ao princípio da legalidade e da tutela efetiva das posições substantivas que lhes assistem.

 

 Conclui-se, desta forma, pela admissibilidade e tempestividade da revisão oficiosa das liquidações de IMI impugnadas na presente ação arbitral.

 

4.2.        Sobre a aplicação indevida do artigo 38.º do Código do IMI aos terrenos para construção

 

A problemática da aplicação aos prédios urbanos classificados como terrenos para construção dos coeficientes de afetação, localização e qualidade e conforto, previstos no artigo 38.º do Código do IMI para os prédios urbanos destinados a habitação, comércio, indústria e serviços, e, bem assim, da respetiva fórmula matemática, foi amplamente debatida e tem sido decidida por jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo no sentido da sua inadmissibilidade.

 

Para tanto, considera-se que a fórmula contemplada no artigo 38.º do Código do IMI apenas tem aplicação aos prédios urbanos aí identificados para habitação, comércio, indústria e serviços, não tendo o legislador incluído os terrenos para construção, que também classifica de prédios urbanos no artigo 6.º, n.º 1, alínea c) do mesmo Código.

 

Relativamente aos terrenos para construção, foi consagrada uma norma específica, o artigo 45.º do Código do IMI, “onde apenas é relevada a área de implantação do edifício a construir e o terreno adjacente e as características do n.º 3 do artigo 42. Os restantes coeficientes não estão aí incluídos porquanto apenas podem respeitar aos edifícios, como tal”, nos termos explicitados pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de outubro de 2019, processo n.º 0170/16.6BELRS 0684/17, para o qual se remete.

 

Continua este aresto com a seguinte fundamentação, que merece total concordância:

 

“O coeficiente de afectação só pode relevar face à comprovada utilização do prédio edificado e bem assim o de conforto e qualidade.

Tais coeficientes multiplicadores do valor patrimonial tributário apenas respeitam ao edificado, mas não têm base real de sustentação na potencialidade que o terreno para construção oferece.

A aplicação destes factores valorizadores na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos de construção só poderia ser levada a cabo por analogia com o disposto no artigo 38 do CIMI.

Mas porque a aplicação desses factores tem influência na base tributável tal analogia está proibida por força do disposto no nº 4 do artigo 11 da LGT por se reflectir na norma de incidência na medida em que é susceptível de alterar o valor patrimonial tributário.

A aplicação desses coeficientes na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção seria violadora do princípio da legalidade e da reserva de lei consagrado no artigo 103 nº 2 da CRP.

A própria remissão para os artigos 42 e 40 do CIMI constante do artigo 45 e mesmo a redacção dada ao artigo 46 relativo ao valor patrimonial tributário dos prédios da espécie “outros” em que expressamente se refere que “o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do artigo 38º com as necessárias adaptações “é demonstrativo de que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não entram outros factores que não sejam o valor da área da implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação.

É que mesmo a remissão feita para os artigos 42 e 40 do CIMI não consagra a aplicação dos coeficientes aí referidos, mas apenas acolhe, respectivamente as características que hão-de determinar o valor do coeficiente a utilizar e o modo de cálculo.

O que se compreende face à definição de terrenos para construção do nº 3 do artigo 6 do C.I.M.I.(…)”

Concordando, e não olvidando a doutrina expressa por José Maria Fernandes Pires in Lições de Impostos Sobre o Património e do Selo 2012, 2ª edição pp104 de que “o valor de um terreno para construção corresponde, fundamentalmente, a uma expectativa jurídica, consubstanciada num direito de nele se vir a construir um prédio ou prédios com determinadas características e com determinado valor,” e que para a avaliação de terrenos para construção a lei manda separar duas partes do terreno (uma primeira parte a do terreno onde vai ser implantado o edifício a construir) e uma segunda parte a restante constituída pelo terreno que fica livre no lote de terreno para construção expressando que para alcançar o valor da primeira parte é necessário proceder à avaliação do edifício a construir como se ele já estivesse construído.

Com o devido respeito, tal como se fez no já referido acórdão do Pleno do STA de 21/09/2016 tirado no rec. nº 01083/13 não se acolhe integralmente esta doutrina pelas dúvidas e imprecisões que pode acarretar e que em matéria fiscal devem ser evitadas. Desde logo a lei, no art.º 6º nº 3 do CIMI classifica de terrenos para construção realidades que não têm aprovado qualquer projecto de construção pelo que a sua inexistência determina por si só a inviabilidade de efectuar o cálculo da chamada área de implantação do edifício porque inexistente mesmo em projecto e por outro lado, nos casos em que existe esse projecto ou plano de pormenor (parece ser este último o caso dos autos uma vez que no processo administrativo apenso a fls. 13 se faz referência a um plano de pormenor destacado na alínea “L” do probatório) cumpre salientar que a qualidade e o conforto têm de ser efectivos o que se compreende porque o direito tributário se preocupa com realidades e verdades materiais não podendo a expectativa ou potencial construção de um edifício com anunciados/programados índices de qualidade e conforto integrar um conceito que objectivamente, só é palpável e medível se efectivada a construção e se, realizada sem desvios ao constante da comummente conhecida “memória descritiva” que acompanha cada projecto de construção. Também é certo que a valorização imediata do prédio por efeito da atribuição do alvará de terreno para construção não deixará de ser levada em conta para efeitos de tributação, em caso de alienação, com a tributação noutra sede tributária.

Como se expressou no acórdão deste STA de 24/04/2016 a que supra fizemos referência

(…) Efectivamente o coeficiente de afectação tem a ver com o tipo de utilização do prédio já edificado e o mesmo se diga do coeficiente de qualidade e conforto.

Nos terrenos em construção as edificações aprovadas são meramente potenciais e é o valor dessa capacidade construtiva, geradora de acréscimo de valor patrimonial ou riqueza para o seu proprietário que se procura taxar. E não factores ainda não materializados (…).

Tendo em conta a realidade o legislador consagrou para a determinação do valor patrimonial tributário desta espécie de prédios (terrenos para construção) a regra específica a considerar é a constante do supra referido artigo 45 do CIMI e não outra, onde reitera-se se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no nº 3 do artigo 42, tendo em conta o projecto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no nº 2 do artigo 45 do C.I.M.I, mas não outras características ou coeficientes.

Isto só pode significar que na determinação do seu valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente, aqui discutido, de qualidade e conforto relacionado com o prédio a construir. O que, faz todo o sentido e dá coerência ao sistema de tributação do IMI uma vez que os coeficientes previstos nesta fórmula só podem ter a ver com o que já está edificado, o que não é o caso dos terrenos para construção alvo de tributação específica, sim, mas na qual não podem ser considerados para efeitos de avaliação patrimonial factores ainda não materializados. E, sendo verdade que para calcular o valor da área de implantação do edifício a construir a lei prevê que se pondere o valor das edificações autorizadas ou previstas (art.º 45º nº 2 do CIMI) para tal desiderato, salvo melhor opinião não necessitamos/devemos entrar em linha de conta, necessariamente, desde logo, com o coeficiente de qualidade e conforto pois que não estando materializado não é medível/quantificável, sendo consabido da experiência comum que um projecto de edificação contemplando possibilidades modernas de inserção acessória de equipamentos vulgarmente associados ao conceito de conforto tais como ar condicionado, videovigilância robótica doméstica, luzes inteligentes etc., se edificado/realizado com defeitos pode não se traduzir em qualquer comodidade ou bem estar, antes pelo contrário ser fonte de problemas/insatisfações e dispêndios financeiros.”

 

Como se referiu, estamos perante jurisprudência constante que se acompanha, reiterada em acórdãos do Pleno, cujos processos infra se referenciam:

 

             processo n.º 0732/12.0BEALM 01348/17, de 13 de janeiro de 2021 

             processo n.º 0170/16.6BELRS 0684/17, de 23 de outubro de 2019

             processo n.º 0165/14.4BEBRG, de 9 de outubro de 2019

             Pleno – processo n.º 016/10.9BELLE, de 3 de julho de 2019

             processo n.º 0398/08.2BECTB, de 14 de novembro de 2018

             processo n.º 0986/16, de 16 de maio de 2018

             processo n.º 01461/17, de 31 de janeiro de 2018

             processo n.º 0897/16, de 28 de junho de 2017

             processo n.º 01107/16, de 5 de abril de 2017

             processo n.º 0127/15, de 15 de março de 2017

             Pleno – processo n.º 01083/13, de 21 de setembro de 2016

             processo n.º 0824/15, de 20 de abril de 2016

             processo n.º 0765/09, de 18 de novembro de 2009

 

Todos os acórdãos enumerados, relativos ao tema da avaliação de terrenos para construção, regulado pelo artigo 45.º do Código do IMI, julgam não ser de aplicar os coeficientes ou características que não se encontrem especificamente previstas neste preceito, nomeadamente os contemplados no artigo 38.º deste Código, suscetíveis de alterar a base tributária e de interferir na incidência do imposto, por tal configurar aplicação analógica. Considera-se, também, ser de afastar o coeficiente de localização, em virtude de este fator já estar contemplado na percentagem prevista no artigo 45.º, n.º 3 do Código do IMI, pois, de outro modo tal fator [de localização] relevaria, por duas vezes, na determinação do VPT dos terrenos para construção (v. também a decisão arbitral n.º 500/2020-T).

Refere, neste âmbito, o acórdão (do Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 016/10, de 3 de julho de 2019:

 

“Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente de qualidade e conforto.

Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção o legislador consagrou a regra específica constante do supra referido artigo 45 do CIMI e não outra, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no nº 3 do artigo 42, tendo em conta o projecto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no nº 2 do artigo 45 do C.I.M.I, mas não outras características ou coeficientes.”

 

À face do exposto, tem de concluir-se em consonância com o Requerente, no sentido de que a Requerida não devia ter aplicado aos terrenos para construção acima identificados os coeficientes de localização, qualidade e conforto e de afetação que geraram a liquidação de imposto em excesso, julgando-se a ação procedente nesta parte.

 

4.3.        Sobre o erro na aplicação da majoração de 25% prevista no artigo 39.º, n.º 1 do Código do IMI

 

À data dos factos, o artigo 39.º do Código do IMI tinha por epígrafe “Valor base dos prédios edificados”  e estabelecia o seguinte:

“1 - O valor base dos prédios edificados (Vc) corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25 % daquele valor.

2 - O valor médio de construção é determinado tendo em conta, nomeadamente, os encargos directos e indirectos suportados na construção do edifício, tais como os relativos a materiais, mão-de-obra, equipamentos, administração, energia, comunicações e outros consumíveis.”

 

Tem razão a Requerente quando alega que a AT considerou indevidamente o valor base dos prédios edificados, de € 603,00, na fórmula de cálculo utilizada para proceder à avaliação dos terrenos para construção, em vez do valor médio de construção por metro quadrado em vigor, de € 482,40 (até 2018), i.e., sem a majoração de 25% prevista para o valor do metro quadrado do terreno de implantação.

 

Quer a epígrafe do artigo 39.º (na redação em vigor à data dos factos), quer a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo acima referida, permitem concluir que este preceito era inaplicável a prédios não edificados, que são os terrenos para construção, não existindo qualquer remissão do artigo 45.º do Código do IMI, que estabelece as regras de determinação do VPT dos terrenos para construção, para o artigo 39.º, nem contendo aquele [artigo 45.º] qualquer alusão ao valor base dos prédios edificados – v. decisões arbitrais n.ºs 487/2020-T, 500/2020-T e 41/2021-T.

 

Nestes termos, procede também, neste segmento, a pretensão do Requerente

 

                EM SÍNTESE,

 

                Os atos tributários de liquidação de IMI objeto desta ação e acima identificados, são parcialmente anuláveis por vício substantivo de erro nos pressupostos de direito, na parte em que tiveram como pressuposto valores patrimoniais em que foram considerados coeficientes de qualidade e conforto, coeficientes de localização e coeficientes de afetação ao abrigo da fórmula do artigo 38.º do Código do IMI, bem como a majoração de 25% prevista no artigo 39.º, n.º 1 do referido Código, por, à data dos factos, tais normas serem inaplicáveis aos terrenos para construção.

                Isto, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

                4.4.        Questões de conhecimento prejudicado

 

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral por ilegalidade substantiva (erro de direito) dos atos impugnados, fica prejudicada, por ser inútil, a apreciação das restantes questões colocadas submetidas à apreciação deste Tribunal, nomeadamente a que se refere aos vícios de inconstitucionalidade arguidos pelo Requerente, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

                4.5.        Reembolso da prestação tributária e juros indemnizatórios

 

O Requerente, peticiona, como decorrência da invocada anulabilidade (parcial) dos atos de liquidação de IMI, a restituição da importância paga em excesso, que quantifica em € 92.942,02, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, uma vez que procedeu ao pagamento da quantia liquidada.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

 

Assim, deve a Requerida proceder à restituição da prestação tributária paga em excesso pelo Requerente, cuja quantificação não questiona, no valor de € 92.942,02. 

 

Em relação aos juros indemnizatórios, o artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT institui uma disciplina específica para os casos de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, constituindo-se a obrigação de indemnizar na esfera da Requerida somente depois de decorrido um ano a contar do pedido de revisão, salvo se o atraso não for imputável à AT (v. acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 038/19, de 4 de novembro de 2020).

 

Na situação vertente, está em causa a errada interpretação e aplicação pela Requerida de normas de incidência tributária e ficou demonstrado que as liquidações de IMI padecem de erro de direito imputável à AT, vício para o qual o Requerente em nada contribuiu. Tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 3 de março de 2020, os correspondentes juros indemnizatórios, calculados com base no citado valor pago em excesso (€ 92.942,02), apenas se começam a contar a partir de 3 de março de 2021, respetivamente.

 

IV.          DECISÃO

 

À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)          Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela Requerida;

(b)          Julgar procedente o pedido arbitral, com a anulação parcial dos atos tributários de liquidação de IMI supra identificados e, bem assim, a anulação dos atos silentes (de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa) que ficcionadamente os confirmaram;

(c)          Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida à restituição da prestação tributária paga em excesso, nos termos do acima decidido; e

(d)          Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, a contar de 3 de março de 2021, em conformidade com o disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT,

 

tudo com as legais consequências.

 

V.           VALOR DO PROCESSO

 

                Fixa-se ao processo o valor de € 92.942,02, correspondente à pretensão de anulação parcial das liquidações de IMI da Requerente, que não foi impugnado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.

 

VI.          CUSTAS

 

                Custas no montante de € 2.754,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de novembro de 2021

 

Os árbitros,

 

(Alexandra Coelho Martins)

(Cristina Aragão Seia)

(André Festas da Silva)