Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 497/2014-T
Data da decisão: 2015-03-06  IRS  
Valor do pedido: € 42.061,28
Tema: IRS – União de facto - opção do artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

O árbitro Ricardo Reigada Pereira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 19 de setembro de 2014, decide nos termos que se seguem:

I.              Relatório

A.               Sumário do processo

1.             A, com domicílio fiscal na …., Pontinha, contribuinte fiscal n.º … (o “Requerente”) veio, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – “RJAT”), apresentar um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral no dia 17 de julho de 2014.

2.             O Requerente pede pronúncia com vista à anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2013… relativa ao ano fiscal de 2008, emitida pela Autoridade Tributária a Aduaneira (“AT”) – a “Requerida” –, no valor total de €42.061,28 (quarenta e dois mil, sessenta e um euros e vinte e oito cêntimos). A liquidação tem fundamento no não cumprimento das condições que habilitam o exercício do direito previsto no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS. O objeto imediato do pedido de pronúncia arbitral consiste na revogação do indeferimento expresso do recurso hierárquico interposto pelo Requerente.

3.             O Requerente considera legítima a opção por si tomada de ser tributado pelo regime então estabelecido na lei para os sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, uma vez que alega viver em união de facto com B – contribuinte fiscal n.º … – desde 1991, partilhando a mesma morada de família na Avenida … , em Lisboa.

4.             A Requerida, por seu turno, considera não estarem verificados os pressupostos de facto e de direito necessários ao legítimo exercício da opção consagrada no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS. Tal sucede na medida em que a AT entende a identidade de domicílio fiscal como um pressuposto legal imperativo ao gozo do direito previsto naquele artigo 14.º, n.º 1.

5.             Na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – realizada no dia 19 de novembro de 2014 e sem que a mesma tenha merecido oposição por parte da AT, não obstante não ter estado presente – acordou-se que não seriam produzidas alegações escritas. Apesar disso, foram logo naquele momento realizadas alegações orais cujo teor sublinhou os fundamentos legais já enunciados no pedido de constituição do tribunal arbitral e pedido de pronúncia arbitral.

 

B.               A pretensão e fundamentação do Requerente

 

6.             No seguimento do ato de liquidação de IRS n.º 2012…, relativo ao ano de 2008, o Requerente decidiu deduzir a respetiva reclamação graciosa do mesmo.

7.             A reclamação graciosa encerrava o seguinte pedido: “liquidar o tributo em apreço [o IRS], considerando a real situação familiar do contribuinte, a união de facto, como é da mais elementar justiça”.

8.             No fundo, o Requerente pretendia ser tributado em conformidade com o regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, uma vez que alegava viver em união de facto com B desde 1991. Para além disso, pretendia que lhe fossem reconhecidas diversas despesas, tendo em conta os dois dependentes que se encontravam a seu cargo.

9.             Em junho de 2013 viria a ser proferido despacho de deferimento parcial, aceitando-se o pedido quanto aos dependentes e às despesas de saúde, mas não a situação de “união de facto”. Em virtude disso, substitui-se a liquidação em causa por uma nova, a liquidação n.º 2013…, com um imposto a pagar no montante de €42.061,28.

10.         Dessa decisão de deferimento parcial foi, depois, interposto recurso hierárquico no qual o ora Requerente reiterava a factualidade que, no seu entender, justificaria o pleno direito ao exercício da opção conferida aos unidos de facto para serem tributados como sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. O exercício dessa opção vinha, aliás, sendo realizado desde 2003.

11.         O recurso hierárquico viria a ser derradeiramente indeferido em maio de 2014, dando origem aos pedidos de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral.

12.         Conforme foi exposto, a fundamentação do Requerente remete para a situação factual que alega existir entre si e B desde 1991. A casa de morada da família encontrar-se-ia localizada, desde essa data, na Avenida …, em Lisboa.

13.         Por sua vez, alega o Requerente que dessa união nasceram dois filhos, a saber: C (contribuinte fiscal n.º …) e D (contribuinte fiscal n.º …). Ambos residiam, à data, na referida casa de morada de família.

14.         Em face disso, o Requerente alega apresentar declarações anuais de IRS em conjunto, enquanto unido de facto, com B desde o ano fiscal de 2003, em face da opção que constava, à data, do artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS.

15.         Até ao ano fiscal de 2008, nenhuma questão havia sido suscitada pela AT relativamente àquelas declarações conjuntas nas quais os sujeitos passivos optavam por ser tributados de acordo com regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

16.         Acontece que, em 2013, a AT veio detetar que os domicílios fiscais do Requerente e de B não coincidiam. Em virtude disso, a AT colocou em causa a opção realizada por ambos, alegando que as respetivas condições de exercício da opção consagrada no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS – e enunciadas também no n.º 2 desse mesmo artigo – não se verificavam. O primeiro ano a ser afetado foi, para o efeito, o de 2008.

 

17.         O Requerente admite, de facto, que tinha como domicílio fiscal a morada do estabelecimento comercial – uma farmácia – onde exerce a sua atividade profissional, sito na …, Pontinha, concelho de Odivelas. Ao invés, B tinha o seu domicílio fiscal na Avenida …, em Lisboa (a morada onde se alega encontrar a casa de morada de família).

18.         Argumenta o Requerente que o registo da sua morada profissional como domicílio fiscal lhe permitia “estar sempre habilitado a receber, sem perdas de tempo e perigo de extravios, toda e qualquer correspondência que lhe fosse dirigida, mormente por parte dos Serviços Fiscais”. Isto para além de, em simultâneo, tal lhe parecer particularmente útil em face de a sua companheira, de nacionalidade brasileira, se deslocar com regularidade ao Brasil, “verificando-se assim a sua ausência frequente do domicílio comum”.

19.         A deteção desta assimetria de domicílios fiscais – imputável nas palavras do Requerente a uma “nova capacidade do sistema informático da AT”- despoletou a questão que subjaz ao presente litígio. Algo que lhe causou surpresa, uma vez que estava convicto de estar a cumprir integralmente a lei fiscal. Convicção que, no seu entender, surgia “reforçada pela inércia da administração fiscal que, não obstante considerar agora imprescindível a identidade de domicílios fiscais entre os sujeitos passivos A e B [o Requerente e B], sempre aceitou as suas declarações fiscais, conferindo efeitos tributários à união de facto, liquidando e cobrando os impostos devidos, sendo que apenas em 2013 (dez anos após a 1.ª declaração entregue) veio questionar a situação declarativa que ela própria tinha sufragado”.

20.         O Requerente chega mesmo a sustentar que em face do artigo 19.º, n.º 8 e artigo 59.º ambos da Lei Geral Tributária, a própria AT poderia e deveria – enquanto verdadeiro poder-dever – ter retificado o seu domicílio fiscal com base nos elementos ao seu dispor ou, pelo menos, tê-lo avisado para esse efeito durante os sete anos em que o mesmo apresentou as declarações em conjunto com B.

21.         No final, o Requerente não se conforma pura e simplesmente com a posição da AT que, em síntese, alega que o não cumprimento da obrigação de coexistência do mesmo domicílio fiscal em ambos os unidos de facto prejudica a possibilidade de exercício da opção, prevista no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS.

22.         Por outras palavras, o Requerente recusa-se a aceitar que a condição prevista no artigo 14.º, n.º 2 do Código do IRS – o qual faz depender a possibilidade de exercício da opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens da “identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação” – não pode ser considerada uma “exigência absoluta, impossibilitando a prova de que o domicílio efetivo dos sujeitos passivos A e B [o Requerente e B] não contraria o essencial da lei civil e da lei fiscal”. Tal preceito não poderia constituir, no entender do Requerente, “uma espécie de presunção inilidível, uma obrigação de tudo ou nada, que se sobreponha à moldura do instituto civilista de proteção à família que é a ‘união de facto’, aprovado por lei da Assembleia da República, de que o tratamento fiscal em causa também faz parte”.

23.         A circunstância de o Requerente viver há mais de 20 anos na casa de morada de família com B deveria no entender do sujeito passivo inibir de imediato a AT de rejeitar a legalidade do exercício da opção pela tributação como casados e não separados judicialmente de pessoas e bens prevista no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS. O facto de ter fornecido à AT um local próprio e mais adequado para ser contatado – distinto da sua casa de morada de família – não podia só por si redundar numa consequência fiscal tão gravosa como a de vedar-lhe o exercício da opção estabelecida no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS.

24.         No entender do Requerente “nada permite concluir que a lei fiscal não admita a prova de que os requisitos deste instituto [a união de facto] são respeitados mesmo com a indicação à administração fiscal de um local complementar à casa de morada de família que funcione como local de contacto no seu relacionamento com a mesma administração”. A não ser assim perder-se-ia de vista, no entender do Requerente, a ratio para a existência de um domicílio fiscal que deveria, na essência, “evitar situações de incerteza e insegurança no relacionamento mútuo entre a administração e os contribuintes e, sobretudo, prevenir situações de fuga e evasão fiscal”. O facto de o Requerente dispor de um domicílio fiscal distinto da localização da casa de morada de família em nada prejudicaria, na sua opinião, a certeza ou segurança no relacionamento entre o sujeito passivo e a AT ou potenciaria sequer qualquer situação de fuga ou evasão fiscal.

25.         Para sustentar a posição por si assumida o Requerente invoca um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.º 04550/11, de 7 de abril.

 

 

C.               A fundamentação da Requerida

 

26.         A AT manteve-se constante ao longo do procedimento tributário, rejeitando a possibilidade de recurso por parte do Requerente à opção prevista no artigo 14.º do Código do IRS.

27.         Essa é, recorde-se, a motivação subjacente ao pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral que o indeferimento do recurso hierárquico despoletou. Sem surpresa, a AT viria a reiterar a posição anteriormente assumida na resposta apresentada àqueles pedidos. Em suma, a liquidação e, por paridade de razão, a decisão de indeferimento do recurso hierárquico seria de manter na medida em que consubstanciam ambas uma correta aplicação do direito aos factos.

28.         No entender da AT, a “opção contida no artigo 14.º do CIRS elege a identidade de domicílio fiscal como um pressuposto desse regime fiscal, e não como uma mera presunção de vida em comunhão, suscetível de ser comprovada de outro modo, nomeadamente através da apresentação de um atestado da junta de freguesia”.

29.         Acrescenta a AT, eloquentemente, “que a construção do estatuto tributário de unido de facto, contido no artigo 14.º do CIRS, obedece a imperativos de combate à fraude e evasão fiscais, os quais justificam que a comunicação atempada da alteração do domicílio fiscal, nos termos do consignado no art. 19.º da LGT, seja um requisito aquisitivo daquele estatuto, ainda que de natureza formal”. Nas palavras da AT, “para os unidos de facto poderem exercer a opção do art. 14.º do CIRS, tem de existir identidade de domicílio fiscal há mais de 2 anos, não sendo suficiente a prova dessa união”.

30.         Subsidiariamente, a AT alega ainda que “cumpriria ao Requerente a prova da vivência em união de facto com B, partilhando a mesma casa de morada de família, na Avenida …, em Lisboa, prova esta que o Requerente não conseguiu alcançar”.

 

II.           Saneamento

 

31.         Este Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 19 de setembro de 2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD em conformidade com as respetivas formalidades legais e regulamentares.

32.         O Requerente pede, recorde-se, pronúncia do tribunal arbitral no sentido de o mesmo proceder à anulação da liquidação de IRS n.º 2013… relativa ao ano fiscal de 2008 emitida pela AT no valor total de €42.061,28 (quarenta e dois mil, sessenta e um euros e vinte e oito cêntimos). O objeto imediato do pedido de pronúncia arbitral consiste, de qualquer das formas, na anulação da decisão de indeferimento expresso do recurso hierárquico interposto pelo Requerente.

33.         Em suma, o pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem aqui, necessariamente, por objeto imediato a decisão do recurso hierárquico – i.e. o respetivo indeferimento expresso – e por objeto mediato os vícios imputados ao ato de liquidação que lhe está subjacente. Ambos estão compreendidos no âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Arbitral que deve conhecer tanto os aspetos relativos aos vícios próprios do indeferimento da recurso hierárquico, como as ilegalidades imputadas ao ato de liquidação que aquele considerou não existirem. O presente Tribunal terá então necessariamente de decidir de uma de duas formas: a) ou confirma o indeferimento, mantendo o ato tributário de liquidação ou, ao invés, b) anula esse indeferimento, apreciando os vícios imputados ao ato de liquidação, uma vez que o pedido de pronúncia arbitral tem necessariamente de ter por objeto tanto a decisão do recurso hierárquico, como os vícios do próprio ato de liquidação.

34.         O Tribunal Arbitral é materialmente competente em face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 30.º, n.º 1 do RJAT.

35.         Em 19 de novembro de 2014 foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT.

36.         As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

37.         Não foram identificadas nulidades no processo.

 

III.        Fundamentação

A.               Factos provados

 

38.         O Requerente teve dois filhos com b, a saber: C (contribuinte fiscal n.º …) e D (contribuinte fiscal n.º …).

39.         O Requerente apresentou declarações anuais de IRS em conjunto, enquanto unido de facto, com B antes de 2008. Nunca foram relativamente às mesmas suscitadas quaisquer questões quanto ao exercício da opção conferida pelo então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS. A primeira declaração em conjunto entregue dizia respeito ao ano de 2003, conforme o atesta a declaração n.º …, entregue no dia 21 de maio de 2004. O mesmo sucedeu em anos fiscais posteriores.

40.         O Requerente e B não comungavam de identidade de domicílio fiscal no ano de 2008 – período de tributação em causa – nem nos anos anteriores.

41.         A Freguesia da Pontinha declarou em 2 de fevereiro de 2012, fazendo fé nas declarações do ora Requerente, que o mesmo reside há vinte anos com o seu agregado familiar na Rua … Pontinha. Declaração que contrasta, nesses termos, com a fundamentação apresentada pelo Requerente. Em face de ter sido emitida vários anos depois de 2008, veio o Requerente pedir em 30 de janeiro de 2015 que a mesma fosse desconsiderada e retirada do processo.

42.         O domicílio fiscal registado no cadastro do Requerente correspondia, à data dos factos, à Rua … Pontinha.

43.         Perante as dúvidas suscitadas quanto à verdadeira coincidência da farmácia da Pontinha com a morada que constava do cadastro do Requerente, veio este último juntar certidão da Câmara Municipal de Odivelas, emitida em 29 de janeiro de 2015, que atesta que o edifício anteriormente designado …Pontinha designa-se atualmente por Rua …, união de freguesias da Pontinha e Famões. Logo, a diferença de moradas não corresponde, no final, a uma real divergência de elementos.

44.         Por sua vez, a circunstância de existirem documentos que aludem à morada …– i.e. os extratos combinados do E, junto como documento n.º 6 ao pedido de pronúncia arbitral – não correspondem, ao contrário do que afirma a AT, a uma morada distinta das que constam do processo. A … é, na realidade, um condomínio existente na Avenida …, local onde reclama o Requerente encontrar-se a sua casa de morada de família desde 1991.

45.         O indeferimento do recurso hierárquico foi notificado ao Requerente o dia 5 de maio de 2014. Tal indeferimento veio dar origem ao pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral. Pedidos que dariam entrada no CAAD no dia 17 de julho de 2014.

46.         Tais pedidos despoletaram a resposta da AT de 22 de outubro de 2014.

47.         O tribunal arbitral decidiu solicitar informação adicional ao Requerente no dia 20 de janeiro de 2015. Para além de dúvidas relativas a elementos de facto carreados para o processo, instou-se o Requerente a apresentar faturas de “utilities” do ano de 2008 emitidas em nome do Requerente. No seguimento do pedido, foram então juntas diversas faturas ao processo em 30 de janeiro de 2015, incluindo faturas do gás e da água emitidas pela Lisboagás Comercialização, S.A. e pela empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A.. A AT, instada a fazê-lo, não se pronunciou sobre as mesmas, nem tão pouco sobre os esclarecimentos prestados pelo Requerente.

 

B.               Factos não provados

 

48.         Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que devam considerar-se não provados.

 

C.               Do Direito

 

49.         Determinava, à data, o artigo 14.º do Código do IRS que:

1 - As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

2 - A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.

3 - No caso de exercício da opção prevista no n.º 1, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 13.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.

50.         O gozo do direito aqui consagrado depende, em síntese, da verificação de três condições. Por um lado, os sujeitos passivos deviam encontrar-se em união de facto nos termos previstos na respetiva lei. Por outro lado, ambos deviam ter o mesmo domicílio fiscal durante o período de dois anos exigido pela lei para a verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação em causa (devendo ambos assinar a respetiva declaração periódica de rendimentos). Finalmente, era preciso que os sujeitos passivos exercessem a opção conferida pela lei (os sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens não gozavam, à data, da opção de ser tributados separadamente).

 

§   União de facto

51.         A documentação que consta do processo leva o tribunal arbitral à convicção firme de que o Requerente e B viviam, em 2008, em condições análogas às de cônjuges. Por outras palavras, encontrava-se criada “uma aparência externa de casamento em que terceiros podem confiar[1]. Há faturas médicas, escolares e de seguros de 2008 relativas a todos os membros do agregado familiar, incluindo dos dois dependentes, que aludem à morada na Avenida …. O mesmo sucedendo com diversas faturas de “utilities” do ano de 2008 emitidas em nome do Requerente, a pessoa relativamente à qual se suscitava a dúvida de saber se vivia efetivamente “junto” de B.

52.         Sublinhe-se que a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio não define união de facto, à semelhança do que sucedia já na Lei n.º 135/99, de 28 de agosto. Em todo o caso, a mesma carateriza-se como a situação em que as pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae et habitationes) como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o estão. Falta-lhes, pois, o vínculo formal do casamento. Em face da factualidade que lhe está subjacente, torna-se invariavelmente difícil concluir, sem margem para dúvidas, pela existência de uma união de facto. Não sendo objeto de registo civil, nem de registo administrativo (municipal) – como sucede em alguns países – torna-se deveras difícil surpreender uma “união de facto” na relação entre duas pessoas. Trata-se quase sempre de uma esfera na qual existem, como não poderia deixar de ser, elementos naturalmente insondáveis a terceiros.

53.         De qualquer das formas, a prova da união de facto reveste-se de um enorme importância. Tal sucede tanto nas situações em que a mesma é invocada pelos sujeitos da relação – como sucede no presente caso arbitral – como quando é invocada contra os mesmos. Na realidade, só a partir da data da constituição da união de facto se contam os dois anos que devem decorrer para que a união de facto produza os efeitos previstos no artigo 3.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio.

54.         Não obstante a prova da união de facto ser normalmente testemunhal[2], a prova documental não deve excluir-se. Aliás, é a própria Lei n.º 7/2001, de 11 de maio que o determina – hoje – no artigo 2.º-A, aditado pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto. Mais recentemente, o próprio Ministério das Finanças aceitou uma recomendação do Provedor de Justiça no sentido de permitir que a prova da união de facto dos sujeitos passivos que pretendessem exercer a opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens fosse efetuada por qualquer meio legalmente admissível. Ao mesmo tempo, a AT comprometeu-se ainda, no contexto daquela recomendação, a proceder à revisão oficiosa das liquidações de IRS efetuadas em nome dos sujeitos passivos a quem foi recusada a aplicação do regime da tributação conjunta dos rendimentos, nomeadamente dos que tenham atempadamente deduzido reclamação graciosa contra as liquidações emitidas segundo o regime de tributação separada dos rendimentos familiares, apresentando a prova da sua união de facto, isto é, a prova de que vivem em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, independentemente de terem (ou não) domicílio fiscal comum, pelo mesmo período temporal (Recomendação n.º 13/A/2013, do Provedor de Justiça).

55.         A circunstância de existir um documento emitido pela Junta de Freguesia da Pontinha de 2 de fevereiro de 2012 determinando que o Requerente residia há vinte anos com o seu agregado familiar na Rua … Pontinha – declaração que o Requerente pediu que fosse desconsiderada e retirada do processo – não é suscetível de fazer prova plena. Na realidade, não se trata de um facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora” (artigo 371.º, do Código Civil), mas sim de um documento que foi, a seu tempo, emitido a requerimento dos interessados (e que, por isso, não prova que seja verdadeira a afirmação).

56.         Os restantes elementos de prova carreados ao processo revelam, no entender do tribunal, que a união de facto se encontrava verificada no ano em apreço – 2008 – e estaria já provavelmente consolidada anos antes.

 

§      Identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação

57.         Questão mais complexa é a que diz respeito à questão de saber qual a consequência a extrair do facto de o Requerente e B não partilharem no ano de 2008 – nem nos anos fiscais anteriores – o mesmo domicílio fiscal.

58.         A AT sublinha que esta identidade de domicílio fiscal constitui um “requisito aquisitivo” do estatuto de unido de facto para efeitos fiscais. Por outras palavras, só nessas circunstâncias estariam os sujeitos passivos legalmente habilitados a optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

59.         O Requerente acha que não pode ser assim, sob pena de a mesma passar a constituir “uma espécie de presunção inilidível, uma obrigação de tudo ou nada, que se sobreponha à moldura do instituto civilista de proteção à família que é a ‘união de facto’”.

60.         Para sustentar a sua posição o Requerente alude igualmente à ratio decidendi subjacente ao acórdão n.º 4550/11, de 7 de abril de 2011 do Tribunal Central Administrativo Sul. Comungando os factos daquele caso de um flagrante paralelismo com a situação em apreço, determinou-se naquele acórdão que “o domicílio poderia e deveria ser rectificado oficiosamente com base nos elementos que estavam ao dispor da administração tributária”. Para o Tribunal Central Administrativo tratava-se, inclusive, “de um poder-dever, destinado antes do mais a proteger a verdade tributária em concretização também do princípio da colaboração consagrado no artº 59º da L.G.T..”, daí que, acrescentou o tribunal, “com toda a certeza e segurança que no caso concreto era possível à administração tributária rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos a partir dos elementos ao seu dispor e que comprovavam a identidade de domicílios, de resto constante do declarado pelos contribuintes na declaração de rendimentos apresentada.”. Nesses termos, foi sem surpresa que se concluiu aí que “porque o impugnante e B...viviam em união de facto preenchendo os pressupostos constantes da lei respectiva, podiam optar, como fizeram na declaração de rendimentos entregue, pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens e, visto que existia identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos, tudo está em conformidade com a lei (art° 14° n°s 1 e 2 do CIRS)”.

61.         O acórdão em apreço adota, para o efeito, uma interpretação particular do artigo 14.º do Código do IRS. Ao surpreender um poder-dever da AT de retificação dos elementos cadastrais do sujeito passivo torna-se mais fácil aos unidos de facto reclamar o gozo efetivo do direito de opção a serem tributados como os sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. Tal poder-dever era, para além do mais, relativamente fácil de efetivar na situação do Requerente, uma vez que logo em 2003 o mesmo apresentara a sua declaração de rendimentos como unido de facto com B. Declaração que, sublinhe-se, foi processada e aceite pela AT.

62.         Esta interpretação sufragada pelo Tribunal Central Administrativo veio matizar a estrita necessidade de o requisito da coincidência dos domicílios fiscais se encontrar verificada, tendo em conta a ratio subjacente a esse requisito de natureza formal. O mesmo viria a ser feito pela própria AT quando se comprometeu a proceder à revisão oficiosa das liquidações de IRS efetuadas em nome dos sujeitos passivos a quem foi recusada a aplicação do regime da tributação conjunta dos rendimentos, nomeadamente dos que tenham atempadamente deduzido reclamação graciosa contra as liquidações emitidas segundo o regime de tributação separada dos rendimentos familiares, apresentando a prova da sua união de facto, isto é, a prova de que vivem em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, independentemente de terem (ou não) domicílio fiscal comum, pelo mesmo período temporal (compromisso assumido no seguimento da Recomendação n.º 13/A/2013, do Provedor de Justiça).

63.         Se o Requerente não tem razão ao alegar a que a lei consagra aqui uma presunção ilidível – não se trata de uma ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 355.º do Código Civil) – também parece que o critério formalista utilizado pela AT não se revela coerente à teleologia legal.

64.         Como o indica a AT, a ratio subjacente a este requisito tem que ver essencialmente com imperativos de combate à fraude e evasão fiscal. Tal propósito é objetivo o suficiente, permitindo uma regulação no sentido da consideração otimizada dos interesses que se encontram em jogo. Assumindo-se ser aquela a intenção do legislador, é então possível lograr, por via da interpretação, resultados que possibilitem uma solução adequada do caso concreto. Ora, no caso em apreço não se vislumbra em que medida poderia o contribuinte estar efetivamente a adotar um comportamento fraudulento ou de evasão fiscal quando, na realidade, ficou atestada a existência de uma união de facto do Requerente com B. União de facto da qual resultaram dois filhos.

65.         O critério teleológico deverá servir aqui, acima de tudo, para permitir realizar uma regulação materialmente adequada do caso, afastando resultados manifestamente absurdos. O artigo 14.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, pode assim, numa situação análoga à do Requerente, ser objeto de uma interpretação que se revele consistente com o “domínio da norma” – isto é, coerente ao alcance legislativo que subjaz ao preceito em apreço. Nesse contexto, o requisito formal do artigo 14.º, n.º 2 do Código do IRS tinha uma justificação – a prevenção da fraude a evasão fiscal –, mas uma vez prejudicada a possibilidade de surpreender tal justificação na aplicação concreta da norma devia o mesmo ser afastado pelo intérprete. Esta conclusão radica no imperativo de justiça que consiste em tratar desigualmente o que é desigual, ou seja, na necessidade de proceder a diferenciações requeridas pela valoração normativa. Foi igualmente essa, presume-se, a razão pela qual a AT assumiu o compromisso de proceder à revisão oficiosa de liquidações em que tenham antes recusado o exercício da opção consagrada no então artigo 14.º, n.º 1 do Código do IRS, mesmo nos casos em que os sujeitos passivos não tivessem um domicílio fiscal comum (compromisso que resulta Recomendação n.º 13/A/2013, do Provedor de Justiça).

66.         Aliás, este sentido interpretativo seria igualmente imposto numa interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa (“CRP”). Apesar de a CRP não dispor expressamente sobre a união de facto, a mesma estaria pelo menos compreendida no direito “ao desenvolvimento da personalidade (…) contra quaisquer formas de discriminação” que a revisão constitucional de 1997 veio reconhecer de forma explícita (artigo 26.º, n.º 1 da CRP). A união de facto é seguramente uma manifestação ou forma de exercício desse direito[3], pelo que uma legislação que a penalizasse sem qualquer justificação seria por esse motivo inconstitucional. Nestes termos, apesar de o casamento e a união de facto serem situações materialmente distintas – o primeiro pressupõe necessariamente um compromisso de vida em comum, a segunda não – uma vez estabelecido na lei o paralelismo de regimes fiscais, então não deve ser tal regime recusado a unidos de facto em virtude de não se ter verificado um requisito formal cuja ratio visa prevenir situações de fraude ou abuso que, como foi adiantado, não podem ser surpreendidas no caso do Requerente.

 

§      O exercício da opção conferida pela lei

67.         O último requisito elencado na lei tinha que ver com a opção, que tinha de ser validamente exercida, de tributação pelo regime dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

68.         O Requerente e B exerceram válida e regularmente no ano fiscal de 2008 a opção em apreço.

 

IV.        Decisão

 

69.         Termos em que, em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação da liquidação de IRS – e todas as devidas consequências legais – realizada no seguimento da recusa ao Requerente (e a B) de serem tributados enquanto sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

70.         A AT pediu, a título subsidiário, que em caso de ser julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral do mesmo deveria resultar uma mera anulação parcial da liquidação impugnada, na senda do que vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal Administrativo. Acontece, no entanto, que o Supremo Tribunal Administrativo tem em casos análogos aos do Requerente entendido que a anulação parcial da liquidação não é possível neste tipo de situações[4]. É o que invariavelmente se passa quando a anulação parcial interfere com a incidência objetiva e subjetiva dos rendimentos e taxas de imposto aplicáveis, o que implica necessariamente uma nova liquidação.

71.         Fixa-se o valor do processo em €42.061,28 (quarenta e dois mil, sessenta e um euros e vinte e oito cêntimos), atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor da liquidação de imposto em causa.

72.         Por sua vez, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida de acordo com o artigo 12.º, n.º 1 do RJAT, do artigo 4.º do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa a este último.

 

 

Lisboa, 6 de março de 2015

 

O Árbitro

 

 

Ricardo Reigada Pereira

 

 



[1]              FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume I, 4.ª Edição, 2008, Coimbra, Coimbra Editora, p. 52.

[2]              FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume I, 4.ª Edição, 2008, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 62-63.

[3]              FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume I, 4.ª Edição, 2008, Coimbra, Coimbra Editora, p. 56.

[4]              Entre outros, acórdão n.º 079/13, de 27 de novembro de 2013, acórdão n.º 01146/13 de 9 de julho de 2014 ou, a contrario, o acórdão n.º 01374/12 de 30 de abril de 2013.