Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 486/2021-T
Data da decisão: 2023-01-24  IVA  
Valor do pedido: € 506.365,94
Tema: IVA – restrições no direito à dedução – violação do princípio da equivalência entre legislação comunitária e legislação nacional.
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Sumário

O princípio da equivalência comunitário não se opõe ao artigo 21.º do Código do IVA, na sua atual redação, que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, mesmo no caso de essas despesas beneficiarem de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Vasco António Branco Guimarães e Catarina Belim (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 26/10/2021, acordam no seguinte:

 

I.          Relatório

1.          As Requerentes A..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva..., sede em ..., ..., ...-... ... e B..., S.A.com o número de identificação de pessoa coletiva ..., sede no ..., ...-... ..., em seu nome e na qualidade de sociedade que sucedeu a título universal, por fusão com efeitos a 1 de janeiro de 2019, à C..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ..., sede na ..., n.º ..., Lisboa,  D..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ..., sede no ..., ..., ... e E..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva..., sede no ..., ..., ..., apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”). 

 

2.          É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou “Requerida”.

 

A)     O pedido

3.          As Requerentes pretendem: 

(i)                a declaração de ilegalidade e anulação dos atos de indeferimento das reclamações graciosas n.º ...2021... (A..., S.A.) e n.º ...2021... (B..., S.A.), apresentadas contra as autoliquidações de IVA realizadas nos períodos de janeiro a dezembro de 2019; e, mediatamente,

(ii)              a declaração da ilegalidade parcial e correspondente anulação parcial das autoliquidações de IVA realizadas nos períodos de janeiro a dezembro de 2019, no valor total de € 506.365,94 (€ 74.529,95 na esfera da A..., S.A. e € 431.835,99 na esfera da B..., S.A.), com o consequente reembolso deste valor às Requerentes, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data dos respetivos pagamentos das autoliquidações, até ao seu integral reembolso.

 

B)     Posição das partes

 

Requerentes

4.          As Requerentes contestam as restrições na dedução de IVA das seguintes despesas incorridas entre janeiro e dezembro de 2019, refletidas nas autoliquidações de IVA realizadas nestes períodos:

Dedução de despesas em 2019 - IVA e IRC

Item

Tipo de despesas

IVA

IRC

a.

Despesas relativas à aquisição, locação e reparação de viaturas de turismo e similares (mistas), com um custo de aquisição inferior a € 25.000, e à sua gasolina

100% de indedutibilidade, cfr. artigo 21.º, n.º 1, al. b), do Código do IVA

0% indedutibilidade ainda que, dependendo das viaturas, sujeitas a tributação autónoma 

b.

Despesas com gasóleo relativas a viaturas de turismo e similares (mistas) com um custo de aquisição inferior a 
€ 25.000

50% de indedutibilidade, cfr. artigo 21.º, n.º 1, al. b), do Código do IVA

0% indedutibilidade ainda que, dependendo das viaturas, sujeitas a tributação autónoma

c. 

Despesas com deslocações e estadias do pessoal

100% de indedutibilidade, cfr. artigo 21.º, n.º 1, als. c) e d), do Código do IVA

0% indedutibilidade

 

5.          Em síntese: 

−    No entender das Requerentes existe uma desigualdade no tratamento fiscal das mesmas despesas, consoante se esteja perante IRC (indedutibilidade de 0% ou 47,62%) ou IVA (indedutibilidade de 100%, exceto no caso do gasóleo em que é 50%); 

−    Esta desigualdade de tratamento vicia de ilegalidade as autoliquidações de IVA objeto do presente pedido arbitral pelos seguintes fundamentos: 

 

Fundamentos da ilegalidade das 

autoliquidações de IVA das Requerentes

a.          O direito à dedução conferido aos operadores económicos e a todas as despesas de atividade é fundamental no sistema do IVA e não há, desde a criação deste imposto em 1977, uma lista de indedutibilidades totais ou parciais;

b.          Enquanto não é alcançado nenhum tipo de consenso a este respeito a nível comunitário, Portugal, a par com outros Estados-Membros foi autorizado, por uma cláusula standstill, a manter as exclusões de dedução que já estivessem previstas na legislação nacional na data de adesão à então Comunidade Económica Europeia, cfr. 2.º parágrafo do artigo 176.º da Sexta Diretiva IVA; 

c.          As matérias reguladas por esta cláusula de standstill não estão subtraídas dos princípios gerais do direito comunitário, tendo, nesta sede, relevo o princípio da equivalência ou paridade de tratamento entre legislação comunitária e legislação nacional, que impede um tratamento discriminatório das matérias comunitárias vis-a-vis as matérias nacionais;

d.          Este tratamento discriminatório verifica-se com respeito à indedutibilidade automática do IVA (imposto regido pelo direito comunitário) em inputs  relativos a despesas com viaturas, incluindo combustíveis, e despesas de deslocação e estadia, em contraste com o tratamento da dedução em IRC (imposto nacional) destes mesmíssimos inputs: em sede de IRC permite-se a dedução destas despesas (ainda que anulada parcialmente, no mínimo efeito, pela tributação autónoma); já em sede de IVA, com a exceção do gasóleo, não é permitida a dedução parcial;

e.          Existe desigualdade de tratamento fiscal das mesmas despesas, consoante se esteja perante o imposto nacional sobre o rendimento das pessoas colectivas que é o IRC (tratamento mais brando em face do risco abstracto de as despesas serem utilizadas também em fins alheios à operação da empresa), ou pelo contrário perante o imposto de base comunitária sobre o consumo que é o IVA (tratamento bem mais severo e radical em face do mesmo risco abstracto de as mesmíssimas despesas serem utilizadas também em fins alheios à operação da empresa).

f.           O princípio da equivalência ou da paridade de tratamento pelos Estados Membros do direito comunitário (IVA) vis-à-vis o direito nacional (IRC), não autoriza este tratamento discriminatório do direito à dedução do IVA vs o direito à dedução, com respeito às mesmíssimas despesas e encargos, em IRC[1].

 

−    Por fim, solicitam as Requerentes que, não sendo claro para o Tribunal Arbitral que o princípio da equivalência comunitário impede o tratamento discriminatório invocado, se promova o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) – à semelhança do que se decidiu no âmbito do processo arbitral n.º 513/2020-T, relativo à mesma matéria, quanto às autoliquidações de IVA das Requerentes relativas aos períodos entre janeiro e dezembro de 2018.

 

Requerida

 

6.          Na sua resposta, a Requerida defende-se por impugnação:

 

Posição da Requerida (defesa por impugnação)

a.

 

 

 

a.

(cont.)

As Requerentes não provam que as despesas indicadas foram realizadas para suportar outputs tributados, sendo necessário, para o cumprimento do ónus da prova, a junção documental[2] das faturas das despesas cujo IVA se pretende deduzir, de forma a ser apurada a sua data, o seu descritivo e o imposto suportado (artigos 42.º e 58.º da Resposta). Esta prova não pode ser suprida com recurso a prova testemunhal e não basta a junção da lista elaborada pelas Requerentes relativa às despesas, sem junção das faturas ou documentos comprovativos.

b.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

b.

(cont.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não é violado o princípio da equivalência comunitário:

−     o artigo 21.º do Código do IVA é admitido ao abrigo da cláusula standstill constante do artigo 17.º n.º 6 da Sexta Diretiva;

−     foi já validada a conformidade deste artigo com o direito europeu, pelo TJUE, no processo C-630/19[3] e ainda no processo C-837/19[4];

−     o artigo 21.º do Código do IVA não contém presunções tributárias suscetíveis de elisão mas sim normas anti abuso específicas que estipulam limitações ao exercício do direito à dedução do IVA suportado visando evitar a fraude e evasão fiscais;

−     para que se possa falar em «direitos análogos em matéria fiscal que se baseiam no direito interno e aos que se baseiam no direito da União (princípio da equivalência)» (cf. acórdão do TJUE, proferido no processo C-533/16, mencionado pelas Requerentes), teríamos, no mínimo, que estar perante regras de aplicação transversal aos vários impostos, como seja a caducidade do exercício de um direito, o que não sucede com a norma em causa, pois estamos perante impostos – IVA e IRC – de natureza distinta e cuja mecânica é igualmente distinta;

−     o IVA é um imposto harmonizado no quadro da EU que visa tributar o "valor acrescentado", em cada fase do circuito produtivo, por forma a que, no final, o valor agregado das bases tributáveis corresponda ao preço final pago pelos consumidores;

−     diferentemente, o IRC incide sobre o "lucro", realidade económica e fiscal modelada pela contabilidade e pelo legislador fiscal nacional;

−     perante este quadro diferenciador entre o IRC e o IVA, não se vislumbram razões que pugnem por um alinhamento das regras definidas para a dedutibilidade de gastos ou perdas para efeitos de apuramento do lucro tributável e as regras de dedução do IVA suportado para efeitos de determinar o IVA devido em cada período, nem como esta diferenciação pode constituir uma violação do princípio comunitário da equivalência; 

−     por fim, admitir uma presunção pela qual os sujeitos passivos possam deduzir o IVA de despesas que o legislador restringiu por motivos de fraude e evasão fiscais seria violar o artigo 103.º n.º 2 da CRP, segundo o qual os elementos essenciais do imposto devem ser fixados por lei. 

3.

Os juros indemnizatórios, nos termos do 43.º n.º 1 e 3.º da LGT, apenas devem ser contados a partir do indeferimento expresso das reclamações graciosas, i.e. 25.05.2021 para A..., S.A. e 11.05.2021 para B..., S.A.

 

7.          Por fim, a Requerida solicita a improcedência da ação ou, caso assim não se entenda, julgar o pedido arbitral parcialmente improcedente, com a consequente condenação da Requerida na reapreciação das reclamações graciosas para validação do suporte do IVA dedutível. A Requerida peticiona ainda o reenvio prejudicial para o TJUE em caso de dúvidas pelo Tribunal Arbitral, em particular sobre o princípio da equivalência comunitário.

                      

C)     Tramitação processual 

 

8.          O pedido de constituição do tribunal arbitral foi entregue em 11/08/2021. 

 

9.          As Requerentes não procederam à indicação de árbitro, tendo a designação do coletivo competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição. 

 

10.       Os árbitros designados aceitaram tempestivamente a nomeação. 

 

11.       O tribunal arbitral ficou constituído em 26/10/2021. 

 

12.       A AT apresentou resposta em que se defendeu por impugnação e apresentou o processo administrativo (“PA”). 

 

13.       Foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, com inquirição das testemunhas apresentadas pelas Requerentes, no dia 21/02/2022. Na mesma data, finda a reunião, atendendo à pendência de um processo de reenvio prejudicial no TJUE sobre a mesma questão (quanto a autoliquidações de IVA dos períodos de janeiro a dezembro de 2018) e que tem por objeto os contribuintes nesta ação, foi determinada a suspensão da instância, até decisão do processo de reenvio prejudicial TJUE n.º C-459/21.

 

14.       Na sequência de ter sido proferido o Acórdão do TJUE naquele processo C-459/21, a 9/12/2022, cessou a suspensão da instância, a 15/12/2022, tendo sido dado prazo de 10 dias para alegações simultâneas pelas Partes.

 

15.       A Requerida apresentou alegações em 11/01/2023, tendo mantido a posição jurídica, indicando o reforço da sua posição pela decisão do TJUE proferida no processo 
C-459/21.

 

II.         SANEAMENTO

16.       O Tribunal encontra-se regularmente constituído. As partes têm personalidade e  capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. 

 

17.       A procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito pelo que é admissível a cumulação de pedidos e coligação de autores (artigo 3.º, n.º 1, do RJAT). 

 

18.       O pedido arbitral foi apresentado em prazo e o processo não enferma de nulidades. 

 

III.    PROVA

 

III.1  Factos provados

19.       Com relevância para a causa, dão-se por provados os seguintes factos:

a.          As Requerentes são sociedades comerciais, sujeitos passivos de IVA, enquadrados no regime normal com periodicidade normal e com atividades que permitem a dedução de IVA nos termos gerais deste imposto.

b.          As Requerentes apresentaram as declarações de IVA relativas aos períodos de tributação de janeiro de 2019 a dezembro de 2019 que constam do pedido de pronúncia arbitral, doc.s n.ºs. 3 a 7, cujos teores se dão como reproduzidos.

c.          Nestas declarações, as Requerentes efetuaram autoliquidações de IVA nos períodos de janeiro a dezembro de 2019, nas quais aplicaram as restrições de dedução de IVA indicadas na tabela do ponto 4 desta decisão (B. Posição das Partes, Requerentes, 4)

d.          Para as mesmas despesas, as Requerentes aplicaram as deduções em IRC indicadas na tabela do ponto 4 desta decisão (B. Posição das Partes, Requerentes, 4).

e.          A Requerente A... apresentou pedido de reclamação graciosa, que deu entrada na UGC em 19/02/2021, ao qual foi atribuído o n.º de procedimento ...2021..., no qual invoca ilegalidade das autoliquidações de IVA em referência, por si efetuadas, no total de € 74.529,95, no que concerne às restrições à dedução em IVA indicadas na tabela do ponto 4 desta decisão, por violação do princípio da equivalência comunitária (tratamento desigual em sede de IVA e IRC quanto à dedutibilidade das despesas).

f.           A Requerente B..., S.A. apresentou em seu nome, e na qualidade de sociedade que sucedeu a título universal às sociedades “C...”, “D...” e “E...”, pedido de reclamação graciosa, junto da UGC, em 02/03/2021, ao qual foi atribuído o n.º de procedimento ...2020..., no qual invoca ilegalidade das autoliquidações de IVA por si efetuadas nos períodos de janeiro a dezembro de 2019,  no total de € 431.835,99 no que concerne às restrições à dedução em IVA indicadas na tabela do parágrafo 4 desta decisão, por violação do princípio da equivalência comunitário (tratamento desigual em sede de IVA e IRC quanto à dedutibilidade das despesas).

g.          As reclamações graciosas foram indeferidas, com notificações em 28/05/2021 e 16/05/2021 respetivamente.

h.          Em momento anterior ao presente processo, foi apresentado pedido de pronúncia arbitral, pelas mesmas Requerentes, sobre a mesma questão, quanto às autoliquidações de IVA dos períodos de janeiro a dezembro de 2018. 

i.           Nesse outro processo arbitral (Processo nº 513/2020-T), foi apresentado, a 8/07/2021, pedido de decisão prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, sobre a interpretação do princípio da equivalência. 

j.           O TJUE decidiu esse pedido, por Acórdão de 9/12/2022, processo C‑459/21. 

k.          Este Acórdão, processo C‑459/21, tem o seguinte teor quanto aos seus fundamentos: 

“15 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da equivalência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, mantida ao abrigo do disposto no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA, e que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, visto que essas despesas beneficiam de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional. (…)

 

20     No que se refere ao princípio da equivalência, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a observância deste princípio pressupõe que a regra nacional em causa seja aplicável indiferentemente às ações fundadas nos direitos conferidos pelo direito da União aos litigantes e às fundadas na violação do direito interno que tenham um objeto e uma causa de pedir semelhantes. Cabe ao juiz nacional, que tem um conhecimento direto das modalidades processuais aplicáveis, verificar a semelhança entre as ações em causa, na perspetiva do seu objeto, da sua causa de pedir e dos seus elementos essenciais (…)

 

21     Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que o princípio da equivalência proíbe que um Estado-Membro preveja modalidades processuais menos favoráveis para os pedidos de reembolso de um imposto fundados na violação do direito da União do que as aplicáveis a ações similares fundadas na violação do direito interno (…)

 

22     Por último, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a observância deste princípio implica um tratamento igual das ações fundadas na violação do direito nacional e das ações, semelhantes, fundadas na violação do direito da União, e não a equivalência das regras processuais nacionais aplicáveis a contenciosos de natureza diferente ou pertencentes a dois ramos de direito diferentes (…)

 

23     No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o artigo  21.° do CIVA estabelece uma exclusão, total ou parcial, na proporção de 50 %, do direito à dedução do IVA suportado a montante com determinados tipos de despesas. Esta exclusão foi mantida pelo legislador nacional ao abrigo do artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA.

 

24     As requerentes no processo principal alegam que tais despesas beneficiam de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional, a saber, o IRC. A este respeito, consideram que o legislador nacional deveria alinhar o mecanismo do direito à dedução vigente em matéria de IVA com o previsto para a dedutibilidade de despesas em sede de IRC, sob pena de violação do princípio da equivalência.

 

25  Não se pode deixar de observar que esta argumentação assenta numa compreensão errada do alcance do princípio da equivalência.

 

26     Com efeito, por um lado, o alcance do direito à dedução do IVA suportado a montante é, como o Governo português e a Comissão salientaram com razão nas suas observações escritas, uma questão de ordem material. Não se trata de uma modalidade processual de uma ação destinada a assegurar a salvaguarda de direitos conferidos às requerentes no processo principal pelo direito da União.

 

27   A este respeito, a interpretação do princípio da equivalência sugerida pelas requerentes no processo principal teria por efeito desvirtuar o alcance deste princípio. Com efeito, se tal interpretação fosse acolhida, haveria o risco de o âmbito de aplicação do referido princípio ser alargado a qualquer questão de ordem material como, em matéria fiscal, a fixação da taxa de IVA. Ora, essa extensão iria além da finalidade prosseguida pelo mesmo princípio, a saber, o enquadramento da autonomia processual dos Estados‑Membros.

 

28  Por outro lado, contrariamente ao que defendem, em substância, as requerentes no processo principal, o mecanismo do direito à dedução do IVA e o regime de dedutibilidade de despesas em sede de um imposto direto, como o IRC, não são comparáveis para efeitos da aplicação do princípio da equivalência.

 

29     Com efeito, um imposto indireto como o IVA e um imposto direto como o IRC revestem uma natureza fundamentalmente diferente.

 

30    Além disso, o mecanismo de dedutibilidade, nestas duas formas de imposto, não é comparável e não tem um objeto e uma causa de pedir semelhantes na aceção da jurisprudência recordada no n.°20 do presente despacho. Com efeito, embora seja certo que o mecanismo instituído pelo artigo  168.° da Diretiva IVA assenta na dedução do imposto suportado a montante com as despesas referidas nesta disposição, a dedutibilidade em sede de imposto direto pressupõe a dedução dessas despesas, enquanto tais, para efeitos do cálculo do lucro tributável.

 

31    Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o princípio da equivalência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional, mantida ao abrigo do disposto no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA, e que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, mesmo no caso de essas despesas beneficiarem de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional.”

 

l.           Este Acórdão, processo C‑459/21, tem o seguinte teor quanto à sua decisão:

 

“Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

O princípio da equivalência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional, mantida ao abrigo do disposto no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, e que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, mesmo no caso de essas despesas beneficiarem de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional.

 

20.       Em 11/08/2021, as Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

III.2   Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

21.       Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

22.       Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos e da prova testemunhal e foram selecionados os factos que importam para a decisão (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

 

IV.      O DIREITO

 

IV.1   Ordem de conhecimento de vícios

23.       De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, «na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação» e deverá dar-se prioridade aos «vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos». 

 

24.       No caso em apreço, afigura-se que o vício de ilegalidade por violação do princípio da equivalência comunitário deverá ser apreciado prioritariamente, por ser a questão de direito principal do pedido das Requerentes, prejudicial às demais questões.

 

IV.2 Análise da violação do princípio da equivalência comunitário

25.       Como resulta do ponto B., a questão de legalidade que as Requerentes suscitam no presente processo é a da violação do princípio da equivalência quanto a restrições ao direito a dedução de IVA previstas no artigo 21.º do Código do IVA, designadamente as relativas a despesas com viaturas, despesas com gasóleo, despesas de representação e despesas de deslocação e estadia. 

 

26.       No entender das Requerentes existe desigualdade de tratamento fiscal destas despesas, consoante se esteja perante o imposto nacional sobre o rendimento das pessoas colectivas que é o IRC (tratamento mais brando em face do risco abstracto de as despesas serem utilizadas também em fins alheios à operação da empresa), ou perante o imposto de base comunitária sobre o consumo que é o IVA (tratamento bem mais severo e radical em face do mesmo risco abstracto de as mesmíssimas despesas serem utilizadas também em fins alheios à operação da empresa).

 

27.       Apontam as Requerentes que no IRC existe indedutibilidade de 0% ou 47,62% (efeito mínimo da tributação autónoma) e no IVA a indedutibilidade é de 100%, exceto no caso do gasóleo em que é 50%, e que esta desigualdade não é admitida pelo princípio da equivalência ou da paridade de tratamento pelos Estados Membros do direito comunitário (IVA) vis-à-vis o direito nacional (IRC) para as mesmíssimas despesas.

 

28.       Ora não têm razão as Requerentes, pelos fundamentos claros elencadas pelo TJUE no Acórdão do processo n.º- C‑459/21 já aqui transcritas (ponto III.1 Factos provados, k), em particular pontos 20, 24 a 31 do Acórdão.

 

29.       Tendo assim em conta que: 

a.           o TJUE decidiu que o princípio da equivalência não se opõe ao artigo 21.º do Código do IVA, na sua atual redação, “que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, mesmo no caso de essas despesas beneficiarem de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional.”;

b.          o TJUE é o órgão jurisdicional competente para a interpretação do direito da União, de forma a garantir a conformidade da legislação nacional com este direito (artigo 19.º do Tratado da União Europeia (TUE), artigos 251.º a 281.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), artigo 136.º do Tratado Euratom e Protocolo n.º 3 anexo aos Tratados relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia);

c.          os fundamentos e decisão do Acórdão proferido no processo n.º C‑459/21 aplicam-se integralmente ao presente processo, que versa sobre a mesma questão de direito, apresentada pelas mesmas Requerentes, mas para os períodos de janeiro a dezembro de 2019 (no processo n.º C-459/21 estão em causa as autoliquidações de IVA de janeiro a dezembro de 2018); 

d.          não existem verificações adicionais a efetuar por este Tribunal na medida em que a questão central apreciada é de direito;

conclui-se assim que as autoliquidações de IVA efetuadas pelas Requerentes quanto aos períodos de janeiro a dezembro de 2019, quando aplicam as restrições ao direito a dedução de IVA previstas no artigo 21.º do Código do IVA quanto a despesas com viaturas, despesas com gasóleo, despesas de representação e despesas de deslocação e estadia, não violam o princípio da equivalência comunitário.

30.       Pelo que é improcedente o pedido de anulação do indeferimento das Reclamações Graciosas e (mediamente) improcedente o pedido de anulação parcial das respetivas autoliquidações, por não se verificar o vício de ilegalidade – violação do princípio da equivalência comunitário - invocado pelas Requerentes.

 

IV.3  Questões de conhecimento prejudicado 

31.       Sendo de julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral por não ser verificar a ilegalidade que as Requerentes suscitam no presente processo, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

32.       Mostra-se assim inútil proceder à apreciação das questões suscitadas relativas à prova das despesas e seu quantum, ficando, também, prejudicada a apreciação do pedido de juros indemnizatórios.

 

V. DECISÃO ARBITRAL

     De harmonia com o exposto este Tribunal Arbitral decide:

a.     julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação dos atos de indeferimento das reclamações graciosas n.º ...2021... (A..., S.A.) e n.º ...2021... (B..., S.A.), apresentadas contra as autoliquidações de IVA realizadas nos períodos de janeiro a dezembro de 2019; atos que se mantêm na ordem jurídica; e em consequência,

b.     julgar improcedente os pedidos de reembolso da quantia de 
€ 506.365,94 (€ 74.529,95 na esfera da A..., S.A. e € 431.835,99 na esfera da B..., S.A.), e de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esta quantia;

c.     condenar as Requerentes nas custas do processo.

 

VALOR: € 506.365,94

 

CUSTAS 

Fixa-se ao processo o valor de taxa de arbitragem de € 7.956,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pelas Requerentes, cabendo, deste valor, € 1.171,12 à A..., S.A. e € 6.784,88 à  B..., S.A., na medida em que, quando há coligação de autores, a responsabilidade por custas é determinada individualmente, nos termos gerais fixados no n.º 2 do art.º 527.º do CPC (n.º 4 do art.º 528.º do CPC), e nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 24 de janeiro de 2023

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

(árbitro presidente)

 

Vasco António Branco Guimarães

(árbitro vogal)

 

Catarina Belim 

(árbitro vogal / relatora)

 

 

 



[1] As Requerentes citam, na sua fundamentação quanto à aplicação deste princípio, os acórdãos do TJUE: 

C-126/97 (par. 37), Processo n.º C-147/01 (par. 3): “O princípio da equivalência opõe-se a uma regulamentação nacional que preveja vias processuais menos favoráveis para os pedidos de reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito comunitário do que as aplicáveis a recursos análogos baseados em certas disposições do direito interno”, Processo n.º C-74/14 (par. 32), Processo n.º C-161/15, (par. 30), Processo n.º C-533/16, (par.s 46 e 47): “O Tribunal de Justiça já decidiu que não se pode considerar que um prazo de preclusão cujo termo tem por consequência punir o contribuinte não suficientemente diligente que não reclamou a dedução do IVA a montante, fazendo-lhe perder o direito a essa dedução, é incompatível com o regime fixado pela Diretiva 2006/112, desde que, por um lado, se aplique de igual modo aos direitos análogos em matéria fiscal que se baseiam no direito interno e aos que se baseiam no direito da União (princípio da equivalência), e Processo n.º C-81/17, (par. 38).

[2] A Requerida cita, na sua fundamentação, o acórdão do TCA Sul, de 16-12-2015 (processo n.º 07027/13), acórdão do TCA Norte de 2804-2016 (processo n.º 00082/03 – Coimbra) e acórdão do STA, de (processo n.º 0359/16.8BELLE 042/18).

[3] A Requerida transcreve os seguintes pontos deste Acórdão C-630/19: «37 À semelhança do que o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos (C-225/18, EU:C:2019:349), no processo principal, a categoria das despesas relativas à alimentação prevista no artigo 21.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea d), do Código do IVA parece estar definida de forma suficientemente precisa (…).».

[4] A Requerida transcreve os seguintes pontos deste Acórdão C-837/19: «42 – Nestas condições, há que considerar que categorias de despesas como as previstas no artigo 21.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código do IVA (…) estão definidas de maneira suficientemente precisa tendo em conta as exigências impostas pela jurisprudência (…).

43 – A circunstância, mencionada no órgão jurisdicional de reenvio, de que essas despesas possam ser efetuadas para a aquisição de bens e de serviços utilizados para os fins das operações tributadas do sujeito passivo não afeta o alcance da cláusula de standstill prevista no artigo 17.º n.º 6, segundo parágrafo, da Sexta Diretiva e no artigo 176.º, segundo parágrafo, da Diretiva IVA. Com efeito, atendendo à letra e à génese desta cláusula, esta autoriza os Estados-Membros a excluir do direito a dedução do IVA categorias de despesas que têm um caráter estritamente profissional, quando estas últimas estejam definidas de forma suficientemente precisa, na aceção da jurisprudência referida no n.º 39 do presente despacho.”».