Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 126/2022-T
Data da decisão: 2022-09-26  IRC  
Valor do pedido: € 1.025.894,57
Tema: IRC – Efeitos do encerramento da atividade de empresa insolvente.
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SUMÁRIO

 

  1. A dissolução da sociedade constitui uma modificação da sua situação jurídica, que se caracteriza pela sua entrada em liquidação, e não uma extinção, a qual apenas ocorre no momento do registo do encerramento da liquidação.
  2. A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, por conseguinte, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas.
  3. O encerramento de estabelecimento e, como tal, da atividade económica regular, não implica a não ocorrência de factos com relevância em termos de incidência tributária.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professor Doutor Nuno Cunha Rodrigues (árbitro Presidente), Ana Rita do Livramento Chacim e Ana Teixeira de Sousa (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 11 de maio de 2022, acordam no seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO
  1. Identificação das Partes

Requerente: A..., S.A. EM LIQUIDAÇÃO, com o número de identificação fiscal ... e com sede na Rua..., n.º...–..., ...-... Lisboa, doravante designado de “Requerente” ou “Sujeito Passivo”.

Requerida: Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada de “Requerida” ou “AT”.

A Requerente, apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 03.03.2022, e em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do
Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei
n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a Autoridade Tributária (AT).

A Requerente, não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico, designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram no prazo legalmente estipulado a aceitação dos respetivos encargos.

Em 22.04.2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 11.05.2022, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer.

Por despacho de 27.06.2022, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada, determinando-se o prosseguimento do processo mediante a notificação das partes para apresentarem alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias.

A Requerente apresentou as suas alegações a 11.07.2022 e a Requerida AT em 12.09.2022, ambas em cumprimento do prazo estipulado para o efeito.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

  1. Pedido

A ora Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), peticionando a anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2021..., do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2021..., e a correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... (compensação n.º 2021...), os quais originaram um montante a pagar de €1.025.894,57, relativamente ao período de tributação de 2017, por serem manifestamente ilegais, com as necessárias consequências legais, nomeadamente o pagamento de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 61.º, n.º 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

  1. Causa de Pedir

A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, com vista à declaração de anulação do ato de liquidação, e em síntese, o seguinte:

É uma sociedade anónima, que tem como objeto social a “Compra e venda de bens imobiliários”.

Em cumprimento da ordem de serviço n.º OI2019..., foi sujeita a um procedimento de inspeção interna, tendo sido apuradas, por referência ao período de tributação de 2017, correções à matéria tributável no valor de € 3.737.870,40.

A sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida em 10 de novembro de 2016, no âmbito do processo n.º .../16...T8LS.

Refere ainda que, em 5 de janeiro de 2017, foi comunicado à Administração Tributária o encerramento da respetiva atividade.

De acordo com a descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas, está em causa o alegado apuramento de “mais-valias imobiliárias” em resultado da transmissão dos seguintes bens imóveis:

Quadro 1 – bens alienados

Tipo de Prédio

Freguesia

Artigo

Secção

Data da escritura

Valor da escritura

R

...

...

AR9AR10

18-08-2017

€ 60.697.900,00

R

...

...

D7-D16

R

...

...

D6-D16

Total

€ 60.697.900,00

(quadro resumo apresentado pela Requerente, conforme artigo 10.º do PPA)

O valor total do ato ou contrato foi de € 60.697.900,00, tendo sido celebrada a respetiva escritura pública no dia 18 de agosto de 2017, entre a sociedade Requerente, na qualidade de parte vendedora, representada por B..., administradora de insolvência da sociedade Requerente nos presentes autos, e o C..., S.A., na qualidade de parte compradora.

 

 

Refere que os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) consideraram que a diferença entre o valor de venda dos referidos prédios (€ 60.697.900) e o valor de aquisição (€ 56.500.200), acrescido do Imposto do Selo (€ 452.031,60), no valor de € 3.745.668,40 deveria ser acrescido à matéria coletável, entendimento com o qual não concorda.

Salienta que, de acordo com o artigo 65.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”), sob a epígrafe “Contas anuais do devedor”, “Com a deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da atividade.”

E que, de acordo com o disposto no artigo 156.º, n.º 2, do CIRE, sob a epígrafe “Deliberações da assembleia de credores de apreciação do relatório”, “A assembleia de credores de apreciação do relatório delibera sobre o encerramento ou manutenção em actividade do estabelecimento ou estabelecimentos compreendidos na massa insolvente.”.

Defende assim que a transmissão dos referidos prédios ocorreu em 18 de agosto de 2017, ou seja, depois da declaração da insolvência da Requerente através de sentença datada de 10 de novembro de 2016.

Foi proferido despacho de encerramento da atividade da Requerente em 5 de janeiro de 2017. Nestes termos, entende que a atividade da sociedade foi encerrada nesta data (5 de janeiro de 2017) e não em 31 de dezembro de 2019, conforme defendido pela AT.

O que significa que a transmissão dos referidos prédios ocorreu em data posterior à declaração de insolvência da sociedade Requerente e, assim, posteriormente ao encerramento de atividade, ocorrido em 5 de janeiro de 2017. Consequentemente, entende a Requerente que nessa data se extinguiram todas as suas obrigações declarativas e fiscais.

 

 

A Requerente considera ainda que não colhe o argumento de que o Juízo de Comércio de Lisboa—Juiz..., em que corre termos o processo de insolvência da sociedade Requerente, não comunicou o encerramento da atividade à AT. É que, para a Requerente, o dever de comunicação do encerramento de atividade por parte do Tribunal decorre, expressamente, do artigo 65.º, n.º 3, in fine do CIRE quando se menciona que a deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento deve ser comunicada “oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da atividade.

Defende ainda que, contrariamente ao que concluíram os SIT, não obstante ter sido celebrado um contrato de compra e venda entre a Requerente e o C..., S.A. não estamos perante a transmissão de ativo circulante decorrente do normal exercício da atividade da Requerente, mas antes perante uma dação em cumprimento da massa insolvente, que não exercia qualquer atividade comercial ou industrial depois de declarada insolvente, e cuja única atividade consiste liquidar o património e pagar, na medida do possível, os credores.

A transmissão dos 3 prédios identificados corresponde assim a uma dação em cumprimento da massa insolvente ao C..., S.A., entidade que detinha um crédito sobre a Requerente cujo valor total ascendia a € 156.339.832,00 e beneficiava já de hipotecas e penhoras que recaiam sobre os referidos prédios.

O valor resultante da dação em cumprimento nunca poderia estar sujeito a IRC por inexistência de facto tributário, uma vez que estamos perante a mera operação de liquidação do património por parte da massa insolvente tendo em vista a satisfação dos créditos dos credores, neste caso, do C..., S.A.

Remete assim para o disposto no art.º 268.º, n.º 1 do CIRE (na redação em vigor à data dos factos – i.e., na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março), quando determina o seguinte: “As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor”.

Nestes termos, entende que resulta amplamente provado que a transmissão dos bens imóveis em crise foi efetuada no âmbito de uma dação em pagamento, ocorrida em 18 de agosto de 2017, ao C... (credor da Requerente), pelo que o ganho (mais-valia) realizado sempre estaria isento de IRC.

Conclui a Requerente peticionando a anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2021..., do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2021..., e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2021... (compensação n.º 2021...), com as necessárias consequências legais, nomeadamente juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º e 100.º da LGT e artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

  1. Da resposta da Requerida

A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese, alegou o seguinte:

Começa por considerar que, para efeitos de IRC, a Requerente esteve enquadrada no regime geral de tributação até 31.12.2019, data da cessação oficiosa.

Acrescenta que a sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida em 10 de novembro de 2016.

Mais refere que, através de consulta à base de dados do sistema informático da AT, às aplicações do IMI, nomeadamente consulta de património, ao ano de 2017, verificaram os SIT que, em 18.08.2017, foram alienados 3 imóveis rústicos, no âmbito do respetivo processo de insolvência, que eram pertença da massa insolvente.

O valor global de alienação dos referidos imóveis (já aqui oportunamente identificados) correspondeu a € 60.697.900,00, considerando as seguintes correções técnicas: (i) o montante de € 60.697.900,00 deveria ter sido acrescido no Quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC (campo 752), e (ii) deduzido na mesma sede (Campo 775 - Quadro 07) o valor de aquisição (€ 56.952.231,60). O lucro tributável sofria assim uma correção no valor de € 3.745.668,40 face à liquidação oficiosa para esse mesmo período, no valor de € 7.798,00.

Refere ainda a AT que a Requerente não procedeu à entrega das declarações de rendimentos modelo 22, desde o ano de 2014 (inclusive) e a última IES entregue data de 2010.

Pela consulta atual (à data da Resposta da Requerida) ao Sistema de Gestão e Registo dos Contribuintes, verificou-se que a cessação da atividade da Requerente se reporta a 05.01.2017, data da comunicação efetuada pelo Tribunal à AT, em cumprimento do disposto no artigo 65.º, n.º 3 do CIRE.

Salienta, no entanto, a Requerida que, em momento anterior à referida comunicação, a data de cessação oficiosa averbada no Sistema de Gestão e Registo dos Contribuintes era 31.12.2019, face à verificação do não exercício da atividade.

Deste modo, entende a AT que, para efeitos de IRC, a atividade da Requerente foi cessada oficiosamente em 31.12.2019.

Refere ainda que foram efetuadas liquidações oficiosas ao ano de 2014 e seguintes, tendo sido ainda efetuada uma liquidação oficiosa ao ano de 2017 de que resultou um lucro tributável de € 7.798,00.

Defende a Requerida que a declaração de insolvência opera a dissolução imediata da sociedade (alínea e) do art.º 141.º do Código da Sociedades Comerciais (CSC)), embora se mantenha a personalidade jurídica (art.º 146° do CSC).

A esta luz, a dissolução da sociedade é uma modificação da situação jurídica que se caracteriza pela entrada em liquidação e não de uma extinção, conservando esta a personalidade jurídica (artigo 146.º n.º 2 do CSC) até que seja registado o encerramento da liquidação (artigo 160.º n.º 2 do CSC).

Deste modo, a personalidade tributária da sociedade não é afetada com a declaração de insolvência, nos termos do disposto pelo art.º 15.º da LGT. Tal como consignado no art.º 8.º,
n.º 5, alínea a) do Código do IRC, na esteira do disposto no artigo 160.º, n.º 2 do CSC, a cessação da atividade ocorre apenas na data do encerramento da liquidação. Consummatum est, então sim, findará a personalidade tributária em sede de imposto.

 

 

Recorda ainda que, à data dos factos, o art.º 268.º do CIRE tinha a seguinte redação: “As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para a determinação da matéria colectável do devedor.”

Conclui a Requerida que o regime de isenção previsto no artigo 268.º do CIRE se aplica às situações de dação em cumprimento ou da cessão de bens aos credores, e não da venda. Importa, assim, observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva.

Sucede que o art.º 287.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, veio, entretanto, alterar a redação do artigo 268.º, n.º 1 do CIRE, passando a contemplar, na isenção aí prevista (de IRS e IRC), os rendimentos e ganhos apurados na venda de bens e direitos do devedor, em processo de insolvência que prossiga para liquidação.

Nestes termos, defende a AT que, até à entrada em vigor da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro (que não tem eficácia retroativa nem é uma lei interpretativa), a compra e venda estava sujeita a imposto.

Refere ainda. em seu favor, a Circular n.º 10/2015 de 9 de setembro de 2015, do Gabinete do Diretor Geral, entendendo que, nos casos em que é deliberado o encerramento do(s) estabelecimento(s) compreendido(s) na massa insolvente e comunicado tal facto à AT pelo tribunal, em conformidade com o disposto no art.º 65.º, n.º 3 do CIRE, é assumida a cessação oficiosa, prevista no artigo 8.°, n.º 6 do Código IRC, ficando, a partir desta data, as pessoas coletivas insolventes apenas obrigadas a submeter, por transmissão eletrónica de dados, a declaração periódica de rendimentos e ao cumprimento das obrigações relativas à liquidação e pagamento do imposto, quando se verifique a existência de qualquer facto tributário sujeito a IRC no respetivo período, atendendo ao que dispõe o art.º 8.º, n.º 7 do Código do IRC.

Serão assim aplicáveis, com as adaptações necessárias, as normas que regem as sociedades não dissolvidas, a uma sociedade que se encontre em liquidação.

Em síntese, não tendo ocorrido o encerramento da liquidação, nos termos do art.º 8º, 5, a) do Código do IRC e do art.º 160.º, n.º 2 do CSC, e verificando-se a existência de facto tributário sujeito a IRC no respetivo período, a Requerente encontra-se obrigada a submeter, por transmissão eletrónica de dados, nos termos do art.º 120.°do Código do IRC, a declaração periódica de rendimentos a que se refere o art.º 117.º, n.º 1, alínea b) do mesmo Código.

Relativamente ao argumento da Requerente de que não se tratou de um ato de venda dos imóveis, mas sim, em substância de uma dação em cumprimento, a Requeria manifesta a sua discordância. Da análise da escritura pública junta aos autos, verifica-se que a Requerente recebeu um preço discriminado na própria escritura, como contrapartida da alienação dos bens.

Por último, defende, pelo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser considerado improcedente.

 

  1. Em resposta ao despacho de 27.06.2022 proferido pelo CAAD, a Requerente veio apresentar as suas alegações escritas no prazo concedido para o efeito, salientando que:

“Sustentam os SIT no Relatório de Inspeção Tributária que a Requerente procedeu, em 18 de agosto de 2017, à alienação de 3 imóveis rústicos, pelo valor total de € 60.697.900,00, os quais haviam sido adquiridos pelo valor de € 56.500.200,00, tendo pago imposto de selo no valor de € 452.031,60 pelo que o valor a considerar como gasto, nos termos do artº 23º n.º 1 do Código do IRC, é de € 56.952.231,60. Uma vez que já tinha sido efetuada uma liquidação oficiosa ao ano de 2017 de que resultou um lucro tributável de € 7.798,00, os Serviços de Inspeção Tributária apuraram o lucro tributável de € 3.745.668,40 de 2017.”

Sendo que, tendo em consideração que já tinha sido efetuada uma liquidação oficiosa relativamente ao ano de 2017, no valor de € 7.798, a correção a considerar é de € 3.737.870,40, o valor da correção passou para € 3.737.870,40 [€ 3.745.668,40 - € 7.798,00 = € 3.737.870,40].

Conforme referido e demonstrado, em 5 de janeiro de 2017, foi proferido despacho de encerramento da atividade da Requerente, tendo sido determinada a comunicação à administração fiscal o encerramento da atividade da insolvente, nos termos do preceituado no art.º 65.º, n.º 3, do CIRE.

Não restam quaisquer dúvidas que a atividade da Requerente foi encerrada em 5 de janeiro de 2017 (e não em 31 de dezembro de 2019), o que significa que a transmissão dos referidos prédios ocorreu em data posterior à declaração de insolvência da sociedade Requerente e, bem assim, posteriormente ao encerramento de atividade, ocorrido em 5 de janeiro de 2017.

Contra o exposto não colhe o argumento de que o Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz ..., em que corre termos o processo de insolvência da sociedade Requerente, não comunicou o encerramento da atividade à Administração Tributária, uma vez que o dever de comunicação do encerramento de atividade por parte do Tribunal decorre, expressamente, do artigo 65.º,
n.º 3, in fine, do CIRE.

Mas ainda que assim não se entenda, contrariamente ao que sustentam os SIT não estamos perante a transmissão de ativo circulante decorrente do normal exercício da atividade da Requerente, mas antes perante uma dação em cumprimento da massa insolvente, que não exercia qualquer atividade comercial ou industrial depois de declarada insolvente, e cuja única atividade consiste liquidar o património e pagar, na medida do possível, os credores.

Como se pode verificar pela análise da escritura de compra e venda celebrado em 18 de agosto de 2017, os referidos prédios tinham registos de hipotecas voluntárias a favor do então Banco D..., S.A. (atual C..., S.A.), registo de penhoras a favor do C..., S.A. e registo de insolvência, o que significa que a transmissão daqueles três prédios não se insere na prossecução da atividade da Requerente, mas antes numa dação em cumprimento da massa insolvente ao  C..., S.A., entidade que detinha um crédito sobre a Requerente cujo valor total ascendia a € 156.339.832,00 e beneficiava já de hipotecas e penhoras que recaiam sobre os referidos prédios.

Reafirma a Requerente que, no caso vertente, o valor resultante da dação em cumprimento nunca poderia estar sujeito a IRC por inexistência de facto tributário, uma vez que estamos perante a mera operação de liquidação do património por parte da massa insolvente tendo em vista a satisfação dos créditos dos credores, neste caso, do C..., S.A. .

A Requerente procedeu ao pagamento do imposto apurado em 7 de dezembro de 2021 (€ 1.025.894,57), sem prejuízo de dever ser determinada a sua restituição, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos nos artigos 43.º e 100.º da LGT e artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

  1. A Requerida veio também apresentar alegações escritas no prazo concedido para o efeito, salientando que:

Dá como reproduzido tudo quanto consta da Resposta, designadamente no que se refere à matéria de facto, reiterando, os principais aspetos de direito, ao que junta jurisprudência e doutrina relevante sobre o entendimento exposto.

Nestes termos, salienta que a dissolução da sociedade é uma modificação da sua situação jurídica que se caracteriza pela sua entrada em liquidação e não de uma extinção, conservando esta a sua personalidade jurídica (artigo 146.º, n.º 2 do CSC) até que seja registado o encerramento da liquidação (artigo 160.º, n.º 2 do CSC).

Deste modo, a personalidade tributária da sociedade não é afetada com a declaração de insolvência, nos termos do art.º 15.º da LGT. Tal como consignado no art.º 8.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRC, na esteira do disposto no artigo 160.º, n.º 2, do CSC, a cessação da atividade ocorre apenas na data do encerramento da liquidação. Consummatum est, então sim, findará a personalidade tributária em sede de imposto.

A redação do artigo 268.º, n.º 1 do CIRE consagrava, à data, a isenção de tributação em IRC das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou da cessão de bens aos credores, e não da venda.

Como resulta da letra da lei apenas estão abrangidas pela isenção de IRS, as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do insolvente e da cessão desses bens aos credores e já não as resultantes da venda desses bens – figuras jurídicas inequivocamente distintas e tratadas autonomamente no Código Civil, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.

Salienta, contudo, que, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no artigo 268.º, n.º 1 do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Refere que, nada permitia concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência direta de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.

Acrescenta ainda que, o legislador, na nova redação dada ao art.º 268.º, n.º 1 do CIRE, ao isentar de IRC tais rendimentos, assumiu que os mesmos anteriormente estavam sujeitos às regras de incidência. Em conclusão, até à entrada em vigor da Lei nº. 114/2017, de 29 de dezembro (que não tem eficácia retroativa nem é uma lei interpretativa), a compra e venda estava sujeita a imposto.

Neste sentido, e assumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a extinção das obrigações declarativas e fiscais que o art.º 65.º, n.º 3 do CIRE faz decorrer da deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento terá de se coadunar com a solução prevista no art.º 268º, n.º 1 do CIRE, que pressupõe a possibilidade de existência de atividade económica, ao longo do processo de insolvência e até ao seu termo.

Defende assim que, ainda que a massa insolvente contemple um estabelecimento inativo ou não explorado, tal não importa, forçosamente, a impossibilidade de ocorrência de factos tributários posteriores, os quais não podem ser excluídos da tributação.

Da análise da escritura pública junta aos autos, reafirma o facto de a Requerente ter recebido um preço discriminado na própria escritura, como contrapartida da alienação dos bens, donde conclui pela ocorrência de uma “compra e venda”.

 

 

Em conclusão, a propugnar-se por um entendimento da norma no sentido de considerar que estão isentas de IRC, à semelhança das dações em cumprimento, também as situações de mais-valias geradas com a compra e venda de imóveis está a violar-se o princípio da legalidade.

Efetivamente sendo certo que tal princípio, na vertente de reserva de lei também tem como corolário o princípio da tipicidade deve o aplicador da lei respeitar os limites da interpretação jurídica decorrentes desse princípio da tipicidade, do exclusivismo que o concretiza e do princípio da suficiência que impede a utilização da analogia.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído, é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1 e artigo 5.º, nºs. 1 e 3 ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, nº 2, ambos do RJAT.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

Não foi suscitada matéria de exceção.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. Matéria de facto

  1. Factos provados

Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, cumpre enunciar os factos relevantes que se julgam provados nos documentos juntos por estas ao presente Processo:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima, constituída em 2004 e que tem por objeto social a “Compra e venda de bens imobiliários”.
  2. A Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção interna (Ordem de serviço
    n.º OI2019...), tendo sido apuradas, por referência ao ano de 2017, correções à matéria tributável no valor de € 3.737.870,40.
  3. A sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida em 10 de novembro de 2016 no âmbito do processo n.º .../16...T8LS, cuja decisão a seguir se transcreve:

 

  1. Em 18 de agosto de 2017 foi celebrada a escritura de compra e venda entre a sociedade Requerente, na qualidade de parte vendedora, representada por B..., administradora de insolvência da sociedade Requerente nos presentes autos e o C..., S.A., na qualidade de parte compradora, dos seguintes bens imóveis

 
(cf. consulta às aplicações da AT e Título de compra e venda).

 

 

  1. Nos termos da ata da assembleia de credores, de entre os credores figuram:

-C..., S.A. - reclamação de um crédito de € 156.339.832,00;

- E..., S.A. - reclamação de um crédito de € 62.903.711,22;

- Fazenda Nacional - reclamação de um crédito de € 6.830,44;

- F...– reclamação de um crédito no valor de € 31.901.427,56.

  1. A Requerente logrou também demonstrar a comunicação de encerramento da atividade à AT, encontrando-se em liquidação.

 

 

 

  1. A Requerente procedeu ao pagamento do montante apurado na demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... (compensação n.º 2021...), correspondente a €1.025.894,57.

 

  1. O administrador da insolvência foi notificado através do ofício com carta registada de 13.04.2021-03-2019 para proceder à submissão eletrónica da declaração de rendimentos de IRC Modelo 22 referente ao ano de 2017:

 

16. O administrador da insolvência não submeteu as declarações, tendo enviado em 15-04-2019 uma carta fundamentando a sua decisão, e informando que requerera do Tribunal que confirmasse o envio da notificação para a cessação da actividade, nos termos do art. 65º, 3 do CIRE, o que, como se referiu, sucedera em 31-05-2016.

  1. A Requerente exerceu o seu direito de audição perante o projeto de RIT.

 

  1. Factos não provados e fundamentação e fixação da matéria de facto

Com relevo para a decisão não existem factos não provados.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

III. 2. Matéria de Direito

Atenta a posição das partes, assente nos argumentos apresentados, a questão central que importa analisar é a de saber se a transmissão, pela Requerente, dos imóveis aqui identificados releva para efeitos de incidência em sede de IRC, com referência ao período de tributação de 2017, ano em que a Requerente era já uma sociedade declarada insolvente por sentença judicial.

Neste âmbito, importa atender aos efeitos da determinação da situação de insolvência e respetiva obrigatoriedade de cumprimento de obrigações fiscais.

 

 

  1. Determinação da situação de insolvência e cumprimento de obrigações fiscais

A análise da matéria em discussão compreende o enquadramento da figura da insolvência nas sociedades comerciais, considerando alguns conceitos específicos. Deste modo, importa saber se a declaração de insolvência e a deliberação de encerramento do estabelecimento da entidade insolvente podem significar a cessação da atividade operacional que aquela exercia, e se tal determina a suscetibilidade de obtenção de rendimentos pela “massa insolvente”, e a respetiva sujeição a tributação. Em consequência, se a Requerente se encontrava numa situação que permitisse a formação de mais-valias imobiliárias para efeitos de tributação em sede de IRC.

O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”), aprovado Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, na sua redação atual, define o processo de insolvência, como “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” (cf. art.º 1.º, n.º1).

A insolvência é o pressuposto ou fundamento objetivo do processo de insolvência, salientando-se que o respetivo estado de insolvência é confirmado pelo juiz, através da sentença declaratória da insolvência, nos termos do art.º 36.º do CIRE.

Em concreto, o presente litígio reclama a discussão sobre os efeitos da referida sentença e a continuidade do cumprimento das obrigações fiscais, expondo os entendimentos divergentes sobre o assunto, na ausência de um regime fiscal especial para as empresas insolventes.

Para o efeito, releva considerar, em particular, o disposto no artigo 65.º, n.º 3 do CIRE: “Com a deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da atividade”; conjuntamente com o art.º 156.º, n.º 2 (“A assembleia de credores de apreciação do relatório delibera sobre o encerramento ou manutenção em actividade do estabelecimento ou estabelecimentos compreendidos na massa insolvente”).

De igual modo, importa salientar ao que se refere efetivamente o conceito de “obrigação fiscal”, enquanto núcleo da relação jurídico-tributária assente entre os contribuintes e o Estado.

Aqui remete-se para as palavras de Saldanha Sanches[1] quando explica que “Encontramos assim incluídos na relação jurídica do imposto a totalidade do complexo de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal, mesmo que não se traduzam em quaisquer deveres de prestação pecuniária: nomeadamente os deveres de cooperação do sujeito passivo da relação tributária. Quer os deveres que incluem a obrigação de declarar os rendimentos ou elaborar um registo de todos os movimentos patrimoniais de uma empresa, quer as simples sujeições que se podem traduzir no dever de patentear às inspecções administrativas a escrita de uma sociedade comercial. (…) Em todos estes casos encontramos não apenas o dever tradicional de prestações pecuniárias – o dever de cumprimento da dívida do imposto - mas um conjunto de deveres que existindo por causa da dívida do imposto têm uma natureza obrigacional, dada a diferente natureza da prestação.”

Pode assim entender-se que a obrigação fiscal contempla a prestação principal, bem como outras obrigações acessórias que se destinam a possibilitar a perceção da dívida de imposto, ambas integrando a relação jurídico-tributária.

No que concerne à continuidade de cumprimento de obrigações fiscais após a declaração da insolvência, é manifesta a diferente perspetiva de entendimento, a qual seria exposta pelas partes em questão.

Por um lado, com base no disposto no art.º 3.º, n.º 1 do Código do IRC, o presente imposto tributa o lucro das sociedades, pelo que após a declaração de insolvência, a entidade insolvente deixa de consubstanciar uma estrutura económica que visa alcançar o lucro.

 

 

A finalidade do processo de insolvência é orientada para a satisfação dos credores e não para a obtenção de lucro, pelo que, após a referida declaração, não se realizam operações económicas de carácter empresarial, no contexto normal de desenvolvimento de uma atividade económica. Este entendimento decorre da interpretação a contrario do art.º 3.º, n.º 4 do Código do IRC, o qual estabelece que “Para efeitos do disposto neste Código, são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as actividades que consistam na realização de operações económicas de carácter empresarial, incluindo as prestações de serviços”.

Nesta perspetiva, a sociedade insolvente deveria ser dispensada do pagamento de qualquer imposto, bem como da entrega das obrigações acessórias.

Diferente entendimento sobre a matéria tem sido defendido pela AT, considerando que se uma empresa fosse dissolvida na consequência de um processo de insolvência, esta continuaria a existir como sujeito passivo até à data do encerramento da liquidação, mantendo-se assim vinculada às respetivas obrigações fiscais e declarativas.

Neste mesmo sentido, a AT verteu o seu entendimento na Circular n.º 1/2010, de 2 de fevereiro[2] (posteriormente revogada pela Circular n.º 10/2015, de 9 de setembro), onde defende a continuidade do cumprimento das obrigações declarativas e fiscais após a declaração da insolvência.

Sem expor a temática associada à natureza jurídica das circulares e eficácia interna que lhe está subjacente[3], releva aqui considerar o teor do entendimento adotado pela AT:

“a) a declaração de insolvência não determina a extinção da sociedade verificando-se a continuidade da respetiva personalidade tributária até ao registo do encerramento definitivo da liquidação;

b) Uma pessoa coletiva em situação de insolvência continua a existir, enquanto sujeito passivo de impostos, mantendo-se obrigada ao cumprimento das obrigações fiscais previstas nos códigos tributários;

c) Pelo que, o disposto no artigo 65.º do CIRE, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, não pode ser interpretado no sentido de determinar: i) a perda da personalidade tributária da pessoa coletiva insolvente, subsistindo a suscetibilidade de esta ser sujeito de relações jurídicas tributárias no decurso do processo de liquidação; ii) Qualquer tipo de exclusão do âmbito de incidência de impostos; ou iii) A extinção de obrigações fiscais que ainda não se tenham constituído na esfera da pessoa coletiva insolvente à data da deliberação de encerramento do estabelecimento; ou iv) O afastamento das obrigações que venham a incidir sobre a insolvente em resultado das operações de liquidação que sejam realizadas até à extinção do processo de insolvência.”

Nas palavras de Rui Duarte Morais[4], uma das dimensões da personalidade jurídica é a personalidade tributária, a suscetibilidade de ser sujeito de relações jurídico-tributárias (art.º 15.º da LGT). Tais entes terão, por regra, capacidade tributária de exercício, ou seja, de, através dos seus órgãos próprios, darem tradução prática aos direitos e deveres de natureza fiscal que lhes assistem.

Apesar das dúvidas existentes sobre a matéria, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) viria a concordar, na sua essência, com o entendimento da AT, no Acórdão prolatado no Processo n.º 01145/09, de 02/24/2011.

 

 

Considerou o STA que “(…) o que importa verdadeiramente indagar é se a sociedade dissolvida na sequência de processo falimentar continua ou não a existir enquanto sujeito passivo de IRC até à data do encerramento da liquidação, mantendo-se, assim, vinculada a obrigações fiscais, nomeadamente declarativas. Perante as normas contidas no Código das Sociedades Comerciais (CSC), podem ser várias as causas de dissolução das sociedades, constituindo causas gerais de dissolução a declaração de insolvência, a deliberação dos sócios, o decurso do prazo fixado no contrato, a realização completa do objecto contratual e a ilicitude superveniente do objecto contratual (cfr. CAPÍTULO XII, artigos 141º e seguintes). Porém, qualquer que seja a causa de dissolução, ela acarreta uma fase de liquidação do património societário conducente à extinção da sociedade, pois, como decorre do disposto no artigo 160.º, n.º 2, do CSC, a sociedade só é considerada extinta após o registo do encerramento da liquidação, mantendo até lá a personalidade jurídica, sujeito de direitos e obrigações, a quem continua a ser aplicável, embora com as necessárias adaptações e em tudo que não for incompatível com o regime processual de liquidação, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (cfr. artigo 146.º do CSC).”

Salientou ainda este Alto Tribunal que “(…) a sociedade em liquidação continua a existir enquanto sujeito passivo de IRC, permanecendo vinculada a obrigações fiscais. Isto é, inexistindo qualquer excepção prevista na lei, todas as sociedades dissolvidas, qualquer que seja a causa da dissolução, mantém obrigações fiscais (nomeadamente a de possuir contabilidade organizada conforme a lei comercial e fiscal, embora com a derrogação de alguns princípios contabilísticos, como, por exemplo, o da «continuidade» ou o da «especialização do exercício») e obrigações declarativas, sendo a sua responsabilidade do liquidatário ou do administrador da insolvência, conforme expressamente é referido pelo nº 7 do artigo 94.º do CIRC (Que corresponde ao n.º 9 do artigo 109.º, na redacção do CIRC em vigor previamente à produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e que corresponde, ainda, ao actual nº 9 do artigo 117.º do CIRC.).E assim sendo, a declaração de falência e a entrada em período de liquidação da massa falida não determina, por si só, a cessação em Imposto sobre o Rendimento. O que se compreende, na medida em que durante o período de cessação progressiva da existência da sociedade, ou período de liquidação, pode existir alguma actividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC (fruto, por exemplo, de negócios jurídicos que se continuaram a realizar (…).”

Em suma, apesar de não existir atividade económica regular, não significa que não possam ocorrer factos com relevância em termos de incidência tributária. O que a AT reconhece é que as transmissões de bens compreendidos na massa insolvente que ocorram após a deliberação do encerramento de estabelecimento revestem uma natureza específica, devendo ser consideradas vendas judiciais, com os consequentes efeitos na tributação em sede de impostos sobre o rendimento e a despesa.

O entendimento jurídico subjacente ao exposto, assenta, desde logo, no disposto no art.º 141.º, n.º 1, alínea e) do CSC, nos termos do qual a declaração da insolvência é causa imediata de dissolução da sociedade (quando decidida a sua liquidação), entrando esta em fase de liquidação, por força do art.º 146.º n.º 1, igualmente do CSC.

 

Nestes termos, a dissolução da sociedade não determina necessariamente a sua extinção o que resulta, de forma clara, do art.º 146.º, n.º 2 onde se estipula que a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, por conseguinte, continuarão a ser-lhe aplicáveis com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas.

A dissolução ocorrerá no momento do registo do encerramento da liquidação, nos termos do art.º 160.º, n.º 2 do CSC (“A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.”).

Este entendimento implica assim que se considere existirem direitos e obrigações de uma sociedade ainda na fase da sua liquidação.

 

 

Neste mesmo sentido, entendeu o CAAD no Processo n.º 65/2020-T quando refere que, “Devendo presumir-se que o legislador não se contradiz (art. 9º, 3 do Código Civil), a extinção das obrigações declarativas e fiscais que o art. 65º, 3 do CIRE faz decorrer da deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento tem que ser compaginada com a solução encontrada no art. 268º, 1 do CIRE, que pressupõe a possibilidade de realização de mais-valias, logo de actividade económica, ao longo do processo de insolvência e até ao seu termo. Ora, por um lado, o art. 268º, 1 do CIRE pode ser interpretado como norma especial – no sentido de que a regra do art. 65º, 3 do CIRE conhece excepções, admitindo-se que ocorram variações patrimoniais ocasionais que afectam a capacidade contributiva da insolvente –, não se justificando, portanto, que se interprete o art. 65º, 3 do CIRE como capaz de estabelecer uma delimitação negativa de incidência, no sentido de não-sujeição definitiva às regras do CIRC.”[5]

Acrescenta ainda que “uma interpretação que atribuísse ao art. 65º, 3 do CIRE a susceptibilidade de estabelecer uma delimitação negativa de incidência esbarraria com outros preceitos, como o art. 1º do CIRC que sujeita ao imposto “todos os rendimentos obtidos”, ou o art. 2º, 1, b) do CIRC, que considera sujeitos passivos de imposto “as entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou direção efetiva em território português, cujos rendimentos não sejam tributáveis em imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ou em IRC diretamente na titularidade de pessoas singulares ou colectivas”, abrangendo-se nestas, obviamente, a massa insolvente; e contrariaria o art. 16º da LGT, que reconhece capacidade tributária mesmo a quem não tenha personalidade ou capacidade jurídicas, bastando que tenha a susceptibilidade de gerar riqueza tributável, ou seja, que tenha capacidade contributiva.”

 

 

Em síntese, subscreve-se o entendimento do CAAD quando refere que “Obtendo-se rendimentos objectivamente configuráveis como factos tributários e não isentos, não há, pois, razão para o não-cumprimento das obrigações declarativas, e consequente liquidação – o que só seria defensável se pura e simplesmente não tivesse podido haver qualquer rendimento, portanto se faltasse um elemento objectivo para a incidência do imposto. O que é certo é que insolvência e extinção não são sinónimos: a insolvência é apenas um dos caminhos que pode conduzir à extinção da pessoa colectiva, e enquanto não se chega a esse momento terminal há ainda uma massa insolvente com o mesmo número de identificação fiscal, que tem interesses próprios, que se faz representar em juízo – e que ocasionalmente pode obter rendimentos e incorrer em custos com relevância fiscal. Em termos gerais, a uma sociedade que se encontre em liquidação, enquanto se mantiver nessa situação, continuam a ser aplicáveis, com as adaptações necessárias, as normas que regem as sociedades não dissolvidas – por exemplo, no que respeita a contabilidade organizada.”(…) Até lá, manterá a sociedade a sua personalidade e capacidade tributárias (que são conceitos distintos dos de personalidade e capacidade jurídicas), sendo, por isso, susceptível de ser sujeito activo e passivo de relações jurídico-tributárias, para efeito dos artigos 15º e 16º da LGT.”

Em linha com o mesmo entendimento, veja-se o Processo n.º: 699/2019-T do CAAD, no qual se afirma: “Sublinha-se que constitui posição unanime na doutrina e na jurisprudência que a declaração de insolvência, determinando a respetiva dissolução caso se trate de uma pessoa coletiva, não a extingue.”

Consequentemente, não assiste razão à Requerente quando entende que a transmissão dos imóveis identificados nos presentes autos não releva para efeitos de incidência em sede de IRC, com referência ao período de tributação de 2017, uma vez que, nesse ano, a Requerente encontrava-se em liquidação.

 

 

É convicção deste Tribunal que a dissolução da sociedade constitui uma modificação da sua situação jurídica que se caracteriza pela sua entrada em liquidação e não de uma extinção. Esta última, apenas ocorrerá no momento do registo do encerramento da liquidação (art.º 160.º, n.º 2 do CSC), o que implica que se considere existirem direitos e obrigações de uma sociedade ainda na fase da sua liquidação. O encerramento de estabelecimento e, como tal, da atividade económica regular, não implica a não ocorrência de factos com relevância em termos de incidência tributária.

 

  1. Natureza jurídica da transmissão realizada (compra e venda ou dação em cumprimento)

A Requerente alega ainda que, não obstante a escritura pública de compra e venda referente aos atos de transmissão ocorridos em 2017, estamos perante uma dação em cumprimento da massa insolvente.

Ou seja, a transmissão dos 3 prédios identificados não se insere na prossecução da atividade da Requerente, a qual havia sido encerrada com efeitos a partir de 5 de janeiro de 2017, mas antes numa dação em cumprimento da massa insolvente ao C..., S.A., entidade que detinha um crédito sobre a Requerente cujo valor total ascendia a € 156.339.832,00 e beneficiava já de hipotecas e penhoras que recaiam sobre os referidos prédios.

Deste modo, entende a Requerente que o valor resultante da dação em cumprimento nunca poderia estar sujeito a IRC por inexistência de facto tributário, uma vez que estamos perante a mera operação de liquidação do património por parte da massa insolvente tendo em vista a satisfação dos créditos dos credores, neste caso, do C..., S.A.

Remete, assim, para o disposto no art.º 268.º, n.º 1 do CIRE (na redação em vigor à data dos factos – i.e., na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março) o qual determina o seguinte: “As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor”.

Em análise à presente questão, recorda-se o entendimento exposto no Processo n.º 65/2020-T, do CAAD, onde se assumiu não ser necessário explicitar as figuras legais em questão, atendendo ao caracter oneroso da transmissão.

Nesse aresto, entendeu o Tribunal que “(…) independentemente do montante recebido a título de preço, isso exclui liminarmente a dação em cumprimento, que é inconcebível se associada ao pagamento de um preço por parte dos credores a quem os bens são entregues. Um arranjo contratual mediante o qual os credores tivessem de pagar uma qualquer quantia em contrapartida da dação em cumprimento destruiria o próprio objecto dessa dação, seria um paradoxo nos próprios termos. O estabelecimento de um preço, e mais ainda o pagamento desse preço – mesmo que não na sua integralidade – são, pois, prova bastante de que ocorreu deveras uma compra e venda.”

Efetivamente, na sua essência, a dação em cumprimento sendo uma causa de extinção de uma obrigação com os pressupostos decorrentes do art.º 837.º do Código Civil, separa-se da compra e venda na medida em que o “preço” a “pagar” pelo adquirente do direito transmitido é a extinção de um direito seu sobre o alienante ou sobre um terceiro.

A dação em cumprimento de bens do insolvente e a venda desses bens são figuras jurídicas inequivocamente distintas, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.

Ora no caso sub judice foi dado como provado que, em 18 de agosto de 2017, a Requerente vendeu ao C..., S.A. um conjunto de bens imóveis pelo preço total de 60.697.900,00€. Não subsistem, por isso, dúvidas que se está perante um contrato de compra e venda e não perante uma dação em cumprimento.

Conclui-se assim do exposto que não procede o pedido de anulação da liquidação de IRC e de Juros Compensatórios, referente ao período de tributação de 2017.

 

 

  1. Juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Há lugar a juros indemnizatórios quando houver um pagamento indevido de tributo, como resulta do art.º 43.º, n.º 1 º da LGT. Julgando-se improcedente o pedido principal, improcede o pedido de juros indemnizatórios.

 

  1. DECISÃO

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente o pedido arbitral, com a consequente manutenção da liquidação adicional de IRC, referente ao período de tributação de 2017;
  2. Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.025.894,57, que a AT não questionou, correspondente ao valor da liquidação de imposto a que se pretendia obstar, para efeitos do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 14.382,00, nos termos do art.º 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento.

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de setembro de 2022

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Nuno Cunha Rodrigues

 

A Árbitra vogal

 

Ana Rita Chacim (relatora)

 

 

A Árbitra vogal

 

Ana Teixeira de Sousa

 

 



[1]     Cfr. J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2002, pág. 132.

[3]     J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, ob. cit., pág. 42, 43: «Uma “orientação administrativa (circular ou ofício) em que esta define, em termos gerais e com eficácia interna, o comportamento a adoptar perante casos concretos: i.e., se na esfera jurídica do contribuinte se verificar a situação A, então o efeito jurídico é X»…«Estas orientações administrativas sob forma de circulares ou sob outra formas, são uma intepretação da lei fiscal e um instrumento unificador das decisões, necessariamente descentralizadas, da administração e têm a sua função específica no processo de massa que constitui o processo fiscal, como tentativa de conciliação da decisão descentralizada e da definitividade dos atos tributários, mesmo quando praticados na base da pirâmide administrativa fiscal» .

      Sobre orientações genéricas escreve ainda que, «[c]omo se afirmou sem ambiguidades um acórdão do STA ao analisar uma detemrinada orientação administrativa, “o valor da doutrina dessa circular será apenas o da sua valia intrínseca”. Contém uma doutrina que será boa ou má, válida ou inválida, como qualquer outra doutrina. Estar contida numa decisão administrativa não amplia nem reduz a sua força convincente, não cria uma presunção de legalidade.

[4]     Cfr. Rui Duarte Morais, Apontamentos ao Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, Almedina Editora, Coimbra, 2007, pág. 12.

[5]     Neste sentido, veja-se ainda o Processo n.º: 699/2019-T do CAAD: “Interpretar esta "cessação de obrigações declarativas e fiscais" como uma não sujeição às regras do Código do IRC, isto é, como uma delimitação negativa de incidência, era ir muito para lá da própria letra da lei.”