Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 124/2022-T
Data da decisão: 2022-11-09  IRS  
Valor do pedido: € 7.832,85
Tema: IRS – Revogação do ato tributário – Extinção de instância por inutilidade (impossibilidade) superveniente da lide.
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SUMÁRIO:

 

  1. Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a instância extingue-se inutilidade superveniente da lide.
  2. Embora ocorrida após o prazo mencionado no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, a verdade é que a revogação, ainda que parcial, dos atos tributários impugnados corresponde à satisfação principal da pretensão dos Requerentes, originando assim a inutilidade superveniente da lide.
  3. O pedido arbitral referente aos juros indemnizatórios apenas pode ser entendido como uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, pelo que a sua extinção afeta necessariamente o pedido de natureza acessória ou consequencial.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro designado para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído em 11 de maio de 2022, Rui Miguel Zeferino Ferreira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), decide o seguinte:

 

 

I.         Relatório

 

A... e B..., adiante “Requerentes”, respetivamente, titulares dos números de identificação fiscal ... e ..., residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, vieram requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

 

Os Requerentes, no âmbito do identificado pedido de pronúncia arbitral, pretendiam a declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento adotada no procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2020..., em que se discutiu a legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2019... e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2019..., respeitante ao ano de 2015, no montante adicional a pagar de € 7.832,85 (sete mil oitocentos e trinta e dois euros e oitenta e cinco cêntimos).

 

Nesse âmbito, sintetizam o seu pedido, requerendo a “(...) a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários acima identificados, bem como da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2020..., com todas as consequências legais previstas no artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária e nos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária, designadamente o reembolso aos requerentes dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios (...)”.

 

É demandada a AT, doravante também designada por “Requerida”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi efetuado em 2 de março de 2022, e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 3 de março de 2022 e, de seguida, notificado à AT.

 

Nos termos do disposto do artigo 5.º, n.º 2, do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo.

 

Em 22 de abril de 2022, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 11 de maio de 2022, tendo, por isso, sido o mesmo regularmente constituído, e o mesmo é materialmente competente, em face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

A Requerida, em 12 de maio de 2022, foi notificada para apresentar resposta, que dentro do respetivo prazo veio, em 24 de maio de 2022, apresentar requerimento em que comunicou a este Tribunal Arbitral que, por despacho da Sra. Subdiretora Geral, de 20 de maio de 2022 [o requerimento refere o dia 19 de maio de 2022, mas do conteúdo de despacho consta a data de 20 de maio de 2022], foram revogados parcialmente os atos impugnados, objeto deste processo.

 

Em 9 de junho de 2022, os Requerentes vieram informar que “se o Tribunal considerar válida esta revogação, não mantêm o interesse no prosseguimento do procedimento, uma vez que a sua pretensão se encontra totalmente satisfeita”.

 

Em 8 de novembro de 2022, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como as respetivas alegações escritas. No mesmo despacho foi comunicado que a decisão final seria proferida e comunicada até 11 de novembro de 2022, pelo que deveriam os Requerentes proceder ao pagamento do remanescente da taxa de arbitragem até essa data.

 

Na mesma data, isto é, 8 de novembro de 2022, os Requerentes procederam à junção do comprovativo de pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legitimas e estão representadas.

 

O processo não enferma de nulidades nem foram invocadas exceções.

 

            II. Fundamentação

 

Na sequência do pedido de pronúncia formulado pelos Requerentes, o Tribunal Arbitral foi constituído em 11 de maio de 2022, e, por despacho de 12 de maio de 2022, foi determinada a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta. Ainda dentro desse prazo, foi junto despacho da Sra. Subdiretora Geral, de 20 de maio de 2022, em que foram revogados parcialmente os atos impugnados.

 

O despacho de revogação, datado de 20 de maio de 2022, remete para os termos e fundamentos constantes da informação elaborada pela Direção de Servições do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, pela qual entende ser de revogar o ato tributário de liquidação adicional de IRS, mas excluindo o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios, sob o entendimento de não se encontrarem verificados os pressupostos do artigo 43.º da LGT.

 

Por seu lado, os Requerentes vieram em 9 de junho de 2022 informar este Tribunal Arbitral que não têm interesse no prosseguimento do procedimento, uma vez que a sua pretensão se encontra totalmente satisfeita, pelo que expressamente declaram não manter interesse no procedimento quanto aos juros indemnizatórios, cuja pretensão não foi abrangida pelo ato revogatório da Requerida.

 

De modo preliminar, cumpre referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto, que a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária entendeu ser de alterar o sentido decisório, pelo que praticou, segundo a nova terminologia, um ato de anulação administrativa, isto é, um ato que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o referido despacho embora adote a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro ato anulatório.

 

Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, dispõe-se que:

Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º

 

O prazo previsto a alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º a que essa disposição se refere é o que respeita à comunicação às partes da constituição do tribunal arbitral, o que permite concluir que esse é um prazo procedimental, inserido no procedimento de constituição do Tribunal Arbitral, e que decorre ainda antes de ter início o processo arbitral (cfr. artigo 15.º).

 

Tal não significa, no entanto, que à administração tributária esteja vedado a anulação administrativa do ato impugnado já na pendência do processo arbitral, pelo que haverá de se considerar válido o ato designado pela Requerida como de “revogação”, e desse modo decide este Tribunal Arbitral.

 

A Autoridade Tributária, enquanto entidade administrativa, encontra-se subordinada às disposições do Código de Procedimento Administrativo (artigo 2.º, n.º 1), e, por outro lado, como resulta do disposto no artigo 29.º do RJAT, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza do caso omisso, entre outras, as normas sobre o processo nos tribunais administrativos.

 

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objecto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

 

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

 

Seja como for, nada obsta a que a Administração, ao abrigo do citado artigo 168.º, n.º 3, possa anular o ato tributário impugnado na pendência do processo, desde que dentro do limite temporal definido nessa disposição, e essa faculdade nada tem a ver com o regime específico a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, que confere a possibilidade de a Administração anular o ato impugnado ainda no âmbito do procedimento de constituição do tribunal arbitral.

 

O que o regime especial desse artigo proíbe, para além do prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, é a prática de um novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos (n.º 3). Mas não a própria anulação administrativa do ato sem nova regulação da situação jurídica.

 

Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária praticou o ato anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.

 

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir. E, por outro lado, importa reter que, por efeito do disposto no artigo 13.º, n.º 3, do RJAT, a substituição do ato na pendência do processo apenas poderia ocorrer desde que não implicasse a invocação de factos novos.

 

É patente que não é essa, no entanto, a situação do caso.

 

A Administração anulou os atos sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. Ora, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

 

Segundo Lebre de Freitas, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a proveniência deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outros meios” Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. III, p. 633.

 

Assim, analisados os autos, obviamente que visando o pedido de pronúncia em primeira linha a anulação por ilegalidade, da liquidação adicional de IRS n.º 2019..., relativa ao período de tributação de 2015, o sobredito despacho de revogação parcial dessa, esvazia totalmente de objeto este processo arbitral. Isto é, destruídos o ato tributário sindicado por “revogação” (anulação) administrativa na pendência da causa, a continuação da instância é não só inútil como mesmo impossível por falta de objeto da lide.

 

Inclusive, os Requerentes da forma como manifestaram a sua concordância com a extinção dos presentes autos, expressamente concordam com o não recebimento dos juros indemnizatórios peticionados, e que o ato de revogação (anulação) exclui.

 

E, ainda, que outro tivesse sido o entendimento dos Requerentes, sempre haveria de considerar que a anulação administrativa é de iniciativa oficiosa da Administração e, constituindo um ato unilateral, os seus efeitos não dependem da manifestação de vontade do interessado particular. E que, por outro lado, o pedido arbitral referente aos juros indemnizatórios apenas pode ser entendido com uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, implicando que o processo devesse prosseguir para a apreciação incidental da legalidade do ato impugnado apenas para o efeito de saber se há lugar ao pretendido ressarcimento a título de juros indemnizatórios.

 

O certo é que a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do ato administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objeto processual.

 

            III. Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

IV. Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 7.832,85, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação adicional de IRS a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

V. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 612,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

 

Notifique.

Lisboa, 9 de novembro de 2022

O árbitro,

 

 

Rui Miguel Zeferino Ferreira