Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 135/2016-T
Data da decisão: 2016-10-06  IRC  
Valor do pedido: € 47.522,29
Tema: IRC - Fusão; Datado Registo de Fusão; Prejuízos Reportáveis; N.º 4 do art. 75.º CIRC
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Decisão Arbitral

O árbitro singular Nuno de Oliveira Garcia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante apenas ‘CAAD’) para constituir o presente Tribunal Arbitral (TA), que é singular, decide o seguinte:

 

1. Relatório

1.1. A sociedade ‘A…, contribuinte n.º…, com sede no …, …-…, … (adiante apenas ‘Requerente’), requereu a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

1.2. O referido pedido de pronúncia arbitral tem por objeto – segundo o pedido com que termina o requerimento inicial – a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação IRC relativa ao ano de 2014, no valor de 47.522,29€, ato tributário melhor identificado no introito do requerimento e aí junto como doc.º n. 1.

Mais solicita o Requerente a restituição do montante por si pago por força da referida liquidação, tal como de resto resulta do comprovativo de pagamento junto ao requerimento inicial como doc. n.º 20, nada referindo quando a juros indemnizatórios sobre aquele valor.

1.3. O cerne da motivação do pedido arbitral, como resulta do requerimento inicial, assenta no entendimento da Requerente, alegadamente corroborado Centro de Atendimento Telefónico da AT, de que a transmissão de prejuízos decorrente de fusão registada em 23 de janeiro de 2014, uma vez que foi deliberada em 27 de dezembro de 2013, não carecia de cumprir com o requisito previsto no n.º 4 do artigo 75.º do Código do IRC, com a redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, ainda que não tenha cumprido com o requisito previsto no n.º 1 do artigo 75.º, agora na redação anterior à entrada em vigor da referida Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

1.4. Por seu turno, a ‘AT – autoridade tributária e aduaneira’ (adiante apenas ‘AT’) discorda do sentido do pedido arbitral, sustentando que a informação alegadamente prestada pelo Centro de Atendimento Telefónico não passou de um «esclarecimento descontextualizado», defendendo-se ainda por impugnação que a data relevante para a fusão, no que respeita ao regime aplicável aos prejuízos transmissíveis, é a do registo da fusão – 23 de janeiro de 2014 – sendo aplicável à mesma (à fusão) o disposto no n.º 4 do artigo 75.º com a redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, e entrada em vigor em 1 de janeiro desse ano.

Mais sustenta a AT na sua resposta, tal como já havia sido alegado pela direção de serviços do IRC (vide doc. n.º 17 junto ao requerimento adicional) que, não obstante a data do registo de fusão ter ocorrido já em 2014, a transmissão dos prejuízos estaria sempre dependente, caso se entendesse dar relevância ao registo do projeto de fusão de dezembro de 2013, de requerimento a entregar na AT (n.º 1 do artigo 75.º em vigor em 2013) o que não aconteceu (tal como reconhece, de resto, a Requerente).

1.5. Foi decidido pelo TA, e não mereceu oposição das partes, a dispensa da reunião do tribunal arbitral prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, bem como alegações finais.

 

2. Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

3. Matéria de facto e respetiva fundamentação

3.1. Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal Arbitral considera provada a seguinte factualidade:

a)      Em 23.1.2014, foi publicitada e registada definitivamente a fusão das duas sociedades da sociedade B…, Lda. na Requerente, tendo a primeira sido totalmente incorporada na segunda;

b)      À data da deliberação definitiva da fusão, a sociedade B…, Lda. apresentava prejuízos discais acumulados no montante de 245.471,70;

c)      Em 20.5.2015 a Requerente apresentou o modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2014 no qual indicou:

·      245.471,70€ a título de prejuízos fiscais transmitidos (Campo 383), e;

·      202.546,75€ (quantia correspondente a 70% do lucro tributável – Campo 309).

d)      A Requerente pagou voluntariamente a liquidação de IRC em crise nos presentes Autos arbitrais.

 

3.2. Fundamentação da Matéria de Facto

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental junta pela Requerente, como sejam, quanto aos fatos identificados acima como a), b) e d), os docs. n.º 2, 5, 8 e 20, todos juntos em anexo ao requerimento inicial, e quanto ao fato identificado acima como c) por não ser contestado pela Requerida.

 

3.3. Factos não provados

Não se constataram factos essenciais, com relevo para a apreciação do mérito da causa, os quais não se tenham provado.

 

4. Questão decidenda

A questão a decidir nos presentes autos é a seguinte:

  — É ilegal a liquidação de IRC assente na desconsideração da dedução de prejuízos transmissíveis por via de fusão registada em 23 de janeiro de 2014, desconsideração essa motivada no disposto no n.º 4 do artigo 75.º do Código do IRC, com a redação em vigor em 2014?

 

Da legalidade das liquidações em crise

Cumpre decidir quanto ao mérito do pedido de decisão arbitral, ou seja, quanto à legalidade da liquidação de IRC em crise.

Importa começar, todavia, por esclarecer alguns pontos a propósito da distinção entre dedução prejuízos e sua transmissão a outra sociedade. São, evidentemente, dois assuntos – e momentos – diferentes, apesar de poderem ser, em alguns casos, encadeados. Vem isto a propósito do quesito referido no parágrafo 9.º do requerimento adicional relativamente à alegada informação de que não era necessário requerimento prévio de autorização da transmissibilidade de prejuízos no âmbito de uma fusão porquanto tal operação não implicava a alteração de mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de votos.[1] É com base nesta alegada informação – «[e]m face de tudo o referido (,..)» pode ler-se no início do parágrafo 10.º do requerimento adicional – que a Requerente deduz os prejuízos que, no seu entender, teriam sido transmitidos pela sociedade incorporada.

Sucede que, tal não é – nem nunca foi – assim, com ou sem informação da AT. Efetivamente, o artigo 75.º do Código do IRC, na versão de 2013, nunca dispensou a apresentação de requerimento prévio de autorização de transmissão de prejuízos. Nem isso seria possível posto que tal transmissão estava dependente do preenchimento de determinados requisitos (eg., razões económicas válidas, estratégia de redimensionamento e desenvolvimento empresarial de médio ou longo prazo, efeitos positivos na estrutura produtiva), pelo que sempre seria necessário que a sociedade incorporada, em conjunto com a Requerente, fornecessem à entidade administrativa competente todos os elementos necessários para o perfeito conhecimento da operação. Da mesma forma, o n.º 4 do artigo 75.º o Código do IRC, na versão de 2013, consagrava já um despacho de autorização que, inclusivamente, poderia fixar (e fixava na prática) um plano específico de dedução dos prejuízos.

Algo diferente era o regime previsto no artigo 52.º do Código do IRC, na versão de 2013, e que a AT interpretava no sentido de que o limite previsto no seu n.º 8 não fosse aplicável caso não existisse alteração de mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de votos da sociedade que apurou os prejuízos – assim vide Circular no âmbito do processo n.º 104/2006, de 4 de janeiro de 2008.

Mas, repita-se, são duas coisas diferentes: uma, o regime dos n.os 8 e 9 do artigo 52.º do Código do IRC, na redação de 2013, referente à caducidade dos prejuízos por alteração de mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de votos; outra, o regime dos n.os 1 e 2 do artigo 75.º do Código do IRC, também na versão de 2013, que pressupunha sempre um pedido de autorização prévio para o caso de transmissibilidade de prejuízos.[2]

Importa ainda, em segundo lugar, fazer referência à limitação da dedução de prejuízos transmitidos uma vez que, ao contrário do que decorre do requerimento adicional, tal limitação já existia no regime de 2013.

A isso se referia o n.º 4 do artigo 75.º do Código do IRC – vis-a-vis a fixação de «plano específico de dedução dos prejuízos fiscais a estabelecer o escalonamento da dedução durante o período em que pode ser [a dedução] efectuada e os limites que não podem ser excedidos em cada período de tributação» (cit.). E a isso se referia também a Circular no âmbito do processo 1373/2008 (de 31 de julho de 2008) onde constava, de forma expressa, que «havendo acréscimo de lucro tributável, os prejuízos fiscais apurados pela(s) sociedade(s) fundida(s) podem ser dedutíveis até à concorrência desse lucro tributável, tendo como limite, em cada exercício, o montante do lucro tributável da sociedade incorporante, correspondente à proporção entre o valor do património líquido da sociedade fundida e o valor do património líquido de todas as sociedades envolvidas na operação, determinados com base no último balanço anterior à fusão» (cit.). Ou seja, e ao contrário do que se alega, repetidamente, no requerimento adicional, já existia (muito) antes de 2014 – na lei e na doutrina administrativa – limites à dedução de prejuízos transmitidos.

Pelo que, e independentemente do regime aplicável ser o vigente em 2013 ou em 2014, mal andou a Requerente ao deduzir, no exercício de 2014, a totalidade dos prejuízos apenas limitando-a dedução pelo n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC. Pois bem, não estava nesse momento em apenas em causa o artigo 52.º mas sim, a montante, artigo 75.º do Código do IRC. Efetivamente, só se pode deduzir na incorporante os prejuízos cuja transmissibilidade foi autorizada. Uma sociedade, ainda que irmã de outra, é uma pessoa jurídica distinta dessa. Não é, pois por mera via de fusão, que – automaticamente(!) – os prejuízos se transmitem de uma sociedade para a outra. Ao invés, ao ser incorporada noutra, uma sociedade perde os prejuízos por si registados, naturalmente. Pelo que haveria sempre de, primeiro, solicitar a transmissibilidade dos prejuízos da incorporada e, só depois, deduzi-los na incorporante.

Com estas considerações, fica desde já claro que a Requerente não tem qualquer razão quanto à pretensão de que se arroga. Em todo o caso, e uma vez que sustenta ter-lhe sido transmitido um determinado entendimento pelo Centro de Atendimento Telefónico da AT, importa ainda tecer dois segmentos adicionais.

O primeiro respeita, precisamente, à relevância no presente processo arbitral dessa suposta informação prestada pelo Centro de Atendimento Telefónico da AT. É que, não só existem formas de os particulares procurarem a vinculação da AT (como seja o regime disposto no artigo 68.º da LGT) – o que não sucedeu in casu –, como a própria AT está, prima facie, vinculada ao disposto na Lei Fiscal, como de resto sucede com este Tribunal Arbitral. Efetivamente, dispõe o n.º 2 do artigo 2.º do RJAT que «[o]s tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade» (cit.). Ora, não tendo sido acionados os mecanismos próprios de vinculação da AT no que respeita a informações aos particulares, e estando a AT – e este próprio Tribunal Arbitral – incumbidos a aplicação da Lei Fiscal, é pois evidente não ser possível atribuir relevância à suposta informação prestada pelo Centro de Atendimento Telefónico da AT invocada pela Requerente.

O segundo segmento, respeita à operação de fusão e à determinação da data a partir da qual os direitos e as obrigações da incorporada se transmitida para a incorporante. E nesse sentido, tem existido coincidência entre jurisprudência e doutrina no que toca à melhor interpretação do disposto no artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicável ex vis n.º 2 do artigo 11.º da LGT.

Assim, e por todos, veja-se o acórdão do STA (2.ª Secção) no âmbito do processo n.º 0925/09 (Rel. Alfredo Madureira), de 10 de fevereiro de 2010. No mesmo sentido, e mais recentemente, veja-se acórdão do TCA (Contencioso Tributário), no âmbito do processo n.º 9323/16 (Rel. Lurdes Toscano), de 17 de março de 2016, segundo o qual:

·         «Como bem diz a recorrente, resulta da própria lei das sociedades comerciais – artigo 112.º alínea a) do Código das Sociedades Comerciais (CSC) –, que, nos casos de fusão por incorporação, a que se refere a alínea a) do n.º 4 do artigo 97.º do CSC [cfr., por todos, RAÚL VENTURA, Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades: Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 3.ª reimp. da 1.ª ed. de 1990, Coimbra, 2006, p. 16 (nota 5 ao art. 97.º do CSC) e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (coordenador), Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, 2009, p. 323 (nota 10 ao art. 97.º do CSC)], com a inscrição da fusão no registo comercial extinguem-se as sociedades incorporadas (…) transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante (…).

Ou seja, também quanto a este aspeto, improcede a argumentação da Requerente.

 

6. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente, na integra, o pedido de pronúncia arbitral.

 

* * *

Fixa-se o valor do processo em Euros 47.522,29€ (quarenta e sete t mil, quinhentos e vinte e dois Euros e vinte e nove cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

O montante das custas é fixado em 2142€ (dois mil, cento e quarenta e dois Euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo do Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

Notifique-se.

Lisboa, 6 de outubro de 2016

 

O Árbitro

Nuno de Oliveira Garcia

 

 



[1] Sem nunca se explicitar qual a sociedade a que se refere, admitindo-se, contudo, que se pretende fazer referencia à incorporante.

[2] Aspeto para o qual chamamos a atenção no nosso texto «Prejuízos, Menos e Mais‐Valias – Casos de Aplicação de Normas Anti‐abuso Específicas do Código do IRC» in Fiscalidade, n.º 29 (2007).