Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 100/2016-T
Data da decisão: 2017-02-13  IRC  
Valor do pedido: € 99.678,08
Tema: IRC – Retenção na fonte; Duplicação de colecta; Legitimidade substantiva
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Gustavo Courinha e João Sérgio Ribeiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 23 de Fevereiro de 2016, A…, com sede em …, Hong Kong, contribuinte n.º…, na qualidade de sociedade gestora do Fundo de Investimento B…, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento da Reclamação Graciosa relativa à retenção na fonte suportada em Portugal, em 2013, sobre juros de obrigações em 2013, no total de € 99.678,08.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que o B… foi tributado duas vezes em sede de IRC – uma vez na transmissão das obrigações à C… e outra vez no vencimento dessas mesmas obrigações – pelo mesmo rendimento: os juros corridos até à data da transmissão das obrigações, tendo sofrido duplicação de colecta, o que é ilegal conforme resulta das normas fiscais aplicáveis (e.g. artigo 78.º, n.º 6 da Lei Geral Tributária e artigos 175.º, 204.º, n.º 1, al. g) e 205.º do CPPT).

 

  1. No dia 24-02-2016, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 20-04-2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-05-2016.

 

  1. No dia 14-06-2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. Tendo sido suscitada pela AT a questão de falta de tradução de alguns dos documentos juntos com o Requerimento inicial, foi a Requerente notificada para, querendo, juntar traduções.

 

  1. A 12-07-2016, a Requerente juntou as traduções que teve por pertinentes, bem como documentação adicional.

 

  1. No exercício do direito ao contraditório que lhe assistia, a 12-09-2016, a Requerida pronunciou-se sobre a documentação e tradução juntas, suscitando, para além do mais, a ausência de prova de poderes de representação do B… pela Requerente, bem como da ilegitimidade processual desta.

 

  1. Foi facultada à Requerente a possibilidade de exercer o contraditório relativamente às questões suscitadas pela Requerida, face a documentação junta por aquela, o que fez.

 

  1. Atendendo a que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Foi facultada às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, o que fizeram, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT, prazo esse que foi prorrogado por mais 30 dias.

 

  1. Nos termos e para os efeitos do artigo 21.º/2 do RJAT, foi prorrogado, por duas vezes, o prazo a que alude o n.º 1 do mesmo artigo.

 

  1. Tendo-se colocado dúvidas sobre a legitimidade processual da Requerente, derivada da falta de poderes para actuar em representação do B…, foi facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem a esse respeito, tendo a Requerente, apresentado documento datado de 03/12/2017, que comprova os seus poderes para representar aquele Fundo (e a H…) na presente acção arbitral, e para pedir o reembolso de imposto retido na fonte pela AT, em 2013, sobre juros de obrigações.

 

  1. Foi facultada à Requerida a possibilidade de exercer o contraditório relativamente ao referido documento junto pela Requerente.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      A Requerente é uma sociedade de responsabilidade limitada constituída nos termos da legislação de Hong Kong.

2-      A B… é uma sociedade de responsabilidade limitada, residente, para efeitos fiscais, nas ilhas Caimão, que actua como sociedade gestora de um fundo com sede nas Ilhas Caimão.

3-      Na sequência da reprivatização da D… SGPS, S.A. (“D…”), com vista à redução da participação do Estado no capital social da empresa, a E…, SGPS, S.A. (“E…”), procedeu à emissão de obrigações susceptíveis de permuta com acções representativas do capital social da D…, nos termos constantes do Decreto-Lei n.º 185/2008, de 19 de Setembro.

4-      O Código ISIN das obrigações referidas é PT… .

5-      No dia 18/09/2013 (“trade date”), ocorreu uma transmissão de obrigações que veio a ser concretizada no dia 23/09/2013 (“settlement date”), entre a Requerente, como transmitente, e a C… (“C…”), sociedade esta residente, para efeitos fiscais, no Reino Unido, como transmissária.

6-      O valor de transmissão das obrigações totalizou o montante de € 6.004.795,50, do qual € 5.720.000,00 corresponde a capital e € 284.795,50 a juros corridos, contabilizados desde a data do último pagamento do cupão até à data da transmissão das obrigações (23/09/2013).

7-      Na data de transmissão das obrigações (23/09/2013), o F… S.A., na qualidade de substituto tributário, efectuou retenção na fonte à taxa de 35% sobre o valor dos juros corridos (€ 284.795,50 x 35% = € 99.678,08) nos termos previstos no artigo 87.º, n.º 4, alínea i) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas  (“CIRC”) e artigo 5.º, n.º 5 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”).

8-      A 28/09/2013, data do vencimento e pagamento dos juros do cupão (“payment date”), foi efectuada nova retenção na fonte, à taxa de 35%, sobre o valor total dos juros corridos contabilizados desde a data do último pagamento do cupão até ao referido dia 28/09/2013 (€ 288.750,00 x 35% = € 101.062,50).

9-      No ponto 11.1 dos “Termos e Condições das Obrigações”, o pagamento dos juros corridos é feito à entidade que constar registada como proprietária das obrigações no 15.º dia anterior à data do pagamento (“record date”).

10-  A supra-referida operação de transferência das obrigações com o código ISIN PT… foi feita a partir da conta de valores mobiliários detida pela Requerente junto dos Agentes F… (da E…) e Credit G… (da Requerente), com a identificação número … .

11-  As operações de pagamento de juros vencidos pelo emitente e de retenção na fonte no acto do respectivo pagamento, nos termos dos pontos 8 e 9 supra, ocorreram na conta com o referido número … .

12-  A Requerente, oportunamente, apresentou reclamação graciosa, alegando duplicação de colecta e pedindo a devolução da quantia de € 99.678,08.

13-  A Administração Tributária indeferiu a reclamação graciosa.

 

A.2. Factos dados como não provados

1- Que a Requerente seja a sociedade gestora do B… .

2- A Requerente adquiriu, em representação do B…, à E…, obrigações do tipo referido no ponto 3 da matéria de facto.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos seguintes termos:

1-      Facto reconhecido por ambas as partes;

2-      Facto decorrente doc. 1 junto pela Requerente;

3        e 4 - Factos públicos e notórios;

5- Facto decorrente doc. 3 junto pela Requerente;

6 e 7-  Factos decorrentes doc. 4 junto pela Requerente;

8- Facto decorrente doc. 5 junto pela Requerente;

9- Facto decorrente doc. 2 junto pela Requerente, conjugado com a tradução entretanto também junta pela Requerente;

10  e 11 – Factos decorrentes dos documentos 4 e 5 juntos pela Requerente;

12 e 13 - Factos reconhecido por ambas as partes.

Os factos dados como não provados devem-se, essencialmente, à carência de meios de prova que os corroborem.

O primeiro facto dado como não provado, tem em conta os contratos juntos pela Requerente, dos quais decorre que a sociedade gestora do B… será a sociedade H… e não a Requerente. De acordo com tais contratos, a aqui requerente apresenta-se como Consultora de Investimento, sendo a referida sociedade quem (até perante a Requerente) se assume como entidade Gestora.

De resto, da leitura dos próprios contratos, não resultam, para lá de qualquer dúvida razoável, poderes de representação da Requerente relativamente ao B…, sendo de notar que a cláusula 3.5 do contrato entre a Requerente e será a sociedade H… refere expressamente que:

“Para que se evitem dúvidas, deve entender-se que nada na cláusula 3.1 [onde se referem os poderes da Requerente] (ou em qualquer outra disposição deste Contrato) deve ser interpretado como permitindo ou autorizando o Consultor de Investimento a:

(a) aceitar ou rejeitar qualquer Acordo de Subscrição ou Pedido de Resgate por conta da Sociedade Gestora; ou

(b) negociar, executar ou concluir quaisquer outros contratos ou acordos por conta da Sociedade Gestora e/ou dos Fundos.”

Ao contrário, o contrato entre a referida H…, enquanto Sociedade Gestora, e os fundos (onde se inclui a B…), concede àquela poderes como:

“3.1 Durante a sua nomeação, sujeita à supervisão global e ao controlo do Conselho e dos Administradores e em cumprimento com o Programa de Investimento e sempre sujeita aos termos deste Contrato, a Sociedade Gestora deve gerir a aquisição, manutenção e concretização dos Investimentos numa base discricionária.

3.2 Sem prejuízo da generalidade da cláusula 3.1, a Sociedade Gestora deve fornecer os seguintes Serviços aos Fundos, sempre sujeitos aos Estatutos e Documentos de Constituição(...)

(h) Fazer investimentos ou (conforme o caso) recomendações ao B… em relação a potenciais investimentos e oportunidades;

(i) Emitir ordens e instruções a terceiros (inclusivamente, sem limitações, os Intermediários Financeiros) relativamente à aquisição e realização de quaisquer investimentos;

(j) Realizar compras, aquisições e vendas no âmbito dos Investimentos;

(k) Exercer todos os direitos, poderes, privilégios e outras prerrogativas ligadas à propriedade ou posse relativamente a qualquer interesse dos Fundos e outros bens ou fundos por eles detidos ou pertencentes, incluindo, sem limitações, o direito de possuir, emprestar, transferir, hipotecar, penhorar ou outros, e assegurar o pagamento das obrigações dos Fundos através de hipoteca, consignação ou penhor, do todo ou de parte dos bens da propriedade dos Fundos, presentes ou futuros, e para exercer o direito de voto ligado a valores mobiliários, participar em acordos com os credores, instituir, estabelecer acordos em ações judiciais e procedimentos administrativos e similares;

(l) Dirigir, monitorizar e supervisionar o Programa de Investimento e a composição do portfólio de Investimentos numa base contínua;

(m) Negociar e tomar parte em quaisquer outros Investimentos no âmbito das transações realizadas, o que inclui realizar pequenas vendas, negociar margens de lucro, pedir empréstimos de dinheiro, empréstimo de valores mobiliários, seleção de Intermediários Financeiros e revendedores para a execução de transações, o exercício de direitos por conta do B… e efetuar transações por conta do B…;

(n) Negociar, tomar parte e realizar todos os contratos, acordos e outros compromissos que na opinião da Sociedade Gestora se revelem necessários, aconselháveis ou úteis para a prossecução dos Serviços;

(o) Combinar ordens de compra e venda, por conta do B…, e ordens de outras contas, através das quais a associados ou alguma das suas Subsidiárias forneçam serviços de investimento e atribuam ativos, comprados ou vendidos, numa base de preço médio, ou através de qualquer outro método de justa atribuição, entre as aludidas contas;

(p) Instruir o Administrador, ou qualquer outra pessoa designada ou agente indicado pelo Administrador, para pagar ou depositar todo o dinheiro, contas, notas ou outros certificados ou evidencias de títulos alusivos aos investimentos, recebidos pela associados por conta do B…, após dedução de todas as despesas adequadamente contraídas (caso existam);(...)

(u) Abrir, manter e fechar contas com os Intermediários Financeiros por conta do B…, incluindo a prerrogativa de dar aos mesmos instruções e autorizações relativamente a moedas, valores mobiliários e dinheiro nessas contas, e para fazer o B… pagar, ou autorizar o pagamento e o reembolso das suas comissões;

(v) Abrir, manter e fechar contas bancárias e contas de custódia e autorizar a passagem de cheques ou de outras ordens de pagamento de dinheiro; (...)

(x) Contrair empréstimos, angariar fundos ou utilizar qualquer outra forma de alavancagem e emitir, aceitar, endossar e executar notas promissórias, projetos, letras de câmbio, warrants, obrigações, debentures, outros instrumentos, negociáveis ou não, e provas de endividamento.

(y) Por conta do B…, instruir os Intermediários Financeiros principais (ou outros que estes escolham) para fazer, comprar, vender ou dispor de qualquer investimento a qualquer altura e de qualquer forma que pareça conveniente;

(z) Gerir os assuntos corporativos e a administração diária dos Fundos;”.

            É certo que, nos termos da Cláusula 6.1 , do contrato entre a referida H…, enquanto Sociedade Gestora, e os fundos (onde se inclui o B…), se prevê a possibilidade de aquela delegar a terceiras entidades, os poderes de gestão que lhe são conferidos em tal contrato. Todavia, nenhuma prova foi feita nos autos – e esse ónus incumbia à Requerente – de que tal faculdade haja sido exercida pela H…, com excepção do documento datado de 03/12/2017, que se limita a conceder poderes à Requerente para representar a H… e o B… na presente acção arbitral, e para pedir o reembolso de imposto retido na fonte pela AT, em 2013, sobre juros de obrigações.

            Nestes termos, há que considerar não provado que a Requerente seja a sociedade gestora do B…, uma vez que, face à prova produzida, nada aponta nesse sentido, indiciando-se, pelo contrário, que tal papel cabe à H… .

            Já o segundo facto dado como não provado deve-se, essencialmente, à ausência de qualquer prova a seu respeito. Com efeito, dos documentos juntos, apenas se pode concluir que em determinado momento (conforme decorre dos documentos 3 a 5 juntos pela Requerente), numa conta em nome da Requerente estavam depositadas as obrigações em questão, e que tais obrigações terão sido passadas à C…, contra pagamento na mesma conta, sobre os quais houve retenções tributárias. Nada se retira quanto à forma como as obrigações em questão foram parar à conta em causa, designadamente se foram adquiridas à E…, ou a terceiros que a hajam, directa ou indirectamente, adquirido àquela, nem por quem, e/ou em nome de quem, terão as obrigações em causa sido adquiridas.

 

 

B. DO DIREITO

 

A Requerente, conforme resulta do seu Requerimento inicial, apresenta-se perante este Tribunal arbitral em representação do B…, pedindo o reembolso de imposto indevidamente retido àquele, sobre rendimentos provenientes de juros de obrigações susceptíveis de permuta com acções representativas do capital social da D…, com o Código ISIN PT…, que terão sido objecto de retenção na fonte, aquando da transmissão à C… e, outra vez, aquando do vencimento dessas mesmas obrigações.

Tendo sido colocadas dúvidas quanto à existência de poderes de representação do referido B…, pela Requerente, para proposição da presente acção arbitral, a Requerente veio saná-las, apresentando o documento datado de 03/12/2017, que comprova os seus poderes para representar aquele fundo (e a H…) na presente acção arbitral, e para pedir o reembolso de imposto retido na fonte pela AT, em 2013, sobre juros de obrigações.

            Face aos referidos dados – a forma como a Requerente se apresenta em juízo (como representante do B…), e a documentação junta (que a legitima para tal) – ficam afastadas qualquer dúvidas relativas à legitimidade processual da Requerente para se apresentar em juízo nos termos em que o fez.

            Posto isso, haverá que avançar para o fundo da causa, que, tal como configurado pela Requerente, consiste em aferir se, efectivamente, o referido B…, foi, ou não, objecto de dupla tributação.

            Compulsada a matéria de facto assente, verifica-se que não é possível confirmar que tal tenha ocorrido.

            Com efeito, apura-se que na conta com o número…, dos Agentes F… (da E…) e Credit G… (da Requerente), foi efectuada, a 23/09/2013, retenção na fonte à taxa de 35% sobre o valor dos juros corridos contabilizados desde a data do último pagamento do cupão até essa data, tendo sido efectuada nova retenção, nos mesmos termos, a 28/09/2013, data do vencimento e pagamento dos juros do cupão, sobre o valor total dos juros corridos contabilizados desde a data do último pagamento do cupão até esse dia 28/09/2013.

            Tal situação indicia, para lá de qualquer dúvida razoável, a ocorrência de uma situação de dupla tributação, tal como alega a Requerente.

            A questão que se coloca, então, é se o sujeito passivo dessa dupla tributação foi, efectivamente, o B… .

            Face à matéria de facto dada como provada, a resposta a tal questão não poderá deixar de ser negativa.

            Com efeito, tanto quanto, face aos elementos que a Requerente entendeu por bem apresentar, foi possível apurar, a conta onde foram efectuadas as retenções na fonte em questão, era titulada pela Requerente, e não pelo B… .

            Também tanto quanto, face aos elementos que a Requerente entendeu por bem apresentar, foi possível apurar, não se comprovou que a Requerente fosse a sociedade gestora do B…, antes resultando dos elementos disponíveis que tal qualidade cabe à H…, não se comprovando igualmente, face à ausência de qualquer documentação nesse sentido, que a Requerente tenha adquirido as obrigações em questão no presente processo, em representação (em nome) do B… .

            Face a tais circunstâncias, não é possível validar, para lá de qualquer dúvida razoável, que o B…, representado na presente acção pela Requerente, tenha sido sujeito passivo da dupla tributação que tudo indicia se ter verificado.

            Ora, o certo é que a Requerente funda a pretensão sub iudice na dupla tributação do referido Fundo, que, tudo visto, não se comprova, pelo que necessariamente terá tal pretensão de naufragar.

            Trata-se, aqui, de um caso da chamada ilegitimidade substantiva, em que a parte que se apresenta em juízo como titular da relação material controvertida – no caso, o Fundo, representado processualmente pela Requerente – não comprova, a final, que o seja.

            Como se escreveu a este respeito, no Ac. do STJ de 02-06-2015, proferido no processo 505/07.2TVLSB.L1.S1[1]:

“Nos termos do disposto pelo artigo 30º, nº 1, do CPC, ”o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar”, interesse este que se exprime, continua o seu nº 2, “pela utilidade derivada da procedência da acção”, acrescentando o respetivo nº 3 que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Para o estabelecimento de um princípio da legitimidade das partes partiu-se, desde logo, com início no DL nº 224/82, de 8 de Junho, prosseguido pela Reforma de 1995/96, de uma formulação do artigo 26º, nº 3, do CPC, então, em vigor, que tem subjacente a titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, com vista à fixação de um critério normal de determinação da legitimidade das partes, limitada, porém, ao âmbito da definição da legitimidade singular, direta e pessoal, de modo a que, por exclusão, já não depende das meras invocações do autor, veiculadas no articulado inicial, mas antes da efetiva configuração da situação em que assenta, afinal, a própria legitimação dos intervenientes no processo, a legitimação extraordinária ou anómala, atribuída a quem não é titular da relação jurídica controvertida, objectivada na exigência de litisconsórcio ou na atribuição de legitimidade indireta[3].

Com efeito, a filosofia em que assenta esta nova redefinição do paradigma do estabelecimento do critério da legitimidade das partes, na esteira da posição doutrinária de Barbosa de Magalhães[4], na querela que o opôs a Alberto dos Reis, tem por base a consideração de que a questão da titularidade ou pertinência da relação material controvertida se interliga, fortemente, com a apreciação do mérito da causa, ao passo que os pressupostos em que se baseia, quer a legitimidade plural [litisconsórcio], quer a legitimação indirecta [representação ou substituição processual] aparecem, geralmente, destacados do objecto do processo, enquanto questões prévias, condicionando a possibilidade da prolação de decisão sobre o mérito da causa.

É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade[5].

Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva.”.

            Eventualmente, e tendo em conta a matéria de facto apurada, poderia ter sido a própria Requerente, e não o B…, sujeito passivo da dupla tributação que terá ocorrido.

            Contudo, não é essa a relação jurídico-tributária configurada pela Requerente neste processo, ou seja, a Requerente não se apresenta em juízo em nome próprio, como sujeito passivo da relação jurídico-tributária controvertida, mas antes como representante do referido B…, que é quem se apresenta em juízo como lesado.

            Assim sendo, não poderá essa putativa relação jurídico tributária entre a Requerente, em nome próprio, e a AT nacional, ser conhecida no âmbito da presente acção arbitral, um vez que, por um lado, não integra o seu objecto e, por outro, a Requerente, em nome próprio, não é parte na acção (intervindo, unicamente, na qualidade de representante do Fundo).

            Ao contrário do que a Requerente parece entender, a titularidade da relação jurídico-tributária controvertida não é indiferente para o desfecho da acção.

            Efectivamente, a Requerente alega, no último requerimento apresentado no processo, que “a AT reconheceu à Requerente legitimidade para ser “alvo” da retenção na fonte de imposto, em representação do Fundo”, não tendo, demonstrado, todavia, que as retenções na fonte hajam sido efectuadas em representação do Fundo, nem que a AT o haja reconhecido.

Por outro lado, confirmando, no mesmo Requerimento, que se apresenta “em representação do Fundo, para efeitos de pedido de reembolso de imposto indevidamente retido na fonte”, conclui que “ou bem que é reconhecida à Requerente legitimidade para ser “alvo” de retenção de imposto e, por conseguinte, para pedir, também, o reembolso desse mesmo imposto indevidamente retido (...) Ou bem que, a não ser reconhecida à Requerente legitimidade para pedir o reembolso de imposto indevidamente retido na fonte, também lhe deve ser reconhecida a falta de legitimidade para ser “alvo” da retenção efectuada, caso em que o valor retido lhe deve ser devolvido”.

Ora, a questão é que a Requerente confunde, misturando as qualidades em que actua, a sua legitimidade (substantiva) em nome próprio, com a sua legitimidade (substantiva) em representação do Fundo. Com efeito, apurando-se que os rendimentos, e consequente tributação, ocorreram na esfera do Fundo, será reconhecido o direito à Requerente, para em nome daquele, pedir a devolução da tributação duplicada. Do mesmo modo, apurando-se que os rendimentos, e consequente tributação, ocorreram na esfera da Requerente, será reconhecido o direito à Requerente, para em nome próprio, pedir a devolução da tributação duplicada. Todavia, nem pode ser reconhecido o direito à Requerente de:

-                          pedir a devolução da tributação duplicada, em nome próprio, apurando-se que aquela se deu na esfera do Fundo; nem de

-                          pedir a devolução da tributação duplicada, em nome do Fundo, apurando-se que aquela se deu na esfera própria da Requerente.

Não se pode olvidar que a Requerente é que está na posição certa para saber em nome de quem ocorreu tributação e operar a correspondente demonstração, que a onera em termos de prova, por ser interveniente directa nos factos que a geraram. A Requerente é que está na posição correcta para saber se, de facto, actuou em Representação do Fundo, e produzir a correspondente prova que constitui seu ónus, tanto mais que, em juízo, pelo menos, a AT questionou, oportunamente, tal representação (tanto na Resposta, no ponto 6.2.1.1, como no exercício do contraditório após a junção de traduções pela Requerente, onde, para além do mais, alegou que “a Requerente não comprova a qualidade que alega para efeitos de representação da B… nos presentes autos”).

Assim, se de facto, a operação (duplamente) tributada foi executada pela Requerente em nome do Fundo, deveria a Requerente ter produzido a competente prova, em termos de não restarem dúvidas razoáveis de que assim foi. E se, pelo contrário, tal prova não existe, não é possível, ou, em todo o caso, não foi assim que as coisas ocorreram, tendo a Requerente actuado em nome próprio e sendo, por isso, ela o sujeito passivo da tributação, deverá apresentar-se em juízo nessa qualidade (em nome próprio) – e não em representação de um terceiro alheio à relação jurídico-tributária – a pedir o que seja seu direito.

Deste modo, não se comprovando que o Fundo, aqui representado pela Requerente, tenha sido sujeito passivo da dupla tributação indiciada, ou, dito, de outro modo, titular da relação material controvertida, haverá que concluir, nas palavras do Acórdão do STJ supra-citado, pela “improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva”, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerida.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)      Absolver a Requerida do pedido; e

b)      Condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 99.678,08, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa 13 de Fevereiro de 2017

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Gustavo Lopes Courinha

vencido, conforme declaração de voto, a qual faz parte integrante da presente decisão)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(João Sérgio Ribeiro)

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Votámos contra a decisão constante do presente acórdão, pelas seguintes considerações:

1. Julgamos resultar demonstrado, da instrução do presente Processo Arbitral, que os rendimentos de juros foram objeto de uma dupla tributação;

2. Tal dupla tributação, atento o disposto no n.º 5 do artigo 5.º do Código do IRS - que ficciona como "juros" tais rendimentos - traduz uma dupla coleta, porquanto se tratam dos mesmos rendimentos, com a mesma natureza (apenas se discutindo a esfera em que se produziram), tendo as retenções na fonte sido promovidas pelo F… enquanto substituto tributário (juntas pela Requerente, sob os documentos 4 e 5);

3. Acresce que, embora acompanhemos a generalidade da descrição fáctica constante da decisão, não consideramos não provado que a Requerente seja a sociedade gestora do B…, atento o disposto na cláusula 6.1, por via da qual, precisamente, a sociedade H… concede vastos poderes de atuação à ora Requerente - como, aliás, faz sentido que seja, atenta a natureza normalmente pouco substancial das organizações constituídas em jurisdições de baixa tributação (como são as Cayman Islands), que por isso delegam tais poderes a outras entidades com expertise financeira (de que Hong-Kong é um bom exemplo). A outorga de tais delegações não carece, as mais das vezes, de nenhuma formalidade especial; daí a emissão de uma declaração, junta aos autos em 10 de Janeiro, para confirmar tais poderes (doc. 2 e respetiva tradução);

4. Tão pouco é irrelevante o facto de a tributação dizer respeito à mesma factualidade económica (tratam-se exatamente dos mesmos juros, tributados em dois momentos distintos), apenas se discutindo a esfera jurídico-fiscal em que a tributação se produz - a da Requerente ou a do Fundo por este representado;

5. Julgamos ser, ao invés, possível suprir uma eventual desconformidade entre a qualidade em que a Requerente atua - no caso, de sociedade gestora do Fundo, para atuante em nome próprio;

6. É, embora com pressupostos diferentes, o que sugere a própria Requerida, no ponto 5 do requerimento de resposta ao Despacho de 13 de Janeiro deste Tribunal, de modo a suprir eventuais incoerências entre a situação substantiva e a situação processual: "Deverá a petição inicial ser corrigida ou aperfeiçoada, para efeitos da modificação subjetiva da instância...";

7. Acresce que, tendo manifestamente a Requerente incorrido na tributação dos mesmos juros em que a sua representada já havia incorrido, nada devia obstar à redefinição daquela qualidade, uma vez que todos os elementos para o efeito se encontravam na disponibilidade do Tribunal - apenas a qualidade da atuação poderia não ser rigorosa;

8. Ainda de salientar, julgamos ser o facto de ambas as retenções na fonte terem sido promovida por um ente terceiro (F…), pouco preocupado em determinar a natureza de património autónomo (ou não) do Fundo aqui em causa - nem, aliás, a isso estava obrigado, atento tratar-se de um fundo constituído à luz da legislação das Ilhas Cayman. O F… limitou-se a proceder à transferência dos montantes e a proceder à respetiva retenção na fonte para o cliente indicado (tratando, aparentemente, o Fundo como um fundo não autónomo, parte do património da ora Requerente);

9. Questionar, em sede judicial, a qualificação feita por aquela instituição (F…) pelo facto de a mesma ser desconforme com a regulação societária e fiscal nacional (que reconhece a qualidade de fundo autónomo aos Fundos, aos quais atribui número de identificação fiscal próprio) é um preciosismo formal para nós pouco compreensível;

10. Cremos, aliás, que a boa-fé exigível na relação contribuinte-Administração Fiscal impunha que, após uma relação procedimental iniciada com a apresentação de reclamação graciosa em Dezembro de 2014 - na qual nunca contestou (mas antes reconheceu, por omissão) a qualidade que a requerente invocava - esta se abstivesse de invocar a ilegitimidade da Requerente;

11. Sucede, por último, que (embora, porventura, inconscientemente) o facto de o Fundo que a Requerente representa se localizar numa zona de baixa tributação (vulgo, offshore) pode ter conduzido o intérprete (a começar pela AT) a supostas decisões justicialistas. É que, não só tal papel de repressão daquelas jurisdições está reservado ao legislador - o qual, aliás, já à data tratava a uma taxa especialmente penalizadora de 35% os rendimentos obtidos por entidades localizadas nestas jurisdições suspeitas - como, por meio da interpretação avançada pela AT (e ora sustentada pelo presente Tribunal), a esses 35% acrescem uns outros 35%, no que configura uma tributação acumulada de 70%;

 

            Por tudo isto, deveria o ato de indeferimento da reclamação graciosa ser anulado e devolvido o montante tributado em duplicado, como solicitado pela Requerente; e por isso, lavrámos o presente voto de vencido.

 

Lisboa 13 de Fevereiro de 2017

O Árbitro Vogal

 

 

(Gustavo Lopes Courinha)