Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 151/2013-T
Data da decisão: 2013-11-15  IRC  
Valor do pedido: € 3.611.839,41
Tema: Incompetência em razão do valor
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Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

 

Processo n.º 151/2013-T

 

 

Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Guilherme W. d'Oliveira Martins e Dr. Luís Janeiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29-8-2013, acordam no seguinte:

 

A… – , SGPS, S.A., NIPC (doravante designada como “Requerente”), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, com vista à:

 

(i) Declaração de ilegalidade dos actos de correcção da matéria tributável da Requerente em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, relativos aos exercícios de 2009 e 2010, nos valores de € 8.000.874,16, no que se refere ao exercício de 2009, e € 6.446.483,47, no que se refere ao exercício de 2010, num total de € 14.447.357,63, com a sua consequente anulação nos montantes referidos;

(ii) Subsidiariamente, declaração de ilegalidade das correcções referidas, e sua consequentemente anulação no que respeita aos montantes de pelo menos € 7.668.589,23, no que se refere ao exercício de 2009, e de € 6.311.678,97, no que se refere ao exercício de 2010, num total de € 13.980.268,20;

(iii) Condenação da Requerida a ressarcir à Requerente das despesas, resultantes da lide, com honorários de mandatários judiciais, a liquidar em execução de julgados.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 01-07-2013.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Prof. Doutor Guilherme W. d'Oliveira Martins e o Dr. Luís Janeiro, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 13-08-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 29-08-2013.

Em 3-10-2013, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que suscitou excepções da inimpugnabilidade dos actos objecto do pedido de pronúncia arbitral, da incompetência do Tribunal Arbitral derivada do valor da causa e da intempestividade, em relação ao pedido relativo à correcção referente ao ano de 2010, e defendeu a improcedência dos pedidos.

Em 8-10-2013, a Requerente apresentou por escrito resposta às excepções e juntou documentos.

No dia 28-10-2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que se acordou não haver lugar a produção de prova testemunhal e prosseguir o processo com pronúncia da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre o requerimento de resposta e junção de documentos e prolação da decisão arbitral no dia 25-11-2013.

Em 8-11-2013, a Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se sobre o requerimento de resposta e junção de documentos pela Requerente, mas pronunciou-se também, novamente, sobre as excepções que suscitara na resposta para além de juntar documentos.

Em 12-11-2013, a Requerente pronunciou-se sobre o requerimento apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 8-11-2013.

Não há nulidades.

Antes de mais há que apreciar as excepções suscitadas, sendo certo que, se for julgada procedente alguma delas, ficará prejudicado o conhecimento da subsequente ou subsequentes na ordem de apreciação. Com efeito, cada uma das excepções, só por si, será um obstáculo intransponível à apreciação do mérito da causa, justificando uma decisão de absolvição da instância [artigo 89.º, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], pelo que, a proceder uma delas, não terá utilidade apreciar qualquer outra.

 

 

2. Excepções

 

Pela Autoridade Tributária e Aduaneira são suscitadas três excepções:

 

– a da inimpugnabilidade dos actos de correcção da matéria tributável de IRC dos anos de 2009 e 2010 cuja declaração de ilegalidade é pedida

– a da incompetência do Tribunal Arbitral por o valor da causa exceder o limite de € 10.000.000,00 previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março;

– a da intempestividade, quanto à determinação da matéria colectável do ano de 2010.

 

Destas questões prévias, há que apreciar em primeiro lugar a questão da incompetência, já que é logicamente prioritária, pois, se o Tribunal Arbitral não tiver competência para o presente processo, não poderá apreciar qualquer outra questão.

Aliás, essa prioridade de conhecimento das questões de competência está expressamente reconhecida o artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que estabelece que «o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria», subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, alínea c), do RJAT.

 

2.1. Apreciação da questão da incompetência

 

Os actos cuja declaração de ilegalidade é pedida são os de correcção da tributável e não as demonstrações de liquidação subsequentes, sendo este um ponto que é inequivocamente esclarecido na resposta da Requerente às excepções, em que defende, além do mais:

 

– a Requerente entende serem «na esmagadora maioria dos casos» as «demonstrações de liquidação» utilizadas para «função que nada tem que ver com a liquidação de imposto: função de registar de um modo padronizado uma liquidação preexistente, de registar e espelhar um acto tributário preexistente» (artigo 11.º da resposta às excepções);

– os dois actos que impugna não dão origem à liquidação de qualquer imposto, são actos tributários (de correcção da matéria tributável, por oposição a liquidação adicional de imposto) finais, foram praticados por quem se arroga e tem competência para tanto: o Director da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) – que detém as competências de inspecção tributária dos grandes contribuintes –, que sancionou em termos finais as conclusões da inspecção, incluindo o “mapa resumo das correcções resultantes da inspecção” (artigo 15.º da resposta às excepções);

– os actos de correcção da matéria tributável são, pois, os que se encontram documentados no Relatório final da Inspecção Tributária (Docs. n.ºs 1 e 2 juntos com o pedido de constituição de Tribunal Arbitral), e nenhum outro (artigo 18.º da resposta às excepções);

– e não sendo os actos tributários aqui em causa (correcção para menos de prejuízos fiscais) actos que dêem origem à liquidação de qualquer imposto, são actos finais do procedimento tributário e actos impugnáveis nos termos legais (quer na arbitragem tributária – artigo 2.º, n.º 1 alínea b) do RAT – quer no processo judicial tributário – artigo 97.º, n.º 1, alínea b) do CPPT) (artigo 19.º da resposta às excepções);

– actos finais estes que operam a modificação jurídica visada sem necessidade de quaisquer outros, que nada acrescentarão nem legalmente lhes está cometida tal função; as “demonstrações de liquidação de IRC” só têm uma função de acrescer, só representam o acto final e inovador do procedimento tributário, quando a correcção dá origem a uma liquidação adicional de imposto (artigo 20.º da resposta às excepções).

 

Aliás, a opção da Requerente por impugnar os actos de fixação da matéria tributável e não actos de liquidação evidencia-se pela referência que no pedido de pronúncia arbitral faz à alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e não à sua alínea a).

Por isso, tem de considerar-se assente que os actos cuja declaração de ilegalidade e anulação são pedidas são os de correcção da matéria tributável da A… em sede de IRC relativos aos exercícios de 2009 e 2010, nos montantes de € 8.999.874,16 e € 6.446.483,47, respectivamente.

 

2.1.1. Posições das Partes

 

2.1.1.1. Posição da Autoridade Tributária e Aduaneira

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira invoca como suporte da excepção da incompetência o seguinte, em suma:

 

– o valor referente à utilidade económica do pedido no entender da Requerente ascende a €3.611.839,11, correspondente à aplicação da taxa à matéria tributável corrigida (€ 14.447.357,63 X 25%);

– a Requerente submeteu à apreciação deste Tribunal Arbitral, a legalidade dos actos de fixação da matéria tributável, que, alegadamente, não deram origem a liquidação de imposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT;

– esses actos são consubstanciados nos relatórios de inspecção tributária que, mediante correcção da matéria tributável, determinaram uma correcção aos prejuízos fiscais referentes aos exercícios de 2009 e 2010, contestando-se no presente pedido os montantes de € 8.000.874,16 e € 6.446.483,47, respectivamente, num total de €14.447.357,63;

– a fórmula utilizada pela Requerente para determinar a utilidade económica do pedido encontra-se desde logo eivada, na medida em que a Requerente submete à apreciação do presente tribunal arbitral a legalidade dos actos de fixação da matéria tributável, que alegadamente, não deram origem à liquidação de imposto, mas para efeitos de determinação do valor da causa, aí sim, já não estão em causa os actos de fixação da matéria tributável, mas sim o valor do imposto que se obteria pela aplicação da taxa à matéria tributável contestada;

– a utilidade económica do pedido nunca poderá corresponder ao valor obtido pela aplicação da taxa à matéria tributável contestada;

– mas sim ao valor a que correspondem os actos de fixação da matéria tributável e que se consubstanciam em correcções à matéria tributável os quais se reflectiram numa correcção aos prejuízos fiscais referente aos exercícios de 2009 e 2010, que a Requerente contesta nos montantes de € 8.000.874,16 e de € 6.446.483,47 respectivamente;

– os actos que a Requerente pretende ver sindicados neste Tribunal Arbitral, são os actos de fixação da matéria tributável titulados nas correcções aos prejuízos fiscais, e não, no ficcionamento da aplicação da taxa à matéria tributável corrigida;

– logo, a utilidade económica do processo terá de ser necessariamente a que corresponde ao valor das correcções à matéria tributável, ou seja dos actos de fixação referentes a 2009 e 2010 contestados, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT;

– ora, na alínea b) do n.º 1 do artigo 97-A.º do CPPT referente ao valor da causa determina que:

«Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:

b) Quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado»

– atenta a delimitação do objecto do presente litígio pela Requerente, estando em causa os actos de fixação da matéria tributável referente aos exercícios de 2009 e 2010 no valor total de € 14.447.357,63, a utilidade económica do pedido é a do valor contestado, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 97-A.º do CPPT;

– neste desiderato, o valor do pedido arbitral ascende a € 14.447.357,63;

– todavia, determina-se no n.º 1 do artigo 3.º da Portaria n.º 112-A/2011de 22 de Março, que prescreve o regime de vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, que:

«A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.»

– pelo que se afere que o presente processo extravasa o âmbito do valor sob o qual se vinculou a AT no âmbito dos litígios submetidos à jurisdição dos tribunais arbitrais;

– nestes termos, conclui que o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, ambos da Portaria n.º 112-A/2011, o que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa e que justifica a absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira da instância, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, alínea a), do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

 

2.1.1.1. Posição da Requerente

 

A Requerente defende, em suma, o seguinte:

 

– é um facto que os actos tributários aqui em causa não deram origem à liquidação de qualquer imposto: o procedimento tributário em que foram gerados não originou qualquer liquidação de imposto, quer se olhe ao relatório da inspecção tributária onde se encontra documentado esse acto praticado pela entidade competente para o fazer, quer se olhe ao registo desse mesmo acto constante da “demonstração de liquidação de IRC”;

– e é um facto também que o valor económico desse acto de correcção dos prejuízos fiscais para menos é, no máximo, o valor do imposto futuro que seria pago a menos via reporte fiscal de prejuízos para os exercícios subsequente, potencial redução de imposto este que deixou de estar disponível por força do acto tributário de correcção que eliminou esses prejuízos/determinou que eram inexistentes;

– no máximo, dizia-se, porque não há nenhuma garantia de que se gerarão lucros no futuro a que possam ser deduzidos esse prejuízos dentro do limite temporal do reporte (já para não falar do valor temporal do dinheiro) – cfr. artigo 52.º do CIRC;

– computou pois, a requerente, o valor da causa pelo valor máximo que esta pode ter. E que pode ter, para ambas as partes – AT e contribuinte. Uma vez que a matéria tributável só se traduz em utilidade económica para o Tesouro na medida em que origine obrigação de imposto (medida essa que é uma função da taxa de imposto vigente);

– e indicou este valor da causa, i.e., o valor da utilidade económica do pedido (é esta a expressão, bem mais significante, usada pela legislação que aqui está em causa), no seu pedido de constituição de Tribunal Arbitral, conforme imposto pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT;

– é esta indicação que depois serve para verificar a correcção do valor da taxa arbitral e se o tribunal há-de ser singular ou colectivo, por exemplo;

– sendo inequívoco que o que releva no regime legal da arbitragem tributária é o critério material da utilidade económica do pedido (cfr. o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT), não surpreende que o Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária mande atender no apuramento do valor da causa, no caso de actos de fixação de matéria tributável que não dêem origem à liquidação de qualquer tributo (previstos no artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT), ao valor da liquidação a que o contribuinte pretenda obstar – cfr. o artigo 3.º, n.º 3, do referido Regulamento;

– liquidação esta a que o contribuinte pretenda obstar que, nas circunstâncias do caso, será tão-somente o aumento de imposto nos exercício futuros (e em sede de procedimentos tributários distintos) pela impossibilidade de utilizar os prejuízos fiscais corrigidos para menos ou, de outra perspectiva, pela impossibilidade de usar os prejuízos fiscais subtraídos pelo acto correctivo praticado pela Unidade dos Grandes Contribuintes;

– é este o valor do litígio, para referir agora directamente o artigo 3.º, n.º 1, da Portaria (de vinculação da AT à arbitragem tributária) n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que em sede tributária é sempre económico e passível de mensuração objectiva.

– dito de outro modo, o valor do litígio há-se ser o seu valor económico, sendo que o RJAT (em conjunto com o qual a referida Portaria n.º 112-A/2011, o Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Código Deontológico, perfazem o regime próprio da arbitragem tributária) confirma plenamente essa linha natural de identificação dos conceitos operativos relevantes, utilizando, como já se lembrou, a expressão “valor da utilidade económica do pedido” (cfr. o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT);

– que este é não só o valor do litígio à luz da concretização do mesmo adoptado pelo RJAT, mas também o seu valor natural (por oposição a valor artificial ou contra natura), é inequívoco, como se pensa ter mostrado supra. Mas além disso este valor natural do litígio é o único que permite preservar a coerência normativa e afastar desigualdades arbitrárias;

– um acto de fixação da matéria tributável, mesmo quando impugnável autonomamente como no caso (por ser o acto com que culmina o procedimento tributário), é sempre um acto instrumental e intermédio na sua relação com o imposto a que se dirige em termos finais o código do IRC. Desligado do potencial imposto nada representa, é uma inutilidade: em nada beneficia o Tesouro assim como em nada prejudica o contribuinte;

– só a sua relação com o imposto (no caso, meramente eventual) revela a sua utilidade e o benefício/prejuízo que acarreta para as partes na relação tributária em sede de IRC. O mesmo é dizer que só a sua relação com o imposto revela o seu valor para as partes, haja ou não litígio. Havendo litígio, é esta relação, e só ela, que revela justamente o seu valor (natural, real, substantivo). A que acresce ser este valor natural do litígio aquele que o RJAT acolheu (cfr. o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT);

– se se entender que a interpretação do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, deve ser a da AT, não obstante não ser este o valor natural do litígio e não obstante o que se retira do RJAT a este propósito (cfr. artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT) e do regulamento de custas da arbitragem tributária, então será forçoso concluir-se no sentido da inconstitucionalidade desta norma por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição de discriminações arbitrárias, da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais consagrados ou que se retiram dos artigos 2.º (Estado de direito democrático), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

– refira-se ainda a propósito do invocado pela AT artigo 97.-ºA, n.º 1, alínea b), do CPPT:

i) é aplicável apenas “às acções que decorram nos tribunais tributários” (cfr. o corpo do seu n.º 1), e aqui está-se perante uma “acção” em tribunal arbitral;

ii) O processo arbitral adopta o critério do “valor da utilidade económica do pedido” que por sua vez se identifica com o conceito natural de “valor do litígio”, que se diferencia o critério de “valor da causa” artificial e gerador de tratamentos desigualmente arbitrários, constante da referida norma do CPPT;

iii) Como critério artificial que é (César pode sempre decretar que 25 valem 100; mas o que nunca poderá é fazer com que realmente valham 100) o mesmo deve ser visto como norma excepcional inaplicável fora do âmbito de aplicação que a própria norma em causa define para si própria;

iv) Finalmente, a norma (o critério) constante da referida alínea b) do n.º 1 do artigo 97-A do CPPT é ela mesma inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição de discriminações arbitrárias, da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais consagrados e que se retiram dos artigos 2.º (Estado de direito democrático), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (conforma supra a outro propósito se tentou mostrar);

– está-se perante um processo em que há cumulação de pedidos envolvendo dois diferentes actos tributários (exercícios de 2009 e de 2010). Qualquer destes dois actos tributários se encontra, mesmo quando se olhe ao valor do litígio tal como propugnado pela AT na sua Resposta, abaixo do limiar dos 10 milhões de euros. E qualquer deles poderia ter sido/pode ser objecto de pedidos de constituição de Tribunal Arbitral separados. Só não foram em razão do uso/aplicação de uma norma que visa evitar a duplicação de tarefas e de gasto de recursos escassos, com isso pretendendo promover a economia processual;

– faz sentido impedir o operar desta norma e dos objectivos de economia processual por si prosseguidos impedindo-se que o Tribunal Arbitral conheça dos dois litígios (dois actos tributários distintos) num contexto em que mesmo à luz dos critérios propugnados pela AT na sua Resposta o Tribunal Arbitral pode conhecer dos dois separadamente? Crê-se que não há fundamento racional para se ler o regime da arbitragem tributária como impedindo esta junção de actos tributários distintos num mesmo processo, devendo aplicar-se o limite de 10 milhões de euros separadamente a cada litígio/acto tributário controvertido. Só isso permite conciliar as duas prescrições aqui em causa sem frustrar os objectivos de qualquer delas sem fundamento atendível.

 

2.2.2. Decisão da questão da incompetência

 

No caso em apreço, é pedida a declaração de ilegalidade de dois actos que efectuaram correcções à matéria tributável de IRC, no valor total de € 14.447.357,63, sendo de € 8.000.874,16 a correcção relativa ao ano de 2009 e de € 6.446.483,47 a correcção referente ao ano de 2010, defendendo a Requerente que o valor a atender é o de € 3.611.839,40 correspondente ao imposto que corresponde àquele valor global à taxa de 25%.

O artigo 4.º RJAT, na redacção inicial, estabeleceu que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça». ( 1 )

Ao abrigo desta norma, foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em cujo artigo 1.º se refere que a Direcção-Geral de Impostos (DGCI) se vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa.

No artigo 3.º da mesma Portaria definem-se os termos da vinculação, entre os quais se estabelece que «a vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10.000.000».

Como se vê por aquele artigo 4.º, os termos da vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não foi estabelecida por lei, sendo, antes, por ela atribuído aos ministros das finanças e da justiça um poder discricionário de, no exercício das suas competências administrativas (através de uma portaria, que tem natureza de acto regulamentar), definirem a vinculação da administração tributária àqueles tribunais arbitrais.

À face daquele artigo 4.º, para prossecução do fim para o qual o poder discricionário foi concedido, os membros do Governo nele indicados não poderiam deixar de estabelecer alguma vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, mas dele não resultam qualquer limitações aos termos dessa vinculação.

Esse poder discricionário foi concretizado através da Portaria n.º 112-A/2011, de 20 de Março, que determinou o âmbito da vinculação da administração tributária com base em vários critérios, um dos quais foi o de o valor dos litígios não ser superior a € 10.000.000,00.

Assim, o que está em causa, em primeira linha, quanto à questão da incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, é a interpretação desta referência ao valor dos litígios que consta do artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, designadamente, à face das regras de interpretação gerais (artigos 11.º, n.º 1, da LGT e 9.º do Código Civil) reconstituir o pensamento que está subjacente à fixação daquele valor de € 10.000.000,00 no que respeita ao âmbito da vinculação, quanto a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável que não deram origem a liquidação.

O RJAT não estabelece explicitamente qualquer critério para determinar o valor dos litígios arbitrais que têm por objecto a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável que não deram origem a liquidação, embora contenha normas que se referem ao valor dos litígios.

No artigo 5.º do RJAT, encontram-se três referências ao «valor do pedido», mas nenhuma indicação é dada sobre a forma de o determinar.

Outra norma que faz referência ao valor, é a alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º, em que se faz referência à «indicação do valor da utilidade económica do pedido», como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral, sendo nesta norma que a Requerente assenta a sua tese de que o valor da causa deve ser determinado com base no valor das correcções efectuadas multiplicado por 25%, que entende ser a taxa do imposto que corresponderia às correcções efectuadas.

Se é certo que esta alínea e) aponta no sentido de o valor do litígio dos processos arbitrais ser a «utilidade económica do pedido», também o é que a aplicação deste critério de determinação do valor da causa só é viável quando for possível determinar tal utilidade económica.

Na verdade, a viabilidade prática de aplicação de uma norma a uma determinada situação jurídica, constitui, naturalmente, um requisito indispensável da sua utilização, pois a impossibilidade natural é um obstáculo intransponível a tudo, inclusivamente à aplicação de qualquer norma a uma situação.

Por isso, a referida alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º tem de ser interpretada restritivamente, com a limitação natural e forçosa de que o valor dos processos arbitrais será a utilidade económica do pedido, quando for possível determinar tal utilidade.

Ora, há litígios englobáveis na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que não tem utilidade económica determinável, pois a sua definição depende de factores que não são conhecidos no momento da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral, nem mesmo o serão até ao termo do processo.

Estão entre esses casos de valor indeterminável à face do critério da utilidade económica, desde logo, a maior parte dos pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação de valores patrimoniais, previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pois, como sucede nos casos de valores patrimoniais de imóveis, o valor que for determinado ir-se-á repercutir num número não determinado e imprevisível de actos anuais de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis, para além de, eventualmente, actos ocasionais de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (artigos 12.º, n.º 2, e 14.º do Código de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis) e de Imposto do Selo (artigo 13.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo), e, normalmente, ainda actos de liquidação de taxas autárquicas conexionadas com infra-estruturas urbanísticas.

Sendo imprevisíveis quais os actos de liquidação em que se repercutirá a fixação de valores patrimoniais, é manifesto que a utilidade económica dos pedidos de impugnação de actos de fixação de valores patrimoniais não pode ser determinada e, por isso, não pode servir de critério de fixação do valor do litígio.

Semelhante inviabilidade de determinação da utilidade económica do litígio ocorre nos casos de pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, designadamente por a matéria tributável ser negativa (prejuízos fiscais), como sucede no caso dos autos.

Na verdade, nestes casos, os prejuízos apurados poderão mesmo nunca vir a ser relevantes para a prática de qualquer acto de liquidação, pois essa relevância dependerá de em algum ou alguns dos períodos de tributação em que for legalmente admissível fazer o reporte dos prejuízos vir a ser apurado lucro tributável sem recurso a métodos indirectos e não existirem prejuízos referentes a outros períodos de tributação anteriores que excedam esse lucro tributável (artigo 52.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRC).

Para além disso, a relevância fiscal dos prejuízos apurados dependerá ainda de, à data do termo do período de tributação em que é efectuada a dedução e em relação ao período a que respeitam os prejuízos, não ter sido modificado o objecto social da entidade a que respeita ou alterada, de forma substancial, a natureza da actividade anteriormente exercida e não se ter verificado a alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto, a não ser que haja autorização do Ministro das Finanças (artigo 52.º, n.ºs 8 e 9, do CIRC).

Por outro lado, nos casos em que os prejuízos venham a ser reportados e a relevar para a liquidação referente a algum dos anos em que a lei admite o reporte, a medida dessa relevância virá a ser definida pela taxa ou taxas dos tributos relativamente aos quais o lucro tributável for relevante.

E, para além da taxa aplicável especificamente ao IRC, que pode ser diferente da que é aplicável no ano em que se verificam os prejuízos fiscais, é de ter em conta que esses prejuízos podem relevar para efeitos de outros tributos conexionados com o IRC, como é o caso da quase sempre associada derrama municipal e de outros que as necessidades orçamentais, imprevisíveis mas omnipresentes, forem impondo, como é o caso de possíveis derramas estaduais, como sucedeu, para já, nos anos de 2011, 2012 e 2013 (artigo 87.º-A do CIRC, nas redacções das Leis n.ºs 12-A/2010, de 28 de Agosto, 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e 66-B/2012, de 31 de Dezembro).

A esta luz, é evidente a falta de correspondência com a realidade da aplicação de uma taxa de 25% ao valor dos prejuízos fiscais para determinar a utilidade económica do pedido, pois, para além de não se saber se os prejuízos fiscais irão ser reportados a algum período de tributação, sabe-se já que, se o tivessem sido nos anos de 2011, 2012 ou 2013, a utilidade económica do pedido seria superior à indicada pela Requerente, pois, para além de os prejuízos relevarem para efeitos de IRC, cuja taxa é de 25%, relevariam também para efeitos de derrama estadual, eventualmente de derrama municipal (dependendo do município ou municípios em que se situam as instalações da Requerente), e até mesmo dos acertos resultantes da regra do resultado da liquidação constante do artigo 92.º do CIRC, que poderiam inclusive fazer aumentar a taxa efectiva ( 2 ) aplicável.

Neste contexto, a determinação da utilidade económica do pedido aplicando uma imaginária taxa de 25% ao valor dos prejuízos, sem demonstrada sintonia com a tributação real conexionada com os prejuízos referidos, não pode ser considerada mais do que um palpite sobre a hipotética utilidade económica do pedido, se, eventualmente, puder vir a ser efectuado o reporte de prejuízos.

Isto significa que a dimensão da relevância dos prejuízos a nível dos tributos cuja liquidação poderão influenciar é indeterminável, apesar de ser seguro que, por as taxas dos tributos serem inferiores a 100% da matéria tributável, a utilidade económica dos pedidos de declaração de ilegalidade de actos que fixam prejuízos, se vier a concretizar-se através de reporte, será sempre inferior ao montante desses prejuízos.

Mas, sendo seguro que a utilidade económica dos pedidos declaração de ilegalidade de actos de fixação de prejuízos não se pode determinar, tem de se concluir que a referência que é feita no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, a litígios de valor não superior a € 10.000.000,00 não pode ser interpretada como tendo em vista, nestes casos de actos de fixação da matéria tributável que não deram origem a liquidação, a aplicação do impraticável critério da desconhecida utilidade económica do pedido.

Assim, não contendo o RJAT qualquer critério de determinação do valor dos litígios aplicável aos casos de pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável e sendo inviável determinar a utilidade económica desses pedidos, é de pressupor que aquela referência ao valor dos litígios que é feita no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 teve em mente o valor dos litígios tal como resulta do CPPT, que é a legislação subsidiária em relação ao RJAT em que se encontram, no artigo 97.º-A, regras expressas para a determinação do valor da causa, potencialmente aplicáveis a todas as situações referidas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.

Na verdade, estando previstos no artigo 97.º-A do CPPT os critérios legais de determinação do valor da causa nos processos tributários, é de presumir, partindo do pressuposto obrigatório de que o pensamento normativo foi expresso em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), de que, pelo menos nos casos em que é inaplicável o critério da utilidade económica do pedido, é a esses critérios do CPPT que se reporta o artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ao estabelecer que «a vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000».

Não há outros elementos normativos a que esta norma se possa reportar, designadamente o Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária, que o CAAD aprovou (ao abrigo do n.º 1 do artigo 12.º do RJAT).

Com efeito, apesar de este Regulamento também conter normas sobre a determinação do valor da causa, aplicáveis para efeitos de custas, não é sequer de aventar que os membros do Governo que emitiram esta Portaria quisessem referir-se a métodos de determinação dos valores dos litígios previstos naquele Regulamento, pois a aprovação deste apenas veio a ocorrer em Abril de 2011 (notícia na página do CAAD, relativa à arbitragem tributária), depois de ter sido emitida aquela Portaria, em Março desse ano.

Por outro lado, quanto a possível relevância posterior deste Regulamento, numa perspectiva actualista, deve ser rejeitada pois não seria compatível com o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, que estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», uma solução que se reconduzisse a que a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à arbitragem tributária ficasse na disponibilidade do CAAD, através das suas opções sobre a adopção de critérios de determinação do valor dos litígios.

Por isso, é seguro que o artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, ao referir o valor de € 10.000.000,00 como valor máximo dos litígios abrangidos pela vinculação, se reporta, no que concerne aos litígios cujo valor não pode ser determinado através da utilidade económica do pedido, ao valor que resultava da aplicação do artigo 97.º-A do CPPT, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.

Ora, este artigo 97.º-A do CPPT estabelece expressamente na alínea b) do seu n.º 1 que o valor atendível quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável é o valor contestado, e não a utilidade económica do pedido que, como se referiu, é indeterminável.

Por isso, é de concluir que é a litígios em que o valor do lucro tributável contestado não seja superior a € 10.000.000,00 que se reporta aquele artigo 3.º, n.º 1, quando está em causa a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável que não deram origem a liquidação.

Como é óbvio, o que está em causa para apreciação desta questão da incompetência é apenas a interpretação do artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e da averiguação da presumível intenção que lhe esta subjacente, pelo que as questões suscitadas pela Requerente quanto à inconstitucionalidade do artigo 97.º-A do CPPT em nada influenciam a decisão da questão.

Isto é, se se apurar, como se apurou, que a intenção materializada naquele artigo 3.º, nos casos de pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável que não deram origem a liquidação, é a de não vincular a administração tributária quando o valor contestado for superior a € 10.000.000,00, é indiferente que a norma em que se basearam para estabelecer tal limite seja ou não inconstitucional, pois nem era necessário terem-se baseado em qualquer norma.

A existência deste artigo 97.º-A, com o seu materializado teor, é uma realidade ontológica indelével e ele, independentemente da constitucionalidade das suas normas e sua validade jurídica, fornece um indício seguro de que a intenção subjacente ao artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 é a de que, relativamente aos litígios enquadráveis na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, se pretendeu vincular a administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apenas quando o valor contestado não for superior a € 10.000.000,00.

Assim, as questões de inconstitucionalidade de que fala a Requerente (designadamente a violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição de discriminações arbitrárias, da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais consagrados ou que se retiram dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) só podem relevar no caso em apreço, se, reportadas a este artigo 3.º, n.º 1, levarem a concluir pela inconstitucionalidade deste.

Neste contexto é de realçar, desde logo, que a nossa Constituição não impõe sequer a existência de tribunais arbitrais, admitindo apenas a possibilidade de existirem, no artigo 209.º, n.º 2 («Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz»).

Por isso, conclui-se que o legislador ordinário, que pode, sem violar a Constituição, nem sequer admitir a existência de tribunais arbitrais, também pode limitar a sua existência, no exercício da sua discricionariedade legislativa.

Por outro lado, na apreciação destas questões de inconstitucionalidade, não pode deixar de ter-se em mente que se está perante litígios em matéria de direito tributário, em que está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que se tomem cautelas, primacialmente quando se está perante um meio jurisdicional sem qualquer precedente no nosso direito e poucos exemplos comparáveis nos países com tradições jurídicas idênticas à nossa.

Na verdade, a arbitragem tributária pode vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de dar provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomenda que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justifica que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, como forma de compatibilizar a introdução no nosso sistema de justiça tributária deste meio facultativo de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público de assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

Não se vislumbra como essas restrições podem pôr em causa os princípios constitucionais do Estado de Direito democrático ou do acesso aos tribunais, pois este acesso não tem, à face da Constituição, de ser assegurado através de tribunais arbitrais e é generalizadamente admitido o acesso aos tribunais tributários estaduais, em relação a todos os actos lesivos em matéria tributária, como resulta dos artigos 95.º da LGT e 49.º e 49.º-A do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Também não se detecta violação do princípio da igualdade, enunciado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Este princípio, como limite à discricionariedade legislativa, não exige o tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante. O princípio da igualdade não proíbe se estabeleçam distinções, mas sim, distinções desprovidas de justificação objectiva e racional. ( 3 )

Ora, desde logo, constata-se que os limites à arbitrabilidade de litígios fiscais previstos no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 são aplicáveis a todos os cidadãos, sem qualquer discriminação.

Por outro lado, a distinção entre actos de liquidação e actos de fixação da matéria tributável, a nível dos limites à arbitrabilidade, justificava-se, desde logo, à face a redacção inicial do RJAT, perante os diferentes efeitos que eram atribuídos à apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a esses tipos de actos (os previstos no artigo 14.º não se aplicavam aos pedidos de declaração de ilegalidade de actos de liquidação).

Tal distinção em relação à impugnação dos actos de fixação da matéria tributável que não dão origem a liquidação justifica-se ainda pela imprevisibilidade das suas consequências a nível da cobrança de tributos, que não existem nos casos em que é impugnado um acto de liquidação que fixe com exactidão os interesses pecuniários que estão em causa.

Para além disso, aos contribuintes que pretendem impugnar actos de fixação da matéria tributável que não dá origem a liquidação de qualquer tributo não pode ser reconhecido um interesse tão relevante como aos que impugnam actos de liquidação, já que estes têm uma lesividade imediata, por imporem uma obrigação de pagamento de uma quantia, o que não sucede com os primeiros, que até poderão não virem a materializar-se em qualquer efeito lesivo, se não se vierem a verificar-se as condições necessárias para o reporte de prejuízos.

Por isso, se compreende uma distinção entre os dois tipos de actos a nível das garantias dos contribuintes, pois a lesividade efectiva e actual justifica maiores garantias de protecção dos contribuintes que a meramente diferida e hipotética. Tal distinção justifica-se, desde logo, a nível das exigências feitas aos contribuintes para afastarem a lesividade, pois, quando são impugnados actos de liquidação, a lesividade, quando não está já consumada através do pagamento da quantia liquidada, tem de ser afastada através da prestação de garantia ou equivalente enquanto a impugnação de actos que não deram origem a liquidação dos tributos não gera nenhuma situação de lesividade imediata.

Aliás, esta justificada distinção entre os dois tipos de actos, a nível da protecção concedida aos contribuintes, é evidente no RJAT, à face dos prazos fixados no artigo 10.º, n.º 1, para apresentação dos pedidos de pronúncia arbitral, que são de 90 dias no caso de actos de liquidação e actos que conheçam da legalidade de actos de liquidação e apenas de 30 dias quando estão em causa actos de fixação da matéria tributável.

E, pela mesma razão, também se justificará que ao introduzir no nosso sistema jurídico um meio especialmente célere de resolução jurisdicional de litígios em matéria tributária, se tenha dado preferência no acesso aos casos em que é actual a situação de lesividade gerada, admitindo-se maior acesso, a nível da utilidade económica do litígio, para os casos em que são impugnados actos de liquidação do que o que se permite nos casos em que são impugnados actos de fixação da matéria tributável.

No que concerne a violação do princípio da proporcionalidade, a Requerente não explica em que é que se consubstancia a sua violação pelo artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, designadamente não demonstrando que a opção aí materializada não é necessária para assegurar, com prudência, a protecção do interesse público da cobrança de tributos em relação a impugnações de actos que o podem afectar de forma imprevisível.

Assim, essa opção governativa consubstanciada no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, entendida como limitando a vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios que tenham por objecto actos de fixação da matéria tributável em que o valor contestado não seja superior a € 10.000.000,00 não é incompaginável com as normas constitucionais invocadas pela Requerente.

No caso em apreço, o valor contestado é o de € 14.447.357,63, pelo que é este o valor do litígio relevante para efeitos do artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011.

É indiferente, para este efeito da limitação de competência, que sejam impugnados dois actos de valores individuais inferiores a € 10.000.000,00, pois a formulação de pedidos cumulados, que foi opção da Requerente, gera um único litígio de valor global superior àquela quantia e é em relação ao valor dos litígios e não de cada um dos actos que o integram que aquele artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 estabelece o limite à arbitrabilidade, o que se justifica por ser único e global também o interesse público que está em causa no processo. Isto é, se ocorresse um erro de julgamento total o interesse público seria ou poderia ser afectado na medida cumulada dos actos e, por isso, será esse valor total o que se tem de considerar.

A tese da Requerente, que se reconduz a poderem ser cumulados pedidos de declaração de ilegalidade de um número indeterminado de actos desde que cada um deles não fosse de valor superior a € 10.000.000,00, permitiria que num único processo arbitral pudesse estar em causa um valor enorme, contra o que recomenda a prudência, perante a eventualidade de um erro de julgamento lesivo do interesse público e as reduzidas possibilidades de impugnação e recurso das decisões arbitrais.

Assim, sendo o valor do litígio superior ao de € 10.000.000,00 que no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 se indica como o limite da vinculação do Autoridade Tributária e Aduaneira à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, tem de se concluir que este Tribunal Arbitral é incompetente, em razão do valor da causa, para conhecer do litígio que é objecto do pedido de pronúncia arbitral.

Procede, assim, a excepção da incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, o que justifica a sua absolvição da instância [artigo 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 2013, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

 

3. Questões de conhecimento prejudicado

 

Procedendo a excepção da incompetência, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de ser absolvida da instância, como se referiu, pelo que fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no presente processo [artigo 608.º, n.º 2, do CPC de 2013, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

4. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente a excepção da incompetência deste Tribunal Arbitral em razão do valor do litígio;

  2. Julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo;

  3. Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 14.447.357,63.

 

6. Custas

 

O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada, e, como se disse, a regulamentação do regime de custas foi deixada pelo artigo 12.º do RJAT, na sua exclusiva disponibilidade, ao estabelecer que «é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objectiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa».

E este Regulamento tem, efectivamente, normas próprias para determinar o valor para efeitos de custas, que são os n.ºs 2 e 3 do seu artigo 2.º, que estabelecem que «o valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário» )(n.º 3) e que «o valor da causa nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem é o da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar» (n.º 3).

Este critério especial de atribuição do valor, para efeitos de custas, previsto neste n.º 3, que tem por base a «liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar», era manifestamente praticável nos casos enquadráveis na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pois, aí se previa a possibilidade de «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação» (norma que veio a ser revogada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro).

No que concerne aos casos enquadráveis na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, designadamente pedidos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável, que é o caso dos autos, apenas será viável a aplicação deste critério de determinação do valor com base no acto de liquidação que se pretende evitar nos casos em que daquele acto de fixação resultar a possibilidade de prática de algum acto de liquidação cujo conteúdo for determinável, o que não sucede nos casos em que o valor do lucro tributável é negativo, pelo que atrás se referiu.

Não é claro, assim, o alcance daquela norma do Regulamento de Custas ao estabelecer, para todos os casos enquadráveis na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT que o valor a considerar, para efeitos de custas é «o da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar».

De qualquer modo, aplicando à letra esta disposição, e tendo em conta que, no caso dos autos, a Requerente faz referência ao «imposto potencial associável às duas correcções» (artigo 5.º do pedido de pronúncia arbitral), que, na sua perspectiva será o de uma imaginária liquidação a que pretende obstar, entende-se que será esse o valor a considerar para efeitos de custas, até porque a alternativa que abstractamente se vislumbra como viável, que é a de considerar o valor contestado também para efeitos de custas, é de afastar, por ser evidente, à face da referida norma do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas, que se pretendeu que não fosse esse o valor a considerar para efeitos de custas. Na verdade, se se pretendesse que, nos casos enquadráveis na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o valor contestado fosse o relevante para efeitos de custas, não se teria incluído no n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas qualquer referência àquela alínea b), pois a aplicação do valor contestado como base das custas resultava da remissão para o artigo 97.º-A do CPPT que é feita no n.º 2 do mesmo artigo 3.º.

Pelo exposto, nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 45.900,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, valor esse que é o que resulta do valor indicado pela Requerente e foi por esta pago.

 

 

Lisboa, 15 de Novembro de 2013

 

Os Árbitros

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

(Guilherme W. d'Oliveira Martins)

 

 

 

 

(Luís Janeiro)

1(  ) Este artigo foi alterado pela da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que lhe deu a seguinte redacção: «A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

No entanto, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, foi emitida à face da redacção inicial, pelo que ela é a relevante para determinar o seu alcance.

2(  ) A Taxa Efectiva, em sede de IRC, é obtida através da seguinte fórmula:

Σ IRC Liquidado + Σ Tributações Autónomas

Σ Matéria Colectável não Isenta + Σ Matéria Colectável Isenta + Σ Benefícios Fiscais dedução ao Rendimento

A inclusão das tributações autónomas no cálculo da Taxa Efectiva faz com que, em situações pontuais, a Taxa Efectiva ultrapasse a taxa nominal.

3(  ) Essencialmente neste sentido, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:

  • n.º 143/88, de 16-6-1988, proferido no processo n.º 319/87, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 378, página 183;

  • n.º 149/88, de 29-6-1988, proferido no processo n.º 282/86, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 378, página 192;

  • n.º 118/90, de 18-4-90, proferido no processo n.º 613/88, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 396, página 123;

  • n.º 169/90, e 30-5-1990, proferido no processo n.º 1/89, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 397, página 90;

  • n.º 186/90, de 6-6-1990, proferido no processo n.º 533/88, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 398, página 81;

  • n.º 155/92, de 23-4-1992, proferido no processo n.º 204/90, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 416, página 295;

  • n.º 335/94, de 20-4-1994, proferido no processo n.º 61/93, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 436, página 129;

  • n.º 468/96, de 14-3-1996, proferido no processo n.º 87/95, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 455, página 152;

  • n.º 1057/96, de 16-10-1996, proferido no processo n.º 347/91, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 460, página 284;

  • n.º 128/99, de 3-3-1999, proferido no processo n.º 140/97, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 485, página 26.