Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 81/2012-T
Data da decisão: 2012-12-03  IRS  
Valor do pedido: € 22.000,00
Tema: Regime simplificado de tributação da categoria B
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Processo arbitral n.º 81/2012-T

Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”)

 

Requerentes

 

Requerida

Autoridade Tributária e Aduaneira (Ministério das Finanças)

 

 

1. Relatório

 

1.1. … e … (“Requerentes”), casados, contribuintes n.º … e n.º …, respectivamente, ambos residentes na …, apresentaram pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”1), visando a anulação do tributário de liquidação oficiosa de IRS e juros compensatórios, emitido sob o n.º …, no valor total de € 41.547,70 (€ 40.405,10 de imposto e € 1.142,60 de juros), respeitante aos rendimentos do ano 2010.

 

Os Requerentes invocam a ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS, antes de mais, por falta de fundamentação desse acto tributário.

 

Opõem-se adicionalmente ao facto de a liquidação oficiosa, decorrente da não aplicação do regime simplificado de tributação aos rendimentos da categoria B do primeiro Requerente, incidir, sem qualquer suporte, sobre rendimentos manifestamente superiores aos reais e de não terem sido consideradas as deduções relativas a diversas despesas atendíveis.

 

Alegam que por errónea interpretação da lei os Serviços da Requerida não aplicaram ao primeiro Requerente o regime simplificado de tributação da categoria B, previsto no artigo 28.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código do IRS, na redacção conferida pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2010), tendo aquele sido objecto de integração forçada no regime de contabilidade organizada.

 

Consideram que, na sequência da não actualização atempada do sistema de informação do IRS em sentido compatível com o do novo texto legal e do referido erro de enquadramento no regime de contabilidade, foi desconsiderada a entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 apresentada em prazo pelos Requerentes, gerando-se ilegalmente a liquidação oficiosa impugnada (que presumem ter sido efectuada ao abrigo do artigo 76.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código do IRS).

 

Concluem os Requerentes que a liquidação oficiosa foi ilegalmente efectuada, por não estarem reunidos os respectivos pressupostos, desde logo, porque foi tempestivamente apresentada a declaração de rendimentos do ano em causa. Pedem a anulação do acto, com a restituição da prestação tributária paga em excesso acrescida de juros indemnizatórios.

 

1.2. De acordo com o artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como árbitro único Alexandra Coelho Martins.

 

O tribunal arbitral foi constituído no CAAD, em 15 de Junho de 2012, conforme acta de constituição do tribunal arbitral.

 

1.3. A Requerida respondeu no sentido de que a nova redacção do artigo 28.º, n.º 2 do Código do IRS, introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2010, não é de aplicação imediata e apenas pode vigorar para rendimentos obtidos a partir do ano 2011, sob pena de aplicação retroactiva da lei fiscal e de ficar comprometido o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança.

 

Considera por isso que o acto de liquidação oficiosa não padece de vício invalidante e que não são devidos juros indemnizatórios à face do artigo 43.º da LGT. Conclui pela improcedência do pedido.

 

1.4. Em 16 de Outubro de 2012, realizou-se a primeira reunião do tribunal arbitral, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT.

 

Não foram suscitadas excepções e, ouvidas as partes, deferiu-se o pedido de alegações escritas, tendo estas sido apresentadas na data fixada.

 

1.5. Constitui objecto do litígio o vício formal de falta de fundamentação do acto tributário e o vício de violação de lei relativo à não aplicação do regime simplificado da categoria B ao primeiro Requerente. Está essencialmente em causa saber se a redacção dada ao n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS, pelo artigo 28.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é aplicável com efeitos imediatos ou apenas ao ano 2011.

 

Importa, por fim, apreciar a falta de suporte legal da liquidação oficiosa, por inexistência das condições previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 76.º do Código do IRS.

 

* * *

1.6. O Tribunal é competente.

 

O processo não enferma de vícios que o invalidem na totalidade.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

Não se verificam nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

2. Fundamentação

 

Com interesse e relevância para a decisão, dão-se por assentes os seguintes factos:

 

  1.  

O primeiro Requerente auferiu no ano 2009 rendimentos da categoria B no montante de € 116.794,17, e enquadrava-se, à data, no regime simplificado de tributação – fls. 46 a 48 do processo administrativo.

 

 

O enquadramento do Requerente relativo aos rendimentos da categoria B foi automaticamente alterado, pelo sistema informático da Requerida, do regime simplificado para o regime de contabilidade organizada, com produção de efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010, por aquele ter atingido em 2009 um volume de negócios de € 116. 794,17 – fls. 48 do processo administrativo.

 

  1.  

Por ofício datado de 15 de Março de 2011, foi o primeiro Requerente notificado pelo Serviço de Finanças de Cascais … – Carcavelos para proceder à entrega da declaração de alterações por passar a estar abrangido pelo regime de contabilidade organizada, com produção de efeitos a 1 de Janeiro de 2010 – fls. 44 do processo administrativo.

 

  1.  

Em 25 de Março de 2011, o primeiro Requerente exerceu por escrito o direito de audição, alegando que no ano 2010 continuava a reunir os pressupostos para ficar enquadrado no regime simplificado de tributação, dada a aplicação imediata da nova redacção do artigo 28.º, n.º 2 do Código do IRS, introduzida pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que determinou o aumento do limite (máximo) do valor prestações de serviços realizadas no ano anterior (de € 99.759,58) para € 150.000,00 – fls. 45 e 46 do processo administrativo.

 

  1.  

Em 30 de Maio de 2011, os Requerentes submeteram por via electrónica a declaração conjunta de rendimentos – IRS – Modelo 3 referente ao ano 2010 – fls. 18 e seguintes do processo administrativo.

 

 

 

  1.  

Acompanhava a declaração Modelo 3 de IRS (referente a 2010), o Anexo B para rendimentos da categoria B do primeiro Requerente no regime simplificado de tributação, tendo sido reportados os seguintes valores de rendimentos:

  1. € 47.112,50, a título de prestações de serviços;

  2. € 2.223,36, relativos a “propriedade intelectual – rendimentos abrangidos pelo art. 58.º do EBF – parte não isenta”,

perfazendo a importância total de € 49.335,86 – fls. 20 e seguintes do processo administrativo.

 

  1.  

Acompanhava também a declaração Modelo 3 de rendimentos relativa a 2010, apresentada pelos Requerentes, entre outros, o Anexo H, de Benefícios Fiscais e Deduções, do qual constam diversas deduções à colecta/ benefícios de ambos os Requerentes (sob os códigos 701, 711, 729, 731) e, bem assim, despesas de saúde e de educação – fls. 26 e 27 do processo administrativo.

 

  1.  

A declaração Modelo 3, incluindo diversos anexos, apresentada pelos Requerentes relativamente ao IRS de 2010 foi desconsiderada pela Requerida, cujos Serviços nela apuseram a menção “Declaracão Anulada -Não serve de Comprovativo” e processaram em sua substituição uma Declaração Oficiosa/Documento de Correcção – fls. 18 e seguintes do processo administrativo.

 

  1.  

Na Declaração Oficiosa Modelo 3 da autoria da Requerida foi inscrito o valor de € 112.857,76, a título de rendimento ilíquido da categoria B do primeiro Requerente para o mesmo ano, no campo 403, correspondente às prestações de serviços. Do Anexo H que acompanha esta mesma declaração oficiosa não foram inscritas deduções à colecta, nem benefícios fiscais, nem despesas dedutíveis, designadamente de saúde e de educação – fls. 18 e seguintes do processo administrativo.

 

  1.  

Em 20 de Julho de 2011, foi emitido um parecer técnico pela Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso no sentido perfilhado pelos Requerentes, de aplicação imediata da nova redacção do artigo 28.º, n.º 2 do Código do IRS e consequente enquadramento do primeiro Requerente no regime simplificado de tributação – parecer n.º 73/2011-DSJC a fls. 80 a 93 do processo administrativo e documento junto ao requerimento inicial.

 

  1.  

Este parecer técnico não veio a ser seguido pela Direcção de Serviços do IRS que reiterou a aplicação da alteração ao artigo 28.º n.º 2 do Código deste imposto apenas a partir do ano 2011, posição que foi confirmada por despacho concordante do Director-Geral dos Impostos, de 3 de Novembro de 2011, que indeferiu a pretensão dos Requerentes, notificado por ofício do Serviço de Finanças n.º …, de 20 de Dezembro de 2011 – fls. 74 a 80 do processo administrativo.

 

  1.  

Em 17 de Janeiro de 2012, o primeiro Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão que antecede – fls. 64 a 67 do processo administrativo.

 

  1.  

Em 20 de Fevereiro de 2012, foi emitida a liquidação oficiosa de IRS e juros compensatórios n.º…, relativa aos rendimentos de 2010 dos Requerentes, no valor global de € 41.547,70, sendo € 40.405,10 de imposto e € 1.142,60 de juros compensatórios, tendo sido fixado o dia 2 de Abril de 2012 como data limite para pagamento – demonstração da liquidação de IRS junta com o requerimento inicial.

 

  1.  

A liquidação no valor de € 41.547,70 foi notificada aos Requerentes, tendo sigo paga no dia 2 de Abril, por multibanco – provado por acordo.

 

  1.  

Em 15 de Junho de 2012 os Requentes apresentaram o pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral junto do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) – conforme documento impresso do registo do pedido extraído do sistema informático do CAAD.

 

* * *

 

A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental junta, não se assinalando divergências de posição das partes quanto aos factos. Não se provaram outros factos susceptíveis de influenciar a decisão de mérito.

 

 

3. Do Direito

 

3.1. Os Requerentes começam por suscitar a falta de fundamentação do acto tributário de liquidação de IRS.

 

Com efeito, apesar de a liquidação de IRS ter sido emitida com alterações substanciais aos elementos declarados pelos contribuintes (na Declaração Modelo 3 entregue em prazo), designadamente no que se refere aos rendimentos da categoria B e à não dedução de diversas despesas, a demonstração da referida liquidação não contém a referência ao seu carácter oficioso, ou aos motivos que estiveram na base das correcções realizadas aos valores declarados, nem às normas ou ao regime que fundaram o afastamento das declarações dos Requerentes, as quais, importa relembrar, beneficiam de presunção de veracidade ao abrigo do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

Este dever de fundamentação impõe-se, mesmo que de realizado forma sumária, relativamente a todos os actos lesivos, impositivos e constitutivos de deveres ou encargos, conforme preceitua o artigo 77.º da LGT, que concretiza e densifica o artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

No entanto, importa distinguir o vício formal de falta de fundamentação das situações em que a fundamentação do acto tributário de liquidação existe, mas não foi notificada, ou validamente notificada. No primeiro caso, ocorre vício formal gerador de anulabilidade do próprio acto tributário, no segundo, o acto é juridicamente válido, suscitando-se a “ineficácia” da notificação.

 

Dispõe neste sentido o artigo 77.º, n.º 6 da LGT que “a eficácia da decisão depende da notificação”. Identicamente, o artigo 36.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) prevê que “os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”, constituindo requisito de validade das notificações que o seu conteúdo compreenda “a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências.” (n.º 2 do citado artigo 36.º do CPPT).

 

Na situação vertente, constata-se que a liquidação oficiosa de IRS derivou de um procedimento prévio de reenquadramento “forçado” do primeiro Requerente, no regime de contabilidade organizada quanto aos rendimentos da categoria B. Este procedimento, que foi amplamente participado pelo primeiro Requerente, culminou na decisão de indeferimento (do Director-Geral dos Impostos) que lhe foi notificada e da qual recorreu hierarquicamente.

 

A referida decisão está fundamentada em parecer da Direcção de Serviços de IRS em sentido contrário ao parecer técnico da Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso (pontos 10.º e 11.º dos factos).

 

Deste modo, a fundamentação existe, ainda que com a mesma não se concorde, e deriva do procedimento de reenquadramento oficioso do primeiro Requerente no regime de contabilidade organizada e já havia sido comunicada pela Requerida no âmbito do indeferimento desse procedimento.

 

Acresce salientar que a eventual relevância autónoma da não notificação da fundamentação conjuntamente com o acto tributário de liquidação oficiosa de IRS (que entendemos não existir, dado o procedimento que a precedeu), não seria susceptível de determinar a sua anulação, porque se situa já no exterior do acto, e apenas poderia gerar a sua improdutividade ou ineficácia e diferir o início do prazo para a respectiva impugnação. Não se acolhe, pois, o vício de falta de fundamentação alegado pelos Requerentes.

 

3.2. Cumpre agora apreciar os vícios substantivos suscitados pelos Requerentes.

 

Está em causa aferir se, para os rendimentos da categoria B do ano 2010, o limite de valor até ao qual o primeiro Requerente se mantém enquadrado no regime simplificado de tributação é, como este preconiza, o que foi introduzido pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2010), de € 150.000,00, ou, ao contrário, seguindo a posição da Requerida, aquele que constava na anterior versão do n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS, de € 99.759,58. Ou, por outras palavras, importa saber se esta Lei é de aplicação imediata, abrangendo os rendimentos do ano 2010.

 

Salienta-se que, na perspectiva da Requerida, é de afastar a consideração imediata do novo limite de valor para efeitos de aplicação do regime simplificado (aos rendimentos obtidos) no ano 2010 por a mesma revestir carácter (parcialmente) retroactivo e colidir com o princípio constitucional vertido no artigo 103.º, n.º 3 da CRP.

 

Considera também a Requerida que a mencionada aplicação imediata (i. é, ao ano 2010) não permitiria o exercício da opção pela contabilidade organizada, princípio estruturante do sistema fiscal, por parte dos contribuintes que estivessem antes no regime de contabilidade, cujos rendimentos fossem superiores ao limite anterior mas inferiores ao limite actual, em virtude de a Lei n.º 3-B/2010 já ter sido publicada após o termo do prazo para o exercício dessa opção.

 

Comecemos por analisar o texto legal e as suas sucessivas alterações no tempo.

 

Dispunha o n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS, na redacção vigente até à Lei do Orçamento do Estado para 2010, que:

 

2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua actividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior qualquer dos seguintes limites:

a) Volume de vendas: € 149 739,37;

b) Valor ilíquido dos restantes rendimentos desta categoria: € 99 759,58.”

 

O texto resultante da Lei do Orçamento do Estado para 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril) passou a reger nos seguintes moldes:

 

2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua actividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de (euro) 150 000.”

 

Por fim, em matéria de sucessão de leis fiscais no tempo, dispõe o artigo 12.º da LGT:

 

Artigo12.º
Aplicação da lei tributária no tempo

1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.

2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

3 - As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.

4 - Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.”

 

O conflito em apreciação resulta, assim, do facto de a disciplina prevista para a determinação dos rendimentos profissionais fazer depender o enquadramento aplicável à situação tributária do sujeito passivo, num dado ano (in casu, 2010), de factos que ocorreram no ano anterior (2009), sem que a Lei do Orçamento do Estado do Estado para 2010 tenha contemplado uma norma de direito transitório especial que regulasse a sua aplicação no tempo.

 

A solução deve efectivamente procurar-se no artigo 12.º da LGT e na regra geral de direito firmada no nosso sistema jurídico constante do artigo 12.º do Código Civil: a lei nova (fiscal ou outra) apresenta, em regra, eficácia prospectiva; a lei dispõe para o futuro (cf. Acórdão do STA, de 13 de Janeiro de 2010, processo n.º 1148/09).

 

Neste âmbito, importa atender à natureza da norma constante do artigo 28.º, n.º 2 do Código do IRS. Trata-se de um preceito que faz parte integrante da forma de determinação da matéria tributável e que, por si, não configura o desenvolvimento de uma norma de incidência tributária.

 

Conforme refere o parecer da Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso “a previsão do n.º 2 do art. 28.º do CIRS não respeita a factos tributários, enquanto pressupostos da norma de incidência ou enquanto factos geradores da obrigação de imposto, mas antes a factos que constituem pressupostos do enquadramento a aplicar para efeitos do regime de determinação da matéria colectável”. Aquela configura uma norma de natureza procedimental na determinação da matéria colectável, cuja aplicação imediata decorre do disposto no artigo 12.º, n.º 3 da LGT.

 

Ainda de acordo com o mesmo parecer, com o qual concordamos: “A aplicação imediata da nova redacção legal não consubstancia uma aplicação da lei a rendimentos gerados antes da sua entrada em vigor mas antes a consideração de factos anteriores para efeitos da determinação do regime de tributação aplicável no futuro, aos rendimentos gerados sob a sua vigência.”

 

De notar que, se se tratasse de uma norma de incidência tributária ou do desenvolvimento de normas de incidência (materialmente normas de incidência)2, a solução não seria, de qualquer modo, a propugnada pela Requerida, pois o n.º 2 do artigo 12.º da LGT determina que “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. “3 Neste caso, que, assinala-se, não é o que nos ocupa, teríamos de partir o período de tributação em dois, para aplicar regimes distintos.

 

Acresce que a aplicação imediata dos novos limiares do regime simplificado não implica qualquer prejuízo para as garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes e, além do mais, coaduna-se com o princípio da igualdade, parâmetro imprescindível no processo interpretativo em matéria fiscal.

 

Na realidade, a prevalecer a tese da Requerida teríamos diversos critérios em vigor para determinar o regime simplificado no ano 2010: os sujeitos passivos que iniciassem a actividade nesse ano seriam tributados pelo regime simplificado desde que o volume da sua actividade não excedesse € 150.000,00, enquanto os sujeitos passivos que já tivessem iniciado a sua actividade previamente, seriam obrigados a determinar a sua matéria colectável com base na contabilidade a partir do limiar de € 99.759,98. Esta diferenciação não tem qualquer fundamento, nem correspondência, quer na letra da lei, quer no seu espírito ou teleologia.

 

No tocante ao inconveniente apontado pela Requerida de que a aplicação imediata da nova redacção do n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS não possibilitaria a opção pela contabilidade organizada no ano 2010 para alguns sujeitos passivos, em virtude de a Lei n.º 3-B/2010 ter sido publicada após o termo do prazo de opção previsto na alínea b) do n.º 4 do mencionado artigo 28.º, consideramos o mesmo [inconveniente] tem de ser afastado por via interpretativa, devendo acautelar-se tal faculdade. De qualquer modo, a referida incongruência, derivada de má técnica legislativa, não pode determinar a aplicação da lei no tempo em desvio aos princípios acima enunciados, resultando noutras (e a nosso ver piores) incongruências.

 

Por outro lado, não se alcança como é que a aplicação imediata, ao ano 2010, dos novos limiares do regime simplificado, pode conflituar, como afirma a Requerida, com o princípio da segurança jurídica, da protecção da confiança e da não retroactividade da lei fiscal, esta última, constante do artigo 103.º, n.º 3 da CRP.

 

Na verdade, qualquer grau de retroactividade da norma fiscal4 implica sempre uma aplicação da lei a factos tributários que lhe são anteriores ou, no mínimo, aos efeitos jurídicos dele decorrentes. Ora, os rendimentos obtidos no ano anterior a que se reporta o n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS “não constituem factos tributários e, ainda menos, efeitos jurídicos decorrentes dos mesmos, mas antes meros pressupostos do regime de tributação aplicável para o futuro.5

 

A aplicação imediata da nova redacção do n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS, reportada a rendimentos auferidos no ano anterior à sua vigência enquanto pressupostos aquisitivos de um determinado regime de tributação (que, salienta-se, não integram a formação sucessiva do facto tributário sujeito a IRS), não consubstancia a criação de qualquer imposto retroactivo.

 

Adicionalmente, se existisse alguma espécie de retroactividade (que, reitera-se, não existe), a mesma sempre se revelaria favorável, pois a nova lei amplia o universo de contribuintes que passam a poder estar abrangidos pelo regime simplificado (com a faculdade de opção pelo regime de contabilidade6), escapando, por isso, às exigências de segurança jurídica e de tutela da confiança legítima subjacentes ao princípio da irretroactividade da lei fiscal7.

 

Aliás, sobre a proibição da retroactividade entende a doutrina que a mesma não vale quanto a regimes mais favoráveis ou a leis que comportem desagravamentos8, pois tem como propósito essencial proteger as expectativas legítimas dos contribuintes contra alterações da lei que de modo inesperado venham agravar a sua carga fiscal, como decorre da hipótese da norma constitucional: ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva.

 

Afigura-se claro que o regime de simplificação em causa não é enquadrável como gravame da carga fiscal dos sujeitos passivos de IRS.

 

Em reforço do que ficou dito, a jurisprudência do Tribunal Constitucional (“TC”) considera, de igual modo, que a proibição da retroactividade consagrada na Constituição se refere apenas à lei fiscal desfavorável, como se extrai do recente Acórdão do TC n.º 310/2012, de 20 de Junho.

 

3.3. Por fim, ainda que se entendesse que o primeiro Requerente não era passível do regime simplificado de tributação, por não reunir as respectivas condições de aplicação, o automatismo do tratamento das declarações de IRS não poderia legitimar a fixação de rendimentos diferentes dos reais, reportados pela via declarativa9, como se o contribuinte não tivesse pura e simplesmente apresentado a sua declaração (quando este provou cabalmente tê-lo feito), e tivesse omitido o seu dever de colaboração com a Autoridade Tributária e Aduaneira (o que não sucedeu).

 

Têm pois razão os Requerentes quando afirmam que a Requerida aplicou disfarçadamente o artigo 76.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código do IRS, sem que para tal estivessem reunidos os respectivos pressupostos, pelo que, também por isso, se verifica a ilegalidade do acto de liquidação oficiosa.

 

À face do exposto, procede o vício de violação de lei, por erro nos pressupostos, suscitado pelos Requerentes, devendo o acto de liquidação oficiosa de IRS ser anulado.

 

3.4. Os Requerentes pedem o reembolso do valor do IRS pago em excesso (ou seja, aquele que resulta da diferença entre o correcto apuramento do imposto, com base nos valores declarados pelos Requerentes - com aplicação do regime simplificado e com a consideração das deduções reportadas no Anexo H - e aquele que consta da liquidação oficiosa, com inclusão dos juros compensatórios), acrescido dos juros indemnizatórios correspondentes.

 

Conforme já decidido no Acórdão Arbitral proferido no processo n.º 14/2012-T, de 29 de Junho de 2012, compreendem-se nas competências dos tribunais arbitrais tributários as pronúncias condenatórias que em processo de impugnação judicial são admitidas aos tribunais tributários estaduais, sendo de igual forma admissível o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Neste âmbito, compulsa-se a fundamentação do referido Acórdão, à qual se adere na íntegra:

 

“De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

3.5. Cumpre apreciar.

 

Em consequência da ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS, os Requerentes pagaram IRS em excesso e juros compensatórios que não eram devidos, impondo-se, desta forma, e sem mais delongas, o respectivo reembolso, nos termos dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT.

 

No que se refere aos juros indemnizatórios, está-se perante uma ilegalidade substantiva, respeitante à relação jurídica tributária, imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira (Requerida) que, por sua iniciativa, reenquadrou indevidamente o primeiro Requerente no regime obrigatório de contabilidade e emitiu uma liquidação oficiosa desprovida de suporte legal, incorrendo em erro nos pressupostos de direito.

 

Estão, assim, verificadas as condições constitutivas na esfera dos Requerentes do direito a juros indemnizatórios, de acordo com o preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia de IRS e juros compensatórios paga em excesso e contados desde a data de pagamento, 2 de Abril de 2012, até integral restituição.

 

 

4. Dispositivo

 

Em face do exposto, julga-se procedente o pedido dos Requerentes e, em consequência:

 

  1. Anula-se o acto tributário de liquidação oficiosa de IRS e juros compensatórios inerentes;

  2. Determina-se a restituição aos Requerentes da prestação tributária de IRS e juros compensatórios entregue em excesso;

  3. Determina-se o pagamento de juros indemnizatórios até integral reembolso da prestação tributária entregue em excesso.

 

* * *

 

Valor da causa: € 22.000,00, de harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2 do CPC e 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas a cargo da Requerida fixando-se o respectivo montante em 1.224.00, de acordo com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

* * *

 

Notifique-se.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2012

 

A árbitro

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

1 Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

2 Refere LIMA GUERREIRO, a título exemplificativo, as normas que qualificam os proveitos e os custos ou que estabelecem os pressupostos do direito de reporte (Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2001).

3 É inequívoca a caracterização do IRS como imposto periódico de formação sucessiva, em que a obrigação tributária é progressivamente formada, culminando no final do ano civil, momento a que se reportam os rendimentos sujeitos a tributação (cf. artigos 1.º, n.º 1 e 143.º do Código do IRS). O facto gerador, o facto tributário (facto jurídico que, uma vez verificado, determina o nascimento da obrigação tributária) ocorre em 31 de Dezembro de 2010, mas vai sendo formado ao longo do decurso do período de tributação anual. Neste sentido, ALBERTO XAVIER refere que o facto tributário “(…) é o seu facto constitutivo, o facto principal a que a lei atribui a sua constituição. Na obrigação tributária – como em toda e qualquer obrigação «ex lege» – a fonte da obrigação é o facto nela previsto que determina causalmente o seu nascimento (…).”, in “Manual de Direito Fiscal”, Faculdade de Direito de Lisboa, 2.ª Edição, 1981, págs. 248 e segs.. Neste contexto, ALBERTO XAVIER distingue os factos tributários entre simples e complexos, subsumindo-se no primeiro caso os factos apenas constituídos por um único elemento material e no segundo caso os factos formados por uma pluralidade de elementos materiais, juridicamente unificados numa unidade objectiva. Segundo o mesmo autor, são exemplos de factos tributários simples os impostos cujo facto tributário é constituído por um único evento ou negócio jurídico, por oposição aos factos tributários complexos presentes nos impostos cujo facto se forma progressiva e sucessivamente no tempo. Está neste último caso o IRS.

4 Como refere SÉRGIO VASQUES a análise do tema da retroactividade da lei fiscal “exige que tenhamos presente o modo como a lei se projecta no tempo quanto aos impostos periódicos. (…) A lei nova, entrada em vigor a meio do ano, pode projectar-se retroactivamente por um de dois modos essenciais: sujeitando a tributação acrescida os rendimentos do ano anterior, já plenamente formados, casos ditos por vezes de retroactividade forte, autêntica ou própria; ou sujeitando a tributação acrescida os rendimentos do ano em curso, ainda em formação, casos por vezes ditos de retroactividade fraca, inautêntica ou imprópria. O primeiro ponto a fixar na leitura da proibição do artigo 103.º, n.º 3 é o de que ela abrange indistintamente a retroactividade “forte” ou “fraca”, “própria” ou “imprópria”. Ainda segundo este autor o segundo ponto é o de que “a proibição da retroactividade, corolário que é do princípio da segurança jurídica, não possui valor absoluto” – Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, págs. 293-295 e segs.

5 Seguimos o parecer acima referido da Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídico e Contencioso.

6 Como refere o parecer citado, “Sobre a carga fiscal a incidir sobre cada situação em concreto, a mesma depende da opção a efectuar pelo sujeito passivo quanto ao regime de determinação dos seus rendimentos da categoria B, nos termos supra referidos, sendo que por via daquela alteração ao mencionado limite, é reforçada a possibilidade de os contribuintes exercerem a referida opção”, pelo que, acrescentamos nós, não existe qualquer diminuição das garantias dos contribuintes, nem a sua confiança resulta minimamente beliscada.

7 A este respeito, vide, por exemplo, SALDANHA SANCHES, “A segurança jurídica no Estado Social de Direito”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 140, Lisboa, 1985 e, do mesmo autor, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 186-193. Efectivamente, o princípio da proibição de retroactividade em matéria fiscal decorre, em primeira linha, do princípio do Estado de Direito Democrático, o qual, como refere CASALTA NABAIS, “tem ínsita a ideia de protecção da confiança”, expressão da vertente subjectiva do princípio da segurança jurídica – O dever fundamental de pagar impostos, Colecção Teses, Almedina, 1998, págs. 407 e 408.

8 Veja-se SÉRGIO VASQUES, obra cit. págs. 296 e 297 e BACELAR DE GOUVEIA, “A irretroactividade da norma fiscal na Constituição Portuguesa”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 387, Lisboa, 1997.

9 Ainda que, se fosse esse o caso, tal declaração fosse efectuada num formato imperfeito ou irregular (ou seja, no regime de contabilidade, os rendimentos profissionais não deviam ser reportados no Anexo B).