Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 701/2023-T
Data da decisão: 2024-03-18  IVA  
Valor do pedido: € 60.677,76
Tema: IVA – transações intracomunitárias; obrigatoriedade de identificação do adquirente.
Versão em PDF

Sumário: Em resultado do disposto na Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 dezembro 2018, passou a ser exigido - que o adquirente de uma transação intracomunitária - quando esteja registado, para efeitos de IVA, num Estado-Membro diferente do da expedição dos bens – comunique atempadamente o seu número identificativo de IVA ao fornecedor e que este o mencione nas faturas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., LDA, NIPC ..., com sede no ..., ...-... ..., Vila Nova de Famalicão, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

A Requerente impugna parcialmente as correções à matéria coletável que deram origem à liquidação adicional de IVA n.º 2023..., de 2023-03-15 (acerto de contas n.º 2023..., de 2023-03-16), referente ao reembolso n.º 2023..., respeitante ao mês de janeiro do ano de 2023 (2301M).

 

 

  1. O litígio

 

Está em causa saber se as operações tituladas pelas faturas da Requerente a seguir referidas estão isentas de IVA em Portugal por força do disposto no art. 14.º do regime do IVA nas transações intracomunitárias (RITI).

 

A Requerente pugna pela ilegalidade das correções efetuadas pela AT e, consequentemente, pela ilegalidade da liquidação delas recorrentes, uma vez que considera provado que as mercadorias em causa saíram do território nacional e deram entrada no território de outro estado-membro.

Entende ainda que a liquidação está também viciada por um vício procedimental uma vez que a inspeção tributária que esteve na sua origem foi indevidamente qualificada de interna, com a consequente redução das garantias da inspecionada.

 

A Requerida entende que a não identificação nas faturas do número identificativo de IVA, do adquirente ou do seu representante consubstancia um requisito substancial do direito à isenção, que não foi cumprido.

Entende ainda que a inspeção foi corretamente classificada como interna.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 06-10-2023.

Os árbitros foram designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

A AT apresentou resposta e juntou o PA.

Foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações, sem oposição das partes.

 

 

  1. Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Adiante se apreciará dos vícios procedimentais invocados pela Requerente.

 

 

II- PROVA

 

 

II.1 – Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente foi alvo de uma inspeção tributária, classificada como interna, da qual resultou a liquidação adicional agora impugnada.
  2. No decurso deste procedimento inspetivo, a Requerida solicitou à Requerente a apresentação de um conjunto de elementos contabilísticos.
  3. Subjacentes à liquidação impugnada estão vendas feitas pela Requerente à sociedade B..., Lda, com sede em Inglaterra.
  4. As mercadorias em causa eram remetidas de Portugal para a República da Irlanda.
  5. Tais vendas estão tituladas pelas faturas nºs FT FA20231 / 1, FT FA20231 / 4, FT FA20231 / 18, FT FA20231 / 25 e FT FA20231 / 31.
  6. Consultado o sistema de trocas intracomunitárias (VIES), verificou-se que a B... Ltd., com o número de IVA, GB ..., havia cessado a atividade em 2020-12-31 (em consequência do Brexit).
  7. A Requerente apresentou à AT, relativamente a cada uma das faturas em causa, um documento emitido pelo transitário, Forwarders Certificate Receipt (FCR), que atesta que recebeu determinada mercadoria do seu cliente destinada a envio internacional para local de destino (...) na Irlanda; apresentou também o Prof of Delivery (POD), comprovação de que a mercadoria foi entregue.
  8. O IVA liquidado adicionalmente pela AT foi deduzido ao valor de imposto a ser reembolsado à Requerente.

 

Estes factos estão documentalmente provados, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.

 

II.2 – Factos não provados

 

Não ficou provado, por ausência de qualquer meio de prova, que o número identificativo constante das faturas corresponda ao número de IVA do representante fiscal do adquirente (a sociedade inglesa) na Irlanda.

 

Não foram dados por não provados quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa.

 

 

III - O DIREITO

 

  1. A classificação da inspeção

 

A Requerente afirma que atenta a extensão dos elementos solicitados, a AT ficou habilitada a adoptar todos os procedimentos de controlo dos factos patrimoniais que reputasse com relevância fiscal, pelo que o procedimento de inspecção tem de ser classificado, quanto aos seus fins, como um efectivo procedimento de comprovação e verificação, enquadrável na alínea a) do nº 1 do artº 12º do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA), ou seja [acrescentamos nós], como inspeção externa.

 

Apreciando:

É bom de ver que os elementos contabilísticos, solicitados pela AT e fornecidos pelo SP se mostraram totalmente inúteis para a fundamentação da liquidação impugnada, a qual resultou apenas do constante do VIES e do exame das quatro faturas em causa.

O mesmo é dizer que o facto de a inspeção em causa ter sido qualificada como interna, e não como externa, como pretende a Requerente, é materialmente irrelevante. Embora sejam diferentes os formalismos a observar em cada caso, de tal não resultou uma qualquer diminuição das garantias do sujeito passivo. Nem nenhuma concreta alegação foi feita nesse sentido.

 

Mais, a Requerente não terá tido em conta a alteração (de 2016) à redação da al. a) do art. 13º do RCPITA: o procedimento pode classificar-se em interno quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento; 

Ou seja, uma inspeção só deve ser qualificada como externa quando aconteçam atos inspetivos em instalações do sujeito passivo ou de terceiros, o que não é alegado ter acontecido.

A obtenção de documentos no decurso do procedimento, nomeadamente em resultado de solicitação feita ao sujeito passivo, como foi o caso, documentos esses que depois são analisados pelos serviços nas instalações destes, não altera a qualificação da inspeção como sendo “interna”.

Pelo que se indefere a pretensão anulatória da Requerente com este fundamento.

 

 

 

  1. A isenção de IVA

 

Estão em causa vendas de bens efetuadas em janeiro de 2023 a um cliente inglês. Estas vendas foram reportadas pela Requerente como transmissões intracomunitárias de bens, isentas ao abrigo do art.º 14 do RITI (que resulta da transposição do art.º 138 da Diretiva IVA), uma vez que os bens foram expedidos de Portugal para outro Estado-Membro (República da Irlanda).

 

Estamos perante as denominadas “falsas operações triangulares”, ou seja, operações em que intervêm dois Estados-membros da U.E. (Portugal e a República da Irlanda) e um país terceiro (Grã-Bretanha): o bem não sai da União Europeia, ainda que no circuito documental, que não acompanha o circuito físico dos bens, haja um operador sedeado num país terceiro.

 

Da leitura das normas de incidência objetiva do IVA aplicáveis ao comércio intracomunitário e previstas no RITI pode inferir-se que estas operações devem ser tributadas no país de destino. Em termos de territorialidade, vigora a regra de que o local de tributação dos bens é aquele onde os bens se encontram no momento em que termina o transporte ou a expedição para o adquirente.

 

Até 2020, era jurisprudência constante do TJUE, de que é exemplo a citada pela Requerente, nomeadamente o acórdão EURO TYRE BV – Sucursal em Portugal (proc. C-21/16), com base na redação do art.º 138 da Diretiva IVA vigente à data, que a aplicação da isenção de IVA constante deste artigo dependia do cumprimento dos requisitos substantivos elencados no mesmo, os quais não incluíam uma obrigação de o adquirente dos bens disponibilizar previamente o seu número de IVA noutro Estado-Membro.

A jurisprudência consolidada do TJUE entendia então que a existência de um número de IVA válido do adquirente dos bens constituía um requisito de natureza formal, o qual não prejudicava a aplicação da isenção de IVA se, na sua ausência, os requisitos substantivos constantes do mencionado art.º 138 (em particular, os relativos à prova do transporte dos bens entre Estados-Membros) estivessem preenchidos.

 

Porém, tendo em vista reforçar o controlo e a monitorização das operações intracomunitárias de bens e, em particular, a luta contra a fraude, os Estados-Membros acordaram, em 2018, transformar a disponibilização ao fornecedor, pelo adquirente dos bens, de um número de IVA válido no sistema VIES, atribuído por um Estado-Membro diferente do de partida dos bens, em condição substantiva (e já não meramente formal) para a aplicação da isenção de IVA prevista no art.º 138 da Diretiva IVA. 

Neste sentido, o referido art.º 138 da Diretiva IVA foi alterado pela Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 dezembro 2018[1], passando, a partir de 1 de janeiro de 2020, a ser exigido que o sujeito passivo adquirente dos bens esteja registado, para efeitos de IVA, num Estado-Membro diferente do de expedição dos bens, e tenha atempadamente comunicado esse mesmo número ao seu fornecedor.

The VAT Committee unanimously confirms that the amendment made by Council Directive (EU) 2018/1910 of 4 December 2018 to Article 138(1) of the VAT Directive adds a substantive condition for the application of the exemption of an intra-Community supply of goods. The VAT Committee unanimously agrees that this addition means that where the person acquiring the goods does not indicate his VAT identification number to the supplier or where the VAT identification number indicated has been issued by the Member State from which the goods are dispatched or transported, the conditions for applying the exemption of Article 138 must be seen as not being fulfilled and the supplier shall have no other option but to charge VAT[2].

 

In casu, não se provou que este requisito substancial esteja cumprido porquanto não foi feita a prova de que o número de IVA constante das faturas corresponda a um número de IVA irlandês do adquirente dos bens ou de um seu representante.

Ou seja, ainda que demonstrado que os bens saíram de Portugal com destino a outro Estado-membro (Irlanda), a Requerente não faz uma transmissão intracomunitária subsumível no artigo 14.° do RITI, porquanto, não se verificam todos os pressupostos agora exigidos para o efeito

 

 

IV - DECISÃO

 

Termos em que se conclui pela total improcedência do peticionado.

 

 

Valor: € 60.677,76

 

Custas arbitrais, no montante de € 2.448,00, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

 

18 de março de 2024

 

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

Fernando Marques Simões

 

 

Raquel Montes Fernandes

 



[1] Transposta pela Lei 49/2000, de 24 de agosto, com efeitos retroativos a 1 de janeiro.

Tal diretiva prevê alguns quick fixes (soluções expeditas, em tradução livre) em matéria de IVA nas transações intracomunitárias. Uma delas foi, como vimos, a menção do número de identificação, para efeitos de IVA, do adquirente ter passado a ser condição substancial para a aplicação da isenção.

 

[2] U. E., Commission guidelines, Explanatory Notes 2020 - Quick fixes.