Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 216/2023-T
Data da decisão: 2024-03-20  IVA  
Valor do pedido: € 170.445,83
Tema: IVA – Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”); redução de preço.
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DECISÃO ARBITRAL

 

  • RELATÓRIO
  1. No dia 6 de Junho de 2023, a sociedade A... LDA, com sede na Rua..., n.º ..., ...,  ..., ..., Oeiras, titular do NIF ... (doravante, abreviadamente identificada por “Requerente”), requereu a constituição do Tribunal Arbitral Coletivo em matéria tributária, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, abreviadamente identificada por “Autoridade Requerida”, “Administração Tributária” ou simplesmente por “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), consubstanciado nas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios n.º 2022..., relativa ao período 2018/01, n.º 2022..., relativa ao período 2018/10, n.º 2022..., relativa ao período 2018/12, n.º 2022..., relativa ao período 2019/01, n.º 2022..., relativa ao período 2019/02, n.º 2022..., relativa ao período 2019/03, n.º 2022..., relativa ao período 2019/05, n.º 2022..., relativa ao período 2019/07, n.º 2022..., relativa ao período 2019/08, n.º 2022..., relativa ao período 2019/09, que apuraram um valor a pagar de € 170.445,83.
  2. A Requerente, peticiona, ainda, “a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, nos termos legais.”, “calculados à taxa de 4% sobre o valor de IVA indevidamente pago pela Requerente.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD no dia 28 de Março de 2023, tendo as partes sido notificadas no mesmo dia.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, o Senhor Juiz José Poças Falcão, como árbitro presidente, a Senhora Prof.ª Doutora Eva Dias Costa e a Senhora Dra. Sofia Quental, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 19 de Maio de 2023, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Junho de 2023 para apreciar e decidir o objecto do presente litígio, em conformidade com o estipulado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT; foi-o regularmente e é materialmente competente.
  7. Por despacho do Presidente do Conselho Deontológico, de 26 de Setembro de 2023, na sequência de renuncia às funções arbitrais da Senhora Prof.ª Doutora Eva Dias Costa, foi determinada a sua substituição pelo Senhor Dr. Marcolino Pisão Pedreiro.
  8. Ora, a Requerente sustentou, em síntese, o seu pedido da seguinte forma:
  1. Desde 2012 que o Estado e a B... (em representação da Indústria Farmacêutica) iniciaram um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitam garantir (i) a sustentabilidade do SNS e (ii) o acesso dos cidadãos aos medicamentos.
  2. Em 2013 foi aditado o Acordo celebrado entre os Ministérios da Saúde, da Economia, e do Emprego e das Finanças e a indústria farmacêutica, segundo o qual as empresas aderentes comprometeram-se a efetuar uma contribuição de 122 milhões de euros.
  3. E em 24 de Junho de 2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a B..., em representação da indústria farmacêutica, um novo Acordo entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a indústria farmacêutica, através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição no valor de 160 milhões de euros.
  4. O Acordo B... foi revisto e, em 21 de Novembro de 2014, foi celebrado o Acordo para 2015, pelas mesmas partes e que, entre outras medidas, veio uma vez mais aumentar o valor da contribuição para as empresas aderentes, desta vez para 180 milhões de euros.
  5. A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”), introduziu a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”), que consubstancia um mecanismo tributário com o propósito de garantir a sustentabilidade ao SNS, na vertente dos gastos com medicamentos.
  6. De acordo com a CEIF, as empresas do sector que celebrem um Acordo com o Estado estão isentas do pagamento desta contribuição (cf. artigo 5.º, n.º 2, do regime da “CEIF”).
  7. A 15 de Março de 2016, os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B... celebraram o Acordo referente ao triénio 2016-2018, que se mantém em vigor até hoje.
  8. O Acordo estabelece, na sua cláusula 3.º, n.º 2, que a contribuição total das empresas aderentes tem como valor mínimo 150 milhões de euros.
  9. Nos termos da cláusula 3.º do Acordo, o cálculo desta contribuição é definido por uma fórmula fornecida pela B... e que corresponde à aplicação de uma percentagem ao valor da despesa pública com medicamentos, com base em indicadores fornecidos pelo INFARMED relativamente a compras efetuadas por hospitais.
  10. Esta fórmula determina que cada empresa associada e aderente ao Acordo B... deve contribuir com um montante proporcional à despesa que o SNS teve com os seus medicamentos, seja através do consumo hospitalar destes medicamentos ou da comparticipação dos mesmos aos pacientes.
  11. As taxas aplicáveis ao montante apurado são aquelas que estão previstas no Regime da CEIF.
  12. A Requerente aderiu ao Acordo referente ao triénio 2016-2018, com produção de efeitos na data da sua assinatura, a 29 de Março de 2016.
  13. A 03 de Fevereiro de 2017 foi assinado um aditamento ao Acordo celebrado para o triénio 2016-2018 que, apesar de ter introduzido algumas alterações relativamente aos prazos e medidas para controlo da despesa pública, manteve todos os termos e condições já assumidos pelo Estado Português.
  14. A Requerente também aderiu ao Aditamento.
  15. Esta contribuição voluntária de base contratual, em que o pagamento é efetuado pela entidade aderente uma vez transmitidos os dados relevantes, não carece de qualquer intervenção da AT ou modelo declarativo próprio.
  16. Pelo que, a Requerente recebe trimestralmente estas comunicações da B... com a indicação do montante da sua contribuição.
  17. Conforme resulta da cláusula 5.ª do Acordo e da declaração de adesão, a Requerente concretiza a sua contribuição trimestralmente na proporção da quota de mercado do ano anterior, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS e que compensam/liquidam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades.
  18. Com este mecanismo, as entidades do SNS diminuem a sua dívida às empresas farmacêuticas fornecedoras dos medicamentos.
  19. A Requerente renuncia a uma fração da contrapartida que deveria ser paga pelas entidades do SNS: há uma parte da contrapartida das vendas às entidades do SNS que não chega a ser recebida pela Requerente.
  20. A Requerente emite faturas à taxa reduzida pelo fornecimento de medicamentos às entidades do SNS e emite notas de crédito, que concretizam a sua contribuição para o esforço que visa assegurar a sustentabilidade do SNS e o acesso aos medicamentos, ao compensarem/liquidarem as faturas mais antigas emitidas àquelas entidades do SNS.
  21. A Requerente emite as notas de crédito com IVA fazendo referência quer ao Acordo, quer às faturas a que dizem respeito.
  22. Tendo em conta que estamos perante a redução de um preço inicialmente praticado e que, portanto, se verificou uma alteração do valor tributável e do valor do imposto que será devido ao Estado, a Requerente considerou as notas de crédito emitidas nas declarações periódicas de IVA.
  23. Ou seja, configurando-se estas notas de crédito verdadeiras reduções do preço, a Requerente encontra-se a regularizar a seu favor (campo 40 da declaração periódica) o IVA contido nas notas de crédito emitidas.
  24. Do exposto resulta que, nos termos do artigo 73.º e do artigo 90.º da Diretiva IVA, independentemente da forma ou da designação da redução do preço concedida ao adquirente, deve ser sempre dada ao fornecedor (in casu, a Requerente) a possibilidade de regularizar o IVA a seu favor, sob pena de flagrante violação do princípio da neutralidade e do princípio da contraprestação efetiva.
  25. A possibilidade e o procedimento para o sujeito passivo poder regularizar o IVA a seu favor encontra-se previsto no artigo 90.º da Diretiva e foi transposto para o artigo 78.º e seguintes do Código do IVA.
  26. Nos termos do artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA, [s]e, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.”.
  27. O caso dos autos é idêntico, quanto à questão essencial de direito em discussão, ao do acórdão do TJUE no caso BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19), no qual estava em causa saber se uma empresa farmacêutica (a Boehringer) que fornece medicamentos a farmácias, por intermédios de grossistas, pode deduzir do seu valor tributável o pagamento que efetua a um organismo estatal de saúde húngaro, com base num contrato voluntário celebrado entre este último e essa empresa.
  28. Decidiu o TJUE neste acórdão que é por força do “artigo 90.°, n.º 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, que os EstadosMembros estão obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, segundo o qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (…)”.
  29. O acórdão BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19) não é único na jurisprudência do TJUE pois, antes dele, em 11 de Julho de 2017, foi publicado o acórdão BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), em que se discutia se uma entidade farmacêutica alemã tem o direito a reduzir o valor tributável e a regularizar a seu favor o imposto liquidado ao abrigo do artigo 90.º da Diretiva IVA, quando a mesma, por força de uma disposição legal interna, é obrigada a pagar uma “redução” à empresa de seguros de saúde.
  30. Também neste caso o TJUE decidiu pelo direito à regularização do IVA por força do disposto no artigo 90.º da Diretiva IVA, com fundamento na redução do valor tributável/redução de preço.
  31. Resulta claramente dos citados acórdãos BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19) e BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16) que a preocupação do TJUE é, ao abrigo dos princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento, garantir que a contraprestação para efeitos tributáveis corresponde ao valor recebido, ou seja, o preço de venda dos produtos diminuído dos pagamentos/descontos atribuídos pelo fornecedor efetuados com o objetivo de ter acesso a determinado mercado (como é o caso do mercado dos medicamentos sujeitos a prescrição médica).
  32. Por outro lado, é manifesto que o facto de o Acordo de fornecimento dos bens não ter sido estabelecido entre a Requerente e o organismo do Estado que recebe a contribuição, não pode obstar a que se considere existir uma redução do valor tributável nos termos do artigo 90.º da Diretiva IVA.
  33. Termos em que é incontestável a ilegalidade das liquidações sindicadas, as quais deverão ser anuladas, por violação do princípio da neutralidade, do princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, do princípio da contraprestação efetiva, dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA e do artigo 78.º do Código do IVA.
  1. Por despacho de 12 de Junho de 2023, do Tribunal Arbitral Coletivo, a Requerida foi devidamente notificada para apresentar resposta ao Pedido de Pronuncia Arbitral apresentado pela Requerente, o que fez no dia 30 de Agosto de 2023.
  2. Na sua Resposta, a Autoridade Requerida defendeu-se por impugnação, invocando, em síntese, os fundamentos seguintes:
  1. Toda a narrativa que perpassa a petição inicial assenta na falsa convicção de que a contribuição financeira a que a Requerente está sujeita, e não isenta, representa o não recebimento do valor de faturas vencidas e não pagas,
  2. Isto é, que equivaleria ao não recebimento da contraprestação pela venda inicial dos medicamentos, motivo por que considera a regularização a seu favor do IVA das notas de crédito emitidas.
  3. Tal não corresponde à realidade dos factos, uma vez que as notas de crédito que emite servem para fazer acertos de conta-corrente e não para proceder ao desconto, fatura a fatura, de valores anteriormente não pagos.
  4. A Requerente convoca dois acórdãos proferidos pelo TJUE, os quais, salvo o devido respeito, não têm aplicação ao caso em discussão.
  5. Relativamente ao acórdão C-462/16, o caso objeto de litígio é entre a administração fiscal alemã e a Boehringer Ingelheim Pharma GmbH & Co. KG. (Boehringer).
  6. A questão em causa prendeu-se com a desigualdade de tratamento entre os descontos concedidos no setor dos seguros de saúde obrigatórios, que a administração alemã entendeu dever diminuir o valor tributável das operações, e os descontos concedidos às empresas de seguros de saúde privados, que não foram considerados para a diminuição do valor tributável.
  7. Apesar de os dois descontos onerarem do mesmo modo a empresa farmacêutica, a administração entendeu, mal, dirigir um tratamento em sede de IVA distinto entre as situações.
  8. Todavia, como bem salienta o acórdão do C-462/16 do TJUE, são situações comparáveis e, por conseguinte, aparentemente, não existe razão que possa objetivamente justificar uma desigualdade de tratamento.
  9. Quanto ao acórdão C-717/19, o caso objeto de litígio é entre a administração fiscal húngara e a Boehringer Ingelheim RCV GmbH & Co. KG Magyarországi Fióktelepe (Boehringer).
  10. Na Hungria, a comercialização a retalho dos medicamentos efetua-se, com exceção dos hospitais, por intermédio das farmácias, sendo que as farmácias compram a distribuidores grossistas e os grossistas a empresas de distribuição farmacêutica, como é o caso da Boehringer.
  11. Os medicamentos podem ser subvencionados pelo NEAK (organismo estatal de seguro de saúde), que aplica então um sistema de «subvenção do preço de compra».
  12. Para o feito que os medicamentos que distribui no mercado húngaro continuem subvencionados, a Boehringer celebrou com o NEAK «contratos de comparticipação», para o período compreendido entre 1 de Outubro de 2013 e 31 de Dezembro de 2017.
  13. A celebração destes contratos não é uma obrigação legal, mas dá à Boehringer a garantia de que os medicamentos que comercializa são subvencionados pelo NEAK.
  14. Nos termos desses contratos, a Boehringer comprometia-se a pagar ao NEAK, sobre a quantidade dos medicamentos que comercializava, contribuições de montante definido nos contratos, deduzidas do volume de negócios proveniente da venda desses medicamentos.
  15. A Administração Fiscal húngara considera que os pagamentos efetuados pela Boehringer, a favor do NEAK, não preenchem os requisitos da redução do valor tributável do IVA previstos na Lei relativa ao IVA.
  16. O TJUE veio pronunciar-se no sentido de “não tendo uma parte da contrapartida obtida na sequência da venda dos medicamentos pela empresa farmacêutica sido recebida por esta devido à contribuição que envia ao organismo estatal de seguro de saúde, que paga às farmácias uma parte do preço desses medicamentos, há que considerar que o preço destes últimos foi reduzido depois de efetuada a operação, na aceção do artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA.”
  17. Nesta situação, em que se verifica uma redução da base tributável, permite-se uma regularização do IVA anteriormente liquidado em excesso.
  18. Este regime assemelha-se ao que acontece em Portugal, onde o Estado comparticipa no valor dos medicamentos (de acordo com certos critérios técnicos) vendidos aos beneficiários do SNS ou de outros regimes.
  19. São os chamados “contratos de comparticipação” previstos no regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, onde, para determinado produto farmacêutico, são definidas as condições da sua comercialização assim como os limites máximos dos encargos que o Estado pode suportar com a sua aquisição, levando à definição de possíveis descontos.
  20. Ou seja, a uma efetiva diminuição do preço unitário do medicamento, a qual, aquando da sua operacionalização, implica uma devolução ao SNS dos montantes anteriormente faturados em excesso.
  21. Nestas situações, faz sentido dizer que existe uma diminuição da base tributável, na qual o IVA anteriormente incidente sobre um certo preço de venda, fruto de descontos agora concedidos contratualmente, implicam uma retificação/regularização do imposto a favor da empresa que o liquidou anteriormente, uma vez que o valor da contraprestação vai ser inferior.
  22. Já no que respeita ao Acordo, não se está em presença de uma comparticipação no preço dos medicamentos, mas sim de uma verdadeira contribuição financeira por um determinado setor de atividade, que tem por objetivo diminuir a despesa do Estado com medicamentos e, por essa via, permite-lhe assegurar a continuação da prestação dos serviços de saúde de que é responsável.
  23. A Requerente, ao abrigo do Acordo, está a efetuar uma contribuição especial, subsidiando desta forma o Estado, através da redução da dívida do SNS, e não um desconto no preço dos medicamentos anteriormente faturados.
  24. A nota de crédito, no âmbito do Acordo, é o documento suporte ao lançamento contabilístico que possibilita diminuir a dívida das entidades do SNS à indústria farmacêutica que está sujeita ao pagamento da contribuição.
  25. A contribuição efetuada pela Requerente ao Estado – via Acordo - não conhece qualquer nexo de causalidade com o preço dos medicamentos anteriormente vendidos.
  26. A contribuição no âmbito do Acordo configura um tributo de natureza fiscal ou parafiscal (imposto, taxa ou contribuição especial), não qualificáveis como “desconto”, pelo que não dão lugar à redução do valor tributável das operações efetuadas ou a qualquer direito de crédito aos sujeitos passivos que a ele se encontrem sujeitos.
  27. Pelo que, ao optar por efetuar o pagamento da contribuição financeira mediante a emissão de notas de crédito e ao inscrever esse valor no campo 40 das Declarações Periódicas de IVA, a Requerente está a reduzir o valor da contribuição financeira a que está sujeita.
  28. Se não tivesse aderido ao Acordo, teria de pagar Contribuição Extraordinária para a Indústria Farmacêutica.
  29. E, nesse caso, não haveria lugar à regularização de IVA, uma vez que se trata de uma contribuição especial que não dá lugar a uma redução do valor tributável das operações efetuadas.
  1. Verificando-se a inexistência de qualquer uma das situações previstas no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma.
  2. Foi, ainda, dispensada a realização de alegações, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, do RJAT, “a contrario”.
  3. A Requerente apresentou, em 4 de Setembro de 2023, um parecer jurídico elaborado pela Exma. Professora Dra. Clotilde Celorico Palma, e, em 13 de Novembro de 2023, um parecer jurídico elaborado pelo Exmo. Professor Dr. Sérgio Vasques, cujas conclusões e fundamentação coincidem, no essencial, com as posições que sustentou na petição inicial.

 

  • SANEADOR
  1. O Tribunal Arbitral Coletivo é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
  2. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de Março.
  3. Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que cumpre decidir.
  • matéria de facto
    1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade por quotas de direito português, com o capital social de € 250.000,00, cujo objeto social consiste na comercialização, promoção, venda e distribuição de medicamentos e dispositivos médicos, prossecução de atividades de investigação e desenvolvimento de produtos farmacêuticos, ensaios clínicos e demais atividades conexas, à qual corresponde o código CAE 46460.
  2. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA.
  3. A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da B... .
  4. Enquanto titular da autorização de introdução no mercado de diversos fármacos, a Requerente vende fármacos a entidades do Serviço Nacional de Saúde.
  5. Desde 2012 que o Estado e a B... (em representação da Indústria Farmacêutica) iniciaram um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitam garantir (i) a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e (ii) o acesso dos cidadãos aos medicamentos.
  6. Em 2012 foi celebrado o Acordo entre os Ministérios da Saúde, da Economia, e do Emprego e das Finanças e a indústria farmacêutica, segundo o qual, as empresas aderentes comprometeram-se a colaborar numa redução da despesa no valor de 300 milhões de euros, face aos valores verificados no ano anterior, prestando uma contribuição correspondente à parte que exceder os objetivos de despesa pública com medicamentos, que se dá por integralmente reproduzido.
  7. Em 2013 foi aditado o Acordo celebrado entre os Ministérios da Saúde, da Economia, e do Emprego e das Finanças e a indústria farmacêutica, segundo o qual as empresas aderentes comprometeram-se a efetuar uma contribuição de 122 milhões de euros, que se dá por integralmente reproduzido.
  8. E em 24 de Junho de 2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a B..., em representação da indústria farmacêutica, um novo Acordo entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a indústria farmacêutica, através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição no valor de 160 milhões de euros, que se dá por integralmente reproduzido (cf. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral).
  9. O Acordo B... foi revisto e, em 21 de Novembro de 2014, foi celebrado o Acordo para 2015, pelas mesmas partes, através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição no valor de 180 milhões de euros, que se dá por integralmente reproduzido (cf. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral).
  10. A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”), introduziu a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”), com o propósito de garantir a sustentabilidade do SNS, na vertente dos gastos com medicamentos.
  11. Nos termos do regime da CEIF, as empresas do sector que celebrem um Acordo com o Estado estão isentas do pagamento desta contribuição (cf. artigo 5.º, n.º 2, do regime da “CEIF”).
  12. A 15 de Março de 2016, os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B... celebraram o Acordo referente ao triénio 2016-2018, que se mantém em vigor até hoje, que se dá por integralmente reproduzido (cf. documento n.º 3 do pedido de pronúncia arbitral).
  13. A Requerente aderiu ao Acordo, nos termos previstos no artigo 4.º do mesmo (cf. documento n.º 4 do pedido de pronúncia arbitral).
  14. A 3 de Fevereiro de 2017 foi assinado um aditamento ao Acordo, que manteve os termos e condições já assumidos anteriormente pelo Estado Português, que se dá por integralmente reproduzido (cf. documento n.º 5 do pedido de pronúncia arbitral).
  15. A Requerente aderiu ao aditamento, nos termos previstos no artigo 5.º do mesmo (cf. documento n.º 6 do pedido de pronúncia arbitral).
  16. Na clausula 5.ª do referido Acordo consta o seguinte:

 

 

 

  1. A Requerente emitiu, para pagamento da contribuição da indústria financeira previsto na clausula 5.ª do Acordo, notas de crédito a favor de entidades do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”) referente à contribuição do ano de 2018 (cf. documento n.º 8 do pedido de pronúncia arbitral).
  2. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo interno de âmbito parcial, com incidência no Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), relativamente ao ano de 2018, levada a cabo pela Direção de Finanças de Lisboa, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., com despacho datado de 13 de Abril de 2022.
  3. No âmbito do procedimento de inspeção, foram propostas correções, em sede de IVA, no valor de € 148.498,40, referente aos períodos 1801 (€ 27.732,54) e 1810 (€ 120.765,86) [cf. pp. 26 e seguintes do relatório de inspeção tributária].
  4. Como fundamento para as correções propostas, os serviços de inspeção tributária (“SIT”) entenderam o seguinte (cf. pp. 10 e 11 e pp. 26 e 27 do relatório de inspeção tributária):

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

V.1. Acordo – B... e C...– INFARMED

Como é sabido o mercado farmacêutico, onde a A... atua, é influenciado pelas políticas do governo, que regulam os preços de venda ao público e os reembolsos aos consumidores. Por este motivo, surgiram vários mecanismos com o intuito de mitigar a dívida do Estado com a saúde:

  • O Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica – B... (de ora em diante designada Acordo – B...) e
  • Os Contratos celebrados com o INFARMED, os chamados Sistema C... (de ora em diante designado C...- INFARMED)

ACORDO – B...

Os últimos anos, fruto das medidas de austeridade impostas pelo governo português para cumprimento dos programas de ajuda financeira a Portugal, ficaram marcados pelos Acordos celebrado entre o Ministério das Finanças, o Ministério da Economia e Emprego, o Ministério da Saúde e a Indústria Farmacêutica.

As empresas aderentes aos Acordos, deveriam contribuir para a diminuição da Despesa com medicamentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), tanto no segmento ambulatório como hospitalar.

De forma a operacionalizar o estipulado nos acordos, em que se prevê uma contribuição financeira, as empresas emitem notas de crédito a favor das entidades do SNS, correspondentes ao valor devido apurado e proporcional ao valor por si faturado às mesmas, no período respetivo.

As notas de crédito são de imediato compensadas, por liquidação das faturas mais antigas, vencidas e não pagas. Caso, para alguma entidade, não existam faturas vencidas e não pagas, o valor correspondente à contribuição é pago por transferência bancária.

Por este motivo, as sociedades aderentes aos Acordos passaram a constituir previsões

(estimativas), os chamados “Accruals”, que são anuladas (revertidas) aquando da comunicação do valor do Acordo e a emissão efetiva das notas de crédito.

(…)

 

“V.4. Correções em sede de IVA

A A..., como aderente ao Acordo estabelecido entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica, procede à emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS, com regularização do IVA, como se fosse um abatimento ao valor das suas vendas, recuperando parte do IVA anteriormente liquidado.

Com a utilização deste mecanismo, a A... reverte a seu favor, sob a forma de crédito de imposto, uma parte do valor da contribuição (correspondente ao valor do IVA) que deveria entregar ao Estado.

A A... teve o seguinte procedimento contabilístico com reflexos no IVA apurado:

1º Lançamento

  • Débito da conta #24331000 – IVA liquidado pelo montante do IVA regularizado a seu favor mencionado nas notas de crédito.
  • Débito da conta #68130001 - Contribuição IF pelo valor base das notas de crédito.
  • Crédito da conta #21110000 – Clientes hospitalares pelo valor total das notas de crédito.

2º Lançamento

  • Crédito da conta #68130001 - Contribuição IF pelo valor base das notas de crédito.
  • Débito da conta #27800003 - Acordo B...- Mi pelo valor base das notas de crédito.
  • Débito da conta #27800004 - Infarmed – C... pelo valor base das notas de crédito.1060766#

Como se pode verificar é no 1º lançamento que é efetuada a contabilização da regularização de IVA, independentemente da natureza do Acordo –B...ou do Contrato C...–INFARMED.

Só no 2º lançamento é que é feita a distinção das notas de crédito emitidas, com a transferência para contas próprias, consoante sejam referentes a Acordo – B... ou C... –INFARMED.

Conclui-se que a A... deduz / regulariza indevidamente IVA a seu favor, infringindo os artigos 19º e 20.º do Código do IVA, uma vez que a contribuição financeira devida pelos aderentes ao Acordo – B..., não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA e, por conseguinte, trata-se de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto.

Deste modo, propõe-se a correção do IVA regularizado a favor do sujeito passivo no campo 40 das declarações periódicas de IVA de janeiro e outubro de 2018, no montante de € 27.732,54 e € 120.765,86 respetivamente, ou seja, um total de € 148.498,40, uma vez que, conforme já referido, as notas de crédito emitidas pela A... não resultam de situações enquadráveis na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do Código do IVA por respeitarem a operações fora do campo de incidência desse Imposto.

Por tudo o que foi exposto e da análise acima efetuada detetou-se a regularização de IVA indevida, nas notas de crédito emitidas relativas ao Acordo – B... .

Deste modo propõe-se uma correção em sede de IVA no valor de € 148.498,40 aos períodos:

  • Período 1801: € 27.732,54;
  • Período 1810: € 120.765,86

(…)

  1. A Requerente foi notificada do Projecto do RIT no dia 17 de Agosto de 2022, dando o devido prazo para exercer o seu direito de audição prévia, que exerceu no dia 29 de Agosto de 2022, contestando as correções propostas (cf. pp. 29 e seguintes do relatório de inspeção tributária).
  2. Posteriormente, a Requerente foi notificada do RIT, que manteve a argumentação já defendida no Projeto do RIT.
  3. Na sequência da notificação do RIT, a Requerente foi notificada dos atos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios impugnados (cf. documento n.º 10 do pedido de pronúncia arbitral).
  4. Em 31 de Janeiro de 2023, a Requerente pagou a totalidade do montante liquidado (cf. documento n.º 11 do pedido de pronúncia arbitral).
  5. No presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerente impugna as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios n.º 2022..., relativa ao período 2018/01, n.º 2022..., relativa ao período 2018/10, n.º 2022..., relativa ao período 2018/12, n.º 2022..., relativa ao período 2019/01, n.º 2022..., relativa ao período 2019/02, n.º 2022..., relativa ao período 2019/03, n.º 2022..., relativa ao período 2019/05, n.º 2022..., relativa ao período 2019/07, n.º 2022..., relativa ao período 2019/08, n.º 2022..., relativa ao período 2019/09, que apuraram um valor a pagar de € 170.445,83.
  1. Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.

  1. Fundamentação da matéria de facto

A matéria de facto fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo assenta nas posições assumidas pelas Partes e na prova documental apresentada e produzida nos autos, nos documentos juntos aos autos e não impugnados por nenhuma das Partes e nos factos admitidos por acordo das Partes, sendo de observar que dos articulados apresentados não emerge discordância das Partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se a divergência à matéria de direito.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente e considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito [cf. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cf. artigos 13.º do CPPT, artigo 99.º da LGT, 90.º do CPTA e artigos 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação aos factos alegados pelas Partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme artigo 16.º, alínea e) do RJAT e n.º 4 do artigo 607.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei [e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil (CC) e havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam, conforme artigo 393.º do CC], é que não domina o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 607.º, n.º 5 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

  • DO DIREITO
  1. Delimitação do objecto

Atenta as posições das partes assumidas nos argumentos apresentados, constitui questão central dirimida, a qual cumpre, pois, apreciar e decidir:

  1. A determinação da legalidade e consequente anulação do acto tributário de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), consubstanciado nas liquidações de IVA e juros compensatórios n.º 2022..., relativa ao período 2018/01, n.º 2022..., relativa ao período 2018/10, n.º 2022..., relativa ao período 2018/12, n.º 2022..., relativa ao período 2019/01, n.º 2022..., relativa ao período 2019/02, n.º 2022..., relativa ao período 2019/03, n.º 2022..., relativa ao período 2019/05, n.º 2022..., relativa ao período 2019/07, n.º 2022..., relativa ao período 2019/08, n.º 2022..., relativa ao período 2019/09, que apuraram um valor a pagar de € 170.445,83.
  2. Da condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, nos termos legais, e das custas de arbitragem.

Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, de seguida importa determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões a decidir.

  1. Do mérito da causa

Em síntese, a pretensão da Requerente subsume-se à consideração e regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas no exercício de 2018 ao abrigo do Acordo celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B... para o triénio 2016-2018 (doravante, “Acordo B...”), no montante de € 148.498,40.

Para o efeito, a Requerente alega que, in casu, a regularização do IVA é imposta pelo princípio da neutralidade e pelo princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, encontrando-se preenchidos os critérios dos artigos 90.º da Diretiva IVA e 78.º do Código do IVA interpretados à luz da jurisprudência do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA GMBH & CO. KG (C-462/16) e BOEHRINGER INGELHEIM RCV GMBH & CO. KG (C-717/19).

A Requerida, sinteticamente, considera que não se encontram reunidos os critérios do artigo 78.º do Código do IVA, na medida em que, no seu entender, a contribuição financeira devida pelos aderentes ao Acordo B... não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, e, por conseguinte, trata-se de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto. No entender da Requerida, as notas de crédito emitidas pela Requerente não regularizam valores de venda anteriormente faturados, consubstanciando sim um acerto de contas na conta corrente do cliente relativo ao pagamento de uma contribuição a que o sujeito passivo está sujeito e não isento, sendo a emissão das notas de crédito a mera forma que a Requerente escolheu para cumprir com a obrigação tributária, nos termos previstos no Acordo.

Alega ainda a Requerida que a jurisprudência do TJUE invocada pela Requerente não tem aplicação no caso concreto.

Perante o exposto, cabe ao Tribunal Arbitral  decidir, com base na matéria de facto e de direito, se deve ser aceite a dedução do montante de IVA, no valor de € 148.498,40, relativo às notas de crédito emitidas pela Requerente às entidades do SNS, ao abrigo do Acordo B... .

A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”), introduziu, através do seu artigo 168.º, o regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”).

 

O artigo 5.º deste regime[1] tem o seguinte teor:

 

Artigo 5.º
Acordo para sustentabilidade do SNS


1 - Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.

2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.

4 - O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.”

 

Não obstante o referido no n.º 1 do artigo 5.º do Regime da CEIF, desde 2012 que o Estado e a B... (em representação da Indústria Farmacêutica) iniciaram um processo de colaboração com vista à celebração de protocolos que permitam garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do SNS e o acesso dos cidadãos aos medicamentos.

Em 2012 foi celebrado o Acordo entre os Ministérios da Saúde, da Economia, e do Emprego e das Finanças e a Indústria Farmacêutica (doravante, o “Acordo de 2012”), segundo o qual o objetivo de despesa com medicamentos para o ano de 2012 foi fixado em 2038 milhões de euros e as empresas aderentes comprometeram-se a colaborar numa redução da despesa no valor de 300 milhões de euros, face aos valores verificados no ano anterior, e, nos termos da clausula quinta do Acordo, a prestar uma contribuição correspondente à parte que exceder os objetivos de despesa pública com medicamentos.

Em 2013 foi aditado o Acordo de 2012 pelas partes (doravante, o “aditamento de 2013”), segundo o qual as empresas aderentes comprometeram-se a efetuar uma contribuição de 122 milhões de euros para a redução da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência ao mercado hospitalar total. De Acordo com o estipulado na cláusula terceira do aditamento de 2013, o pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais.

Por outro lado, nos termos da clausula quarta do aditamento de 2013, o Ministério da Saúde comprometeu-se a proceder ao pagamento da dívida total por fornecimentos hospitalares das empresas aderentes ao mesmo anterior a 31 de Dezembro de 2011, até 30 de Outubro de 2013, e a desenvolver todos os esforços que permitissem iniciar a regularização do pagamento das dívidas relativas ao ano de 2012. O aditamento previa ainda que as notas de crédito apenas seriam emitidas após o pagamento da dívida hospitalar total anterior a 31 de Dezembro de 2011, até 30 de Outubro de 2013.

E em 24 de Junho de 2014, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças e da Saúde e a B..., em representação da Indústria Farmacêutica, um novo Acordo (doravante, o “Acordo de 2014”), através do qual as empresas aderentes se vincularam a uma contribuição no valor de 160 milhões de euros, mediante o pagamento de uma contribuição em valor proporcional à sua quota de mercado, calculada por referência aos encargos totais do SNS. De acordo com o estipulado na cláusula quinta do Acordo de 2014, o pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (doravante, a “ACSS, I.P.”).

Em contrapartida, nos termos da cláusula sexta do Acordo de 2014, o Ministério da Saúde comprometeu-se a desenvolver todos os esforços para continuar a proceder ao pagamento da dívida total por fornecimentos hospitalares das empresas aderentes ao mesmo anterior a 31 de Dezembro de 2012 e para garantir que o valor da dívida hospitalar a 31 de Dezembro de 2014 fosse inferior, em cada empresa aderente, ao valor apurado a 31 de Dezembro de 2013.

O Acordo B... foi revisto e, em 21 de Novembro de 2014, foi celebrado o Acordo para 2015 (doravante, o “Acordo de 2015”), pelas mesmas partes, através do qual as empresas aderentes se vincularam, nos termos da clausula terceira, a uma contribuição no valor de 180 milhões de euros, calculada considerando o total de vendas por tipo de medicamento, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS, e, eventualmente, deduzida das despesas de Investigação e Desenvolvimento a que se referem os números 3 e 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 23/2004, de 23 de Janeiro. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2016. De acordo com o estipulado na cláusula quinta do Acordo de 2015, o pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P..

Por outro lado, nos termos da cláusula sexta do Acordo de 2015, o Ministério da Saúde comprometeu-se a desenvolver todos os esforços para continuar a proceder ao pagamento da dívida total por fornecimentos hospitalares das empresas aderentes ao mesmo anterior a 31 de Dezembro de 2013 e para garantir que o valor da dívida hospitalar a 31 de Dezembro de 2015 fosse inferior, em cada empresa aderente, ao valor apurado a 31 de Dezembro de 2014.

A 15 de Março de 2016, foi celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B..., em representação da Indústria Farmacêutica, novo Acordo para 2016 (doravante, “Acordo de 2016”), através do qual as empresas aderentes se vincularam, nos termos da clausula terceira, a uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, com a possibilidade de acréscimo na medida da respetiva proporção, caso a empresa aderente fosse representativa de uma quota superior a 75% dos encargos totais do SNS, e, eventualmente, deduzida das despesas de Investigação e Desenvolvimento a que se referem os números 3 e 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 23/2004, de 23 de Janeiro, bem como os investimentos exigidos pela concretização dos procedimentos da Diretiva 2011/62/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de Junho de 2011. Caso o valor da despesa pública fosse ultrapassado, as empresas aderentes pagariam ainda o montante que excedesse o objetivo máximo, durante o primeiro trimestre de 2017, na proporção da sua responsabilidade pelo aumento da despesa pública, e com limites máximos expressamente previstos.

De acordo com o estipulado na cláusula quinta do Acordo de 2016, o pagamento da contribuição era realizado mediante a emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento à ACSS, I.P..

Como compensação, e nos termos da cláusula sexta do Acordo de 2016, o Ministério da Saúde comprometeu-se, entre outros, a apoiar as instituições do SNS com as ações necessárias a continuar a proceder ao pagamento da dívida total por fornecimentos hospitalares das empresas aderentes anterior a 31 de Dezembro de 2014 e para garantir que o valor da dívida vencida a 31 de Dezembro de 2016 fosse inferior, em cada empresa aderente, ao valor apurado a 31 de Dezembro de 2014 e/ou 31 de Dezembro de 2015, consoante o menor dos valores.

A 3 de Fevereiro de 2017, foi aditado o Acordo de 2016, através do qual as empresas aderentes se vincularam a pagar em 2017 (doravante, “aditamento de 2017”), nos termos da clausula segunda, uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros, montante a ser atualizado, em cada trimestre, de acordo com a evolução da despesa pública com medicamentos do SNS. As restantes disposições do Acordo mantiveram-se, no essencial, inalteradas, face ao disposto no Acordo de 2016, com exceção do método de cálculo da contribuição, que passou a ter por base “os valores de despesa pública com medicamentos no SNS no ano de 2017 fornecidos pelo INFARMED, sendo-lhe aplicável as taxas previstas no Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica” (cf. cláusula segunda do aditamento de 2017) [doravante, o Acordo de 2016 e o aditamento de 2017, “Acordo biénio 2016-2018”].

De tudo o que resultou exposto retira-se que, não obstante tanto no regime da CEIF como no regime previsto nos aludidos Acordos celebrados entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B..., em representação da Indústria Farmacêutica (doravante, e em conjunto, os “Acordos B...”), se prever o pagamento de um determinado montante pelas empresas da Indústria Farmacêutica, a que se denomina “contribuição” (nos Acordos mais recentes, “contribuição financeira”), e a circunstância da “contribuição” prevista no aditamento de 2017 ser calculada tendo por base elementos da CEIF (cf. cláusula segunda do aditamento de 2017), a natureza e contornos de um regime, e do outro, não se confundem.

Desde logo, o regime da CEIF, instituído pela Lei do Orçamento do Estado para 2015, criou uma verdadeira obrigação tributária, a cujo pagamento ficaram obrigadas as entidades que procedam à primeira alienação, a título oneroso, em território nacional, de medicamentos de uso humano, podendo a Autoridade Tributária promover a cobrança da dívida em caso de não pagamento dentro dos prazos legalmente estabelecidos e sendo o incumprimento da obrigação sancionado nos termos do Regime Geral das Infrações Tributárias.

Por outro lado, os Acordos B... configuram meros contratos administrativos (cf. sobre a natureza de contrato administrativo do regime previsto nos Acordos B..., parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, n.º P000322015 e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 0819/19.9BESNT), aos quais as empresas da indústria farmacêutica se vinculam, mediante uma declaração de vontade expressa, voluntária e individual. Os Acordos B... são meros acordos de vontade plurilaterais, por meio dos quais as empresas da Indústria Farmacêutica que assim o pretendam, se comprometem a colaborar com o Estado para atingir os objetivos orçamentais de despesa pública com medicamentos, mediante certo pagamento, em contrapartida da expectativa de verem as dividas hospitalares incorridas pelas entidades do SNS com a aquisição de medicamentos às empresas aderentes, pagas.

Ademais, a contribuição extraordinária criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 não incide sobre a despesa incorrida pelo SNS com a aquisição ou comparticipação dos medicamentos, mas sobre o valor total das vendas realizadas pelas empresas, abrangendo, portanto, todos os medicamentos colocados no canal de distribuição e não apenas aqueles que sejam adquiridos pelas entidades que fazem parte do SNS. Mais, no que concerne ao Acordo B... em vigor no biénio 2016-2018, ficou previsto que as empresas podem deduzir ao montante das contribuições voluntárias as suas despesas de investigação e desenvolvimento, bem como os investimentos associados aos procedimentos de combate aos medicamentos falsificados e os investimentos industriais de reforço da base produtiva, despesas estas que não são dedutíveis à Contribuição Extraordinária. Também as regras de liquidação e pagamento da Contribuição Extraordinária seguem um regime muito distinto das contribuições voluntárias: enquanto a primeira é autoliquidada pelos sujeitos passivos através da submissão da Declaração Modelo 28, devendo o pagamento fazer-se no mesmo período da entrega da declaração, através da referência de pagamento gerada após a submissão da mesma, o pagamento realizado ao abrigo do Acordo é feito mediante a emissão de notas de crédito ou por transferência bancária realizada a favor da ACSS, I.P., não existindo qualquer intervenção da Autoridade Tributária na sua liquidação. Para além do mais, enquanto no regime da CEIF se prevê a consignação da receita ao SNS, no regime do Acordo B..., há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármacos.

De onde se retira que os dois regimes são substantivamente distintos, não podendo o pagamento realizado ao abrigo dos Acordos B... ser equiparado ao pagamento de um tributo de natureza tributária.

Ademais, não se olvide que é o próprio regime da CEIF que expressamente prevê uma norma de isenção, no seu artigo 5.º, n.º 2, aplicável às entidades que adiram ao Acordo B... , individualmente e sem reservas. Efetivamente, é indiscutível que a letra do artigo 5.º, n.º 2 do Regime da CEIF afasta expressamente a aplicação do regime da CEIF – enquanto prestação de natureza tributária – às entidades que tenham aderido ao Acordo B... .

De todo o exposto, resulta cristalinamente que não é irrelevante se o pagamento é feito ao abrigo do Regime da CEIF, ou nos termos dos Acordos B..., nem tão pouco é irrelevante qual o método de pagamento escolhido pelas entidades aderentes, ao abrigo deste último, uma vez que se trata de regimes substantivamente diferentes, com implicações distintas, não existindo quaisquer indícios de que o legislador pretendia que assim não fosse.

Nesta matéria, invoca-se o elemento literal das normas, enquanto ponto de partida e limite de toda a interpretação, o qual assume duas funções: (i) uma função negativa ou de exclusão, que consiste em eliminar os sentidos que não tenham apoio na letra da lei; e (ii) uma função positiva ou de seleção, que consiste em favorecer o sentido técnico-jurídico (cf. neste sentido, entre outros, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1987, página 187; A. SANTOS JUSTO, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra Editora, 5.ª edição, página 335 e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 701/10).

De facto, a letra da lei é um elemento irremovível da interpretação, não podendo em circunstância alguma, quer seja por lapso ou desídia do legislador, ser afastado, conforme resulta expressamente do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil que consagra que “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (…).” 

 

E, de acordo com o elemento literal, resulta que o legislador, ao criar a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não pretendeu que a mesma substituísse as disposições do Acordo B... em vigor. Contrariamente ao defendido pela Requerida, do teor literal dos regimes não se extrai que o custo para as entidades sujeitas à Contribuição Extraordinária tenha, ou deva, ser semelhante ao custo suportado pelas entidades aderentes ao Acordo B... . Pelo contrário, resulta notoriamente da letra de ambos os regimes que estes são distintos, prevendo métodos de apuramento do montante a pagar, e meios de pagamento, diferenciados.

 

Conforme decorre do artigo 11.º, n.º 1, da LGT “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.”. Dispõe o artigo 9.º do Código Civil que: “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

Sucede que o entendimento da Requerida, ao referir que “(…) é irrelevante se a contribuição é paga ao abrigo da Contribuição Extraordinária da Indústria Farmacêutica ou ao abrigo do Acordo, nem se a mesma é paga por encontro de contas (emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS) ou em numerário. O custo tem de ser semelhante para toda a Indústria Farmacêutica.” (cf. artigo 16 e 17 da Resposta da Requerida), não só não tem qualquer respaldo na letra da lei, como não decorre tampouco dos elementos históricos e sistemáticos da interpretação.

Para além das diferenças já apontadas, relembre-se que os Acordos B..., que remontam a 2012, já existiam muito antes da criação da CEIF, introduzida com o Orçamento de Estado de 2015, tendo o legislador optado por manter os dois regimes, isentando as entidades aderentes aos Acordos B... do pagamento da Contribuição Extraordinária, o que permite inferir que não foi intenção do legislador equiparar as duas realidades, mas, pelo contrário, que os dois regimes se mantivessem em simultâneo, atribuindo aos operadores da Indústria Farmacêutica a prerrogativa de optarem em que regime se enquadrar.

Assim, não obstante as empresas aderentes ao Acordo acabarem por, a final, terem igualmente de contribuir para a sustentabilidade do SNS, através do pagamento de um determinado montante, a Contribuição Extraordinária e a “contribuição” prevista no Acordo B... têm necessariamente natureza e regimes distintos, sendo a primeira uma verdadeira contribuição financeira e a segunda um pagamento voluntário, realizado ao abrigo de um contrato administrativo, com regras próprias, o que não pode ser desconsiderado, nada impedindo que o montante das “contribuições” seja díspar.

Desta forma, não se concorda com o entendimento manifestado pelos serviços de inspeção tributária no RIT, e ora acolhido pela Requerida, nesta parte.

Conforme aludido, as entidades aderentes ao regime do Acordo B... do biénio 2016-2018 vincularam-se a colaborar no controlo da despesa pública com medicamentos, mediante o pagamento de uma “contribuição”, realizado através da emissão de notas de crédito aos hospitais e/ou pagamento, por transferência bancária, à ACSS, I.P..

No cenário em que as entidades aderentes optam por cumprir com a sua obrigação ao abrigo do Acordo B..., mediante a emissão de notas de crédito, como sucedeu, in casu, com a Requerente, há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármacos. Ainda que tal diminuição decorra da circunstância dos sujeitos passivos estarem contratualmente vinculados ao pagamento de um montante intitulado de “contribuição”, o certo é que substantivamente estamos perante uma efetiva redução do valor a ser pago pelas entidades do SNS, o que não pode deixar de ter relevância em sede de IVA.

O IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, caracteriza-se fundamentalmente por ser um imposto indireto de matriz comunitária plurifásico, que incide sobre todas as fases do processo produtivo, através do método subtrativo indireto, que consiste na liquidação e dedução do imposto em cada uma das fases do circuito económico, quando as transações se processam entre sujeitos passivos do imposto com direito à dedução (cf. sobre esta matéria, Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, páginas 39 a 73 e Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, páginas 19 a 34).

A técnica do método subtrativo indireto visa a prossecução de vários objetivos, entre os quais, a tributação em cada uma das fases do circuito económico, repartindo o encargo fiscal pelos sujeitos passivos e assegurando a neutralidade do imposto. O princípio da neutralidade do IVA permite assim que o imposto não interfira nas opções estratégicas dos vários agentes económicos na cadeia de produção, tributando atos de consumo e não a atividade económica. O mecanismo do direito à dedução do IVA é, portanto, uma característica essencial do funcionamento do IVA, assumindo um papel fundamental na garantia na neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal.

A matriz comunitária do imposto, impõe, por outro lado, que todos os Estados membros tenham de seguir o sistema comum do IVA, consagrado na Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (doravante, “Diretiva IVA”), ficando a sua margem de atuação diretamente sujeita aos limites das regras do Direito da União. Como refere, e bem, Clotilde Celorico Palma, “Por este motivo, a correcta aplicação deste tributo implica o conhecimento não só da legislação, doutrina e jurisprudência nacionais, como igualmente da legislação, doutrina e jurisprudência da União Europeia” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da B..., ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).

Ora, de acordo com o artigo 2.º da Diretiva IVA e com o artigo 1.º, n.º 1, do Código do IVA, estão sujeitas a IVA as seguintes operações:

  1. As transmissões de bens e as prestações de serviços, efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;
  2. As operações intracomunitárias;
  3. As importações de bens.

Para efeitos de IVA, é qualificada como transmissão de bens, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IVA, que segue o disposto no artigo 14.º, n.º 1 da Diretiva IVA, a “Transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.”

Partindo do artigo 9.º da Diretiva IVA, nos termos do artigo 2.º do Código do IVA, consideram-se sujeitos passivos do imposto, as pessoas singulares ou coletivas que:

  1. Exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e das profissões livres, de modo independente e habitual;
  2. De modo independente, pratiquem uma só operação, enquadrável numa das referidas atividades, sejam ou não estas exercidas no território nacional;
  3. Pratiquem uma só operação sujeita a IRS ou IRC;
  4. Realizem importações de bens;
  5. Mencionem indevidamente IVA;
  6. Efetuem operações intracomunitárias.

Pelo que dúvidas não subsistem de que tanto a Requerente como as entidades do SNS a quem esta emite faturas são sujeitos passivos de IVA e que a venda de medicamentos pela primeira, a estas segundas, configura uma operação tributável em sede de IVA.

De acordo com a teoria das prestações recíprocas, os montantes pagos devem configurar a contrapartida da transmissão de um bem ou da prestação de um serviço, individualizáveis, em relação aos quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, verificando-se assim o elemento objetivo que compõe o âmbito da incidência do IVA.

Em respeito ao caso concreto, e nas palavras de Clotilde Celorico Palma, a que aderimos: “No caso em apreço estamos perante transmissões de bens – fármacos - perfeitamente individualizáveis, quer ao nível da prestação quer ao nível dos seus beneficiários directos (utentes), sendo a respectiva contrapartida o preço pago descontado dos valores acordados relativos às notas de crédito emitidas. É esta a realidade material em causa, não interessando para o efeito, contrariamente ao pretendido pela AT, que esteja em causa o pagamento de uma Contribuição, independentemente da natureza que esta assuma e do mecanismo adoptado para o efeito.” (cf. Parecer relativo ao direito de regularização do IVA contido em notas de crédito emitidas pelas associadas da B..., ao abrigo do Acordo celebrado entre o Estado e a Indústria Farmacêutica, de 28 de Julho de 2023).

Veja-se que o artigo 73.º da Diretiva IVA estabelece que “nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.º a 77.º, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações.”. No mesmo sentido, dispõe o artigo 16.º, n.º 1 do Código do IVA: “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”.

Como ensina SÉRGIO VASQUES, “significa isto que o valor tributável de cada operação corresponde por princípio a toda a contrapartida convencionado entre as partes” (cf. O Imposto Sobre Valor Acrescentado, Almedina, 2015, página 282).

Esclarece ainda o artigo 79.º da Diretiva IVA que “o valor tributável não inclui os seguintes elementos: a) As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado; b) Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza; c) As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efectuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.”. Também o n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA exclui do valor tributável os descontos, abatimentos e bónus concedidos.

Sobre esta matéria, salienta SÉRGIO VASQUES “toda a redução de preço de que o adquirente beneficie deve ser expurgada do valor tributável, deva-se essa redução do preço à realização de pagamento antecipado ou a qualquer outro motivo.” (cf. ob. cit., pág. 287).

Nos termos do disposto no artigo 90.º da Directiva IVA: “1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros. 2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”. Por sua vez, o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA refere que “Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável”.

Assim, qualquer redução do preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, independentemente da sua forma ou designação, deve ter reflexo no valor tributável e, consequentemente, no imposto a liquidar ao Estado.

Continua o mesmo autor, “se a redução do preço é feita até ao momento em que se realiza a operação, expurga-se a redução do valor tributável nos termos do artigo 79.º; já se a redução se produz em momento posterior, e qualquer que seja a razão para o efeito, manda o artigo 90.º que se reduza o valor em conformidade” (cf. ob. cit., pág. 287, com sublinhado nosso).

No presente caso, é cristalino que a redução de preço ocorre em momento posterior à operação. Consequentemente, aplicando a regra própria do IVA que determina que “a matéria colectável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contrapartida efectivamente paga pelo consumidor final”, quando ocorra uma vicissitude de que resulte a redução do preço recebido pelo sujeito passivo depois de realizada uma operação, como se verifica no presente caso, deve reduzir-se o seu valor tributável, ainda que essa vicissitude não envolva a contraparte na operação.

Efetivamente, in casu, as associadas da B... aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do Acordo. Por obediência ao princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias, no artigo 11.º, n.º 3 da LGT, impõe-se que se dê primazia à verdade material e à substância económica dos factos. Razão pela qual, é forçoso concluir pelo direito da Requerente à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas.

Conforme entende Clotilde Celorico Palma, “o que temos na situação controvertida é, inequivocamente, uma redução do valor tributável da operação de venda de fármacos levada a cabo pelas entidades associadas da B... aderentes ao Acordo que deve ser objecto de regularização, em conformidade com as regras da Directiva IVA, assim se repondo a neutralidade deste impostos assegurando-se o princípio da contraprestação efectiva. Não nos interessa atender à forma sob a qual se processa tal operação (…) mas sim à substância dos factos e, na substância, o que material e inequivocamente temos é uma redução do valor tributável da operação, que, enquanto tal, pode e deve ser objecto de regularização.”.

Assim, à luz do princípio da substância sobre a forma, do principio da neutralidade próprio do regime do IVA e das regras inerentes ao mesmo, nomeadamente, as normas dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, a posição da Autoridade Requerida de querer fazer prevalecer o facto de estar em causa uma Contribuição, invocando não estar em causa uma contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA e, por conseguinte, estarmos perante uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto, não é correta (cf. página 27 do relatório de inspeção), não merecendo, atento o exposto, acolhimento.

Ademais, a interpretação das normas aplicáveis no sentido de que à Requerida deve ser garantido o direito a proceder com a regularização do IVA constante das notas de crédito emitidas ao abrigo do Acordo B...  é a única interpretação conforme com a jurisprudência comunitária, nomeadamente, com os acórdãos do TJUE nos casos BOEHRINGER INGELHEIM (C-717/19) e BOEHRINGER INGELHEIM PHARMA (C-462/16), cuja jurisprudência não poderá deixar de ser transponível ao presente caso, cumprindo-se assim o princípio do primado do direito europeu.

Veja-se que a citada jurisprudência do TJUE é clara no sentido de que o artigo 90.º da Directiva IVA se opõe a uma legislação nacional que prive uma empresa farmacêutica da possibilidade de reduzir a posteriori o seu valor tributável do IVA quando, por força daqueles mecanismos (desconto, no caso C-717/19, e retificação à posteriori de preço, no caso C-462/16), tenha havido de facto, tal como no presente caso, uma redução do preço depois de efetuada a operação. Assim, qualquer redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respetivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade o princípio da igualdade de tratamento consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre preço superior ao que é efetivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efetive, seja esta de fonte legal ou contratual.

Pelo que, tendo presente a legislação e jurisprudência comunitárias, que servem de auxílio e parâmetro de interpretação da legislação nacional, julga-se o presente pedido de pronúncia arbitral totalmente procedente.

  • DECISÃO
  1. Em face do exposto, o Tribunal Arbitral Coletivo decide julgar totalmente procedente o pedido de pronuncia arbitral, e, em consequência:
  1. Declarar ilegal e determinar a anulação das liquidações adicionais de IVA referentes ao exercício de 2018 ora impugnadas;
  2. Condenar a Autoridade Requerida a restituir à Requerida o montante de imposto pago;
  3. Condenar a Autoridade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados desde o pagamento do imposto pela Requerente, até ao seu integral pagamento, à taxa legal em vigor;
  4. Condenar a Autoridade Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

  • VALOR DO PROCESSO
  1. Fixa-se o valor da ação em €170.445,83 (cento e setenta mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e oitenta e três cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
  • CUSTAS
  1. Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, cujo pagamento fica a cargo da Requerida.
  • Notifique-se.

Lisboa, 20 de Março de 2024

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

Sofia Quental

(Adjunta)

 

Marcolino Pisão Pedreiro

(Adjunto)

 com voto de vencido. Segue declaração de voto.

 

Declaração de voto do árbitro adjunto, Marcolino Pisão Pedreiro

 

Voto vencido a presente decisão arbitral pelas razões que passo a enunciar.

 

A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 (“LOE 2015”), introduziu, através do seu artigo 168.º, o regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (“CEIF”).

 

O artigo 5.º deste regime tem o seguinte teor[2]:

 

Artigo 5.º
Acordo para sustentabilidade do SNS
1 - Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS

através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com

medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.
2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.

4 - O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.” [3]

 

Afigura-se, todavia, analisando a regulação global em causa, que apesar da lei aparentemente estabelecer, no nº 2 deste artigo, uma isenção para as empresas aderentes ao acordo, na realidade, de acordo com o regime estabelecido naquele e nos demais números, estas suportam também obrigatoriamente o tributo, neste caso nos termos do acordo entre o os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B... .

 

Os valores das notas de crédito em causa, emitidas ao abrigo do acordo entre a B... e o Ministério das Finanças consubstanciam o pagamento de tributo fixado com base num contrato, como previsto no artigo 37º, nº 2, da Lei Geral Tributária, e que encontra fundamento no referido artigo 5.º do Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica.

O que resulta da regulação efetiva é que as empresas sujeitas ao tributo, nos termos do nº 2 do CEIF, poderão pagar o mesmo de acordo com as normas dos artigos 3º e seguintes deste regime ou, caso assim o entendam, optar pelo regime estabelecido no acordo celebrado entre o os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a B... . O pagamento segundo este regime não consubstancia uma contribuição verdadeiramente voluntária, na medida em que a alternativa ao pagamento do tributo de acordo com o mesmo é o seu pagamento nos termos dos artigos 3º e seguintes do regime do CEIF. Verifica-se, pois, que, nos termos da Lei, as empresas em causa não podem eximir-se ao pagamento do tributo, suportando-o necessária e obrigatoriamente. Tal resulta bem claro do art. 5º, nº 3, do CEIF, nos termos do qual “A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.”

 

Há, assim, uma relação intrínseca e indissociável entre os dois regimes que são interdependentes um do outro. O sujeito passivo pode deixar de pagar segundo o regime geral, se pagar nos termos do acordo. Se não optar pelo regime do acordo, ou optando não cumprir a obrigação de pagamento, terá de pagar nos termos do regime geral. Não pode é deixar de pagar.[4]

Assim, salvo o devido respeito por entendimento diverso, entendo que a contribuição paga pelas empresas aderentes ao regime do acordo não deixa de ter a mesma natureza jurídica que a contribuição paga pelas empresas não aderentes ao acordo, embora a determinação do valor a pagar seja efetuada de forma diferenciada. [5]

 

Neste sentido, escreve Filipe de Vasconcelos Fernandes a propósito da Contribuição Extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do SNS, mas referindo-se também ao CEIF:

Em termos complementares, neste segmento com alguma semelhança face ao que sucede com a CEIF, entendemos que a CEDM configura um verdadeiro tributo dual, no qual o respetivo regime de incidência objetiva se encontra alicerçado numa possibilidade alternativa para os respetivos sujeitos passivos.

Esta natureza dual da CEDM a que nos referimos, domínio em que volta a existir um paralelismo face ao regime da CEIF, concretiza-se aos seguintes níveis:

  1. Por um lado, os sujeitos passivos têm a possibilidade de aderir a “Acordos entre o Estado Português, representado pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, e as associações de fornecedores visando a sustentabilidade  do SNS, caso em que ficarão isentos (…) nos termos do (…) respetivo regime , pagando um montante sucedâneo e expresso nos termos de cada um dos referidos acordos.
  2. Por outro lado, para os sujeitos que não aderem aos referidos acordos, constituir-se-ão automaticamente como sujeitos passivos não-isentos da CEDM e, como tal, sujeitos ao respetivo regime, tal como já se encontra em vigor.

 

No entanto, esta natureza dual não deverá obstar a que se considere que continua a estar em causa um só tributo, oscilando apenas os termos subjacentes à respetiva estrutura de incidência (…)” (A CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE OS FORNECEDORES DA INDÚSTRIA DE DISPOSITIVOS MÉDICOS DO SNS, AAFDL EDITORA, 2021, pags. 70-71, meu sublinhado).

 

Estando em causa o pagamento dum tributo, não se verifica, no meu entender, a redução de preço prevista no art. 90º, nº 1, da Diretiva IVA e no artigo 78º, nº 2, do CIVA. O pagamento em causa consubstancia o cumprimento duma obrigação no âmbito de relação jurídico-tributária e não no âmbito de relação jurídica de direito privado sobre que incide o IVA.

 

É  ainda de notar que os acórdãos do TJUE invocados pela impugnante não versam sobre situações em que os valores em causa respeitassem ao cumprimento de obrigação tributária, diferentemente do que ocorre no caso dos autos, não se vislumbrando que na letra, ou na  teleologia, do art. 90º, nº 1, da Diretiva IVA e do artigo 78º, nº 2, do CIVA, que no conceito “redução do preço” (art. 90º, nº 1 da Diretiva IVA), “redução do contrato”, ou “desconto”(art. 78º, nº 2, do CIVA) se possam incluir o pagamento dum tributo.

 

Acresce que, a tese sustentada pela impugnante originaria em sede de IVA uma discriminação entre empresas que suportam a contribuição com adesão ao acordo e empresas que a suportam sem adesão ao mesmo, permitindo às primeiras dedução em sede de IVA vedada às segundas, o que feriria o princípio da neutralidade em sede deste imposto, bem como o princípio da igualdade.

 

Assim, pelas razões expostas, e com o devido respeito por opinião em contrário, entendo que a tese da impugnante não merece acolhimento e que deveriam improceder os pedidos formulados.

                            

O Árbitro,

 

 

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 



[1] O artigo 281.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro (OE-2018) estabelece: “mantém-se em vigor em 2018 a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, cujo regime foi aprovado pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro.”

 

 

[2] O artigo 281.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro (OE-2018) estabelece:“mantém-se em vigor em 2018 a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, cujo regime foi aprovado pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro.”

 

Pode ler-se em “https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-extraordinaria-sobre-a-industria-farmaceutica-update-2023/475”:

“(…)a CEIF foi introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro) com a finalidade declarada de garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), na vertente dos gastos com medicamentos, sendo a receita obtida com a sua cobrança consignada ao SNS.

Desde então, tem vindo o seu regime a ser prorrogado, até aos dias de hoje, numa base anual e por via da aprovação das sucessivas Leis do Orçamento do Estado.”

 

 

[3] Sobre a natureza tributária da contribuição Cfr. Aquilino Paulo Antunes, CONTRIBUIÇÕES FINANCEIRAS, MEDICAMENTOS E DISPOSITIVOS MÉDICOS, AAFDL EDITORA, 2020, pag. 222, Filipe de Vasconcelos Fernandes A CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE OS FORNECEDORES DA INDUSTRIA DE DISPOSITIVOS MÉDICOS DO SNS, AAFDL EDITORA, 2021, pags. 67-72. Enquanto o primeiro autor qualifica o tributo como contribuição financeira, o segundo parece qualificá-lo como um imposto, sendo ambos inequívocos quanto à natureza tributária.

[4] Nesta medida, não me parece apropriado designar como “voluntárias” as contribuições efetuadas segundo o regime do acordo.

 

[5] De observar que a possibilidade do pagamento da contribuição pelas empresas aderentes ao acordo poder ser feita por nota de crédito aos Hospitais como alternativa à transferência bancária, meio também previsto, tem, manifestamente, natureza  procedimental, à luz do princípio da praticabilidade. Quer se utilize um meio ou o outro, trata-se em ambos os casos de pagamento, conforme resulta claro no artigo 5º do acordo (al. p) do probatório).