Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 209/2023-T
Data da decisão: 2024-02-09  IRS  
Valor do pedido: € 76.330,45
Tema: IRS. Trust – Rendimentos de capitais. Ónus da prova.
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SUMÁRIO

  1. Um trust constitui uma relação jurídica criada por uma pessoa (settlor) mediante a transmissão do título de propriedade sobre certos bens (legal ownership) para outra pessoa (trustee), que recebe essa propriedade em confiança (in trust) e em benefício de terceiros, sendo estes últimos os beneficiários dos bens transmitidos (beneficial ownership).

 

  1. Os rendimentos provenientes de trust, quando auferidos pelo respetivo settlor, estão sujeitos a tributação em sede de IRS, enquanto rendimentos de capitais, por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea t), do Código de IRS.

 

 

  1. Não tendo o settlor logrado provar que realizou transferências bancárias que consubstanciariam empréstimos ou créditos sobre os trustees, como lhe competia à luz do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, resta ao Tribunal Arbitral considerar que os montantes pagos pelos trustees ao settlor constituem rendimentos de capitais para efeitos de IRS (sujeitos a tributação), ao invés de reembolsos de empréstimos anteriores (não sujeitos a IRS), e julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de IRS sindicada.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dra. Filipa Barros e Dr. Francisco Melo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

  1. A..., contribuinte n.º ..., residente na ..., n.º ..., ..., ...-... Cascais (doravante “Requerente”), veio, em 26-03-2023, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º, na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos seguintes atos tributários: (i) liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2018, no montante de € 67.234,59, (ii) liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., no montante de € 8.230,25, (iii) liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., por recebimento indevido, no montante de € 38,78, e (iv) estorno de liquidação n.º 2019..., no montante de € 826,83.

 

  1. É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 27-03-2022 e seguidamente notificado à Requerida.

 

  1. Em conformidade com o disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

 

  1. O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 06-06-2023.

 

  1. Em 12-07-2023, a Requerida apresentou a sua Resposta, defendendo-se por impugnação. A Requerida não juntou aos autos o processo administrativo.

 

  1. Por despacho arbitral de 18-10-2023, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, notificando (i) o Requerente para juntar os elementos de prova que entendesse por conveniente à luz do alegado na Resposta da AT, (ii) a Requerida para juntar o procedimento de divergências referido no artigo 5.º da Resposta, e (iii) as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas simultâneas.

 

  1. A Requerida juntou aos autos o processo de divergências em 18-10-2023.

 

  1. Em resposta ao despacho arbitral de 18-10-2023, o Requerente juntou aos autos, em 27-10-2023, um novo documento: um affidavit em língua inglesa emitido pelos trustees to B... Trust, C... AG (doravente “C...”), datado de 25-10-2023, atestando a existência dos dois contratos juntos aos autos pelo Requerente (o Loan Agreement datado de 17-12-2015 e o Deed of Novation datado de 18-12-2015) e que, em 2018, foram realizados capital loan repayments ao Requerente, no montante de USD 278.431,62.

 

  1. Em 27-10-2023, a Requerente apresentou também as suas alegações.

 

  1. Em 31-10-2023, a Requerida apresentou as alegações remetendo para a Resposta apresentada anteriormente.

 

  1. Em 04-12-2023, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho arbitral:

 

“Os árbitros (...), ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo arbitral, e da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), e considerando os princípios do contraditório e da igualdade (cf. artigo 16.º, alíneas a) e b), do RJAT), acordam no seguinte:

 

(1) Notifique-se o Requerente para, no prazo de 15 dias, juntar aos autos os seguintes documentos:

(a) Comprovativo da transferência bancária do Requerente para o B... trust que consubstanciou o empréstimo;

(b) Declaração do contabilista certificado do B... trust relativa às obrigações contabilísticas a que este está sujeito de acordo com a lei de Jersey;

(c) Documentos contabilísticos do B... trust relativos aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, assinados por contabilista certificado;

(d) Declaração de imposto do B... trust relativa aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, assinada por contabilista certificado;

(e) Outros documentos que o Requerente entenda por conveniente, relativamente aos factos que a AT, na sua Resposta, alega encontrarem-se por esclarecer ou por provar.

 

(2) Notifique-se o Requerente para, no mesmo prazo, esclarecer as seguintes circunstâncias, juntando a documentação relevante:

(i) A origem da dívida da sociedade D... Limited para com o Requerente;

(ii) A relação da sociedade D... Limited com o Requerente;

(iii) Constituição, registo e titularidade das participações sociais da sociedade D... Limited à data da criação da referida dívida;

(iv) Os termos do acordo de cessão de dívida entre a sociedade D... Limited e o B... trust.

 

(3) Notifique-se a Requerida para, querendo, se pronunciar sobre a documentação junta pelo Requerente nos termos dos números anteriores, no prazo de 10 dias a contar do dia em que os documentos se tornarem disponíveis na plataforma do CAAD.

 

(4) Notifique-se as Partes de que o prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT é prorrogado, por dois meses, com fundamento na necessidade de assegurar a adequada instrução do processo e o respeito pelo princípio do contraditório.”

 

  1. Em resposta a este despacho arbitral, o Requerente juntou, em 14-12-2023, os seguintes (novos) documentos:

 

  • Extratos de transações referentes ao B... Trust em 2012.
  • Declaração de contabilista certificado na Africa do Sul, o Sr. E..., datada de 12 de Dezembro de 2023, informando, entre o mais, que a legislação Trusts (Jersey) Law 1984 exige que um trustee mantenha contas relativamente à relação criada com o trust, e que o C... é constituído e sujeito à lei suíça.
  • Documentos contabilísticos assinadas pelo Sr. E..., referentes aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018.
  • Registo de membros da sociedade D... Limited (doravante “D...”), do qual consta que (1) o B... Trust foi um dos sócios da mesma entre 25-05-2012 e 17-08-2020, e (2) o Requerente foi um dos sócios da mesma entre 11-04-2018 e 17-08-2020.

 

  1. Ainda no mesmo requerimento, o Requerente esclareceu que, de acordo com a Trust (Jersey) Law 1984, os trusts geridos por trustees suíços não estão sujeitos ao preenchimento de declaração anual de impostos. 

 

  1. Em 06-02-2024, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo para prolação da Decisão Arbitral, por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

 

  1. POSIÇÃO DAS PARTES

 

§1. Posição da Requerida no processo de divergências junto aos autos

 

  1. As autoridades suíças deram conhecimento à AT, através da troca internacional de rendimentos financeiros a que se refere o Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de Outubro, de que o Requerente obteve rendimentos de capitais no ano de 2018, tendo a AT sido informada dos seguintes elementos:

 

Natureza do rendimento: OUTROS CRS (E22 – Quadro 8A);

Valor do rendimento: € 243.054,97 ( USD 278.431,62 – valor comunicado);

Entidade pagadora: ... = B... Trust;

Número de conta: AH....

 

  1. O sujeito passivo justificou a divergência através do Portal das Finanças, em 7 de Junho de 2022, apresentando o seguinte esclarecimento “No seguimento da divergência instaurada, junto enviamos o documento que comprova que estes rendimentos se referem a um empréstimo”.

 

  1. Analisada a documentação enviada pelo Requerente, a AT concluiu que a mesma não era suficiente para justificar os valores comunicados pelas autoridades fiscais da Suíça à AT, como tipo de rendimentos “Outro CRS”.

 

  1. Decorrido o prazo para exercício da audição prévia, a AT verificou que o Requerente não se pronunciou, nem entregou declaração de substituição, pelo que o projeto de correção se tornou definitivo e os serviços procederam às correções ao Anexo J devidas, nomeadamente, ao reconhecimento do rendimento auferido no estrangeiro que havia sido comunicado em nome do Requerente.

 

§2. Posição do Requerente no PPA e alegações

 

Do Enquadramento Jurídico das Estruturas Trust

 

  1. Pese embora Portugal não seja Estado signatário da Convenção sobre a Lei Aplicável ao Trust e a seu Reconhecimento de 1985, a Suíça procedeu à sua ratificação a 1 de Julho de 2007, sendo o trust uma figura reconhecida e regulada nesta jurisdição desde então. De acordo com o artigo 2.º da Convenção, o termo “trust” refere-se a relações jurídicas criadas pelo outorgante (settlor), que coloca bens sob o controlo de um curador (trustee) para benefício de um terceiro beneficiário. Nos termos do artigo supra mencionado, o trust possui as seguintes características: “a) os bens constituem um fundo separado e não são parte do património do trustee; b) títulos relativos aos bens do trust ficam em nome do trustee ou em nome de alguma outra pessoa em nome do trustee; c) o trustee tem poderes e deveres, relativamente aos quais é responsável, de gerir, empregar ou dispor de bens em consonância com os termos do trust e os deveres especiais impostos a ele pela lei.” É característica fundamental do trust a separação da propriedade entre a propriedade de jure – a qual se atribui ao trustee – e a propriedade de facto ou económica – que permanece na titularidade do beneficiário.

 

  1. Temos assim que os bens entregues em trust, seja através de documento escrito ou manifestação de vontade, passam a constituir propriedade legal do trustee, embora continuem, sempre e até à extinção do trust a constituir propriedade material ou económica do beneficiário. Por outras palavras, no momento do estabelecimento do trust, o respetivo beneficiário não deixa de ter o direito a usufruir dos benefícios inerentes ao exercício do direito de propriedade dos bens entregues em trust, devendo apenas exercê-los em conformidade com as normas previstas no regulamento de gestão do trust (in casu, o trust deed) e através das pessoas nomeadas como trustees. Conclui-se, por conseguinte, que o Requerente enquanto settlor e beneficiário do trust foi materialmente proprietário dos ativos que o constituíram desde o momento em que os adquiriu.

 

  1. No caso em apreço, o Requerente, realizou um mútuo a favor do trust do qual o Requerente é settlor e beneficiário, tendo recebido a devolução desse montante em Agosto de 2018. Assim sendo, é claro que o facto económico concreto que deu origem ao “repayment” na esfera do Requerente foi a obrigação de restituição dos montantes mutuados.

 

Do Enquadramento Jurídico-Tributário aplicável em Portugal

 

  1. Os rendimentos provenientes do trust auferidos pelo respetivo settlor estão sujeitos a tributação em sede de IRS, (a) enquanto rendimentos de capitais, por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea t), Código de IRS, ou (b) enquanto mais-valias, se auferidos em resultado da liquidação, revogação ou extinção do trust, conforme disposto no n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS.

 

  1. In casu, não ocorreu nem uma mera distribuição de rendimento, nem a liquidação, revogação ou extinção do trust em apreço, mas apenas o reembolso de um mútuo, não existindo uma vantagem económica ou ganho, em sentido lato, para o Requerente. Assim sendo, não se concebe como poderá porventura a AT qualificar tal reembolso como rendimento de capital.

 

Da lei aplicável aos contratos celebrados pelo Requerente

 

  1. De acordo com a tese propugnada pela AT, o contrato de trust, o contrato de mútuo e o contrato de cessão de créditos são inválidos uma vez que carecem da forma legalmente prescrita ao abrigo da lei portuguesa, conforme o disposto no artigo 220.º do Código Civil: “A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quanto outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.”

 

  1. Conforme resulta dos documentos juntos aos autos pelo Requerente, as partes dos contratos em causa determinaram a lei aplicável ao contrato e o foro de resolução de possíveis litígios, a saber: Jersey no contrato de trust e no contrato de mútuo, e Ilhas Virgens Britânicas no contrato de cessão de créditos.

 

  1. Nos termos do artigo 35.º do Código Civil: “1- A perfeição, interpretação e integração da declaração negocial são reguladas pela lei aplicável à substância do negócio (...)”; e “2 - O valor de um comportamento como declaração negocial é determinado pela lei da residência habitual comum do declarante e do destinatário e, na falta desta, pela lei do lugar onde o comportamento se verificou”. Ademais, o disposto no n.º 1 do artigo 36.º do Código Civil determina que “A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio”.

 

  1. Ora, da conjugação dos artigos supra mencionados resulta claro que a lei aplicável à substância e à forma de qualquer um dos contratos que, segundo a AT, enfermam de informalidade, não é a lei portuguesa. A verdade é que o contrato de trust, o contrato de mútuo e o contrato de cessão de créditos em apreço são válidos à luz, respetivamente, da lei Jersey e das Ilhas Virgens Britânicas.

 

Das formalidades a que os balanços do B... Trust têm de obedecer

 

  1. Uma vez assente que a lei aplicável ao B... Trust é a lei de Jersey, será também a lei de Jersey a determinar quais as formalidades a que os balanços têm de obedecer, pelo que não são aplicáveis os artigos 65.º e 262.º do Código das Sociedades Comerciais invocados pela AT.

 

  1. De acordo com a lei “Financial Services (trust company and investment business (accounts, audits and reports)) (jersey) order 2007”, não existe qualquer especificidade quanto aos balanços (“balance sheets”), apenas os reportes de auditoria estão sujeitos à exigência de assinatura pelo auditor.

 

  1. Assim sendo, os balanços do B... Trust referentes aos anos de 2015 a 2018, juntos aos autos pelo Requerente, são válidos (à luz da lei de Jersey) e produzem todos os seus efeitos.

 

Da presunção de veracidade

 

  1. Nos termos do artigo 75.º, n.º 1, da LGT, “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita”.

 

  1. Cumpre notar que nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LGT, “São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado”.

 

  1. Por outras palavras, será afastada a presunção de veracidade dos elementos fornecidos por administrações tributárias estrangeiras sempre que os sujeitos passivos demonstrem perante a AT que a substância e verdade económica subjacente não corresponde àquela que resulta dessa comunicação.

 

  1. Não estabelecendo a lei, para o caso em apreço, especial meio de prova, sempre deverá a AT aceitar como válidos os elementos documentais e declarações prestadas pelos contribuintes, sob pena de, não o fazendo, incorrer em violação dos artigos 72.º a 75.º da LGT.

 

Da violação de princípios basilares do Direito Fiscal

 

  1. O legislador previu com extrema precisão e recorte legislativo que qualquer ato de liquidação efetuado pela AT deve obedecer a um pressuposto essencial do sistema fiscal português: o princípio da capacidade contributiva, estabelecido no n.º 1 do artigo 4.º da LGT.

 

  1. Não pode senão concluir-se que, no caso sub judice, a atuação da AT é ilegal por violação do princípio da capacidade contributiva, por pretender tributar o Requerente com base numa matéria coletável cuja veracidade falha em comprovar.

 

 

§3. Posição da Requerida em sede de Resposta

 

  1. O cerne da questão no processo arbitral em apreço centra-se na aferição da natureza das operações entre o B... Trust e o Requerente. O Requerente assevera que o pagamento de € 244.607,84, provindo do B... Trust, seria subsequente (e relacionado), tanto com capital mutuado, como com uma cessão de créditos, sem que nunca logre provar tal asserção com documentos. A AT defende que se trata de uma disponibilização de fundos financeiros advenientes do B... Trust e tributáveis em sede de IRS, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea t), do Código do IRS, à taxa especial de 28% (cf. artigo 72.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS).

 

  1. A verdade é que o contribuinte não providenciou qualquer menção probatória suscetível de conferir a natureza dos valores transferidos pelo B... Trust. Desde logo, porque não é possível discernir a taxa de juro aplicável, em qualquer dos elementos apresentados.

 

  1. Importa salientar que impera a informalidade nos elementos probatórios – ou que o pretendem ser – oferecidos pelo Requerente, que, de facto, não exibe sequer um qualquer documento emanado de uma autoridade pública, preterição que inclui os elementos respeitantes ao mútuo e à cessão de créditos.

 

  1. No que respeita ao contrato de mútuo (com valor superior a € 25.000,00), veja-se que a respetiva validade encontra-se, inclusivamente, sujeita a escritura pública ou documento particular autenticado (cf. artigo 1143.º do Código Civil). Trata-se de uma formalidade ad substantiam cuja inobservância determina a nulidade do contrato (cf. artigo 220.º do Código Civil). Denote-se ainda que o respetivo documento (i.e., o Loan Agreement, datado de 17 dezembro de 2015, celebrado entre o Requerente e o C...) está rasurado na parte correspondente à quantificação do montante mutuado. Acresce que nada consta sobre a justificação do empréstimo, ou seja, o destino da quantia em causa.

 

  1. Quanto ao documento particular Deed novation datado de 18 de dezembro de 2015, desconhece-se a origem, termos e condições da alegada dívida da sociedade D... ao Requerente, que passou a ser assumida pelo B... Trust, bem como sobre as ligações entre aquela sociedade e o Requerente, informações que poderiam lançar luz sobre se a dívida eventualmente resultaria de rendimentos que a devedora originária teria a pagar ao credor.

 

  1. A propósito dos balanços do B... Trust apresentados pelo Requerente e correspondentes aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, reitere-se a falta de congruência dos mesmos, dando-se nota que não é identificada a divisa (GBP?) em que estão expressos os valores das diferentes rubricas dos balanços, além de igualmente não terem sido apresentadas as demonstrações dos resultados e os Anexos, peças que proporcionariam uma leitura mais completa sobre a situação patrimonial e financeira, bem como os rendimentos obtidos. Acresce que os ditos balanços do B... Trust não são acompanhados de qualquer certificação, que possa corroborar as asserções discriminadas nos aludidos documentos (vide, a este propósito, o disposto no artigo 262.º do Código das Sociedades Comerciais, acerca da obrigatoriedade de revisão legal das contas de exercício). Ao que acresce a necessidade de assinatura das mesmas contas do exercício, por parte dos representantes do B... Trust (vide artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais).

 

  1. E tenhamos em consideração que todos os intervenientes são “membros permanentes” da lista dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada, vulgo, paraísos fiscais.

 

  1. Mesmo ignorando todos os óbices salientados, permanece por demonstrar a relação de causalidade entre o capital disponibilizado pelo contribuinte ao trust e, bem assim, o pagamento dos € 244.607,84. Sendo que é à parte que alega determinados factos que compete fornecer a demonstração da realidade dos factos alegados, necessários à procedência do pedido por si deduzido em juízo.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

  1. O PPA apresentado em 26-03-2023 é tempestivo, porquanto apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, contado do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária legalmente notificada ao Requerente (cf. artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT).

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas (cf. artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções. Assim, passa-se à apreciação e decisão do mérito da causa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

§1. Factos provados

 

  1. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. O B...Trust (trust discricionário) foi constituído segundo a lei de Jersey no dia 8 de Novembro de 2002 através de uma Declaration of Trust (doravante “trust deed”), tendo o Requerente (settlor) transmitido o título de propriedade sobre certos bens (legal ownership) para a F... Limited, uma sociedade constituída em Guernsey (na qualidade de trustee), que recebeu essa propriedade em confiança (in trust) e em benefício do Requerente e respetivos mulher e filhos, sendo estes últimos os beneficiários dos bens transmitidos (beneficial ownership) (cf. Documento n.º 2 junto ao PPA).

 

  1. Entre 2002 e 2015 (data por determinar), a sociedade F... Limited (Guernsey) foi substituída pela C... (com sede na Suíça) como trustee do B... Trust (cf. resulta dos Documentos n.ºs 2, 3 e 4 juntos ao PPA).

 

  1. No dia 17 de Dezembro de 2015, o Requerente assinou um contrato de mútuo ao abrigo da lei de Jersey com a sociedade C... (na qualidade de trustee do B... Trust), nos termos do qual aquele emprestaria a esta o montante de USD 170.000,00, sem vencimento de juros, sem garantia, sendo o reembolso do montante mutuado dependente apenas de notificação por parte do Requerente para o efeito (cf. Documento n.º 3 junto ao PPA).

 

  1. Na sequência de um alegado contrato de mútuo oralmente celebrado entre o Requerente e a sociedade D... (uma sociedade registada nas Ilhas Virgens Britânicas), nos termos do qual o Requerente teria emprestado à sociedade D... o montante de USD 500.000,00, sem vencimento de juros, sem garantia, sendo o reembolso do montante mutuado dependente apenas de notificação por parte do Requerente para o efeito, o Requerente assinou em 18 de Dezembro de 2015 um acordo escrito de cessão de créditos, ao abrigo da lei das Ilhas Virgens Britânicas, com o C... (na qualidade de trustee do B... Trust) e a sociedade D..., nos termos do qual a sociedade D... transferiria a sua posição de devedora de USD 500.000,00 (perante o Requerente) para C... (na qualidade de trustee do B...Trust) (cf. Documento n.º 4 junto ao PPA).

 

  1. Em 2018, o Requerente era residente em território português para efeitos fiscais (facto alegado pelas partes e não controvertido).

 

  1. Em Agosto de 2018, C... (actuado na qualidade de trustee do B... Trust) transferiu para o Requerente a quantia total de € 244.607,84 (cf. Documento n.º 9 junto ao PPA).

 

  1. O Requerente não incluiu na sua declaração Modelo 3 do IRS referente ao ano de 2018 qualquer valor recebido na qualidade de beneficiário do B... Trust (cf. informação preparada pelo Sr. G..., colaborador da AT, em 08-11-2022, integrada no processo de divergências junto pela Requerida em 18-10-2023; facto não contestado pelo Requerente).

 

  1. Em 2022, as autoridades suíças comunicaram à AT, através da troca internacional de rendimentos financeiros a que se refere o Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de Outubro, que o Requerente obteve rendimentos de capitais em 2018 no valor de € 243.054.97 (cf. ofício n.º..., de 21 de Julho de 2022, integrado no processo de divergências junto pela Requerida em 18-10-2023, e informação preparada pelo Sr. G... em 08-11-2022, também junta ao referido processo de divergências).

 

  1. Através do ofício n.º..., de 21 de Julho de 2022, foi o Requerente notificado pela AT para, querendo, exercer o direito de audição prévia relativamente à emissão de liquidação adicional de IRS com a inclusão de rendimentos de capitais no valor de € 243.054,97 no Anexo J (Quadro 8) da declaração Modelo 3 de IRS de 2018 (cf. ofício n.º..., de 21 de Julho de 2022, integrado no processo de divergências junto pela Requerida em 18-10-2023).

 

  1. Através do ofício n.º..., de 21 de dezembro de 2022, foi o Requerente notificado pela AT de que a declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2018 iria ser corrigida oficiosamente pelos serviços, procedendo-se, em resultado da alteração, a nova liquidação (cf. ofício n.º ..., de 21 de dezembro de 2022, integrado no processo de divergências junto pela Requerida em 18-10-2023).

 

  1. No dia 22 de novembro de 2022, a AT remeteu ao Requerente a nota de cobrança n.º 2022..., no valor de € 76.330,45, com data limite de pagamento até 26 de Dezembro de 2022 (cf. Documento n.º 1 junto ao PPA), consubstanciando:

 

(i) Liquidação de IRS n.º 2022..., no montante de € 67.234,59;

(ii) Liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., no montante de € 8.230,25;

(iii) Liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., por recebimento indevido, no montante de € 38,78; e

(iv) Estorno de liquidação n.º 2019..., no montante de € 826,83.

 

  1. O valor da liquidação de IRS n.º 2022..., no montante de € 67.234,59, resulta da aplicação da taxa de 28% sobre rendimentos de capital de fonte estrangeira, no total de € 240.123,04.

 

  1. O PPA que deu origem a presente processo foi apresentado em 26 de Março de 2023.

 

§2. Factos não provados

 

  1. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se não provados os seguintes factos:

 

  1. Em dezembro de 2015, o Requerente efetuou uma transferência bancária para os trustees do B... Trust que consubstanciou um empréstimo de USD 170.000,00.

 

  1. O Requerente efetuou empréstimos a favor da sociedade D... no montante de USD 500.000,00.

 

§3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

  1. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

  1. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

  1. In casu, a matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos juntos pelo Requerente e pela AT, os quais, analisados de forma crítica, constituem a base da convicção do Tribunal Arbitral quanto à realidade dos factos descrita supra. O Tribunal Arbitral teve também em especial atenção o disposto no artigo 76.º da LGT, sob a epígrafe “Valor probatório”, no qual se pode ler:

1 — As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.

(...)

4 — São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.

  1. Como vem sendo jurisprudência dos Tribunais Superiores e dos tribunais arbitrais, para contrariar a força probatória das informações oficiais obtidas pela AT de congéneres autoridades fiscais estrangeiras ao abrigo de convenções de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado (resultante do n.º 4 do artigo 76.º da LGT), não é exigido ao sujeito passivo que faça prova do contrário, pois “a lei não lhes atribui força probatória plena, bastando gerar dúvidas fundadas sobre os factos nelas afirmados, como resulta do preceituado no art. 346.º do CC” (Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28 de Janeiro de 2021, processo n.º 00007/04.9BEMDL; Decisão Arbitral de 21 de Junho de 2022, processo n.º 601/2022-T).
  2. No caso em apreço, as autoridades suíças informaram a AT de que o Requerente auferiu rendimentos de capitais provenientes do B... Trust, no montante de € 243.054,97. À luz do n.º 4 do artigo 76.º da LGT, cabia ao Requerente fazer prova de factos suscetíveis de gerar dúvidas fundadas sobre a informação fornecida pelas autoridades suíças, designadamente, de que não auferiu rendimentos de capitais provenientes do B... Trust, e/ou que o respetivo montante não foi de € 243.054,97.
  3. No decorrer do processo arbitral, o Requerente procurou demonstrar que, não obstante ter recebido o referido montante dos trustees do B... Trust, tal montante não constitui rendimento de capital (sujeito a IRS), mas um mero reembolso de empréstimos que o Requerente tinha realizado anteriormente (não sujeito a IRS). Daqui se retira que o Requerente não contesta os factos comunicados pelas autoridades suíças (a existência de uma transferência de € 243.054,97 efetuada pelos trustees do B... Trust para o Requerente), mas apenas a qualificação dessa transferência para efeitos de IRS.

 

  1. A este respeito, note-se que cabia ao Requerente comprovar os pressupostos da não sujeição a imposto que diz beneficiarem os rendimentos provenientes do B... Trust, de harmonia com o princípio geral do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e do artigo 74.º, n.º 1, da LGT. Este último preceito dispõe que o ónus dos factos constitutivos dos direitos da AT ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

 

  1. Sobre o ónus da prova tem sido entendido que “(…) em regra, a administração tributária terá o ónus da prova dos pressupostos dos factos constitutivos dos direitos que pretender exercer no procedimento, enquanto os sujeitos passivos terão o ónus de provar os factos que possam servir de suporte à concretização desses direitos”.[1] Acresce que sobre a questão da distribuição do ónus da prova, existe ampla jurisprudência sustentando que cabe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação corretiva, e ao sujeito passivo provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.[2]

 

  1. Daqui se retira que, pretendendo o Requerente invocar uma não sujeição a IRS, competia-lhe provar os pressupostos da mesma, designadamente, de que está em causa um reembolso de empréstimos, e não rendimentos de capitais.

 

  1. Considerando os documentos juntos aos autos (designadamente os documentos solicitados pelo Tribunal em 4 de Dezembro de 2023), temos que o Requerente não logrou provar que tenha efetuado uma transferência bancária para os trustees do B... Trust que consubstanciasse o empréstimo de USD 170.000,00 em dezembro de 2015, nem que o Requerente tenha efetuado empréstimos a favor da sociedade D... no montante de USD 500.000,00.

 

  1. Relativamente ao alegado empréstimo aos trustees do B... Trust, os comprovativos de movimentos bancários juntos aos autos pelo Requerente em 14 de dezembro de 2023 dizem respeito a movimentos de 2012. Conclui-se, assim, que não obstante expressamente solicitado pelo Tribunal Arbitral, o Requerente não apresentou comprovativo da transferência bancária do Requerente para os trustees do B... Trust que consubstanciaria o empréstimo alegadamente realizado em dezembro de 2015.

 

  1. Da mesma forma, o Requerente não juntou comprovativos de transferências bancárias que tivesse, a título pessoal, efetuado junto da sociedade D... . Com referência aos documentos juntos pelo Requerente em 14 de Dezembro de 2023, note-se que a data da cessão de créditos (18 de Dezembro de 2015) é anterior à data de aquisição pelo Requerente de participações sociais na sociedade D... (11 de Abril de 2018). Fica, assim, por esclarecer a origem da dívida da sociedade D... para com o Requerente.

 

  1. Cabe também referir que a presunção de que os documentos contabilísticos são verdadeiros e de boa-fé contida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT resulta da lei portuguesa, que exige que as sociedades com contabilidade organizada comuniquem anualmente a sua informação contabilística através da declaração Informação Empresarial Simplificada (IES). Com a estrega desta declaração, as empresas procedem à comunicação das suas contas anuais junto das conservatórias do registo comercial e à entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal à AT. A extensão da presunção contida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT a documentos contabilísticos que não têm de ser comunicados ou depositados junto de qualquer autoridade (como pretende o Requerente) exige, no mínimo, a maior cautela.

 

 

  1. Por último, note-se que o affidavit emitido pelos trustees to B... Trust em 25 de Outubro de 2023 não faz prova de que o Requerente transferiu efetivamente o valor de USD 570.000,00 para os trustees do B... Trust e para a sociedade D... .

 

 

  1. Pelo exposto, o Tribunal Arbitral julga como não provado que o Requerente tenha efetuado uma transferência bancária para os trustees do B... Trust no montante de USD 170.000,00, ou empréstimos a favor da sociedade D... no montante de USD 500.000,00, conforme alegado pelo Requerente.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO
  1. O ordenamento jurídico português não prevê a constituição de trusts, nem regula o seu regime jurídico. Não é, assim, possível constituir um trust de direito português. Todavia, por se tratar de um veículo popular e importante no universo anglo-saxónico, o legislador português viu necessidade de regular a incidência tributária dos rendimentos associados a trusts constituídos noutras jurisdições, introduzindo para o efeito, em 2014, aquando da Reforma do IRS desse ano, o regime fiscal das estruturas fiduciárias.
  2. Em traços gerais, um trust constitui uma relação jurídica criada por uma pessoa (settlor) mediante a transmissão do título de propriedade sobre certos bens (legal ownership) para outra(s) pessoas(s) (trustee(s), ou fiduciário(s)), que recebe(m) tal propriedade em confiança (in trust) e em benefício de terceiro(s) (beneficiário(s), ou fiduciante(s)), sendo estes últimos os beneficiários dos bens transmitidos (beneficial ownership).[3] No cerne desta figura jurídica, como seu elemento essencial e característico, está a distinção jurídica entre a entidade para quem é transmitido o título de propriedade sobre os bens (legal ownership) e os beneficiários (beneficial ownership).[4] Note-se que os bens transmitidos não integram o património pessoal dos trustees, mas um fundo autónomo que deverá ser gerido no interesse dos beneficiários identificados pelo settlor.
  3. Existem vários tipos de trust. Nos fixed interest trusts, é fixada a quota-parte do interesse dos beneficiários no trust (e.g., 1/3 é atribuído ao beneficiário A). Nos trusts designados por “interest in possession trusts”, os trustees têm a obrigação de transferir todo o rendimento do trust para os beneficiários quanto este é auferido pelo trust, e os beneficiários têm o direito a receber este rendimento. Já nos trusts discricionários (“discretionary trusts”), como o B... Trust, os trustees têm discricionariedade para administrar o trust em benefício dos beneficiários, mas estes não têm direito a uma parte determinada do rendimento obtido pelo trust, dispondo apenas de uma expetativa de que virão a ser receber rendimento e/ou capital do trust.[5] Não é, assim, possível concluir, como pretende o Requerente, que os beneficiários de um trust detêm a propriedade material ou económica dos bens do trust.
  4. Para efeitos de IRS, a tributação dos rendimentos provenientes de um trust (estrutura fiduciária) depende (1) da circunstância de as distribuições serem realizadas no âmbito da liquidação, revogação ou extinção do trust, ou não, e (2) da qualidade do sujeito passivo que aufere o rendimento, mais especificamente, se o sujeito passivo é o settlor do trust, ou um mero beneficiário do mesmo.
  5. Relativamente à tributação dos montantes distribuídos por trusts a settlors sem relação com a respetiva liquidação, revogação ou extinção, os mesmos são qualificados como rendimento de capital (cf. alínea t) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS), e tributados à taxa especial de 28% (cf. alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS), ou à taxa de 35%, se provenientes de trusts domiciliados em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada pela Portaria n.º 150/2004, de 13 de fevereiro, como seja Jersey (cf. alínea a) do n.º 12 (atual n.º 18) do artigo 72.º do Código do IRS).
  6. No caso sub judice, as partes contendem sobre o enquadramento jurídico-tributário dos pagamentos realizados em 2018 pelos trustees do B... Trust ao Requerente para efeitos de IRS, considerando este tratar-se de um mero reembolso dos montantes que mutuou aos trustees do B... Trust e à sociedade D... (não sujeito a IRS), ao passo que, na opinião da AT, os montantes em causa devem ser qualificados como rendimentos de capitais (sujeitos a IRS).

 

Vejamos.

 

  1. Tal como referido supra, analisado o processo, o Tribunal Arbitral concluiu que, não obstante o Requerente ter alegado ter realizado um mútuo junto do B... Trust, conforme contrato celebrado em 17 de Dezembro de 2015, cujo objeto seria o empréstimo de 170.000,00 USD, o Requerente não logrou provar ter efetivamente transferido essa quantia para os trustees do B... Trust. Isto apesar de o Tribunal Arbitral ter conferido ao Requerente ampla oportunidade de juntar aos autos comprovativos de tal transferência.

 

  1. O Requerente também não conseguiu demonstrar que tivesse efetuado empréstimos a favor da sociedade D..., pois não juntou qualquer documento que materializasse transferências para a referida entidade. Ademais, é inconsistente que a cessão do crédito a favor da D..., que o Requerente invoca como tendo sido efetuada enquanto titular de participações sociais, seja anterior à própria aquisição dessas participações sociais.

 

  1. Não tendo o Requerente logrado provar a ocorrência das transferências que consubstanciariam os empréstimos / créditos que alegadamente o Requerente detinha sobre os trustees do B... Trust, como lhe competia à luz do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, resta ao Tribunal considerar a transferência recebida pelo Requerente dos trustees do B... Trust em 2018 como rendimento de capital para efeitos de IRS, tributável nos termos da alínea t) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS.

 

  1. Note-se que não está aqui em causa considerar como ilegais, por vício de forma, os contratos celebrados pelo Requerente ao abrigo da lei de Jersey e das ilhas Virgens Britânicas. Tal como refere o Requerente, a validade formal dos mesmos não poderá ser aferida à luz da lei portuguesa, como pretende a AT em violação do disposto nos artigos 35.º e 36.º do Código Civil. O mesmo se diga relativamente aos balanços do B... Trust juntos aos autos pelo Requerente: os mesmos não têm de cumprir os requisitos estatuídos no Código das Sociedades Comerciais. Na realidade, o Tribunal Arbitral não considera a documentação em apreço inválida por vício de forma, tendo apenas julgado como factos não provados que o Requerente tenha transferido USD 670.000,00 para os trustees do B... Trust e para a sociedade D... .

 

  1. Por último, refira-se que, tendo o Requerente recebido a quantia comunicada pelas autoridades suíças à AT, não vê o Tribunal Arbitral como poderá a tributação da mesma violar o princípio da capacidade contributiva.

 

  1. Face ao exposto, improcede totalmente o pedido formulado pelo Requerente, assente na ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2018, no montante de € 67.234,59, emitida pela AT com base na informação prestada pelas autoridades suíças de que o Requerente auferiu rendimentos provenientes do B... Trust em 2018.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do exposto, acorda este Tribunal Coletivo em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente, por não provado, e consequentemente absolver a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

 

  1. VALOR DA CAUSA

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 76.330,45 (conforme indicado pelo Requerente, e não questionado pela Requerida).

 

  1. CUSTAS

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 2.448,00, a cargo do Requerente em razão do decaimento.

 

Notifique-se.

 

 

CAAD, 9 de Fevereiro de 2024

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

 

Rita Correia da Cunha

(Presidente)

 

 

Filipa Barros

(Árbitro-adjunto)

 

 

Francisco Melo

(Árbitro-adjunto)

 

 



[1] Vide neste sentido, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária - Anotada e comentada (Lisboa, 4.ª ed., 2012) p. 656.

[2] Entre outros, vide, processo arbitral n.º 236/2014-T, decisão de 4 de Maio de 2015; processo arbitral n.º 206/2020-T, decisão de 12 de Novembro de 2020; Acórdão do STA no processo n.º 0951/11, de 26 de Fevereiro de 2014.

[3] O artigo 2.º da Convenção de Haia sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento (1985) define trust como englobando “relações jurídicas criadas – inter vivos ou após a morte – por alguém, o outorgante, quando os bens forem colocados sob controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou para alguma finalidade específica”.

[4] Também neste sentido, o artigo 2.º da Convenção de Haia sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento (1985) identifica as seguintes três característica do trust: (1) os bens constituem um fundo separado e não são parte do patrimônio do curador; (2) títulos relativos aos bens do trust ficam em nome do curador ou em nome de alguma outra pessoa em benefício do curador; (3) o curador tem poderes e deveres, em respeito aos quais ele deve gerenciar, empregar ou dispor de bens em consonância com os termos do trust e os deveres especiais impostos a ele pela lei.

[5] A administração fiscal do Reino Unido (HMRC) publica uma nota sobre vários tipos de trusts, disponível em:

https://www.gov.uk/trusts-taxes/types-of-trust#:~:text=at%20any%20time.-,Interest%20in%20possession%20trusts,arises%20(less%20any%20expenses)