Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 730/2020-T
Data da decisão: 2021-06-16  IRS  
Valor do pedido: € 120.000,00
Tema: IRS - Mais-valias. Reporte de prejuízos. Cônjuges. Regime de comunhão de adquiridos
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 DECISÃO ARBITRAL

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Luís Menezes Leitão e Prof. Doutor Diogo Leite de Campos (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2021, acordam no seguinte:

               

                1. Relatório

 

A..., NIF..., e sua mulher B..., NIF..., ambos com domicílio fiscal na ..., n.º..., ...-... Porto, doravante referidos conjuntamente como «Requerentes» vieram, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) apresentar pedido de pronúncia arbitral  tendo em vista a anulação da liquidação de IRS de 2019  n.º 2020 ... que determinou um valor a pagar no montante de € 167.510,00.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 07-12-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29-01-2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 03-05-2021.

A AT apresentou resposta, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 07-06-2021, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           Os Requerentes são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos e entregaram declaração modelo 3 do IRS de 2019 com opção por tributação conjunta e englobamento de rendimentos (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

B)           Os Requerentes apresentaram a declaração de IRS de 2019 registando um saldo positivo das mais valias tributáveis em categoria G referente às transacções realizadas em 2019;

C)           Os Requerentes tinham perdas com valores mobiliários a reportar transitadas de 2018 em sede de mais valias categoria G, no montante total de € 1.944.164,44, sendo € 1.798.269 de perdas imputadas ao Requerente A... e € 145.895,34 de perdas imputadas à Requerente B... (página 2 do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

D)           As perdas de € 1.798.269,10 resultam de transacções com prejuízo realizadas no ano de 2017, feitas com títulos nominativos que se encontravam titulados pelo Contribuinte marido (2.ª página do anexo G à declaração modelo 3 de IRS de 2017 que consta d documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e artigo 12.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);

E)            No ano de 2019, os contribuintes declararam ganhos de mais valias com valores mobiliários no montante total de € 718.543,28 (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

F)            Estes ganhos foram declarados, em concordância com o regime de bens do casamento, na proporção de metade para cada um dos cônjuges, ou seja, € 359.271,64 por cada um (páginas 18/33 e 27/33 do Documento n.º 5);

G)           Na sequência da apresentação, da declaração de rendimentos, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRS n.º 2020..., que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

H)           Ao elaborar a liquidação, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que as perdas a reportar registadas em nome de um dos membros do casal só poderiam ser abatidas à metade dos ganhos declaradas em nome desse mesmo membro do casal e, assim:

             no caso do Requerente A..., aos ganhos de 2019 no valor de € 359.271,64, seriam abatidas as perdas a reportar de 2018 (no valor de € 1.798.269,10), assim se absorvendo todos os ganhos e ainda ficando € 1.438.997,46  de perdas a reportar para 2020 e futuros;

             no caso da Requerente B..., como esta só tinha registadas e nome dela perdas a reportar no valor de € €145.895,34, estas não foram suficientes para absorver todo o ganho de 2019 (os € 359.271,64), ficou um valor de matéria colectável no montante de € 213.376,30, que foram objecto de liquidação de imposto a pagar em 2019; 

I)             Em 03-09-2020, os Requerentes pagaram a quantia liquidada (vinheta aposta na liquidação que consta do documento n.º 1);

J)            Em 04-12-2020, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelas Requerentes.

Quanto ao regime de bens dos Requerentes deu-se como provado por ser o regime supletivo e não serem questionadas as afirmações dos Requerentes.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

 

3. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do processo versa sobre o regime de reporte de perdas da categoria G de IRS, resultante de alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários, nos casos em que o agregado familiar é formado por cônjuges casados m regime de comunhão de adquiridos.

O artigo 54.º, n.º 1, alínea c), do CIRS, na redacção vigente em 2019, estabelece o seguinte:

 

Artigo 55.º

Dedução de perdas

1 - Relativamente a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, nos seguintes termos:

(...)

d) O saldo negativo apurado num determinado ano, relativo às operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º, pode ser reportado para os cinco anos seguintes quando o sujeito passivo opte pelo englobamento.

 

 

  A questão que é objecto do processo reconduz-se a saber se, para efeito da dedução de perdas de anos anteriores devem ser considerados globalmente os rendimentos da categoria G de ambos os Requerentes, que são casados em regime de comunhão de adquiridos e optaram pelo regime de tributação conjunta, ou os rendimentos desta categoria obtidos por cada um deles.

               

                3.1. Posições das Partes

 

                Os Requerentes defendem o seguinte, em suma:

 

– não se pode analisar a questão sob o prisma de que “cada membro do casal tem as suas perdas”, pois não nos podemos olvidar que os contribuintes são casados em comunhão de adquiridos, e optaram pela tributação conjunta;

– o regime da comunhão de adquiridos determina que os bens adquiridos e vendidos na pendência do casamento pertencem a ambos os cônjuges;

– assim sendo, as perdas e os ganhos decorrentes da respectiva alienação pertencem a ambos os cônjuges em regime de meação;

– como tal, independentemente de os valores mobiliários poderem estar titulados por um ou por outro dos cônjuges, nomeadamente pelo carácter nominativo das acções, a verdade é que tais valores são de propriedade de ambos na proporção de 50%;

– e por esse motivo, as perdas a reportar, embora tituladas fiscalmente por um dos cônjuges, são perdas patrimoniais de ambos e o mesmo se passa relativamente aos ganhos;

– as perdas reportadas do ano de 2018 deveriam ter sido abatidas a todos os ganhos de 2019, independentemente do titular dos rendimentos em termos declarativos fiscais;

– é este o critério interpretativo que se coaduna com o princípio da tributação do rendimento familiar no seu conjunto, e da tributação de acordo com a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 1, da CRP) e com a regar do n.º 3 do artigo 13.º do CIRS, quanto refere que “No caso de opção por tributação conjunta, o imposto é devido pela soma dos rendimentos das pessoas que constituem o agregado familiar”;

– uma interpretação do n.º 1 do artigo 55.º do CIRS no sentido de que na tributação em IRS de um casal casado em comunhão de bens adquiridos, com tributação conjunta e opção pelo englobamento de rendimentos, as perdas ocorridas com alienação de valores mobiliários (bens comuns) titulados por um só dos membros do casal não podem ser deduzidas aos ganhos obtidos com a alienação de valores mobiliários (bens comuns) titulados pelo outro membro do casal seria manifestamente inconstitucional pela violação do princípio da tributação pelos rendimentos do agregado familiar, constante do n.º 1 do artigo 104.º da CRP.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende o seguinte, em suma:

 

– o artigo 55.º do Código do IRS, sob a epígrafe “dedução de perdas” enuncia o princípio de que, relativamente a cada titular, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria;

– no que concerne aos rendimentos qualificados como mais-valias, o resultado líquido é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, de acordo com as regras de determinação previstas nos artigos 43.º e ss. do Código do IRS, pelo que a dedução de perdas do próprio ano faz-se na própria operação de apuramento do resultado liquido, ao considerar como rendimento a tributar o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias, ou seja, o “resultado liquido” já engloba as perdas desse ano;

– determinando o legislador que o resultado líquido negativo apurado numa categoria só possa ser dedutível aos resultados líquidos positivos da mesma categoria, relativamente a cada titular, decorre deste princípio que o apuramento do resultado líquido se faça por referência a cada titular dos bens geradores de rendimentos dessa categoria;

– a redação do n.º 1 do artigo 55.º do CIRS advém, ipsis verbis, da proposta de alteração legislativa apresentada pela comissão para a reforma do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, do qual se pode extrair ratio legis daquela proposta de alteração legislativa que é explicada pela Comissão de Reforma do IRS nos termos que seguem:

 

O Código do IRS acolhe um modelo de limitação de dedução de perdas entre as várias categorias de rendimentos, ou seja, comunicabilidade horizontal mitigada. A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime regra de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo; não se comuniquem perdas horizontalmente. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta. 

 

– O legislador pretendeu inequivocamente que o resultado negativo da categoria de um dos conjugues, não seja absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta;

– não pode proceder a interpretação dos Requerentes no sentido da forma do apuramento do saldo entre mais e menos valias depender do regime de tributação que os contribuintes tenham optado: tributação conjunta ou separada;

– a opção pela tributação conjunta não tem de implicar necessariamente que o rendimento líquido deixe de ser apurado por categoria e por titular, atendendo a que o IRS é um imposto sobre pessoas singulares que assenta no apuramento individual e por categoria sem comunicabilidade entre elas;

– a opção legislativa operada em 2014 na tributação do rendimento das pessoas singulares não afecta a tributação segundo “as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, antes a reforma referida beneficiou fortemente a família;

– a proibição da comunicabilidade de perdas no âmbito da tributação conjunta do agregado familiar não constitui só por si uma violação do princípio da capacidade contributiva que fundamente a inconstitucionalidade.

 

                3.2. Apreciação da questão

               

                O artigo 55.º do CIRS, na redacção anterior à Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, estabelecia a regra de que «é dedutível ao conjunto dos rendimentos líquidos sujeitos a tributação o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria de rendimentos», com as limitações indicadas nos números seguintes, regra esta vigente desde a redacção da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro.

                Relativamente aos rendimentos enquadráveis na categoria G de IRS, inclusivamente os resultantes de transacções de valores mobiliários (que estão em causa neste processo), estabelecia o n.º 6 do artigo 55.º na redacção da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro que «o saldo negativo apurado num determinado ano (...) pode ser reportado para os dois anos seguintes, aos rendimentos com a mesma natureza, quando o sujeito passivo opte pelo englobamento» ().

                A Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou a reforma do CIRS, alterou o artigo 55.º, dando-lhe a seguinte redacção, no que aqui interessa:

 

Artigo 55.º

Dedução de perdas

1 - Relativamente a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, nos seguintes termos:

(...)

 

d) O saldo negativo apurado num determinado ano, relativo às operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º, pode ser reportado para os cinco anos seguintes quando o sujeito passivo opte pelo englobamento.

 

                A incomunicabilidade de perdas, traduzida na inviabilidade de os resultados negativos de uma categoria serem abatidos aos resultado positivos de outras categorias, era e é uma  «solução anómala num imposto de carácter sintético como o IRS» que só pode ser explicada por «razões "fiscalistas", isto é, assentes em receio de perdas importantes de receita» (   ) «Essas razões podem levar razoavelmente prever alguma incomunicabilidade de perdas, atendendo às possibilidades de arbitragem ou planeamento fiscal de uma comunicabilidade ilimitada de perdas» (   )

               Com a nova redacção do artigo 55.º, n.º 1, pretendeu-se aumentar as situações de incomunicabilidade de perdas de um para outro sujeito passivo.

                A intenção legislativa subjacente ao aumento das situações de incomunicabilidade de perdas que se pode retirar do ponto 5.3.4. do «PROJETO DA REFORMA DO IRS UMA REFORMA DO IRS ORIENTADA PARA A SIMPLIFICAÇÃO, A FAMÍLIA E A MOBILIDADE SOCIAL»:

 

5.3.4 Comunicabilidade de perdas entre cônjuges

O Código do IRS acolhe um modelo de limitação de dedução de perdas entre as várias categorias de rendimentos, ou seja comunicabilidade horizontal mitigada. A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime regra de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo; não se comuniquem perdas horizontalmente. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta.

               

                Esta confessada opção por este «modelo de limitação de dedução de perdas» implica uma amplificação da referida «solução anómala num imposto de carácter sintético como o IRS», que já constituía o regime anteriormente previsto no artigo 55.º do CIRS, revelando, por isso, uma acentuação das «razões fiscalistas» e preocupações de planeamento fiscal, que já estavam subjacentes à solução adoptada na redacção anterior.

                Mas, sendo esta a ratio legis, a proibição de comunicabilidade vertical apenas visará obstar a comunicabilidade de perdas entre contribuintes nos casos em que ela resulta da opção pela tributação conjunta, que com a reforma de 2014 passou a ser opcional, e não aos casos em que a comunicação dos rendimentos obtidos por um cônjuge ao outro, resulta da própria lei, antes e independentemente de qualquer opção, designadamente por força de normas imperativas do regime de bens do casamento.

                Aliás, se a contitularidade de rendimentos positivos e negativos resulta da própria lei, nem se poderá falar de comunicação de rendimentos entre os cônjuges, pois os rendimentos são, logo no momento em que são obtidos, pertencentes aos dois titulares.

                Por outro lado, a solução proposta pela Comissão de Reforma de «o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta», pressupõe que haja resultados negativos e positivos na titularidade individual de um dos cônjuges.

                À mesma conclusão conduz o texto do n.º 1 do artigo 55.º, ao reportar-se a «cada titular de rendimentos» e falar dos «seus resultados líquidos positivos», o que pressupõe que cada titular tenha obtido resultados autónomos positivos ou negativos, que são só «seus» e não também do outro.

                No casamento com regime de bens de comunhão de adquiridos, «os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso» (artigo 1730.º do Código Civil), e o produto da actividade de compra e venda de valores mobiliários por ambos os cônjuges faz, em princípio, parte da comunhão, o que se presume, de harmonia com o preceituado nos artigos 1724.º, alínea b), e 1725.º do Código Civil.

                Isto é, tratando-se de bens comuns, os efeitos de qualquer aquisição ou venda de valores mobiliários produzem-se automaticamente na esfera dos dois cônjuges, independentemente de aquelas serem efectuadas em nome de um deles ou de ambos.

                O direito ao reporte de perdas de anos anteriores, como direito patrimonial que é, pertence a ambos os cônjuges em partes iguais.

                No âmbito deste regime de bens poderão existir bens próprios e rendimentos positivos ou negativos próprios, paralelamente aos bens e rendimentos positivos e negativos comuns.

                É a estas situações em que existem bens próprios de um dos cônjuges que se aplica o regime do artigo 55.º, n.º 1, do CIRS, que, como bem diz a Autoridade Tributária e Aduaneira n artigo 54.º da sua Resposta,  «não permite a comunicabilidade de rendimentos próprios de um dos titulares para o outro titular» (negrito nosso).

                Mas, esta norma não tem aplicação quanto aos rendimentos comuns, desde logo, porque a comunicabilidade está indelevelmente associada à titularidade dos rendimentos.

                Assim, nos casos de casamento com comunhão de bens, é a estas situações em que há rendimentos próprios e resultados autónomos (não comuns) de qualquer dos cônjuges que se aplica a opção legislativa de que «o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro».

                Mas, no caso em apreço, não é questionado que os Requerentes sejam casados em regime de comunhão de adquiridos, nem que sejam bens comuns os resultados da actividade de aquisição e transmissão de valores mobiliários, que ambos realizaram.

                Por outro lado, quanto às operações do ano de 2017 que geraram as perdas a reportar e o corresponde direito de reporte, na falta de qualquer alegação e prova de que se trate de se trate de resultados negativos próprios de qualquer dos cônjuges, consideram-se comuns, em partes iguais, por força do preceituado nos artigos 1725.º do Código Civil e 19.º do CIRS.

                Assim, como se referiu, estando em causa apenas rendimentos positivos e negativos comuns, do ano de 2019 e do ano de 2017 que geraram as perdas a reportar, eles pertencem a ambos os cônjuges, independentemente do cônjuge que desenvolveu a actividade de que provém o rendimento positivo ou negativo.

                Está-se, assim, no caso em apreço, para efeitos de IRS, perante uma situação de contitularidade dos rendimentos obtidos enquadráveis na categoria G.

                Nestes casos de «contitularidade de rendimentos», seja emergente de comunhão de bens, seja resultante de qualquer situação que gere titularidade conjunta de rendimentos, aplica-se o artigo 19.º do CIRS, que estabelece que «Os rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas são imputados a estas na proporção das respetivas quotas, que se presumem iguais quando indeterminadas».

                Assim, todos os rendimentos da categoria G obtidos por ambos os cônjuges são imputados a ambos em partes iguais, como, aliás, os Requerentes fizeram na declaração que apresentaram, sem qualquer objecção da Autoridade Tributária e Aduaneira (páginas 15/33, 17/33 e 18/33 do documento n.º 5 relativamente ao Requerente A... e páginas 24/33, 26/33 e 27/33 relativamente à Requerente B...).

                Por isso, nestes casos de contitularidade de rendimentos, «o resultado líquido negativo apurado» «relativamente a cada titular de rendimentos», para efeitos do artigo 55.º n.º 1, do CIRS é metade do resultado líquido negativo que for apurado com a soma da totalidade dos rendimentos desta categoria auferidos pelos dois cônjuges.

                Como decorre deste regime de contitularidade de todos os rendimentos da categoria G, não se coloca a questão da comunicação de rendimentos por via da opção pela tributação conjunta, pois a atribuição dos rendimentos a ambos os cônjuges, desde o momento em que são obtidos, já resulta do artigo 19.º do CIRS.

                E, por força do regime da contitularidade previsto naquele artigo 19.º, os rendimentos positivos e negativos são imputados, por igual, a cada um dos cônjuges.

                Assim, os prejuízos comuns são dedutíveis sem qualquer restrição aos rendimentos comuns desta categoria G, sendo indiferente, na prática, que se autonomizem as contas relativamente a cada um dos cônjuges ou se façam conjuntamente em relação à totalidade dos rendimentos e totalidade dos prejuízos.

                O que significa que, nesta situação de contitularidade total de rendimentos da categoria G, não tem aplicação o regime do artigo 55.º, n.º 1, do CIRS, que se aplica apenas aos rendimentos autónomos de cada dos cônjuges, obstando a que os prejuízos individualmente suportados por cada um dos cônjuges possam ser utilizados para abater ao saldo dos rendimentos do outro.

                Solução esta que se justifica, desde logo, por não valerem em relação a estas situações de contitularidade obrigatória de rendimentos as preocupações de evitar planeamento fiscal através da opção pela tributação conjunta para aplicar transmissão de prejuízos, que estão subjacentes à «solução anómala» adoptada no artigo 55.º, n.º 1, do CIRS.

                Esta é também a solução para que aponta a «substância económica dos factos tributários», a que o n.º 3 do artigo 11.º da LGT manda atender na interpretação das normas tributários, pois, repercutindo-se os efeitos económicos de qualquer aquisição ou transmissão inelutavelmente sobre o património de ambos, a situação gerada com as operações é precisamente a mesma, quer as operações sejam efectuadas em nome de qualquer dos cônjuges ou quer sejam efectuadas em nome de ambos.

                E esta é também, como defendem os Requerentes, a solução que se compagina melhor com o princípio constitucional da tributação do rendimento pessoal tendo em contra dos rendimentos do agregado familiar, enunciado no artigo 104.º, n.º 1, da CRP.

                Pelo exposto, a liquidação impugnada, ao aplicar o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira de que as perdas comuns a reportar resultantes da actividade de um dos Requerentes só podiam ser deduzidas aos ganhos resultantes da respectiva actividade de cada um deles, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, na parte em que considerou na determinação da matéria tributável o valor de € 213.376,30 que deveria ter sido abatido ao valor da perdas reportadas.

 

 

                4. Restituição de quantia paga indevidamente e juros indemnizatórios

 

               

                Em 03-09-2020, os Requerentes pagaram a quantia liquidada de € 167.510,00 e pedem a devolução do imposto pago a mais, com juros indemnizatórios.

                De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

                Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

                O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

                Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

                Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

                Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

 

               

                4.1. Restituição de quantias pagas

 

                Na sequência da anulação da liquidação, os Requerentes têm direito a ser reembolsados da quantia que pagaram indevidamente, por não ter sido considerado na determinação da matéria tributável o valor de € 213.376,30 que deveria ter sido abatido ao valor das perdas reportadas.

                Implicando a consideração deste valor de € 213.376,30 uma reformulação da liquidação, quanto à matéria tributável, imposto a pagar e perdas a reportar, o valor a reembolsar deverá ser determinado em execução do presente acórdão.

               

               

                4.2. Juros indemnizatórios

 

                No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

                No caso em apreço, o erro que afecta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que a emitiu por sua iniciativa.

                Por isso, os Requerentes têm direito a juros indemnizatórios calculados sobre a quantia que lhes deve ser reembolsada.

                Os juros indemnizatórios devem ser contados desde a data em que foi efectuado (03-09-2020), até ao integral reembolso ao respectivo Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

                5. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

A)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B)           Anular a liquidação de IRS n.º 2020..., na parte em que considerou na determinação da matéria tributável o valor de € 213.376,30 que deveria ter sido abatido ao valor das perdas reportadas;

C)           Julgar procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar aos Requerentes a quantia de que resultar da consideração daquele valor de € 213.376,30 na determinação da matéria tributável;

D)           Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los aos Requerentes, calculados sobre a quantia a reembolsar, nos termos do ponto 4 deste acórdão.

 

 

6. Valor do processo

 

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 120.000,00, atribuído pelos Requerentes no sistema de gestão processual e correspondente à taxa arbitral paga, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Tendo o Requerente indicado o valor de € 120.000,00 e feito os pagamentos correspondentes da taxa arbitral inicial e subsequente, afigura-se que o valor de € 100.000,00 indicado no pedido de pronúncia arbitral se deverá a lapso, o que é corroborado pelo facto de o imposto correspondente a uma correcção da matéria tributável no valor de € 213.376,30, relativamente a um contribuinte a quem é aplicada a taxa final de 48% a que acresce a taxa adicional de 2,5%,  ser manifestamente superior a € 100.000,00. 

 

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

               

Lisboa, 16-06-2021

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Luís Menezes Leitão)

 

Nos termos do artigo 15-.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, o Presidente do Tribunal Arbitral (relator) atesta o voto de conformidade do Árbitro Senhor Professor Doutor Diogo Leite de Campos. 

 

(Jorge Lopes de Sousa)