Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 347/2019-T
Data da decisão: 2020-01-23  IRC  
Valor do pedido: € 378.163,86
Tema: IRC – Tributação autónoma – Benefícios ficais – SIFIDE.
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Decisão Arbitral

 

Acordam em Tribunal Arbitral

 

I – Relatório

1. A..., S.A., titular do número único de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na ..., ..., ...-... ..., concelho da ..., na qualidade de sociedade dominante do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades do Grupo B..., apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra o acto de liquidação de IRC n.º 2014..., referente ao exercício de 2013, com as alterações posteriormente introduzidas pela liquidação de IRC n.º 2017..., na parte em que não admite a dedução à  coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade de direito português que integra o grupo B..., que se dedica ao setor da produção, comercialização e promoção de medicamentos de patente própria e sob licença de empresas farmacêuticas multinacionais e se encontrava sujeita, em 31 de Dezembro de 2013, ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), na condição de sociedade dominante.

Por referência ao período de tributação de 2013, a Requerente apresentou, em 30 de maio de 2014, a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC na qual foi considerado um montante de Euro 378.163,86 a título de tributações autónomas, que deu lugar à liquidação de IRC n.º 2014..., de 21 de julho de 2014.

Posteriormente, no âmbito de uma ação de inspeção, a Requerente foi notificada da liquidação de IRC n.º 2017... pela qual foi apurado o aludido montante de Euro 378.163,86, a título de tributação autónoma.

Por outro lado, no Quadro 07 do Anexo D à declaração de rendimentos Modelo 22, esta inscreveu um saldo de benefícios fiscais apurado em exercícios anteriores e ainda não caducado, no montante total de Euro 55.114.953,47, passível de dedução à coleta no exercício em apreço, o qual respeita a créditos fiscais apurados no âmbito do SIFIDE referentes aos exercícios de 2008 a 2012.

O crédito fiscal relativo ao SIFIDE de 2013, no montante de Euro 13.248.712,98 não consta da respetiva Declaração Modelo 22, pelo facto de que, à data de submissão da mesma, ainda não havia sido submetida a respetiva candidatura ao SIFIDE, o que não impede a sua utilização contra a coleta gerada em 2013, pelo que, na realidade, a ora Requerente dispõe de um crédito fiscal de SIFIDE no montante total de Euro 68.363.666,46 para utilizar no exercício de 2013.

Ora, no exercício de 2013, em virtude do apuramento de derrama estadual no montante de Euro 1.036.274,76, foi deduzido o mesmo montante ao valor do crédito fiscal de SIFIDE, ficando ainda por utilizar um crédito fiscal de SIFIDE de Euro 67.327.391,68 referente aos anos de 2009 a 2013 após a dedução da derrama estadual.

Muito embora à data da entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC do grupo, tais deduções – correspondentes ao benefício apurado em sede de SIFIDE – deveriam ter sido igualmente efetuadas sobre o montante apurado a título de tributação autónoma, no montante de Euro 378.163,86, e não apenas sobre o montante da coleta em IRC e da derrama estadual.

Pelo que o montante pago a título de tributação autónoma, deveria ter sido integralmente compensado com os valores de SIFIDE disponíveis, desde logo, pela sua imputação ao crédito fiscal referente aos períodos mais antigos (2009), não sendo, como tal, devido qualquer montante a título de tributação autónoma.

Considerando que à Requerente assistia o direito à dedução à tributação autónoma do montante apurado a título de SIFIDE nos exercícios de 2009 e seguintes, esta apresentou um pedido de revisão oficiosa, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, com vista à correção do montante indevidamente pago, a título de tributação autónoma, no exercício de 2013, que veio a ser inferida pela Autoridade Tributária por considerar inexistir a possibilidade de efetuar qualquer dedução aos montantes de tributação autónoma apurados nos termos dos artigos 88.º e seguintes do Código do IRC.

Entende, no entanto, a Requerente que a coleta a considerar para efeitos de processamento da liquidação do IRC deverá contemplar, não só a coleta de IRC stricto sensu, como também a derrama e a tributação autónoma, visto que, para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, a matéria coletável apurada com base nas Declarações Modelo 22 deverá ter por base toda e qualquer matéria coletável prevista (direta ou indiretamente) no Código do IRC.

Efetivamente, o artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações previstas no Código, incluindo a liquidação adicional (n.º 10). Por isso, ele aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária nos termos do artigo 90.º do CIRC, não havendo qualquer outra disposição que preveja em termos diferentes a sua liquidação, sendo que a sua autonomia se restringe às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável.

E, desse modo, apenas se revela possível concluir que o artigo 90.º do Código do IRC, referindo-se à forma de liquidação do IRC pelo sujeito passivo e aplicando-se a todas as situações previstas no Código, se aplica, de igual modo, à liquidação do montante da tributação autónoma apurada pelo sujeito passivo.

A Requerente refere ainda que a norma do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, na redacção introduzida pelo artigo 134.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, tem natureza inovadora, apesar da sua qualificação expressa como norma interpretativa, tratando-se, por conseguinte, de norma inconstitucional.

A liquidação referente ao exercício de 2013 é assim ilegal, havendo lugar à dedução ao montante de tributação autónoma apurado naquele exercício o valor de Euro 378.163,86 referente ao SIFIDE apurado em 2009.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a inclusão das tributações autónomas no Código de IRC, pela sua natureza e finalidade, tem como corolário lógico a aplicação das normas gerais próprias desse imposto que não contendam com a sua especial forma de incidência, conferindo uma natureza dualista ao sistema normativo do imposto que se corporiza no apuramento separado das respetivas coletas de acordo com diferentes regras.

 

Havendo assim lugar a dois cálculos distintos, que, embora processados nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º, são efetuados com base na aplicação de diferentes taxas às respetivas matérias coletáveis que são determinadas igualmente de acordo com regras próprias.

 

A liquidação do IRC opera mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria coletável apurada nos termos do capítulo III do Código, ao passo que em relação à liquidação da tributação autónoma são apuradas diversas coletas de acordo com as taxas previstas no artigo 87.º, resultantes do disposto nos artigos 88.º e 89.º, consoante a diversidade dos factos que originam a liquidação da tributação autónoma, não podendo, por conseguinte, falar-se num sistema unitário de tributação em IRC.

 

E nesse sentido o “montante apurado nos termos do número anterior”, a que se refere o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, deve entender-se como abrangendo o somatório do montante de IRC apurado de acordo com as regras do capítulo III do Código por aplicação das taxas previstas no artigo 87.º e do montante das tributações autónomas, calculado com  base nas regras previstas no artigo 88.º

 

De outro modo, a dedução de benefícios fiscais à coleta resultante da tributação autónoma teria um efeito contraditório, permitindo que a concretização de objetivos de incentivo fiscal viesse a eliminar a tributação autónoma em relação a despesas que o legislador pretende desincentivar.

 

Acrescenta que em face à especial natureza e razão de ser das tributações autónomas não é possível admitir a dedução de benefícios fiscais à coleta de tributação autónoma, sob pena violação do princípio da separação dos poderes e do princípio da igualdade.

 

Conclui no sentido da   improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinada a apresentação de alegações escritas facultativas por prazo sucessivo.

Em alegações, as partes reiteraram as suas anteriores posições.

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 31 de julho de 2019.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas exceções.

Cabe apreciar e decidir.

 

II -Fundamentação

 

4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte:

               

a) O Grupo B... é composto pela C..., S.A., D..., S.A., E..., S.A., F..., S.A., G..., S.A., H..., S.A., e I..., S.A. e encontra-se sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS);

b) Na qualidade de sociedade dominante do Grupo B..., a Requerente apurou e pagou, relativamente ao exercício de 2013, um montante de tributação autónoma de Euro 378.163,86, o qual corresponde à soma da tributação autónoma apurada individualmente pelas entidades que compõem o grupo;

 c) A Requerente dispunha, em 2013, de um saldo de créditos fiscais apurados no âmbito do SIFIDE referentes aos exercícios de 2008 a 2012, no montante de Euro 55.114.953,47, bem como um crédito fiscal relativo ao SIFIDE de 2013, no montante de Euro 13.248.712,98, correspondendo ao montante total de Euro 68.363.666,46;

d) Esse crédito não foi deduzido à coleta de resultantes da tributação autónoma no período de tributação de 2013;

                e) A Requerente apresentou, em 26 de março de 2018, um pedido de revisão oficiosa em vista a ver reconhecido o direito de dedução à tributação autónoma apurada em 2013 dos créditos fiscais disponíveis a título de SIFIDE nos exercícios de 2009 e seguintes;

                f) Por ofício de 10 de dezembro de 2018, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição relativamente ao projeto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, tendo exercício esse direito mediante exposição apresentada em 20 de dezembro de 2018;

                g) O pedido de revisão oficiosa foi objeto de indeferimento, por despacho de 4 de março de 2019, do Diretor adjunto da Direção de Finanças, ao abrigo de subdelegação de competência

                h) A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa baseou-se na não dedutibilidade de quaisquer montantes à coleta produzida pelas tributações autónomas em face da natureza específica das tributações autónomas e os seus objetivos de evitar práticas de evasão e fraude fiscal.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e factos não questionados.

 

Matéria de direito

Dedução do benefício fiscal à coleta da tributação autónoma

 

                5. A questão a decidir é a de saber se há lugar em sede de IRC à dedução à coleta produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE).

 

                Esta questão tem sido já decidida pela jurisprudência arbitral em sentido positivo, utilizando como principal argumento o modo de liquidação de IRC mesmo quando esteja em causa a tributação autónoma. A coleta proporcionada pela tributação autónoma – afirma-se – constitui coleta de IRC e a  dedução dos benefícios fiscais é efetuada em relação ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC, o que leva a concluir que o processamento da liquidação do imposto, tal como resulta do falado artigo 90.º, se aplica a todas as situações previstas no Código, incluindo no tocante às tributações autónomas. Partindo desta ideia central, conclui-se que a autonomia deste tipo de tributação se restringe às taxas aplicáveis e à respetiva matéria coletável, não havendo suporte legal, face ao disposto no artigo 90.º, para distinguir entre a coleta proveniente da tributação autónoma e a que resulta dos rendimentos sujeitos a IRC.

 

                Em todo o caso, a análise da questão justifica uma mais precisa caracterização das chamadas tributações autónomas, na linha do que se decidiu, entre outros, nos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 641/2017-T, 7/2018-T, 492/2018-T, 591/2018-T e 655/2018-Tque aqui se seguirá de perto.

 

                Deve começar por dizer-se que a tributação autónoma constitui  a principal exceção à tributação do rendimento segundo o princípio do rendimento líquido ou rendimento real, pelo qual o rendimento das pessoas singulares é apurado depois de deduzidas as despesas feitas para a sua obtenção e a tributação das sociedades é determinada de acordo com o lucro apurado pela contabilidade (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 406).

 

Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação.

 

Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500. Entretanto, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 14 ao artigo 88.º, prevendo a elevação das taxas de tributação autónoma previstas nesse artigo em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores.  

 

A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, ob. cit., pág. 407).

 

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

 

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

No entanto, através de sucessivas alterações legais, o legislador tem vindo a alargar o âmbito da tributação autónoma, tendo passado a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estes cessem funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas ultrapassem certos limiares. O que se mostra justificado como uma forma de assegurar “uma distribuição mais justa dos encargos tributários e a uma moralização progressiva das políticas remuneratórias das empresas”. Como a doutrina tem reconhecido, trata-se, neste caso, de mecanismos de tributação autónoma que se afastam do desígnio inicial de combater a fraude e a evasão fiscais – como sucedia com as despesas não documentadas -, mas que poderão ainda enquadrar-se no objetivo de limitar despesas que poderão repercutir-se no rendimento coletável das empresas.

 

Neste contexto, analisando a questão da tributação autónoma à luz do princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real e do princípio da capacidade contributiva, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, subscreveu o seguinte entendimento.

 

“(…) o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular.

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa”.

 

Em idêntico sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012 chamou a atenção para a natureza materialmente distinta da tributação autónoma em relação ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, ainda que essa imposição fiscal se encontre formalmente inserida no Código de IRC.

 

A esse propósito, esse aresto sublinhou:

 

“Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa”.

Entende-se, nos termos acabados de expor, que a base de incidência da tributação autónoma se não traduz num rendimento líquido, mas num custo dedutível transformado excecionalmente em objeto de tributação, correspondendo a uma sanção legal que se destina a reduzir a vantagem fiscal que poderia resultar de despesas injustificadas ou excessivas. E, neste enquadramento, seria inteiramente contrário à unidade do sistema jurídico que os benefícios fiscais a atribuir aos contribuintes em sede de IRC venham a ser deduzidos à coleta resultante da aplicação de taxas de tributação autónoma.

Como se assinalou, as taxas de tributação autónoma tem a natureza de normas anti-abuso e destinam-se a desencorajar certas situações especiais que visem obter uma diminuição da carga fiscal mediante a dedução de custos que se presume não serem determinados por uma causa empresarial. Além disso, o sistema normativo do imposto tem uma natureza dualista na medida em que integra, de um lado, a matéria coletável baseada no lucro tributável, e, de outro lado, a matéria coletável resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma incidente sobre certo tipo de despesas.

Ainda que a liquidação do imposto seja efetuada de forma agregada, com base nessas duas diferentes componentes, não faz sentido que as deduções gerais a efetuar relativamente ao montante apurado de imposto incidam sobre a coleta devida pela aplicação das taxas de tributação autónoma. De facto, as deduções à coleta constituem uma das formas de dar corpo ao princípio da capacidade da contributiva que tem como um dos seus corolários a tributação segundo o rendimento real. Tratando-se de impostos sobre o rendimento, as deduções objectivas a contemplar são as correspondentes às despesas que possam razoavelmente considerar-se necessárias à angariação do rendimento e que se adequem à natureza de cada categoria de rendimentos, havendo de entender-se, no caso das atividades empresariais, os gastos ou perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 299).

Certo é que a lei admite ainda deduções ao lucro tributável e, entre elas, as relativas a benefícios fiscais (artigo 90.º, n.º 2, alínea c)). Não tem cabimento, no entanto, que essas deduções possam ocorrer em relação à coleta da tributação autónoma.

Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

A lógica da tributação autónoma parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para efetuar gastos que envolvem situações de menor transparência fiscal e afetam negativamente a receita fiscal. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.

A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização despesa.  

Admitir que os créditos fiscais resultantes de situações de incentivo ou benefício fiscal pudessem neutralizar o efeito sancionatório da tributação autónoma seria desvirtuar o próprio conceito de benefício fiscal e os princípios da capacidade contributiva e da justa repartição da carga fiscal.

Pela sua própria natureza, os benefícios fiscais são medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem, correspondendo a situações em que o legislador fiscal desagrava, por razões técnicas ou de política fiscal, certas manifestações de riqueza que pretende afastar da tributação normal (artigo 2.º, n.º 1, do EBF). O benefício fiscal é considerado, por outro lado, como uma despesa fiscal na medida em que incide sobre uma situação sujeita a tributação e equivale, em termos quantitativos, a uma receita fiscal não arrecadada.

 

Não faz qualquer sentido, neste condicionalismo, que as deduções à coleta do imposto que resultem de benefícios fiscais incidam não apenas sobre o lucro tributável mas sobre despesas que o legislador pretendeu tributar por razões de transparência fiscal. O que conduziria a permitir que o benefício fiscal fosse utilizado para frustrar o objectivo que se pretende atingir com a tributação autónoma que é justamente o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

6. A Requerente alude ainda à natureza inovadora da norma do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, na redação introduzida pelo artigo 134.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, com a consequente inaplicabilidade à situação dos autos por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal.

 

                A referida norma veio estabelecer que “a liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”. E o subsequente artigo 135.º da mesma Lei confere à citada disposição do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC natureza interpretativa.

 

                A invocação da apontada disposição poderia suscitar a questão de saber se a norma, no condicionalismo do caso, poderia ser qualificada como interpretativa e se o efeito retroativo dessa qualificação poderia pôr em causa o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal.

 

                No entanto, o tribunal, para chegar à solução do caso, limitou-se a interpretar as disposição do artigo 90.º, n.º 2, alínea c), do CIRC segundo as regras gerais da hermenêutica jurídica, abstendo-se de aplicar a disposição  do falado artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, pelo que, não tendo sido utilizada essa disposição como ratio decidendi, não é invocável a violação de qualquer parâmetro de constitucionalidade que se reporte ao pretenso carácter interpretativo da lei, seja por referência ao princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal ou a qualquer dos demais princípios constitucionais invocados  (cfr., entre muitos, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 319/94 e 524/98).

 

Por tudo, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente, ficando necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido referente ao reembolso do imposto pago e à condenação em juros indemnizatórios.

 

III - Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade da liquidação de IRC, relativa ao exercício de 2013, e manter a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra esse acto de liquidação;

 

b) Julgar prejudicados os pedidos de reembolso das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor do Processo

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 378.163,86€, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em

€ 6.426,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 23 de Janeiro de 2020

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

André Sousa Tavares

 

O Árbitro vogal

Ricardo Marques Candeias