Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 230/2013-T
Data da decisão: 2014-03-17  IRC  
Valor do pedido: € 352.394,56
Tema: IRC – Preços de transferência / Contrato de Cash Pooling
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro-presidente), João Sérgio Ribeiro, e José Vieira dos Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 11-12-2013, acordam no seguinte:

 

 

            I. RELATÓRIO

 

No dia 04.10.2013, a sociedade A apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado como “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 08.10.2013.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66.º-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou árbitros aqueles acima já indicados, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 21.11.2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a nomeação dos árbitros, nos termos conjugados do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 11.12.2013.

A Requerente formulou pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2009…, relativo ao exercício de 2007, contra o qual foi, em 08.06.2010, deduzida Reclamação Graciosa, a qual foi objecto de indeferimento expresso em 16.12.2010, do qual foi interposto recurso hierárquico a 24.01.2011, parcialmente indeferido de acordo com o Despacho notificado mediante o Ofício n.º …, de 09.07.2013. A Requerente vem pedir a anulação do ato tributário atrás identificado, bem como dos consequentes actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2009… e n.º 2009… e de compensação/acerto de contas n.º 2009…, de que resultou um saldo global a pagar de € 723.180,88. Na medida em que já lhe foi devolvido, na sequência do deferimento parcial do Recurso Hierárquico, o montante de € 370.786,32, a Requerente pede a devolução dos remanescentes € 352.394,56, acrescidos dos juros indemnizatórios legalmente devidos.

A Requerente imputa aos actos referidos ilegalidade por violação do regime do artigo 63.º do Código do IRC (CIRC) por neles ter sido pressuposta a existência de uma relação de garantia susceptível de ser apreciada à luz do princípio da plena concorrência e do regime de preços de transferência, por este regime ser insusceptível de aplicação ao contrato de cash pooling celebrado pela Requerente e, subsidiariamente, ilegalidade na determinação do preço de plena concorrência, por desadequação do método do preço comparável de mercado utilizado in casu.

 

A AT respondeu, impugnando a tradução adequada das cláusulas 7, 8 e 14 do contrato (contrato de cash pooling, junto como documento 12 com o requerimento inicial), que considera desconforme com a realidade e, defendendo, em suma, que o contrato referido tem especificidades que não são as condições de um vulgar contrato de cash pooling, devendo ser qualificado como misto, com reunião de regras de mais do que um tipo de contrato. Entende a AT que resulta dos termos do contrato celebrado que este, para além das cláusulas contratuais relacionadas com as garantias prestadas, estabelece ainda condições a praticar com o B, com a consequente fixação das condições aplicáveis aos depósitos da A, bem como das condições a aplicar aos depósitos da C. Conclui a AT que estamos perante um só contrato onde intervêm, directa ou indirectamente, interna ou externamente, três entidades com posições jurídicas bem definidas e identificadas. Considera ainda a AT que, no âmbito do mesmo contrato, a Requerente assumiu uma posição de garantia a favor da C, que permitiu a esta financiar-se, enquanto a Requerente, por força da existência de relações especiais, e consequente subordinação intra-grupo relativamente à C, que é uma entidade não residente, se sujeita a participar numa operação, alocando a ela riscos em troca de uma renumeração inferior aquela que auferiria em condições normais de mercado.

 

Na reunião referida no artigo 18.º do RJAT, a Requerente declarou prescindir do pedido de apensação de processos, bem como da produção de prova testemunhal, tendo ainda declarado preferir a apresentação de alegações por escrito. Por seu turno, a Requerida declarou preferir a apresentação de alegações orais.

O Tribunal concedeu o prazo sucessivo de 10 dias para a Requerente e a Requerida apresentarem, por esta ordem, as correspondentes alegações por escrito e designou o dia 18.03.2014 para a prolação da decisão arbitral.

Requerente e Requerida apresentaram as suas alegações finais de forma tempestiva.

 

 

II. SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

Com base nos elementos que constam do processo consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente A é uma empresa dedicada ao fabrico de pneus e câmaras-de-ar, a que corresponde o código CAE …, com sede em …, Concelho de … (cf. p. 5 do relatório da inspecção tributária que foi junto como documento 12 com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

b) A Requerente A era, no exercício de 2007, a sociedade dominante de um grupo de sociedades cujas sociedades dominadas eram a D, Lda., a E, S.A., e a F, S.A. (cf. p. 5 do relatório da inspecção tributária);

c) No exercício de 2007, a Requerente era detida a 100% pela empresa de direito alemão C (cf. p. 5 do relatório da inspecção tributária);

d) A Requerente, pela Ordem de Serviço n.º OI…, foi sujeita a um procedimento inspectivo ao exercício de 2007, no qual foram efectuadas as correcções à matéria tributável aqui sindicadas (cf. p. 4 do relatório da inspecção tributária);

e) No âmbito do referido procedimento, a AT considerou haver incidência de preços de transferência na relação de garante entre a A e a empresa mãe C, cujo método de comparabilidade assentou numa garantia bancária já existente a nível interno (cf. pp. 3 e 27 do relatório da inspecção tributária);

f) Com os fundamentos indicados no ponto III.1 do relatório da inspecção, foi proposta a correcção do lucro tributável do grupo de sociedades, decorrente de correcção do lucro tributável individual da Requerente, relativo ao ano de 2007, no valor de € 2.603.206,11 (cf. p. 2 do relatório da inspecção tributária);

g) A correcção efectuada deu origem ao ato liquidação adicional de IRC n.º 2009 …, relativo ao exercício de 2007, no montante de € 705.978,59 (cf. o documento 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido) e, ainda, aos atos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2009… e 2009…, e ao ato de compensação/acerto de contas n.º 2009… (cf. documentos 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

h) Do acerto de contas referido resultou um saldo a pagar de € 723.180,88 (cf. documento 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), que a Requerente efectivamente pagou em 14.03.2011 (cf. afirmação da Requerente no início do pedido de pronúncia arbitral, que não é impugnada pela Autoridade Tributária e Aduaneira);

i) Em 08.06.2010, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação adicional referida na alínea anterior (cf. documento 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

j) A reclamação graciosa referida na alínea anterior foi indeferida através de despacho proferido a 16.12.2010 e notificado à Requerente a 27.12.2010 (documentos 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

k) Do despacho de indeferimento da reclamação graciosa foi interposto recurso hierárquico, em 24.01.2011 (cf. documento 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

l) O recurso hierárquico foi parcialmente deferido através de despacho de 10.08.2012, o qual foi notificado à Requerente através do Ofício n.º …, de 09.07.2013 (cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

m) Na sequência do deferimento parcial do recurso hierárquico foi devolvido à Requerente o montante de € 370.786,32 (cf. afirmação da Requerente no início do pedido de pronúncia arbitral, que não é impugnada pela Autoridade Tributária e Aduaneira);

n) Em 04.10.2013 a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (cf. o sistema informático do CAAD);

o) Em 27.06.2005, a Requerente e a C celebraram com o banco B (doravante designado como “B”), com sede em Amesterdão, o contrato de coordenação centralizada de tesouraria – conhecido na terminologia internacional pela expressão inglesa cash pooling (a cópia do contrato e o “Manual operativo”/ «Operating Manual» constam de documentos 10 e 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

p) No exercício de 2007 encontrava-se em vigor o contrato de financiamento referido (p. 30 do relatório da inspecção tributária);

q) A cláusula 3 do contrato estabelece como taxa de juro a aplicar aos saldos credores a taxa base do B e a taxa a aplicar aos saldos devedores a taxa base do B acrescida de 0,50% (cf. p. 9 do relatório de inspecção tributária);

r) Nos termos da Cláusula 6.1 do contrato de cash pooling celebrado entre a Requerente, a C e o B que, se em qualquer momento, o saldo global registasse um saldo devedor, a Cliente Principal deveria, assim que tal lhe fosse solicitado pelo Banco e de forma imediata, efectuar a cobertura do mesmo, compensando na sua conta junto do Banco o défice gerado (cf. o documento 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, bem como a p. 11 do relatório de inspecção tributária);

s) Nos termos da Cláusula 7 do contrato de cash pooling, cada uma das Clientes (a Requerente e a C) comprometeram-se a assegurar a compensação dos Passivos Assegurados concedendo ao Banco todos e quaisquer créditos das mesmas sobre o Banco (cf. o documento 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, bem como as pp. 11 e 12 do relatório de inspecção tributária);

t) No exercício de 2001, a A obteve um financiamento do banco (G) no valor de € 40.000.000, no âmbito de um Projecto de Investimento, tendo apresentado junto do G uma garantia emitida pelo banco H (H) a favor daquela entidade (cf. p. 27 do relatório de inspecção tributária);

u) Apesar de se tratar de um contrato de 2001, o mesmo permanece em vigor no exercício de 2007, mantendo as condições iniciais no que respeita à sua remuneração (cf. p. 27 do relatório de inspecção tributária);

v) No exercício em causa a A suportou com essa garantia um encargo anual correspondente a 0,375% (à semelhança do que se observou nos exercícios de 2005 e 2006) (cf. p. 27 do relatório de inspecção tributária);

x) À data de 05.01.2007 os depósitos da A no B foram remunerados à taxa de 3,75% (cf. pp. 32-33 do relatório de inspecção tributária);

z) No ano de 2007, a diferença média entre a remuneração obtida pela Requerente pelos seus depósitos no B e as condições obtidas noutras operações, entre Janeiro e Setembro, foi de cerca de 1,21% (p. 36 do relatório da inspecção tributária).

 

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

A fixação da matéria de facto fundamenta-se em juízos probatórios retirados dos documentos e afirmações das partes, indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto, e cuja correspondência com a realidade não é controvertida pelas partes.

 

Não se verificam factos que devam considerar-se não provados, e que tenham interesse para a decisão da causa.

 

 

III. MATÉRIA DE DIREITO

 

1. Questão de saber se existirá uma garantia prestada no âmbito de contrato de Cash Pooling e se lhe podem ser aplicados os preços de transferência

 

            A principal questão a decidir nos presentes autos arbitrais é a de saber se existe ou não uma garantia prestada pela Requerente à C e se a esta podem ser aplicados os preços de transferência.

 

 

 

 

 

2. Enquadramento

 

Para responder ao problema em causa é necessário fazer um enquadramento da questão que passa naturalmente por uma breve delimitação do contrato de cash pooling e do conceito de preços de transferência, e pela articulação entre os dois.

 

 

2.1. Cash pooling

 

O contrato de cash pooling é a designação que internacionalmente é dada a um contrato de gestão centralizada de tesouraria que tem como objectivo maximizar as disponibilidades da mesma, não pela via do financiamento bancário, mas através de um mecanismo de compensação entre os excessos e necessidades de tesouraria dentro das empresas do mesmo grupo. Através deste contrato consegue-se, não só uma negociação mais favorável com instituições financeiras, como se diminui igualmente os riscos financeiros e cambiais que existiriam fora de uma gestão integrada dos recursos existentes no seio do grupo. São ainda de referir outras vantagens, reconhecidas aliás pela Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) no relatório de inspecção (pág. 6), designadamente, (i) simplificação do processo de gestão ao nível individual de cada empresa, libertando recursos para outras actividades; (ii) obtenção de ganhos de valor, pela redução de juros associados a contas devedoras; (iii) reforço das demonstrações financeiras da empresa pela redução dos empréstimos bancários.

Existem dois tipos principais de cash pooling: o zero balancing ou physical cash pooling e o notional cash pooling.

No zero balancing ou physical cash pooling há transferência física dos excedentes de contas individuais para a conta de concentração do cash pooling ou na cobertura dos défices individuais pelo débito da conta central. Existe, portanto, uma compensação real entre os saldos das contas das várias das sociedades que fazem parte do contrato. As contas individuais são, de certo modo, anuladas e os juros a pagar e a receber são calculados ao nível da conta central. A entidade centralizadora, que pode ser a sociedade mãe ou uma outra sociedade do grupo, procede subsequentemente à distribuição dos juros pelos diversos participantes em função dos saldos transferidos. De um modo simples pode dizer-se que há uma série de empréstimos entre os participantes.

 No notional cash pooling os excedentes e os débitos das contas individuais não vão fisicamente para a conta de concentração. Em vez disso, cada participante mantém a sua posição com o banco e recebe ou paga juro em função da sua situação devedora ou credora. Nesta modalidade agrupa-se o saldo das várias contas associadas unicamente para efeitos de cálculo de juros, sendo a compensação meramente virtual. É como se na prática se verificasse uma série de empréstimos entre o banco e os participantes. O banco é, todavia, um mero intermediário, dado que não suporta o risco, ou fá-lo de modo muito atenuado.

 

 

2.2. Preços de Transferência

 

A expressão ‘preço de transferência’ traduz-se no preço fixado por um determinado sujeito passivo quando vende ou compra bens, ou partilha recursos com uma pessoa com quem tenha relações especiais. Nessas situações, os preços utilizados podem não corresponder aos preços de mercado, ou seja, aos preços negociados livremente.

Ora, esse afastamento do preço que normalmente seria praticado numa transação equivalente pode ter como objectivo a manipulação dos preços com o intuito de transferir rendimentos (sob a forma de lucro, por exemplo) de um sujeito passivo para outro, obtendo vantagens fiscais. Estas situações verificam-se tipicamente no plano internacional quando se tenta, através da manipulação de preços, transferir o lucro para o país onde a tributação é mais favorável, embora também sejam relevantes no plano interno.

            A resposta dos países a esta situação é a correcção desses preços de transferência, no sentido de evitar que outros países obtenham uma parte do rendimento que foi gerado no seu território. Este ajustamento tem como referência os preços que teriam sido fixados por empresas sem uma relação especial, actuando de forma independente. Este método, designado por arm’s length method (princípio da plena concorrência), é partilhado pela maioria dos países, embora haja frequentemente dissonâncias quanto à forma como deve ser posto em prática.

            O mecanismo dos preços de transferência, não obstante ser, em grande medida, identificado como mecanismo de combate à transferência artificial de lucros, sendo por conseguinte, as disposições que incorporam esse mecanismo frequentemente designadas como cláusulas específicas anti abuso, têm outras funções. Concretamente, a redução do risco da dupla tributação económica e contribuir para um equilíbrio na repartição dos lucros a tributar nos vários países onde actuam as multinacionais.

            Importa, portanto, ter presente que ainda que as entidades que tenham relações especiais não tenham qualquer intenção abusiva, podem ainda assim ser-lhes aplicados os preços de transferência. O ponto 1.2. dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais [1] é bastante elucidativo a esse respeito nos excertos que de seguida se transcrevem. «As Administrações Fiscais não devem presumir, sistematicamente, que as empresas associadas tentam manipular os respectivos lucros. (…) Com efeito, um ajustamento fiscal, a título do princípio da plena concorrência, não afeta as obrigações contratuais que vinculam as empresas associadas a todos os níveis, com a exceção do fiscal, podendo revelar-se necessário mesmo que não haja a intenção de reduzir ou de iludir o imposto. Não se deve confundir a análise de um preço de transferência com as análises que incidem sobre casos de fraude ou de evasão fiscal, ainda que as medidas de ação adotadas em matéria de preços de transferência prossigam tais objectivos».

 

 

 

            2.3. Cash pooling e preços de transferência

 

            Em circunstâncias normais, independentemente de alguns sistemas legais repudiarem os contratos de gestão centralizada de tesouraria na modalidade de notional cash pooling, estes são um mecanismo legítimo praticado um pouco por todo mundo com vantagens consideráveis para os grupos de sociedades, pelo que a aplicação dos preços de transferência, a ter lugar, quadrará com aquelas situações em que não há qualquer fraude ou evasão fiscal, a não ser, obviamente, que se prove que o contrato de cash pooling tem em vista outros propósitos que não os que dele normalmente decorrem.

            O cash pooling de um modo geral, não obstante na maior parte dos países as disposições de preços de transferência não se referirem especificamente a este tipo de operações, suscita algumas considerações em termos de preços de transferência, dado que os participantes substituem depósitos bancários por operações no âmbito do grupo e fornecem garantias cruzadas perante o Banco. Na decorrência deste circunstancialismo, tenta verificar-se se os benefícios decorrentes do cash pooling são devidamente distribuídos pelos participantes[2].

            Sem prejuízo de o physical cash pooling e o notional cash pooling terem em vista objetivos semelhantes, as implicações que cada um deles tem, no que respeita aos preços de transferência, não são necessariamente as mesmas.

            No physical cash pooling as várias operações que o compõem são desenvolvidas directamente entre as partes que têm relações especiais, pelo que é concebível que a cada uma dessas operações sejam aplicados os preços de transferência.

            No notional cash pooling existe um contrato que, de facto, tem como participantes entidades que têm entre si relações especiais, mas as operações concretas que suscitam a aplicação dos preços de transferência desenvolvem-se entre o branco e os vários participantes e não nas relações entre aquelas. Pelo que os preços de transferência, a serem aplicados, devem contemplar o contrato no seu todo, única situação em que concretamente há uma operação entre partes com relações especiais. A esta constatação não será alheio o facto de os grupos, podendo escolher o physical cash pooling, escolherem o notional cash pooling. Haverá certamente várias ponderações a fazer na escolha, mas as implicações fiscais, designadamente as referentes aos preços de transferência, não serão seguramente despiciendas.

            Com efeito, a circunstância de as operações inerentes ao contrato serem totalmente interdependentes, implica que se apresentem como necessárias no seu conjunto, não só para assegurarem a subsistência do contrato, mas sobretudo para que este gere os benefícios procurados, o que, como é óbvio, favorece de forma global todos os membros. Constata-se, aliás, através das vantagens do cash pooling, elencadas anteriormente e seguindo de perto a enumeração feita pela ATA (pág. 6 do relatório de inspeção) que os benefícios conjuntos são superiores à mera soma dos benefícios de cada operação que o compõe entendida de forma isolada. A este propósito impõe-se a referência a um excerto do ponto 1.42. dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais que está num capítulo que tem precisamente como epígrafe Avaliação de operações separadas e combinadas. «Em termos teóricos, o princípio de plena concorrência deve ser aplicado numa base de operação-a-operação para se aproximar o mais possível do justo valor de mercado. Mas acontece com frequência que operações distintas se encontrem tão estreitamente ligadas ou contínuas que não é possível fazer uma avaliação correta sem as tomar em consideração no seu conjunto. (…) Estas operações devem ser analisadas conjuntamente, utilizando o método ou métodos mais adequados assentes no princípio de plena concorrência»[3].

 

 

            3. A situação concreta

 

            Concordam as partes que foi celebrado um contrato de cash pooling com todas as características e consequências que lhe são inerentes. Existe, todavia, um diferendo relativamente, por um lado, à operação à qual deverão ser aplicados os preços de transferência e, por outro, a título subsidiário, relativamente ao método mais adequado para os aplicar.

            Apreciar-se-á, prioritariamente, o pedido principal, só passando a apreciar o pedido subsidiário se improceder aquele. Com efeito, os pedidos subsidiários só devem ser tomados em consideração no caso de não proceder um pedido anterior [artigo 469.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

            No que concerne à questão principal, a ATA considera que, não obstante o reconhecimento do contrato de cash pooling, «os depósitos efetuados pela A no B [banco B] no âmbito desse contrato [cash pooling] servem de garantia aos financiamentos obtidos pela C, pelo que a primeira presta um serviço e assume riscos, em benefício da C, que não são remunerados. Há violação do Princípio de Plena Concorrência previsto no n.º 1 do art. 58.º do CIRC…».

             A Requerente, por sua vez, sustenta que não existe qualquer garantia susceptível de ser apreciada à luz do princípio da plena concorrência, isto é, à qual possam ser aplicados os preços de transferência.

            É certo que no domínio do contrato de cash pooling há uma série de operações e inerentes obrigações, sendo possível identificar algumas garantias de tipo cruzado como parte integrante de um contrato que, como é reconhecido pelas partes, é um só e comporta todas essas dimensões. Aliás, a ATA afirma expressamente «os depósitos da A são de facto garantias no âmbito do referido negócio contratado [cash pooling]» (pág. 20 do relatório de inspecção).

A par das eventuais garantias, existem, no entanto, outras operações que se encontram numa relação de interdependência com elas e que têm em vista um objetivo mais pleno do que a estrita garantia de um eventual crédito. Não sendo, por conseguinte, possível fragmentar o contrato de cash pooling para fazer uma aplicação dos preços de transferência à la carte. Trata-se de uma só operação que, como reconhece a própria ATA, representa um ganho para o grupo (pág. 7 do relatório de inspecção) e encerra outras vantagens para além da garantia propriamente dita, estando todas elas mais do que estreitamente ligadas, havendo uma verdadeira situação de integração (fazem parte do mesmo contrato). Ora, na interpretação da disposição dos preços de transferência, para além do elemento literal, devem ser tidos em consideração outros elementos relevantes para a interpretação. No que respeita à ponderação do elemento histórico e, seguramente, ao elemento teleológico não será certamente alheia a consideração dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, aliás invocados recorrentemente pelas partes. A propósito deste importante instrumento de interpretação já foi transcrita parte do ponto 1.42. que diz que não é possível fazer uma avaliação correcta de operações que se encontrem estreitamente ligadas ou sejam contínuas, sem as tomar em consideração no seu conjunto. Ora, por maioria de razão, este raciocínio deve ser aplicado às operações que estão mais do que estreitamente ligadas, isto é, que se encontram verdadeiramente integradas como as que estão a ser alvo do nosso escrutínio.

Assim, não obstante haver cláusulas que se traduzem numa garantia, essas cláusulas estão integradas no contrato entendido no seu todo, não podendo ser abstraídas do mesmo ganhando vida autónoma. Trata-se, pois, de garantias prestadas pelos intervenientes no seu conjunto, isto é, garantias do contrato de cash pooling na sua integralidade e não uma garantia prestada pela A a favor da C.

Depois, ainda que considerássemos a garantia «depurada da operação associada», para utilizar a terminologia da ATA (artigo 188 da resposta), a letra da lei, não permitiria aplicar o artigo 58.º do CIRC. Se no contexto do Physical Cash Pooling ainda poderia ser concebível a aplicação dos preços de transferência às garantias prestadas pelas partes, dada a sua relação direta, no caso concreto em que não há qualquer operação entre as partes, na medida em que a contraparte é o B, não é possível a aplicação do referido artigo 58.º. Como é, aliás, reconhecido pela própria ATA ao dizer que «sendo o sistema de cash pooling implementado na modalidade de notional pooling, os movimentos de fundos (depósitos e financiamentos), operados no âmbito do mesmo realizam-se diretamente com o B, entidade intermediária e interveniente no sistema (pág. 9 do relatório de inspeção)».

As garantias, seja a dada pela C, seja a assegurada pela A, independentemente da relação de subsidiariedade que exista entre elas, são, como já se afirmou por diversas vezes, prestadas no âmbito de um contrato complexo a favor do B, para garantir esse contrato no seu todo. Consequentemente, ainda que se destacasse a garantia do resto do contrato, ainda assim não seria possível aplicar a disposição relativa aos preços de transferência, pois como resulta claro e óbvio não há relações especiais entre a A e o B. Para além disso, não há qualquer apoio ou correspondência na letra da lei que permita aplicar essa disposição a entidades que não estejam numa situação de relações especiais; não havendo, portanto, espaço para uma qualquer interpretação extensiva que eventualmente tivesse em vista esse resultado.

É ainda importante realçar que, tendo em conta que as normas sobre preços de transferência, pelo impacto directo que têm na quantificação do facto tributário, estão abrangidas pela reserva de lei da Assembleia da República (estando naturalmente excluídas dessa reserva, os regulamentos de execução), também não seria sequer pensável uma aplicação dessa norma por via da analogia (art. 11.º n.º 4 da LGT).

Restaria, por conseguinte, uma única via para abstrair do negócio uma eventual garantia prestada pela A à C − a da desconsideração do negócio celebrado e a requalificação do mesmo. Ora, uma atuação deste tipo apesar de não ser impossível, seria sempre excepcional. Tanto no plano geral como no estrito contexto do Direito nacional.

No contexto geral, e fazendo mais uma vez apelo aos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, transcrevemos um excerto do ponto 1.36, que é suficientemente expressivo para dispensar qualquer comentário: «a verificação pela Administração Fiscal de uma operação vinculada deve basear-se na operação efetivamente ocorrida entre as partes e no modo como foi estruturada pelas partes (…) Salvo em casos excecionais, a Administração Fiscal não deve abstrair das operações efetivas, nem substituí-las por outras operações. A restruturação de operações comerciais legítimas relevaria de um procedimento totalmente arbitrário…»[4]. Os casos excepcionais em que é possível não atender à estrutura adoptada pelo contribuinte referem-se às situações em que há uma discordância entre a forma da operação e a sua substância e económica, e aos casos em que estrutura adoptada impede a Administração Fiscal de determinar um preço adequado[5]. Isto acontecerá quando, subentende-se, a estrutura originária teve na sua base razões eminentemente fiscais, independentemente de existirem outras.

            Também no Direito interno o enquadramento que se faz do problema reflete em grande medida o princípio a que se fez alusão no parágrafo anterior. A desconsideração da operação realizada é igualmente algo de excepcional e que pressupõe a aplicação de um procedimento próprio. No caso concreto, não foi posta em causa a efectividade do contrato ou sugerido que aquele tivesse tido em vista a redução de imposto de forma artificiosa, fraudulenta e com abuso, ocultando a prestação de uma garantia, única operação realmente pretendida pelas partes. Isso sem embargo de, de modo implícito, se destacar a eventual garantia como principal móbil do contrato de cash pooling. Ora, não tendo sido iniciado o único procedimento que permitiria uma requalificação da operação financeira praticada em termos fiscais, o que só seria possível com o enquadramento no art. 63.º do CPPT e art. 38, n.º 2, da LGT (normal geral anti abuso), não há margem para o fazer, aplicando, sem mais, o artigo 58.º do CIRC a uma operação que com ele não quadra.

Isto é, não tendo sido utilizado o procedimento correto para eventualmente desconsiderar o cash pooling e pôr a tónica numa eventual garantia que se teria em vista com o negócio previsto, está afastada a possibilidade de ser requalificada a operação e, consequentemente, lhe serem aplicados os preços de transferência. Não se justificando, portanto, tentar apurar se estariam eventualmente preenchidos os requisitos legais de que depende a aplicação da referida norma geral anti abuso.

Em acórdão arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD, proferido no Proc. n.º 76/2012, de 29 de Outubro de 2012, foram feitas algumas considerações que sintetizam muito bem os argumentos acabados de avançar, o que justifica a sua reprodução:

 

«Na aplicação da norma sobre preços de transferência, a Administração Tributária tem de atender à operação realmente praticada, à ‘forma jurídica’ utilizada pelo contribuinte na sua operação comercial ou financeira, podendo alterar, para efeitos fiscais, os seus termos ou condições quando os considere diferentes dos que seriam contratados aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

            Diferentes destas situações e fora do regime dos preços de transferência ficam as situações em que a Administração Tributária conclui que, em vez das operações comerciais ou financeiras realmente efectuadas, pessoas independentes realizariam outras operações, de tipos diferentes, com outras ‘formas jurídicas’. Nestes casos, os requisitos para deixar de considerar eficazes, para efeitos fiscais, as operações efectivamente realizadas não são os previstos no art. 58.º do CIRC, mas sim os previstos no art. 38.º, n. 2, da LGT e no art. 63.º do CPPT».

 

            A única questão que importa permanece a mesma, ou seja, determinar se a actuação da Administração Tributária tem cobertura legal no art. 58.º do CIRC, na redação vigente em 2007, que foi o regime efectivamente aplicado no ato impugnado.

Já foi, com efeito, decidido que essa disposição não pode ser aplicada à garantia ínsita no contrato de cash pooling. Fica, por conseguinte prejudicado o conhecimento da questão acessória da ilegalidade na determinação do preço de plena concorrência.

            Assim, conclui-se que tem razão a Requerente quanto à questão da correção efetuada com invocação de violação do art. 58.º, n.º 1, do CIRC, pelo que tem de ser declarada a ilegalidade da liquidação adicional impugnada (art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo).

            Por decorrência de tal anulação, os consequentes atos de liquidação de juros compensatórios e de acerto de contas são nulos, por força do art. 133.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo.

 

IV. DECISÃO

 

Temos em que acorda este Tribunal em:

 

  • julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2009 …, relativo ao exercício de 2007;
  • julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos consequentes actos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2009 … e 2009 …  e acerto de contas n.º 2009 …;
  • julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento do Recurso Hierárquico interposto do indeferimento da Reclamação Graciosa;
  • anular as liquidações impugnadas;
  • e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso das liquidações pagas pela Requerente, e  ainda ao pagamento a esta dos juros indemnizatórios devidos.

 

 

Custas, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, sendo o valor do processo o de € 352.394,56 (valor, não contestado, constante da petição inicial).

 

            Lisboa, 17-03-2014

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa

 

 

 

José Vieira dos Reis

 

 

 

João Sérgio Ribeiro

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal 189, Ministério das Finanças, Lisboa, 2002, p. 35.

[2] Em Países como a Holanda, onde a prática do cash pooling é corrente, o líder do cash pool apresenta normalmente um pedido prévio de sobre preços de transferência, onde é fixada remuneração da entidade centralizadora ou líder do Cash Pool, taxas de juro e divisão dos benefícios. Cf. Cash Pooling Efficient working capital funding, Baker Mc.Kenzie. http://www.bakermckenzie.com/files/Publication/ca1810c6-24cb-4948-93f2-552258f726ae/Presentation/PublicationAttachment/262a389c-c6e4-4e2e-8d62-276a34c5e5db/br_amsterdam_cashpooling_mar12.pdf

[3] In Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., p. 54.

[4] In Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., pp. 51 e 52.

[5] Cf. Ponto 1.37. do Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., p. 51.