Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 266/2013-T
Data da decisão: 2014-03-28  IRS  
Valor do pedido: € 65.807,98
Tema: IRS – opção pelo regime de tributação com base na contabilidade
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Decisão arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 266/2013 – T

Tema: IRS – Opção pelo regime de tributação com base na contabilidade

 

 

I – RELATÓRIO

1.      A e  B, (adiante designados Requerentes) contribuintes n.º … e … , respetivamente, com domicílio fiscal …, integrados no âmbito territorial do Serviço de Finanças do Porto n.º 4, apresentaram, em 25-11-2013, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2º e dos artigos 10º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com a al. a) do art.º 99º e a al. d) do n.º 1 do artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) – aplicáveis ex vi da al. a) do n.º 1 do artigo 10º do decreto-lei referido, um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante abreviadamente designada como Autoridade Tributária), na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:

-          A declaração de ilegalidade da liquidação de IRS, (identificada nos autos com o n.º …) referente ao ano de 2012, por vícios de violação de lei, incluindo lei constitucional;

-          A declaração do direito dos Requerentes à indemnização prevista no art.º 171º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e no art.º 53º da LGT, aplicáveis por força do n.º 5 do art.º 13º do RJAT, caso venha a ser julgada indevida qualquer garantia que os Requerentes possam ter apresentado ou ter de vir a apresentar com vista à suspensão da execução fiscal instaurada em virtude da dívida cuja legalidade contestam.

2.      O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi aceite em 26-11-2013 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD - Centro de Arbitragem Administrativa (doravante designado por “CAAD”), tendo sido a AT – Administração Tributária e Aduaneira notificada da apresentação do aludido pedido na mesma data.

3.      O Tribunal Arbitral foi constituído em 27-01-2013 o que foi comunicado às partes na mesma data.

4.      Em 27-02-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que suscitou as exceções da incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia e de litispendência.

5.      Em 07-03-2014 teve lugar, na sede do CAAD, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.

6.      Nesta reunião, a Ilustre Mandatária dos Requerentes pronunciou-se oralmente sobre a matéria de natureza excetiva suscitada na sua resposta pela Requerida, tendo os Ilustres Representantes se pronunciado também oralmente, por sua vez, sobre os argumentos apresentados pela primeira.

7.      Ambas as partes prescindiram de apresentar alegações escritas.

8.      Os Requerentes alegaram, no essencial, o seguinte quadro factual:

-        A Requerente B é profissional liberal, tendo, em 2007, nos termos do n.º 3 do art.º 28º do Código do IRS (CIRS), exercido a opção pelo enquadramento no regime de tributação com base na contabilidade;

-        De acordo com o n.º 5 do mesmo preceito do CIRS, esta opção vigoraria por um período de três anos, renovável automaticamente por iguais períodos;

-        Assim, em 2010, a Requerente continuava enquadrada no regime de tributação com base na contabilidade, devendo, por força do referido n.º 3 no art.º 28º do CIRS, permanecer em tal regime pelo menos até ao ano de 2012, inclusive;

-        Ao apresentar a declaração de rendimentos referente ao exercício de 2012, porém, não lhe foi permitido juntar a esta declaração o anexo C – “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada”, impondo-se-lhe a apresentação do anexo B – “Rendimentos da Categoria B – Regime simplificado/Ato isolado”;

-        Tendo pedido esclarecimento sobre o motivo desta imposição, em 21-05-2013, este esclarecimento foi-lhe comunicado por ofício da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (ofício sem número e sem data) (Documento nº 3 junto pelos Requerentes);

-        O ofício referido comunica à Requerente que no ano de 2012 esta ficou enquadrada no regime simplificado do IRS pelos seguintes motivos:

-        Tendo obtido, no ano de 2010, rendimentos brutos da categoria B superiores a 150 000 Euros, ficou, no ano seguinte, automaticamente enquadrada no regime de contabilidade organizada por obrigação legal (e já não por opção);

-        Assim sendo, encontrando-se em 2011 enquadrada no regime de contabilidade organizada por obrigação legal e tendo obtido nesse mesmo ano um rendimento bruto da categoria B inferior a 150 000 euros, no ano de 2012 passou automaticamente ao regime simplificado, nos termos do nº 2 do art.º 28º do CIRS, por não ter exercido, até 31 de março do mesmo ano, a opção pelo regime de contabilidade organizada.

-        Discordando do teor do esclarecimento, os Requerentes optaram, num primeiro momento, por apresentar a declaração de rendimentos com o anexo C - “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada”;

-        Posteriormente, apresentaram uma declaração de substituição da anterior em que o anexo C - “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada” foi substituído pelo anexo B – “Rendimentos da Categoria B – Regime simplificado/Ato isolado”;

-        Desta declaração de substituição resultou a liquidação ora impugnada.

9.      Os Requerentes sustentam que a liquidação de IRS relativa ao exercício de 2012, efetuada com base na declaração de substituição por si apresentada, é ilegal, alegando, em síntese:

-        Não ter suporte legal a interpretação - e consequente atuação - feita pela Autoridade Tributária sobre o artigo 28º do CIRS, segundo a qual a Requerente, por ter obtido em 2010 rendimentos brutos da categoria B superiores a 150 000 euros, ficaria automaticamente enquadrada no regime de contabilidade organizada nesse mesmo ano, não já por opção mas por obrigação legal;

-        A interpretação que a Autoridade Tributária faz do referido preceito é contra legem e inconstitucional, por violação do princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, consagrado no n.º 2 do art.º 104º da Constituição da República Portuguesa (CRP);

-        O regime simplificado de tributação é um regime não vinculativo, válido apenas para quem não tenha optado pelo regime de contabilidade organizada;

-        A opção efetuada pelo sujeito passivo nos termos do n.º 3 do art.º 28º do CIRS é válida por três anos, prorrogáveis por iguais períodos, de modo que, apenas no caso de pretender a alteração do seu regime, impende sobre o sujeito passivo o ónus de comunicar essa pretensão através de declaração de alterações;

-        A própria Direção de Serviços do IRS emitiu doutrina que contraria a interpretação agora defendida, quando, na Circular n.º 5/2007, de 13 de março (que procurava clarificar uma questão de aplicação no tempo de uma alteração da lei ocorrida nesse mesmo ano) daquele Serviço, dizia-se que “os sujeitos passivos (…) devem exercer (…) a opção a que se refere o nº 3 do artigo 28º do Código do IRS, até ao fim do mês de Março de 2007, para se manterem neste regime durante o triénio 2007-2009”;

-        O entendimento sustentado pelos Requerentes é corroborado pela jurisprudência dos tribunais administrativos superiores relativa à redação do n.º 5 do art.º 28º do CIRS que esteve em vigor até 31-12-2006.

10.  Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pelos Requerentes, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela sua absolvição da instância, suscitando as exceções de incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia e de litispendência; e pugna, subsidiariamente, pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

A) Exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia

-        O pedido apresentado pelos Requerentes reconduz-se a um pedido de decisão arbitral que determine que a Requerente se encontrava enquadrada no regime de contabilidade organizada (no ano de 2012) e que a declaração modelo 3 de IRS de 2012, apresentada anteriormente à declaração de substituição, foi correta e atempadamente entregue, devendo ter o consequente tratamento fiscal;

-        O ato objeto do litígio – o ato da Administração Tributária que enquadra a Requerente no regime simplificado do IRS – não pode ser qualificado como um ato de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação do tributo para efeitos da al. b) do n.º 1 do art.º 2º do RJAT;

-        Neste mesmo sentido já foi decidido em sede de jurisdição arbitral no processo n.º 118/2012-T;

-        Está-se, pois, perante um pedido de impugnação de um ato da Administração Tributária que não integra os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2º do RJAT, e que, logo, não cabe na competência deste Tribunal Arbitral.

B) Exceção de litispendência

-        Os Requerentes apresentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto duas ações administrativas especiais que correm os seus termos com os processos n.º….1BEPRT;

-        Do confronto entre o pedido de pronúncia arbitral formulado e as ações administrativas especiais referidas, constata-se que todas visam a anulação de atos administrativos respeitantes ao enquadramento previsto no art.º 28º, n.º 2 do CIRS, com os necessários reflexos na declaração modelo 3 de IRS respeitante ao ano de 2012;

-        Assim, existe identidade dos pedidos formulados em ambas as ações administrativas especiais e no presente pedido de pronúncia arbitral efetuado pelos Requerentes;

-        Em ambas as ações interpostas, bem como no presente pedido de pronúncia arbitral, são idênticas as partes, o pedido e a causa de pedir, com o que ficam preenchidos os pressupostos da litispendência, conforme o art.º 580º do Código de Processo Civil;

 

C) Impugnação dos fundamentos do pedido

-        No ano de 2010, a Requerente encontrava-se enquadrada, por opção, no regime de contabilidade organizada;

-        No ano de 2011, ficou enquadrada no mesmo regime de contabilidade organizada por obrigação legal, em virtude de, no ano anterior, os seus rendimentos brutos da categoria B terem excedido o limite de 150 000 euros previsto no n.º 2 do art.º 28º do CIRS;

-        Em virtude de ter passado ao regime de contabilidade organizada por obrigação legal, deixando de nele estar por opção, o facto de, no ano de 2011, os seus rendimentos brutos terem ficado abaixo do referido limite determinou automaticamente, por aplicação do n.º 2 do art.º 28º do CIRS, a passagem da Requerente ao regime simplificado a partir do ano seguinte, 2012;

-        Esta transição automática para o regime simplificado a partir do ano de 2012 só não teria lugar se, nos termos dos números 3 e 4 do art.º 28º do CIRS, a Requerente tivesse voltado a declarar a opção pelo regime de contabilidade organizada até 31 de março de 2012;

-        Não tendo declarado essa opção, a Requerente ficou enquadrada no regime simplificado no ano de 2012;

-        Ao determinar o enquadramento da Requerente, no ano de 2012, no regime simplificado, a Autoridade Tributária pautou-se pelo cumprimento integral das normas legais aplicáveis aos factos.

-        Quanto ao pedido, dirigido ao Tribunal, de reconhecimento do direito a indemnização por prestação de garantia indevida, é manifesta a sua improcedência, dado não poder existir qualquer decisão do Tribunal relativamente a um eventual facto futuro, incerto, condicional, desconhecido, e cujos elementos de facto não são, de momento, sequer, vislumbráveis.

 

II – QUESTÕES A DECIDIR

11.  São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

-        Competência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia para decidir o presente pedido de pronúncia, em face do teor do pedido de pronúncia apresentado;

-        Existência no caso concreto de uma situação de litispendência que impeça o Tribunal de apreciar o pedido, dada a pendência de duas ações administrativas especiais propostas pelos Requerentes e a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto;

-        Legalidade do ato de liquidação de IRS identificada nos autos com o n.º …, referente aos rendimentos da categoria B da Requerente B relativos ao ano de 2012, o que implica determinar se é legal ou ilegal o enquadramento da Requerente, no mesmo ano, no regime simplificado do IRS.

 

 

 

III - FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES

-        A Requerente B, sujeito passivo de IRS com rendimentos da categoria B, exerceu, em 2007, nos termos do n.º 3 do art.º 28º do Código do IRS (CIRS), a opção pelo enquadramento no regime de tributação com base na contabilidade, tendo-se mantido nesse regime durante o triénio 2007-2009;

-        No ano de 2010 a opção pelo regime de tributação com base na contabilidade renovou-se automaticamente;

-        No ano de 2010, os rendimentos brutos da categoria B obtidos pela Requerente ultrapassaram o limite de 150 mil euros, previsto no n.º 2 do art.º 28º do CIRS (na redação vigente à data);

-        No ano de 2011, os rendimentos brutos da categoria B obtidos pela Requerente ficaram abaixo do limite de 150 mil euros;

-        Ao apresentar a declaração de rendimentos referente ao exercício de 2012, por via eletrónica, o sistema informático não lhe disponibilizou o anexo C – “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada”. O sistema informático apenas lhe disponibilizou o anexo B – “Rendimentos da Categoria B – Regime simplificado/Ato isolado”;

-        Em 21-05-2013, Requerente solicitou à Autoridade Tributária esclarecimento sobre o motivo da imposição de declaração segundo o regime simplificado;

-        A Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares da Autoridade Tributária prestou o esclarecimento pedido por ofício (sem número e sem data) (Documento nº 3 junto pelos Requerentes);

-        O ofício referido comunica à Requerente que no ano de 2012 esta ficou enquadrada no regime simplificado do IRS pelos seguintes motivos:

-        Tendo obtido, no ano de 2010, rendimentos brutos da categoria B superiores a 150 000 Euros, ficou automaticamente enquadrada no regime de contabilidade organizada por obrigação legal (deixando de estar nesse regime por opção);

-        Encontrando-se em 2011 enquadrada no regime de contabilidade organizada por obrigação legal e tendo obtido nesse mesmo ano um rendimento bruto da categoria B inferior a 150 000 euros, tal facto fez com que, no ano de 2012, transitasse automaticamente para o regime simplificado, nos termos do nº 2 do art.º 28º do CIRS, por não ter exercido, até 31 de março do mesmo ano, a opção pelo regime de contabilidade organizada.

-        Discordando do teor do esclarecimento, os Requerentes optaram, num primeiro momento, por apresentar a declaração de rendimentos com o anexo C - “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada”;

-        Posteriormente, e na sequência de a Autoridade Tributária lhes ter comunicado a existência de um erro na declaração, consistente na incompatibilidade do anexo C apresentado com a opção em cadastro, apresentaram uma declaração de substituição da anterior em que o anexo C - “Rendimentos da Categoria B – Regime de Contabilidade Organizada” foi substituído pelo anexo B – “Rendimentos da Categoria B – Regime simplificado/Ato isolado”;

-        Desta declaração de substituição, efetuada segundo o regime simplificado de tributação dos rendimentos da categoria B do IRS, resultou a liquidação ora impugnada.

-        Os Requerentes interpuseram, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, duas ações administrativas especiais:

-        Uma, correndo os seus termos com o nº de processo ….3BEPRT, em que os Requerentes/Autores pedem a anulação do ofício proferido pela Exma. Senhora Diretora dos Serviços do Imposto sobre o Rendimento, com data de 11.06.2013, “mediante o qual se deteta um erro na declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2012, relativa a uma incompatibilidade entre o anexo entregue e a opção em cadastro”;

-        Outra, correndo os seus termos com o nº de processo….1BEPRT, em que os Requerentes/Autores pedem a anulação do ofício proferido pela Exma. Senhora Diretora dos Serviços do Imposto sobre o Rendimento, com data de 11.06.2013, mediante o qual aquele órgão “confirma a alteração oficiosa da opção de tributação dos rendimentos em cadastro”.

 

IV – FUNDAMENTAÇÃO

A) Quanto à exceção de incompetência do Tribunal

12.  Entre as questões de natureza excetiva suscetíveis, se procedentes, de obstar a que o tribunal conheça do mérito da causa e de dar lugar à absolvição da instância, a questão da incompetência do tribunal precede logicamente todas as restantes e deve por isso ser conhecida em primeiro lugar (art.º 13º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ex vi do artigo 29º, n.º 1, al. c) do RJAT).

13.  Quanto à competência do Tribunal, alega a Requerida que, “da leitura do requerimento inicial e documentos anexos, conclui-se que o pedido em apreço se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine que a Requerente se encontrava enquadrada no regime de contabilidade organizada e que a declaração modelo 3 de IRS de 2012 apresentada anteriormente à declaração de substituição foi correta e atempadamente entregue, devendo ter o consequente tratamento fiscal”.

14.  Segundo alega ainda a Requerida, o Tribunal não seria competente para apreciar este pedido, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais, definida no artigo 2º do RJAT, não incluiria a apreciação da legalidade da decisão da Autoridade Tributária que manteve o enquadramento jurídico da requerente, sujeito passivo, no âmbito de um regime de tributação.

15.  Com o devido respeito, não cremos que a Requerida tenha razão quanto a este ponto. São as seguintes as palavras usadas no pedido de pronúncia: “J… e M… (…) vêm apresentar pedido de pronúncia arbitral, sobre a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares emitida sob o n.º …, referente ao exercício de 2012, da qual resulta um montante total a pagar de 65 870,98 euros e cujo termo do prazo para pagamento voluntário ocorreu no dia 4 de Setembro de 2013 (…), o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos de facto e de direito” (pág. 1 da petição inicial).

16.  Mais adiante, dizem os Requerentes que “a declaração de substituição apresentada pelos Requerentes é ilegal, devendo a mesma ser expurgada da ordem jurídica, mantendo-se, por conseguinte, a primeira declaração de rendimentos apresentada (par. 80), donde, consequentemente, se conclui pela ilegalidade da liquidação de IRS ora em crise, devendo a mesma ser anulada com todas as consequências legais” (par. 81).

17.  Finalmente, na formulação final do pedido, a Requerente pede ao Tribunal que declare “a ilegalidade da liquidação em apreço, referente ao exercício de 2012 (…)”.

18.  Em face da redação do pedido – e é com base no pedido que tem de ser aferida a competência do Tribunal – não pode haver dúvida de que os Requerentes pedem ao Tribunal que aprecie a legalidade de um ato de liquidação bem identificado.

19.  A competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária encontra-se definida no artigo 2º, n.º 1 do RJAT, o qual tem de ser conjugado com os artigos 2º e 3º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (“portaria de vinculação”).

20.  Destas disposições resulta que a competência dos tribunais arbitrais tributários abrange a apreciação da legalidade, entre outros atos, dos atos de liquidação de tributos cuja administração caiba à AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do artigo 2º do RJAT.

21.  No contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária, consagrado no artigo 54º do Código de Procedimento e Processo Tributário (aplicável ao presente processo arbitral em virtude da al. a) do n.º 1 do art.º 29º do RJAT), nos termos do qual “salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.

22.  Esta disposição legal determina não apenas quais são os atos interlocutórios do procedimento tributário que podem ser impugnados autonomamente, mas estabelece ao mesmo tempo a regra de que, na impugnação da decisão final do procedimento, pode ser invocada a ilegalidade de qualquer ato interlocutório (princípio que comporta exceções, como se verá).

23.  No caso em apreço, os Requerentes impugnam o ato de liquidação, o qual teve por base, entre muitos outros pressupostos, o enquadramento da Requerente no regime simplificado do IRS. E fazem-no atacando precisamente a legalidade desse ato de enquadramento. A petição dos Requerentes está portanto de acordo com o princípio da impugnação unitária do ato tributário, previsto no artigo 54º do CPPT e aplicável ao presente processo por força da al. a) do n. 1 do art.º 29º do RJAT.

24.  Também contrariamente ao que alega a Requerida, ainda com o devido respeito, a questão de competência por ela suscitada nos presentes autos não tem analogia com a decidida no processo arbitral n.º 118/2012-T, de 16.5.2013. Neste último, os Requerentes pediam ao Tribunal, expressamente, que apreciasse a legalidade de um ato de fixação da matéria coletável, quando efetivamente não tinha sido praticado pela Autoridade Tributária qualquer ato a fixar a matéria coletável de qualquer imposto de que os Requerentes fossem sujeitos passivos. Além disso, não havia também, à data da interposição do pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato de liquidação de imposto que pudesse ser impugnado, em conexão com o enquadramento dos Requerentes no regime simplificado do IRS. Situação bem diferente é a dos presentes autos, em que existe um ato de liquidação de IRS que tem por base o enquadramento dos sujeitos passivos no regime simplificado deste imposto.

25.  É certo que o ato que determina o enquadramento do sujeito passivo no regime simplificado, sendo um ato interlocutório, que não culmina nenhum procedimento, é um ato imediatamente lesivo (cfr. o acórdão do STA de 23.06.2010, proc. n.º 1032/09), podendo por esse motivo ser autonomamente impugnado (neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STA de 23.10.2013, proc. n.º 1361/13; e de 06.02.2013, proc. 989/12).

26.  No entanto, há que não confundir o regime da impugnação dos atos destacáveis e o dos atos imediatamente lesivos (cfr., v.g., acórdão do STA de 23.10.2013, proc. n.º 1361/13).

27.  Pois enquanto os atos destacáveis são atos interlocutórios cuja impugnabilidade autónoma está expressamente prevista em norma legal, sendo que a sua não impugnação atempada preclude o direito de atacar a sua legalidade em qualquer outro momento posterior (acórdão do STA de 29.06.05, proc. n.º 234/05), os atos lesivos são atos cuja impugnabilidade autónoma não se encontra expressamente prevista na lei, do que resulta que a sua não impugnação autónoma não preclude o direito de atacar a sua legalidade na impugnação do ato que põe fim ao procedimento.

28.  O regime da impugnação dos atos interlocutórios imediatamente lesivos, distinto do dos atos destacáveis, justifica-se pelo facto de a impugnabilidade autónoma destes atos constituir uma garantia constitucionalmente expressa (consagrada no art.º 268º, n.º 4 da CRP), com a consequência de que tal impugnabilidade tem de ser interpretada no sentido de uma ampliação dos meios de defesa dos administrados e não como uma limitação da possibilidade de defesa, como ocorre nos atos destacáveis (neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Processo e de Procedimento Tributário anotado e comentado, Vol. I, 6ª ed., Lisboa, 2011, pp. 468-470).

29.  Ora, o ato de enquadramento da Requerente no regime simplificado de tributação é autonomamente impugnável por ser lesivo, não por ser um ato destacável. Logo, a sua ilegalidade pode ser invocada na impugnação do ato final do procedimento de liquidação, do qual aquele é um ato interlocutório.

30.  Pelas razões expostas, entende este coletivo arbitral julgar não procedente a exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria alegada pela Requerida.

31.  Quanto à incompetência em razão da hierarquia, a Requerida não expõe, nem o Tribunal lobriga qualquer argumento que possa fundamentar tal incompetência, pelo que se julga igualmente improcedente tal exceção.

 B) Quanto à exceção de litispendência

32.  A exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa (art.º 580º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)) a qual se verifica quando são idênticos, nas duas ações, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir.

33.  O objetivo da exceção de litispendência é o de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 580º, n.º 1 do CPC).

34.  No caso vertente, é manifesta a identidade de sujeitos entre as ações administrativas interpostas pelos Requerentes no TAF do Porto e o atual pedido de pronúncia arbitral.

35.  É igualmente clara a identidade quanto à causa de pedir, a qual existe quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. O facto jurídico comum é, no três casos em apreço, o exercício da opção pelo regime de contabilidade organizada que a Requerente efetuou, e do qual pretende retirar a consequência da ilegalidade da alteração oficiosa desse regime de tributação.

36.  Quanto à identidade de pedido, esta existe quando nas duas causas em apreço se pretende obter o mesmo efeito jurídico (art.º 581, n.º 3 do CPC).

37.  Neste ponto, é forçoso concluir que não existe identidade de pedidos.

38.  Numa das duas ações administrativas especiais a correr os seus termos no TAF do Porto, é pedida a anulação do ofício da Autoridade Tributária que “deteta um erro na declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2012”, enquanto na segunda o pedido consiste na anulação do ofício da Autoridade Tributária que “confirma a alteração oficiosa da opção de tributação dos rendimentos em cadastro”.

39.  Já no presente pedido de pronúncia arbitral o objetivo fundamental dos Requerente é a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de IRS relativo ao ano de 2012. Em nenhuma das ações anteriores se pede a anulação ou declaração de nulidade do mesmo ato de liquidação. Os pedidos são, portanto, distintos.

40.  Por este motivo, o Tribunal julga improcedente a exceção de litispendência.

C) Sobre a legalidade do ato de enquadramento da Requerente no regime simplificado do IRS no ano de 2012 e, consequentemente, da liquidação de IRS do mesmo ano

41.  O regime simplificado de tributação previsto no artigo 28º do CIRS constitui um regime não obrigatório, que depende da opção do sujeito passivo (vd., v.g. o acórdão do STA de 17.03.2010, proc. n.º 56/10).

42.  Tal significa que o regime-regra quanto à tributação dos rendimentos da categoria B do IRS é o regime de tributação com base na contabilidade. Com efeito, mesmo preenchendo todos os requisitos para ser tributado pelo regime simplificado, o sujeito passivo só fica abrangido por este se fizer essa opção. Já o inverso não é verdade. Se o sujeito passivo ultrapassar os limites estabelecidos para o regime simplificado, não poderá, mesmo que o queira, ser tributado pelo regime simplificado.

43.  Apesar de o regime de tributação com base na contabilidade ser o regime-regra e de o regime simplificado ser um regime sempre opcional, o legislador obriga a que o sujeito passivo manifeste expressamente a sua opção pelo regime de tributação com base na contabilidade, em vez de determinar que este fica automaticamente, na falta de uma manifestação de opção expressa, no regime de tributação com base na contabilidade.

44.  Quando o sujeito passivo efetua uma opção pelo regime de contabilidade organizada, tal opção significa que, mesmo que o rendimento bruto do sujeito passivo fique abaixo dos limites do regime simplificado, continuará enquadrado no regime de tributação com base na contabilidade.

45.  A Requerente efetuou a opção pelo regime simplificado em 2007, mantendo-se essa opção válida durante o triénio 2007-2009.

46.  No final deste período, a opção efetuada renovou-se por igual período, devendo manter-se válida durante o triénio 2010-2012.

47.  Nos anos de 2011 e 2012, a Requerente obteve rendimentos brutos da categoria B inferiores a 150 000 euros. A situação do sujeito passivo nos anos de 2011 e 2012, com a obtenção de um rendimento ilíquido inferior a 150 000 euros, é exatamente aquela em que a opção pelo regime de contabilidade organizada se destina a produzir os seus efeitos.

48.  Ora, se a opção que o sujeito passivo efetua pelo regime de tributação com base na contabilidade se destina precisamente a permitir-lhe manter-se neste regime mesmo quando o seu rendimento bruto fica abaixo dos limites do regime simplificado, e se essa opção é válida pelo período de três anos, não se vê como pode o sujeito passivo passar para o regime simplificado durante o período de validade dessa opção. A opção do sujeito passivo pelo regime de tributação com base na contabilidade apenas cessará se o próprio sujeito passivo manifestar a pretensão de alterar esse regime. E se, durante o período de validade da opção, o sujeito passivo se mantém no regime de tributação com base na contabilidade, então não se vê que motivação lógica levaria o sujeito passivo a renovar a sua opção.

49.  Mas é a própria lei que diz, de modo explícito (n.º 4 do artigo 28º do CIRS) que a opção do sujeito passivo pelo regime de tributação de contabilidade organizada deve ser efetuada apenas em duas circunstâncias:

a)      Na declaração de início de atividade;

b)      Até ao fim do mês de março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento.

50.  Se a hipótese da alínea a) do n.º 4 do art.º 28 não se aplica por não se estar perante uma situação de início de atividade, a hipótese da al. b) não se aplica pois o sujeito passivo, não se encontrando no regime simplificado, não pode pretender mudar deste para o regime de tributação com base na contabilidade.

51.  A interpretação da Administração Tributária equivale a admitir a existência de uma norma, que não está expressa em nenhum local da lei, segundo a qual, estando o sujeito passivo, por sua opção expressa, no regime de contabilidade organizada, e se, no decorrer do período de validade de três anos que a lei prevê para essa opção, o sujeito passivo obtiver, em qualquer dos exercícios compreendidos nesse período, um volume de vendas superior ao limite de 150 000 euros previsto no n.º 2 do art.º 28º do CIRS (na redação anterior à dada pela Lei n.º 83-C/2013 de 31 de dezembro), a sua opção pelo regime de contabilidade organizada caduca, passando a estar no mesmo regime já não por opção, mas por “obrigação legal”.

52.  Esta norma, como já se disse, não se encontra na lei. E na medida em que essa norma cria um ónus para o sujeito passivo, não se encontrando na lei, não pode ser aplicada pela Administração Fiscal, sob pena de violação do princípio da legalidade (art.º 8º, n.º 1 e n.º 2, al. c) da Lei Geral Tributária).

53.  Além de não se encontrar prevista na lei, a norma hipotética que a Autoridade Tributária pretende aplicar é contrária ao sentido literal e mais direto da norma, essa sim expressa, segundo a qual a opção efetuada pelo contribuinte é válida pelo período de 3 anos.

54.  A jurisprudência relativa à situação legislativa anterior à consagração, no n.º 5 do art.º 28º do CIRS, do prazo de três anos para a validade da opção pelo regime de tributação com base na contabilidade confirma este entendimento. O acórdão do STA de 26.9.12, proc. n.º 530/12, reportando-se às normas em vigor anteriormente a 2007[1] afirma: “caso o sujeito passivo tivesse optado (…) pelo regime de contabilidade organizada, não havia como aplicar-lhe o regime simplificado, pois que o preceito não previa a caducidade dessa opção nem fixava qualquer período mínimo de permanência no regime geral”.

55.  Ora, a lei continua a não prever a caducidade da opção pelo regime de contabilidade organizada.

56.  No mesmo acórdão declara-se ainda: “E só no caso de [o sujeito passivo] se encontrar sujeito ao regime simplificado (por falta de opção pelo regime geral na declaração de início de atividade e inclusão automática no regime simplificado à luz dos critérios previstos no n.º 2 [do artigo 28º do CIRS]) é que se compreende que a lei lhe exigisse que entregasse, no caso de pretender ser tributado pelo regime geral num determinado ano, a declaração de alterações até ao fim do mês de março desse ano. Se ele já se encontrava inserido no regime geral, por opção feita na declaração de início de atividade nos termos da al. a) do n.º 4, não tinha de renovar anualmente essa opção, nos termos da alínea b) do n.º 4”.

57.  Se é certo que ocorreram entretanto alterações às disposições cuja aplicação está em causa, tudo o que está afirmado no acórdão referido e que interessa ao caso presente se mantém aplicável. Mais, todas as alterações entretanto ocorridas foram no sentido de clarificar a norma segundo a qual a opção do sujeito passivo pela contabilidade organizada se mantém válida – e portanto não caduca – durante o período de três anos.

58.  Carece portanto de suporte legal a interpretação que a Requerida faz do n.º 1, do n.º 2 e do n.º 4 do art.º 28º do CIRS. Esta interpretação, impondo sobre o sujeito passivo um ónus, relativo a uma obrigação tributária acessória, que a lei não prevê, e que é mesmo contrária ao sentido literal e mais direto de uma norma expressa, é uma interpretação violadora do princípio da legalidade tributária, consagrado no art.º 103º, números 2 e 3 da CRP e no art.º 8º, n.º 1 e n.º 2 da Lei Geral Tributária.

 

V. Decisão

Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide:

1.      Declarar ilegal o ato de liquidação de IRS, na parte relativa aos rendimentos da categoria B obtidos pela Requerente B no ano de 2012, por erro nos pressupostos de direito em que assentou a mesma liquidação, ao considerar a Requerente enquadrada, nesse ano, no regime simplificado de tributação do IRS, quando a deveria considerar enquadrada no regime de tributação com base na contabilidade (ambos previstos no art.º 28º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares), segundo a opção efetuada pela mesma.

 

2.      Declarar a Autoridade Tributária obrigada, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 24º do RJAT, a restabelecer a situação que existiria se o ato de liquidação declarado ilegal não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 65 807,98 Euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2 448.00 € Euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 28 de março de 2014.

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(Jorge Lino Alves de Sousa)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Marcolino Pisão Pedreiro)

 

 

 

O Árbitro Vogal e Relator

 

 

(Nina Aguiar)

 

 



[1] Foi a Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, que aditou ao artigo 28º do CIRS o n.º 5, com a seguinte redação: “5 - O período mínimo de permanência em qualquer dos regimes a que se refere o n.º 1 é de três anos, prorrogável por iguais períodos, exceto se o sujeito passivo comunicar, nos termos da alínea b) do número anterior, a alteração do regime pelo qual se encontra abrangido”.