SUMÁRIO
I. São fiscalmente dedutíveis, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, os encargos suportados por uma sociedade com rendas de alojamento e serviços de realocação de trabalhadores deslocados, desde que se encontrem devidamente comprovados e se destinem a obter ou garantir rendimentos sujeitos a imposto. A mera falta de carácter generalizado não impede a dedutibilidade, cabendo à Autoridade Tributária demonstrar a inexistência de nexo causal ou a natureza remuneratória dos benefícios.
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A imputação ao exercício em causa de gastos respeitantes a exercícios anteriores, quando a sua não contabilização resulte de erro não intencional e sem prejuízo para os cofres do Estado, é admissível, devendo o princípio da especialização dos exercícios (artigo 18.º do CIRC) ser interpretado em conjugação com os princípios da justiça e da proporcionalidade, a fim de evitar soluções materialmente injustas.
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A isenção de retenção na fonte prevista nºs 3 e 8 do artigo 14.º e 98.º do CIRC, conjugados com o artigo 15.º do Acordo CE‑Suíça, aplica‑se aos dividendos distribuídos a uma sociedade‑mãe residente na Suíça sempre que esta detenha, de forma directa e ininterrupta, pelo menos 25 % do capital da filial durante dois anos e esteja sujeita a imposto sobre o rendimento sem isenção. A retenção na fonte efectuada aquando do pagamento dos dividendos assume carácter meramente provisório; se, na data da decisão ou da acção inspectiva, se constatar que o requisito temporal foi cumprido, a distribuição deve ser tratada como isenta, cabendo restituir o imposto retido. Nesses casos, a taxa reduzida de 5 % prevista na Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Suíça apenas se aplica quando não estão satisfeitos os pressupostos legais da isenção.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (presidente), Dr Óscar Barros e Dr João Santos Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25/03/2025, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A. (“Requerente”), NIF e NIP..., com sede na Rua ..., nºs ... e..., ...-... Linda-a-Velha, veio, em 10/03/2025, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de IRC” e juros compensatórios nºs 2024..., 2024..., 2024 ... e 2024..., resultante da inspecção tributária levada a cabo pera ordem de serviço n.º OI2023... . Peticiona o Requerente também a restituição do montante indevidamente pago (€ 73.403,08), acrescido de juros indemnizatórios.
Em suporte das suas pretensões, alega o Requerente, em síntese, que as liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios impugnadas padecem de ilegalidade, porquanto as correções efetuadas pela Administração Tributária assentam em erro de qualificação e aplicação do direito, designadamente quanto à dedutibilidade dos encargos com trabalhadores deslocados (arts. 43.º e 23.º do CIRC), à imputação temporal de gastos (art. 18.º do CIRC) e à sujeição a retenção na fonte dos dividendos distribuídos à acionista única (arts. 14.º e 98.º do CIRC).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 12/03/2025.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 02/05/2025 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 20/05/2025.
Em 21/06/2025, a AT apresentou resposta ao PPA, defendendo-se por impugnação, tendo junto o processo administrativo no mesmo dia.
Por despacho de 23/06/2025 o Tribunal Arbitral, considerando a aparente inutilidade da inquirição de testemunha requerida, dispensou, por ora, a produção da prova testemunhal, concedendo à Requerente o prazo de cinco dias para indicar os factos essenciais e controvertidos suscetíveis de prova por essa via.
Em 15/07/2025, a Requerente opôs-se à dispensa da prova testemunhal, invocando o princípio do inquisitório e defendendo a sua relevância para demonstrar as políticas da empresa relativas aos gastos com trabalhadores destacados e a ligação entre a prova documental e essas políticas.
Em 14/07/2025, foi proferido despacho que indeferiu o pedido de produção de prova testemunhal, por se considerar inexistir matéria de facto controvertida essencial e que a diligência seria inútil ou desnecessária à boa decisão da causa, tendo sido simultaneamente concedido às partes o prazo de quinze (15) dias para apresentação de alegações finais escritas, de facto e de direito, com conclusões obrigatórias.
Em 15/07/2025, a Requerente juntou aos autos declaração da responsável fiscal da C..., S.A., certificando que a sociedade é residente na Confederação Suíça e está sujeita e não isenta de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, à taxa final mínima de 13%.
Em 02/09/2025 a Requerida apresentou alegações.
Em 02/09/2025 a Requerente apresentou alegações e procedeu à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente (realizado em 04/09/2025).
Posição da requerente
Em primeiro lugar, a Requerente impugna as correções efetuadas pela AT no montante de € 63.509,55, relativas a encargos suportados com rendas e despesas de realocação de trabalhadores estrangeiros do Grupo B... destacados para Portugal. A Requerente discorda, sustentando que esses encargos se enquadram em realizações de utilidade social, ao abrigo do artigo 43.º do CIRC, por beneficiarem uma categoria de trabalhadores em condições objetivas e não constituírem remuneração direta. Acrescenta que, ainda que assim não se entenda, devem ser considerados gastos indispensáveis à obtenção de rendimentos, nos termos do artigo 23.º do CIRC, uma vez que se encontram diretamente relacionados com a sua actividade de centro de serviços partilhados do Grupo B... . Defende que a AT não pode substituir-se à gestão empresarial na avaliação da razoabilidade ou necessidade dos custos incorridos. Conclui, por isso, que as correções em causa violam os artigos 43.º, n.º 1, e 23.º do CIRC e que as liquidações adicionais daí resultantes são ilegais e devem ser anuladas.
Em segundo lugar, a Requerente contesta a correção no valor de € 30.559,55, referente a despesas dos exercícios de 2018 e 2019 imputadas ao exercício de 2020. A Requerente, porém, sustenta que se tratou de um mero erro contabilístico, sem qualquer intenção de manipular resultados, e que a imputação tardia desses gastos não causou prejuízo ao erário público, tendo inclusive resultado em tributação em excesso nos exercícios anteriores. Entende que a correção viola o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, o qual deve prevalecer sobre o princípio da especialização quando não existe prejuízo fiscal nem intenção dolosa. Assim, a desconsideração desses custos constitui uma decisão materialmente injusta e desconforme à Constituição, determinando a anulabilidade da liquidação adicional correspondente.
Em terceiro lugar, a Requerente impugna a liquidação de IRC por retenção na fonte no montante de € 43.409,60, relativa aos dividendos distribuídos em 2020 à sua acionista única, C..., S.A., residente na Confederação Suíça. A Requerente contrapõe que estão verificados todos os pressupostos da isenção, dado que a accionista é residente fiscal na Suíça, sujeita e não isenta de imposto sobre o rendimento, detendo participação direta superior a 25% de forma contínua. Invoca, ainda, a jurisprudência do STA, segundo a qual o mecanismo de retenção provisória não pode converter-se numa tributação efetiva quando, a final, a isenção substantiva se encontra verificada. Por conseguinte, considera que a liquidação de retenção na fonte e os respetivos juros compensatórios são ilegais por violação dos artigos 14.º, n.os 3 e 8, e 98.º do CIRC.
A Requerente alega igualmente que não se encontram preenchidos os pressupostos do artigo 35.º da LGT para a liquidação de juros compensatórios, uma vez que não actuou com culpa, mas de boa-fé e com base em interpretação legítima das normas tributárias aplicáveis. Assim, ainda que se mantivessem as liquidações de IRC, os juros compensatórios seriam sempre indevidos.
Finalmente, a Requerente solicita o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e n.º 5 do artigo 61.º do CPPT, a contar desde a data do pagamento indevido até integral restituição.
Em síntese, a Requerente pede ao Tribunal Arbitral que: (i) declare a ilegalidade e anulação das correções de € 63.509,55, por violação dos artigos 43.º e 23.º do CIRC; (ii) declare a ilegalidade e anulação da correção de € 30.559,55, por violação do princípio da justiça; (iii) declare a ilegalidade e anulação da retenção na fonte de € 43.409,60, por violação dos artigos 14.º e 98.º do CIRC; (iv) subsidiariamente, anule as liquidações de juros compensatórios, por falta de culpa da Requerente; (v) determine a restituição do imposto indevidamente pago no montante total de € 73.403,08, acrescido de juros indemnizatórios; e (vi) condene a Administração Tributária nas custas do processo arbitral.
Posição da Requerida
No que respeita aos encargos com trabalhadores deslocados, a AT sustenta que tais despesas não reúnem os requisitos do n.º 1 do artigo 43.º do CIRC, por não se tratar de realizações de utilidade social, uma vez que não têm carácter geral, nem beneficiam a totalidade dos trabalhadores. Argumenta que o apoio concedido pela Requerente é restrito a um grupo específico de colaboradores estrangeiros transferidos para Portugal, não abrangendo outros trabalhadores deslocados em situação análoga. Assim, não se verifica o requisito de generalidade exigido pela norma, segundo jurisprudência consolidada e doutrina (designadamente Rui Marques, Código do IRC Anotado e Comentado, Almedina, 2020).
Mais alega a Requerida que os encargos em apreço constituem vantagens individualizáveis, configurando rendimentos do trabalho dependente na aceção do artigo 2.º do CIRS e rendimentos em espécie nos termos do artigo 24.º, n.º 2, do mesmo código, uma vez que correspondem ao uso de habitação e outros benefícios mensuráveis, postos à disposição de trabalhadores identificáveis. Não tendo tais montantes sido tributados em sede de IRS na esfera dos respetivos beneficiários, a AT conclui que as despesas não são dedutíveis nem ao abrigo do n.º 1 do artigo 43.º, nem do artigo 23.º do CIRC.
Em relação à invocação subsidiária do artigo 23.º do CIRC, a Requerida entende que a dedutibilidade dos gastos depende da verificação do nexo causal entre a despesa e a obtenção de rendimentos tributáveis, o que não ocorre no caso concreto, porquanto as despesas assumem natureza de remuneração em espécie. Reitera que, para serem dedutíveis, os valores pagos deveriam ter sido tributados como rendimentos do trabalho dependente, o que não sucedeu, tornando improcedente o argumento da Requerente.
Quanto aos gastos de exercícios anteriores, no valor de €30.559,55, a Requerida defende que a correção efetuada se encontra devidamente fundamentada no artigo 18.º do CIRC, que consagra o princípio da especialização dos exercícios. Explica que tais despesas, datadas de 2018 e 2019, não eram imprevisíveis nem manifestamente desconhecidas à data dos respetivos encerramentos de contas e, por isso, não poderiam ter sido imputadas a 2020. Invoca a coerência entre o regime contabilístico e o fiscal, sublinhando que o resultado tributável deve refletir a realidade económica de cada exercício. A imputação arbitrária de despesas a períodos posteriores, ainda que por lapso, violaria as normas contabilísticas e fiscais, não podendo justificar-se pela invocação do princípio da justiça. Cita ainda o parecer técnico da Ordem dos Contabilistas Certificados n.º 27652/2023, que confirma que erros contabilísticos de exercícios anteriores não podem influenciar o resultado tributável de períodos subsequentes.
Relativamente à retenção na fonte sobre dividendos pagos à acionista suíça, a AT entende que não estão preenchidos os requisitos da isenção prevista nos artigos 14.º e 98.º do CIRC, nem do Acordo entre a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça, por falta de prova da taxa efetiva de tributação aplicável à sociedade-mãe e por não cumprimento do requisito temporal de detenção da participação durante dois anos ininterruptos. Assim, ainda que a accionista detenha a totalidade do capital da Requerente desde 15/11/ 2019, não se verifica o período mínimo de dois anos à data da distribuição de dividendos, ocorrida em Dezembro de 2020. Consequentemente, a operação encontra-se sujeita a retenção na fonte em Portugal.
A AT refere que, apesar da ausência de modelo 21-RFI, admitiu a aplicação da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Suíça, aplicando a taxa reduzida de 5%, conforme o n.º 2 artigo 10.º, alínea a), da CDT. Sublinha que a Requerente beneficiou já do regime mais favorável previsto na convenção e que, portanto, não há qualquer ilegalidade na liquidação.
No tocante aos juros compensatórios, a Requerida invoca o artigo 35.º da LGT e a jurisprudência constante do STA, segundo a qual a responsabilidade por juros compensatórios tem natureza reparatória e pressupõe culpa do contribuinte. Considera que, no caso concreto, a Requerente incorreu em erro imputável à sua própria conduta, ao não efetuar as retenções devidas nem declarar corretamente os encargos, não se podendo invocar boa-fé ou divergência interpretativa.
Quanto aos juros indemnizatórios, a Requerida defende que não se verifica qualquer erro imputável aos serviços que justifique a sua atribuição. As liquidações resultaram da aplicação direta da lei e das verificações inspetivas, sem qualquer ilegalidade ou atuação indevida por parte da AT.
Por fim, a Requerida entende que as questões suscitadas são de natureza exclusivamente jurídica, encontrando-se os factos devidamente documentados nos autos, pelo que considera desnecessária a produção de prova testemunhal.
Conclui requerendo que o pedido de pronúncia arbitral seja julgado totalmente improcedente, por não provado, e que a Requerida seja absolvida de todos os pedidos, com as legais consequências.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
III. QUESTÕES DECIDENDAS
Face à exposição das partes nos respetivos articulados e aos documentos apresentados, a questão controvertida nos presentes autos é a de saber se as liquidações adicionais de IRC e de juros compensatórios emitidas à Requerente, relativas ao exercício de 2020, padecem de vício de violação de lei que determine a sua anulação, designadamente quanto (i) à dedutibilidade fiscal dos encargos suportados com rendas e serviços de realocação de trabalhadores estrangeiros; (ii) à possibilidade de imputação ao exercício de 2020 de gastos respeitantes a exercícios anteriores, à luz do princípio da especialização dos exercícios; e (iii) à sujeição a retenção na fonte dos dividendos distribuídos à sociedade-mãe residente na Confederação Suíça, à luz do regime de isenção previsto nos artigos 14.º e 98.º do CIRC e da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Suíça.
IV. DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
A. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas de direito português, com sede em Linda-a-Velha, que se dedica à prestação de serviços de gestão e consultoria empresarial no âmbito do Grupo B... .
B. À data dos factos, a Requerente encontrava-se enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC, e era detida na totalidade pela sociedade suíça C... S.A.
C. No exercício de 2020, a Requerente suportou encargos com rendas de imóveis e serviços de realocação para trabalhadores estrangeiros do Grupo B... destacados para Portugal, incluindo obtenção de documentos em território nacional e apoio na instalação dos trabalhadores deslocados, no montante global de € 61.599,55, dos quais € 51.650,00 correspondem a rendas de apartamentos em Lisboa e Linda-a-Velha e € 9.949,55 respeitam a serviços contratados à D..., Unipessoal Lda., relativos à procura de alojamento e apoio administrativo.
D. Os beneficiários desses apoios foram oito trabalhadores estrangeiros, provenientes de Itália, França, Croácia, Brasil e Egito, destacados temporariamente para Portugal. [Doc 5 a 7 PPA]
E. A política de mobilidade internacional da Requerente prevê apoios na instalação e alojamento de trabalhadores deslocados de outras empresas do grupo. [facto alegado pela Requerente e não impugnado]
F. Foram contabilizados no exercício de 2020 gastos respeitantes a 2018 e 2019, no valor total de € 30.559,55, correspondentes a faturas emitidas nesses períodos e relacionadas com arrendamentos e serviços de realocação.
G. As referidas faturas não foram registadas nos exercícios de origem por lapso contabilístico, sendo posteriormente reconhecidas em 2020. [facto alegado pela Requerente e não impugnado]
H. Não existem indícios de manipulação intencional dos resultados, nem de prejuízo efectivo para a Fazenda Pública. [facto alegado pela Requerente e não impugnado]
I. Em 29/06/2020, a Assembleia Geral da Requerente deliberou distribuir dividendos no montante de € 868.192,00 à acionista única C... S.A., residente na Suíça. [Acta anexa ao RIT (Anexo 2)].
J. A distribuição dos dividendos foi concretizada em 21/12/2020, sem retenção na fonte.
K. A Requerente apresentou certificado de residência fiscal suíço da accionista, autenticado pelas autoridades fiscais helvéticas. [Doc n.º 4 PPA]
L. A participação da accionista na Requerente data de 15/11/2019, não se verificando o período mínimo de dois anos de detenção ininterrupta à data do pagamento dos dividendos. [Cf RIT (pág. 43)].
M. A Requerente foi objecto de acção inspetiva externa pela Direção de Finanças de Lisboa, realizada entre 31 de Janeiro e 31 de Julho de 2024, sob a Ordem de Serviço n.º OI2023..., com âmbito geral relativamente ao exercício de 2020.
N. Na sequência do relatório inspetivo, foram emitidas as seguintes liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios n.ºs 2024..., 2024..., 2024... e 2024... .
O. A Requerente foi objecto de acção inspetiva externa pela Direção de Finanças de Lisboa, realizada entre 31 de Janeiro e 31 de Julho de 2024, sob a Ordem de Serviço n.º OI2023..., com âmbito geral relativamente ao exercício de 2020.
P. Na sequência do relatório inspetivo, foram emitidas as seguintes liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios n.ºs 2024..., 2024..., 2024... e 2024... .
Q. As correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção Tributária ascenderam ao montante global de €101.198,50, compreendendo:
a) € 61.599,55 relativos a encargos com rendas e serviços de realocação de trabalhadores estrangeiros;
b) € 30.559,55 referentes a despesas imputadas a 2020, mas respeitantes a exercícios de 2018 e 2019;
c) € 43.409,60 correspondentes à retenção na fonte sobre dividendos distribuídos à accionista suíça.
R. Os SIT em sede de inspecção tributária aplicaram a taxa reduzida de 5% prevista no artigo 10.º, n.º 2, alínea a), da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Suíça, determinando uma retenção de €43.409,60.
FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1 Da ilegalidade das liquidações de IRC
i) dedutibilidade fiscal dos encargos suportados com rendas e serviços de realocação de trabalhadores estrangeiros
A questão controvertida respeita à legalidade da correção efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que desconsiderou, para efeitos de apuramento do lucro tributável de 2020, os encargos suportados pela Requerente com rendas de alojamento temporário e serviços de realocação e legalização de trabalhadores estrangeiros deslocados para Portugal, no montante global de € 61.599,55.
A AT fundamentou a correção na violação do n.º 1 do artigo 43.º do CIRC, por entender que tais encargos não possuem carácter geral e se traduzem em benefícios individualizáveis, configurando rendimentos do trabalho dependente não sujeitos a tributação em sede de IRS. Em consequência, considerou que as despesas não seriam dedutíveis, nem ao abrigo do artigo 43.º, nem do artigo 23.º do mesmo Código.
A Requerente, por seu turno, sustenta que os encargos em causa foram incorridos no interesse directo e imediato da sua atividade, enquadrando-se na política corporativa de mobilidade internacional do Grupo B..., destinada a assegurar o acolhimento e integração de quadros qualificados indispensáveis ao funcionamento do centro de serviços partilhados em Portugal. Defende, assim, que se trata de gastos indispensáveis à obtenção e garantia dos rendimentos sujeitos a IRC, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, ou, subsidiariamente, de realizações de utilidade social, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, do mesmo diploma.
Vejamos, pois.
O n.º 1 do artigo 23.º do CIRC estabelece a regra geral de dedutibilidade dos gastos, dispondo que “são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”. Já o artigo 43.º, n.º 1, prevê que “são também dedutíveis os gastos do período de tributação (…) relativos à manutenção facultativa de creches, lactários, jardins-de-infância, cantinas, bibliotecas e escolas, bem como outras realizações de utilidade social (…) feitas em benefício do pessoal ou dos reformados da empresa e respetivos familiares, desde que tenham carácter geral e não revistam a natureza de rendimentos do trabalho dependente (…)”.
A articulação entre estas normas demonstra que o artigo 43.º do CIRC tem natureza complementar e não restritiva, acrescentando ao regime-regra do artigo 23.º do CIRC uma categoria específica de despesas com relevância social. O requisito do “carácter geral” é, por isso, relevante apenas para efeitos da qualificação como realização de utilidade social e eventual majoração, não constituindo um obstáculo à dedutibilidade ordinária ao abrigo do artigo 23.º do CIRC.
Esta interpretação tem sido reafirmada pela jurisprudência do STA, designadamente no Acórdão de 24/09/2014, Proc. n.º 0779/12 e Acórdão de 28/06/2017, Proc. n.º 0627/16, onde se afirmou que a indispensabilidade dos gastos deve ser apreciada de forma objetiva, em função do nexo entre o gasto e a actividade da empresa, não podendo a Autoridade Tributária substituir-se ao gestor na avaliação da oportunidade e conveniência das decisões empresariais. No mesmo sentido, o Acórdão do STA de 04/12/2019, Proc. n.º 01170/05.7BELSB, esclareceu que o carácter geral não se confunde com universalidade, bastando que o benefício seja atribuído segundo critérios objetivos e impessoais que afastem qualquer discricionariedade ou arbitrariedade. Ou seja, conforme foi aí entendido “A selecção dos trabalhadores a beneficiar não deve ficar exposta ao livre arbítrio da empresa, mas sim da vontade desta em beneficiar, indistintamente, todos os trabalhadores da empresa ou, pelo menos, todos os trabalhadores de uma ou mais categorias de trabalhadores da empresa.”
A jurisprudência arbitral do CAAD tem igualmente seguido este entendimento. A Decisão Arbitral de 31/08/2022, processo n.º 431/2021-T, considerou que benefícios atribuídos apenas a alguns trabalhadores (vales de educação e apoios familiares) não perdem a natureza de gastos com pessoal dedutíveis ao abrigo do artigo 23.º do CIRC, apenas deixando de beneficiar da majoração prevista para as realizações de utilidade social. Tal como resulta da supramencionada decisão arbitral:
“O artigo 43.º do CIRC utiliza uma técnica legislativa própria; contém nos seus números 1 e 2 regras que parecem ampliar o conceito de gasto em geral, permitindo que sejam deduzidos, para determinação da matéria coletável, gastos com realizações sociais, que em determinada perspetiva podem nem ser essenciais para à obtenção do seu rendimento. Uma leitura cuidada do n.º 1 deste artigo revela que os beneficiários dessas realizações vão muito para além dos trabalhadores da empresa, incluindo os reformados da empresa e respetivos familiares. Veja-se que as duas normas começam justamente pelas expressões “são também dedutíveis” e “são igualmente considerados gastos do período de tributação”, dando desde logo a ideia de se pretender a ampliação do espetro dos gastos e não a criação de requisitos que restrinjam a dedutibilidade geral regulada no artigo 23.º do CIRC.
Por seu turno, conforme Decisão Arbitral de 31/03/2025, processo n.º 1069/2024-T, reafirmou-se que o artigo 43.º do CIRC não constitui um filtro negativo à regra-base do artigo 23.º do CIRC, salientando que a dedutibilidade de um gasto em IRC não depende da sua prévia tributação como rendimento em IRS, por se tratar de planos jurídicos distintos e autónomos.
No caso concreto, ficou demonstrado que os imóveis arrendados se encontravam registados em nome da Requerente e eram utilizados de forma temporária e rotativa para o alojamento de trabalhadores estrangeiros deslocados, constituindo infraestruturas de acolhimento e integração (“onboarding”) de pessoal qualificado. Do mesmo modo, os serviços de relocação incluíram actos essenciais tais como, o apoio na obtenção de documentos legais e legalização em território nacional, disponibilização aos trabalhadores estrangeiros de alojamento comunitário, nomeadamente em apartamentos por si arrendados, o apoio na contratação de serviços de fornecimento de água e eletricidade, etc.
Estes encargos, pela sua natureza e finalidade, não constituem liberalidades nem benefícios pessoais, mas custos operacionais diretamente relacionados com a actividade empresarial e indispensáveis à execução da política de recursos humanos da Requerente. São, pois, enquadráveis no conceito de gastos necessários à obtenção e manutenção dos rendimentos sujeitos a IRC, previsto no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC.
A eventual individualização dos beneficiários não afasta a indispensabilidade económica do gasto, sendo irrelevante que o apoio se destine a um subconjunto de trabalhadores, desde que assente em critérios objetivos e uniformes, como sucede com a política de mobilidade internacional do grupo empresarial.
Ainda que, por hipótese, se entendesse aplicável o n.º 1 do artigo 43.º do CIRC, no entender deste Tribunal, o requisito do “carácter geral” considerar-se-ia verificado, uma vez que os benefícios foram atribuídos com base em regras internas objetivas e impessoais, extensíveis a todos os trabalhadores deslocados, em conformidade com a jurisprudência do STA que admite a verificação desse requisito em categorias homogéneas de pessoal.
Acresce que, no entender deste Tribunal, a discussão em torno do “carácter geral” do artigo 43.º do CIRC, tal como se referiu supra, apenas teria pertinência se estivesse em causa a qualificação dos encargos como realizações de utilidade social, para efeitos de majoração fiscal. Todavia, essa questão, no entender deste Tribunal, não serve para afastar a dedutibilidade normal prevista no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC. Tal resulta claramente das decisões arbitrais acima referidas, que distinguem de forma inequívoca os planos de incidência do IRC e do IRS, rejeitando que a aceitação de um custo empresarial dependa da sua tributação como rendimento do trabalho. Este entendimento harmoniza-se, aliás, com os critérios de indispensabilidade objetiva e com os limites ao controlo da gestão empresarial afirmados pela jurisprudência do STA, segundo os quais a AT não pode substituir-se ao gestor na avaliação da oportunidade das decisões de natureza económica.
A AT incorreu, assim, em erro de enquadramento jurídico ao confundir os planos da dedutibilidade do gasto em IRC e da tributação do correspondente benefício em IRS e ao aplicar o artigo 43.º como limite negativo à regra-base do artigo 23.º, ambos do CIRC. A lei não contém qualquer preceito que condicione a dedutibilidade de um custo à sua prévia tributação como rendimento do trabalho dependente, sendo distintos os planos de incidência de cada imposto.
Por conseguinte, os encargos suportados pela Requerente com alojamento temporário e serviços de integração de trabalhadores estrangeiros deslocados constituem gastos comprovados e necessários à obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto, enquadráveis no artigo 23.º, n.º 1, do CIRC. A recusa da sua dedutibilidade carece, portanto, de fundamento legal e viola o princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP.
Conclui-se, assim, que as correções efetuadas pela AT, no montante de € 61.599,55, devem ser anuladas, nos termos do artigo 163.º do CPA.
ii) da possibilidade de imputação ao exercício de 2020 de gastos respeitantes a exercícios anteriores
A Requerente contesta a correcção efetuada pela AT no montante de € 30.559,55, relativa a encargos de 2018 e 2019 que foram contabilizados em 2020, por entender que esses custos, embora respeitantes a exercícios anteriores, foram reconhecidos tardiamente por mero erro contabilístico, sem qualquer intuito de manipulação de resultados ou de obtenção de vantagem fiscal indevida. Sustenta que tal erro não causou prejuízo ao Estado, antes lhe foi favorável, uma vez que nos exercícios de 2018 e 2019 a sociedade suportou imposto superior ao devido por não ter deduzido atempadamente esses gastos. Defende, assim, que o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC, não é absoluto e deve ser interpretado à luz do princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, de modo a evitar resultados desproporcionados e injustos. A desconsideração dos custos pela AT, sem proceder à correspondente correção nos exercícios em que deveriam ter sido reconhecidos, viola, no seu entender, os princípios da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, conduzindo a uma tributação superior à que resulta da capacidade contributiva real. A Requerente invoca ainda jurisprudência do STA, designadamente os acórdãos de 25/06/2008, Proc n.º 0291/08; 05/02/2003, Proc n.º 01648/02; de 10/04/2024, Proc n.º 01382/14.2BEBRG 0528/17, nos quais se admite que o princípio da justiça prevaleça sobre o da especialização dos exercícios quando não exista dolo nem prejuízo para o erário público, concluindo que a correção em causa é ilegal e deve ser anulada.
Por seu turno, a Requerida sustenta que a desconsideração do montante de € 30.559,55 é inteiramente legítima, uma vez que os encargos em causa se reportam aos exercícios de 2018 e 2019 e não eram imprevisíveis nem manifestamente desconhecidos à data do encerramento desses períodos. Fundamenta a sua posição nos nºs 1 e 2 do artigo 18.º do CIRC, segundo o qual os rendimentos e os gastos devem ser imputados ao exercício a que respeitam, e sublinha que o princípio da especialização dos exercícios, conjugado com o princípio do acréscimo previsto no artigo 17.º do mesmo diploma, visa assegurar que a contabilidade reflete fielmente a realidade económica de cada período. Alega que o cumprimento rigoroso deste princípio garante a fiabilidade e a comparabilidade das demonstrações financeiras e constitui expressão do princípio da tributação do rendimento real, previsto no n.º 2 do artigo 104.º da CRP, e da presunção de veracidade da contabilidade organizada, consagrada no artigo 75.º da LGT. A AT refere ainda o Parecer Técnico n.º 27652 da Ordem dos Contabilistas Certificados, de Julho de 2023, segundo o qual os erros contabilísticos relativos a exercícios anteriores devem ser corrigidos através da conta 56 - Resultados Transitados, e não como gastos do exercício corrente, por não poderem afetar o resultado tributável do período em que são detetados. Assim, mesmo tratando-se de um lapso não intencional, a imputação dos gastos a 2020 viola o princípio da especialização e a normalização contabilística, não podendo ser aceite fiscalmente. Entende a Requerida que a sua atuação não infringe o princípio da justiça, mas antes assegura a verdade material e o correto apuramento do rendimento real, concluindo pela total improcedência da pretensão da Requerente.
Face à exposição das partes e aos elementos documentais constantes dos autos, a questão controvertida resume-se em determinar se é admissível a imputação, ao exercício de 2020, de gastos respeitantes a exercícios anteriores (2018-2019), quando a sua não contabilização atempada resultou de mero erro contabilístico, e se, nesse contexto, o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC, deve ceder perante o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT.
Analise-se:
Como ponto prévio, note-se que a própria AT não coloca em causa que tenha ocorrido um erro contabilístico por parte da Requerente, sendo certo que a omissão da contabilização não foi intencional. Assim, a questão que se coloca é a de saber se o princípio da especialização dos exercícios é de aplicação absolutamente rígida ou se admite, em situações excecionais, alguma derrogação.
Vejamos:
Dispõe o n.º 1 do artigo 18.º do CIRC que “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”.
O n.º 2 do mesmo preceito acrescenta que “As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.”.
Acresce que, a jurisprudência do STA tem vindo a afirmar de forma reiterada que o princípio da especialização dos exercícios não é absoluto, devendo ser temperado em função de exigências de justiça material.
Na realidade, o princípio da especialização dos exercícios visa assegurar a correta correspondência entre os rendimentos e os encargos de cada exercício, de modo a garantir que o resultado tributável reflete a efectiva capacidade contributiva do sujeito passivo. Todavia, a sua aplicação deve articular-se com outros princípios estruturantes do direito tributário, designadamente o princípio da justiça (artigo 266.º, n.º 2 da CRP) e o princípio da proporcionalidade (artigo 55.º da LGT), que impõem que a actuação da AT não produza efeitos desproporcionados ou manifestamente injustos quando não existe qualquer prejuízo para o erário público.
Assim, no Acórdão de 25/06/2008, Proc. n.º 0291/08, o STA considerou expressamente que “Não põe em causa o princípio da especialização a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios. Tal postulado é exigido pelo princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT.”
Idêntico entendimento foi reafirmado no Acórdão de 19/11/2008, Proc. n.º 325/08, em que o STA entendeu que, quando o contribuinte incorre em erros na aplicação do princípio da especialização e desses erros resulta prejuízo para o próprio e não para o Estado, não há lugar à aplicação de sanções nem à desconsideração dos custos, “por imperativo do princípio da justiça”.
Mais recentemente, o Acórdãos do STA de 7/09/2022, Proc. n.º 304/15 e de 21/09/2022, Proc. n.º 0352/16.0BESNT, confirmaram esta linha jurisprudencial, sublinhando que o princípio da especialização deve ser aplicado de modo conforme à justiça e à tributação do rendimento real, evitando soluções que conduzam a uma tributação meramente formal e alheia à realidade económica.
Na mesma senda, também a jurisprudência arbitral tem vindo a seguir esta orientação.
Senão vejamos,
A Decisão Arbitral n.º 591/2017-T de 11/10/2018 salienta que “Como se afirma no acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, é de admitir a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, como é o caso em que está prestes a acabar ou iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir prejuízos de determinado exercício ou retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributários.”
De igual modo, a Decisão Arbitral n.º 414/2018-T de 06/09/2019 reiterou que o princípio da especialização não se pode sobrepor à finalidade essencial da tributação pelo rendimento real, especialmente quando o erro é meramente técnico e não resulta de qualquer propósito de manipulação contabilística.
Na Decisão Arbitral n.º 874/2019-T de 11/09/2020, o Tribunal afirmou que “No entanto, não se vê motivo para interpretar esse princípio em sentido estritamente literal quando da imputação do proveito ou custo a um exercício diverso daquele a que respeitava não resultar prejuízo para a Fazenda Nacional e a correcção poder vir a traduzir-se num agravamento fiscal do contribuinte.”
Mais recentemente, a Decisão Arbitral n.º 1039/2024-T de 29/07/2025 reafirmou o entendimento constante do acórdão do STA de 25/06/2008, Proc. n.º 0291/08, o STA, no qual o artigo 18.º do CIRC deve ser interpretado de modo conforme ao princípio da justiça, permitindo a imputação de custos de exercícios anteriores quando se demonstre que o erro foi involuntário e que a sua correção não causa prejuízo à Fazenda Pública.
No caso vertente, a própria AT reconhece que a Requerente incorreu num erro contabilístico na imputação de determinados encargos de 2018 e 2019 ao exercício de 2020, sem qualquer indício de omissão dolosa ou intencional.
Acresce que, resulta dos elementos juntos aos autos que não houve qualquer prejuízo fiscal para o Estado, antes um benefício, pois nos exercícios anteriores os custos não foram deduzidos e o imposto pago foi superior ao devido.
Nestes termos, impor ao sujeito passivo a desconsideração dos custos em 2020, sem proceder à correspondente correção nos exercícios de 2018-2019, conduziria a uma dupla tributação económica e a uma violação do princípio da capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2 da CRP), traduzindo-se num resultado manifestamente injusto e desproporcional.
A posição da AT, ao aplicar de forma rígida o artigo 18.º do CIRC, sem atender à natureza não intencional do erro nem à ausência de prejuízo para o erário público, colide assim com o princípio da justiça consagrado no n.º 2 do artigo 266.º e com o princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real, previsto no n.º 2 do artigo 104.º, ambos da CRP.
Com efeito, o princípio da justiça impõe que a Administração Tributária actue de forma equitativa e proporcional, evitando soluções que conduzam a uma tributação materialmente injusta ou dissociada do rendimento real do contribuinte.
Assim, à luz da jurisprudência consolidada do STA e do CAAD, entendimento ao qual se adere, deve concluir-se que o princípio da especialização cede perante o princípio da justiça sempre que:
(i) o erro não seja intencional;
(ii) não resulte manipulação de resultados;
(iii) não ocorra prejuízo para o Estado; e
(iv) a desconsideração dos custos implique tributação materialmente injusta.
Sucede que, estas condições encontram-se plenamente verificadas no caso em análise.
Embora a imputação de gastos respeitantes a exercícios anteriores deva revestir carácter excepcional, é de admitir a sua aceitação quando a omissão de contabilização oportuna resulte de erro ou lapso não intencional, como foi o caso dos autos. Deste modo, a justiça tributária impõe que o contribuinte não seja duplamente onerado pelo mesmo rendimento, evitando-se assim um enriquecimento indevido do Estado.
Face ao exposto, entende-se que a imputação ao exercício de 2020 de gastos respeitantes a exercícios anteriores, resultante de mero erro contabilístico, não viola o artigo 18.º do CIRC, desde que não haja intenção de manipulação de resultados e não se verifique prejuízo para o erário público.
Em consequência, a correção efetuada pela AT no montante de €30.559,55 mostra-se indevida, porquanto ofende os princípios da justiça e da tributação pelo rendimento real, devendo ser anulada nos termos do artigo 163.º do CPA.
iii) Da retenção na fonte sobre dividendos à sociedade-mãe suíça
A questão controvertida consiste em determinar se os dividendos distribuídos em 2020 pela Requerente à sua accionista única, C... S.A., residente na Confederação Suíça, estão ou não sujeitos a retenção na fonte de IRC, ou se beneficiam da isenção prevista nos artigos 14.º e 98.º do CIRC, à luz do Acordo CE–Suíça de 29/12/2004 e da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Suíça.
A AT entendeu que não se verificavam os pressupostos do n,º 3 do artigo 14.º do CIRC, por não estar demonstrado o cumprimento integral das condições cumulativas: (i) sujeição da sociedade-mãe suíça a imposto de natureza idêntica ao IRC, à taxa mínima equivalente a 60% da taxa portuguesa; e (ii) detenção ininterrupta da participação durante dois anos. Consequentemente, considerou aplicável a taxa reduzida de 5%, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º da CDT Portugal–Suíça.
Analise-se:
O n.º 3 do artigo 14.º do CIRC consagra a isenção de retenção na fonte sobre lucros distribuídos por sociedades residentes a entidades-mãe não residentes, desde que estas estejam sujeitas e não isentas de imposto sobre o rendimento e detenham, direta e ininterruptamente, uma participação mínima de 10% durante dois anos. O n.º 8 do mesmo artigo estende esse regime a sociedades residentes noutros Estados com os quais a União Europeia tenha celebrado acordos que concedam tratamento equivalente ao previsto na Diretiva 2011/96/EU, o que é o caso da Confederação Suíça, nos termos do Acordo CE–Suíça de 29/12/2004.
No Acórdão do STA de 14/05/2014, proc. n.º 01458/13, foi entendido que a isenção prevista na Diretiva-Mãe-Filhas não pode ser afastada por meros incumprimentos formais, devendo ser reconhecida desde que, à data da decisão, os requisitos materiais estejam preenchidos, ainda que o período de detenção de dois anos se complete posteriormente. A decisão enfatizou que a retenção na fonte tem natureza provisória e não definitiva, sendo a tributação indevida quando o requisito temporal venha a ser satisfeito.
Por seu turno, o Acórdão do STA de 07/04/2022, proc. n.º 01267/15.5BELRA, reafirmou esta linha jurisprudencial, sublinhando que “a Diretiva 2011/96/UE, tal como transposta para o direito interno, visa eliminar a dupla tributação económica dos lucros distribuídos entre sociedades do mesmo grupo, não podendo o benefício da isenção ser negado com fundamento em meras irregularidades procedimentais”.
No que tange a Directiva Mães-Filhas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado que, verificado o requisito temporal à data da ação de inspecção, deve ser reconhecido o direito à isenção de retenção na fonte, desde que se encontrem preenchidos os restantes pressupostos legais (cf. Acórdão de 07/04/2022, proc. n.º 01267/15.5BELRA).
Ainda que a Confederação Suíça não seja Estado-Membro da União Europeia, o Acordo CE-Suíça de 29/12/2004, aprovado pela Decisão 2004/911/CE, prevê expressamente um regime equivalente à Diretiva Mães-Filhas (Diretiva 2011/96/UE), impondo a isenção de retenção na fonte quando a sociedade-mãe suíça detenha, de forma direta e ininterrupta, pelo menos 25% do capital da filial estabelecida num Estado-Membro, durante um período mínimo de dois anos.
Assim, deve, por conseguinte, distinguir-se entre requisitos materiais e requisitos formais. Os primeiros - residência, sujeição a imposto, percentagem e duração da participação, têm natureza constitutiva da isenção. Os segundos - apresentação de certificado de residência e pedido de dispensa ao abrigo do artigo 98.º do CIRC, são meramente instrumentais e não podem, só por si, determinar a perda do benefício, sob pena de violação dos princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva (artigos 55.º da LGT e 104.º, n.º 2, da CRP).
No caso sub judice, resulta documentalmente comprovado que a C... S.A. é residente fiscal na Suíça, sujeita a imposto sobre o rendimento, detendo 100% do capital da Requerente desde 15/11/2019, e que os dividendos foram distribuídos em 21/12/2020. Em qualquer dos casos, à data da inspecção tributária ocorrida em 2024, o requisito de dois anos já se encontrava cumprido, devendo, deste modo, aplicar-se o entendimento consolidado de que o decurso posterior do prazo não obsta ao reconhecimento da isenção.
Assim, a retenção na fonte operada pela AT à taxa de 5% ao abrigo da CDT Portugal–Suíça carece de fundamento legal, porquanto a situação preenche os pressupostos substantivos do n.º 3 e 8 do artigo 14.ºdo CIRC. A CDT tem aplicação residual, apenas quando não exista isenção plena ao abrigo do direito interno ou de acordos especiais da União.
Assim, não se identificando fundamentos relevantes que justifiquem afastar o entendimento consolidado pelo STA, conclui-se pela ilegalidade da correção efetuada e, consequentemente, pela anulação da retenção na fonte aplicada aos dividendos pagos à acionista suíça.
Deste modo, a recusa da AT em aplicar a isenção viola, além disso, o princípio da tributação pelo rendimento real e o princípio da proporcionalidade, consagrados nos n.º 2 do artigo 104.º e n.º 2 do artigo 266.º da CRP.
Nestes termos, conclui-se que os dividendos distribuídos à sociedade-mãe residente na Confederação Suíça beneficiam da isenção de retenção na fonte prevista no n.º 8 do artigo 14.º do CIRC, devendo ser anulada a liquidação adicional de IRC, nos termos do artigo 163.º do CPA, e reconhecido o direito da Requerente ao reembolso do imposto indevidamente retido.
IV.2 – Da restituição da quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios
A Requerente formula pedido de restituição da quantia arrecadada pela AT, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso sub judice, dada a anulação da liquidação de IRC impugnada, há que reconhecer o direito ao reembolso do montante pago em excesso, por força dos citados arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, de modo a restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da anulação ora decretada não tivesse sido praticado.
Quanto aos juros indemnizatórios, dado que a Requerida efetuou a liquidação impugnada por sua iniciativa com a ilegalidade verificada, é-lhe imputável tal situação, pelo que, nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT, cabe reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento da liquidação relativa ao ano de 2020 até integral reembolso da quantia paga, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, da LGT.
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente, conforme pedido:
a) Declarar ilegal e, anular as correções em sede de IRC decorrentes do procedimento de inspecção tributária que antecedeu os presentes autos, no montante de € 63.509,55 (pontos IV.10.1. e IV.10.4. do relatório de inspeção), respeitantes à desconsideração dos encargos com realizações de utilidade social, com fundamento na violação do artigo 23.º, do CIRC, e, em consequência, determine a anulação parcial das liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios n.ºs 2024 ... e 2024...;
b) Declarar ilegal e, anular as correções em sede de IRC decorrentes do procedimento de inspecção tributária que antecedeu os presentes autos, no montante de € 30.559,55 (ponto IV.10.2 do relatório de inspecção), e, em consequência, determine a anulação parcial das liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios n.ºs 2024 ... e 2024...;
c) Declarar ilegal e, anular as correções em sede de IRC decorrentes do procedimento de inspecção tributária que antecedeu os presentes autos, no montante de € 43.409,60, correspondentes à retenção na fonte alegadamente devida sobre os dividendos distribuídos em 2020 pela Requerente (ponto IV.13 do relatório de inspeção tributária), e, em consequência, determine a anulação da liquidação adicional de IRC (por retenção na fonte) e juros compensatórios, com os n.ºs 2024 ... e 2024...;
d) Condenar a AT no reembolso à Requerente dos montantes indevidamente liquidados e pagos;
e) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre os mencionados montantes indevidamente pagos, contados desde a data do pagamento até ao integral reembolso e
f) Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais atento o seu decaimento.
VII. VALOR DO PROCESSO
Tendo em consideração o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº. 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 73.403,08 (setenta e três mil quatrocentos e três euros e oito cêntimo).
VIII. CUSTAS
Custas no montante de € 2.448 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
· Notifique-se.
CAAD, 12 de Novembro de 2025
Arbitro Presidente,
(Juiz José Poças Falcão)
Arbitro-Adjunto
(Dr. Óscar Barros)
Arbitro-Adjunto (Relator)
(Dr. João Santos Pinto)