DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
I – A revogação parcial do ato tributário pela AT tornou inútil a continuação do processo quanto à parte revogada, dado que, no momento da decisão, essa parte já não subsistia na ordem jurídica;
II – A parcial inutilidade superveniente da lide constatada nos autos é da responsabilidade da Requerida, na medida em que, não só não revogou parcialmente o ato tributário de liquidação sindicado antes da constituição do tribunal arbitral e nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 13º do RJAT; como só veio a revoga-lo, em parte, posteriormente, constituindo-se aquela, portanto, como responsável pelo pagamento das custas em função da parte revogada na pendência do processo arbitral;
III – Correspondendo o ano de 2023 ao primeiro ano de atividade profissional da Requerente em território português, estão reunidos os pressupostos legais previstos no artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS, impondo-se a aplicação da redução de 50% ao coeficiente de 0,75 aplicável aos rendimentos da Categoria B no Regime simplificado, com a consequente anulação parcial do ato tributário sindicado e o apuramento do imposto devido com base naquele coeficiente reduzido.
I. RELATÓRIO:
1. A..., contribuinte fiscal n.º..., com morada na Rua ..., n.º ..., ...-... LISBOA, apresentou, em 31.5.2023, pelas 20:51 horas, um pedido de pronúncia arbitral, invocando o regime previsto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º e alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, de ora em diante apenas designado por RJAT) e considerando a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à sua jurisdição por força do disposto na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.
3. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 05.06.2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.
5. Em conformidade com o estatuído na alínea c) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT, na redação que lhe foi introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26.06.2025 para apreciar e decidir o objeto do processo.
6. Por despacho de 20.06.2025 e nos termos e em conformidade com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 17.º do RJAT, foi o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária notificado para apresentar Resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando-se ali que deveria ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da Resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do CPPT.
7. A Requerida não apresentou Resposta nem mesmo juntou o processo instrutor.
8. Em 17.09.2025, a Requerida apresentou requerimento dando conta de que o ato tributário impugnado havia sido objeto de revogação por despacho de 13.07.2025 da Exma. Senhora Subdiretora-geral para os impostos sobre o rendimento, juntando ali como Doc. n.º 1 a informação que está a ancorar tal decisão de revogação e ainda o despacho de revogação que sobre ela recaiu. Considerando a Requerida que a AT revogou o ato sindicado, sustenta que os autos ficaram esvaziados de conteúdo e desprovidos de utilidade, na medida em que, assim, se encontrava satisfeita a pretensão material da Requerente. Peticionavam, a final, fosse declarada a extinção do processo arbitral por inutilidade superveniente da lide, em conformidade com o disposto na alínea c) do artigo 277.º do CPC, aqui aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
9. Em 18.09.2025, foi proferido e inserido no Sistema de Gestão Processual do CAAD (doravante SGP) o seguinte despacho: “A Requerida, por requerimento apresentado non SGP do CAAD em 17.09.2025, já após a constituição do tribunal arbitral, veio informar o tribunal de que por despacho de 13.07.2025 da Exmª Senhora Subdiretora-geral, foi revogado parcialmente o ato objeto de impugnação, conforme consta da Informação n.º 304/2025 da DSIRS. Nessa conformidade, DECIDE-SE Interpelar a Requerente (que certamente já conhece o teor da informação n.º 304/2025) para, em conformidade com o disposto na alínea a) do art.º 16.º do RJAT, se pronunciar sobre o requerimento apresentado pela Requerida e, atenta a referida revogação meramente parcial, se mantém interesse no prosseguimento dos autos no que tange à parte dos atos sindicados não revogada. Prazo:5 (cinco) dias. Notifique-se. Lisboa, 18 de Setembro de 2025. O árbitro, Ass. (...).”
10. Em 19.09.2025, a Requerente deu cumprimento do despacho de 18.09.2025, apresentando requerimento superveniente onde dizia: “1. A Requerida veio aos autos comunicar a revogação parcial do ato tributário sindicado, considerando a redução do coeficiente em 25%, por se tratar, segundo a Autoridade Tributária, do segundo ano de atividade. 2. Alega que “tendo a AT procedido à revogação do ato, os presentes autos ficam esvaziados de conteúdo e desprovidos de utilidade pois encontra-se satisfeita a pretensão material do Requerente”, peticionando, a final, a extinção do processo arbitral por inutilidade superveniente da lide. 3. Ora, conforme bem compreendeu o Tribunal Arbitral no seu douto despacho, trata-se somente de uma revogação meramente parcial, sendo que o pedido principal da Requerente nestes autos é o de redução do coeficiente em 50%, com base no facto de o ano de 2023 se tratar do primeiro ano de atividade. 4. O reconhecimento da redução do coeficiente em 25% (segundo ano de atividade) corresponde ao pedido meramente subsidiário formulado pela Requerente. 5. Nesse sentido, e respondendo ao teor do despacho do Tribunal Arbitral, a Requerente manifesta desde já o interesse no prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido principal no que tange à parte não revogada do ato tributário sindicado, pois, contrariamente ao que defende a Requerida, não existe uma inutilidade total da lide motivadora da extinção da instância. (...).” Peticiona seja determinado o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido principal e da legalidade do ato tributário sindicado, na parte não revogada, tudo com as devidas e legais consequências.
11. Em 5 de novembro de 2025, foi proferido o seguinte despacho: “[A]o abrigo dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 16º, alíneas c) e e), 19º,nº 1 e 29º, nº 2 do RJAT), e do princípio da proibição de atos inúteis (art.º 130º do Código de Processo Civil, ex vi da alínea e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT), decide-se: i) Dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.° do RJAT; ii) Dispensar igualmente a apresentação de alegações finais. A decisão final será proferida e notificada às partes até ao termo do prazo fixado no artigo 21º, nº 1 do RJAT, devendo a Requerente, no prazo de dez dias, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.° do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD (Cf. art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos processos de Arbitragem Tributária). Notifique-se. (...).”
12. Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:
I.A) Alegações da Requerente:
A) A Requerente, de nacionalidade australiana, passou a residir em Portugal em novembro de 2022 e, nesse mesmo ano, requereu e obteve o estatuto de Residente Não Habitual (RNH), com efeitos retroativos a 2022.
B) Iniciou a sua atividade profissional por conta própria em Portugal, tendo submetido a respetiva declaração de início de atividade, com efeitos reportados a 01.01.2023, enquadrando-se no regime simplificado de tributação e declarando como atividade principal a de “Designer”, classificada como de elevado valor acrescentado, já que, nos termos da Portaria n.º 230/2019, “Designer” integra a tabela de atividades de elevado valor acrescentado para efeitos do disposto no n.º 10 do artigo 72.º e no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, na redação à data dos factos, código de profissão 2166.0, grupo base 2166, sub-grupo 216, sub-grande grupo 21, grande grupo 2, nos termos da Classificação Portuguesa de Profissões.
C) No entanto, por lapso, entregou uma declaração de rendimentos relativa a 2022 com o anexo B, embora este estivesse preenchido “a zeros”, dado que não auferiu rendimentos nesse ano.
D) Esta declaração originou uma liquidação com valor nulo.
E) No dia 11.06.2024, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS referente a 2023, declarando rendimentos da categoria B no valor de €147.387,55, tendo preenchido o Anexo J, já que os rendimentos auferidos eram provenientes de entidades sediadas nos EUA. Tais rendimentos foram pagos maioritariamente pela empresa E... Inc, com sede nos EUA, no âmbito do contrato de prestação de serviços entre ambas celebrado, assim como pelas empresas B... Inc, C...Ltd e D... LLC, todas com sede nos EUA.
F) A liquidação emitida pela Autoridade Tributária (n.º 2024 ..., relativa a IRS de 2023) aplicou o coeficiente de 0,75 do regime simplificado, sem considerar a redução de 50% prevista para o primeiro ano de atividade, donde resultou num imposto a pagar de 22.741,05 €.
G) A Requerente pagou esse montante, mas apresentou reclamação graciosa (à qual foi atribuído o n.º ...2024...), alegando que 2023 foi o seu primeiro ano efetivo de atividade e, por isso, deveria beneficiar da redução do coeficiente para 0,375, em conformidade com o disposto no artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS.
H) A reclamação graciosa foi indeferida com base no argumento de que a Requerente já teria exercido atividade em 2022, por ter entregue o anexo B nesse ano.
I) Inconformada, interpôs recurso hierárquico, esclarecendo que o anexo B entregue em 2022 estava preenchido “a zeros” e que não obteve qualquer rendimento ou atividade nesse ano.
J) Apesar disso, a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico manteve o indeferimento, agora com uma fundamentação distinta. No projeto de decisão de indeferimento do recurso hierárquico diz-se: “(...) não tendo a recorrente apresentado quaisquer documentos, nomeadamente, de rendimentos, o contrato de arrendamento e faturas/recibos quer às rendas, quer a quaisquer despesas que possam permitir o cálculo da redução do coeficiente a aplicar na determinação do rendimento tributável, não é possível proceder ao alegado.” (cf. projeto de decisão do recurso hierárquico que integra o processo administrativo instrutor). Mais se refere que “(...) Não existindo qualquer rendimento pago, nem declarações de IVA em falta ou outras que contrariem o afirmado pela recorrente, constata-se que o ano de 2023 poderia, eventualmente, corresponder ao primeiro ano em que a recorrente se encontra coletada. No entanto, consultada a aplicação da AT referente aos recibos verdes apenas figuram rendimentos no montante de € 82.425,51.”
K) No dia 17.01.2025, a Requerente foi notificada da decisão final que recaiu sobre o recurso hierárquico e que convolou em definitiva a proferida no anterior projeto de decisão de indeferimento.
L) E partindo dos fundamentos que estribaram a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, sustenta a Requerente que a AT não pode alterar os fundamentos do ato tributário após a sua emissão e que a validade do mesmo deve ser apreciada com base na fundamentação contemporânea à sua prática.
M) Além disso, argumenta que a AT não suscitou qualquer dúvida quanto aos valores declarados no momento da liquidação, nem instaurou qualquer procedimento de divergência ou inspeção, pelo que não podia exigir prova adicional.
N) A Requerente contesta esta nova fundamentação, alegando que constitui uma fundamentação a posteriori, inadmissível à luz do artigo 77.º da Lei Geral Tributária e da jurisprudência consolidada dos tribunais administrativos.
O) A Requerente contesta veementemente a mudança de fundamentação entre a decisão da reclamação graciosa e a decisão do recurso hierárquico.
P) Inicialmente, a AT justificou o indeferimento com base no facto de a Requerente ter entregue uma declaração Modelo 3 de IRS, com preenchimento do anexo B, em 2022, entendendo que esse seria o seu primeiro ano de atividade. No entanto, no recurso hierárquico, a AT alterou a sua posição, alegando a ausência de prova documental dos rendimentos e despesas de 2023.
Q) A Requerente sustenta que esta nova fundamentação é inadmissível, por não ser contemporânea ao ato tributário contestado, violando os princípios consagrados nos artigos 36.º do CPPT e 77.º da LGT, bem como a jurisprudência reiterada dos tribunais administrativos e fiscais. Cita, entre outros, acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul e do Supremo Tribunal Administrativo, que reforçam que a fundamentação de um ato administrativo deve ser expressa e contemporânea, não podendo ser posteriormente alterada para justificar a legalidade do ato.
R) Assim, sustenta a Requerente que qualquer tentativa de “corrigir” ou “complementar” a fundamentação original configura uma violação do direito à defesa e atenta contra a segurança jurídica do contribuinte.
S) A Requerente invoca ainda a presunção de veracidade das declarações fiscais, prevista no artigo 75.º da LGT e o ónus da prova que recai sobre a AT nos termos do artigo 74.º da mesma lei.
T) Defende que, não tendo a AT demonstrado a falsidade ou inexatidão dos elementos declarados, estes devem ser considerados verdadeiros.
U) Sublinha a Requerente que a AT aceitou as despesas declaradas e que a única divergência reside na não aplicação da redução do coeficiente, o que configura uma incorreta aplicação das regras de liquidação do regime simplificado.
V) Argumenta ainda que, tendo cumprido todas as suas obrigações declarativas e não tendo a AT suscitado qualquer dúvida ou instaurado procedimento de divergência ou inspeção, não lhe pode ser exigida a apresentação de prova adicional. Sublinha que a AT aceitou os valores declarados e emitiu a liquidação com base nesses elementos, não tendo procedido a qualquer correção. Assim, a alegação genérica de falta de prova não tem fundamento, pois a AT nunca demonstrou a falsidade ou inexatidão dos dados declarados. A Requerente reforça que, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova recai sobre a administração tributária sempre que pretenda afastar-se dos elementos declarados pelo contribuinte.
W) A Requerente sustenta que, mesmo que se admitisse a tese da Autoridade Tributária de que subsistiriam dúvidas quanto à veracidade ou exatidão dos elementos declarados, tal dúvida deveria ter sido resolvida em seu benefício, nos termos do princípio in dubio contra fiscum. Invocando o artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a Requerente argumenta que, perante uma dúvida fundada sobre a quantificação do facto tributário, a AT estava legalmente vinculada a reconhecer oficiosamente a ilegalidade da liquidação e a corrigi-la, mesmo sem necessidade de reclamação graciosa.
X) A dúvida em causa prende-se com a correta aplicação do coeficiente de 0,75 no âmbito do regime simplificado, nomeadamente se deveria ter sido reduzido em 50% por se tratar do primeiro ano de atividade profissional em Portugal. A própria AT, na decisão do recurso hierárquico, admite que 2023 “poderia, eventualmente, corresponder ao primeiro ano” em que a Requerente se encontra coletada, o que revela uma incerteza objetiva quanto à qualificação do ano em causa. Essa incerteza, segundo a Requerente, é suficiente para configurar uma dúvida fundada, que deveria ter sido resolvida a seu favor, anulando-se a liquidação e aplicando-se o coeficiente reduzido.
Y) A Requerente reforça ainda que a AT não só tinha acesso a todos os elementos relevantes no processo administrativo, como também reconheceu que não existiam rendimentos em 2022 nem declarações que contradissessem essa realidade. Assim, não havia qualquer impedimento à aplicação da redução do coeficiente e a manutenção da liquidação nos moldes originais configura uma violação do princípio da legalidade e da justiça tributária. A AT deveria ter atuado com diligência e boa fé, reconhecendo a dúvida e corrigindo o ato tributário, em conformidade com o artigo 100.º do CPPT.
Z) A Requerente apresenta um argumento subsidiário, partindo da hipótese (não concedendo, mas admitindo-a por mera cautela e dever de patrocínio) de que o ano de 2022 teria sido o seu primeiro ano de atividade profissional em Portugal. Mesmo nesse cenário, defende que o ano de 2023 corresponderia ao segundo ano de atividade, o que, nos termos do artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS, implicaria a aplicação de uma redução de 25% ao coeficiente de 0,75 utilizado no regime simplificado.
AA) Assim, ainda que se aceitasse a tese da Autoridade Tributária de que a entrega do anexo B em 2022 configuraria o início de atividade, o enquadramento legal exigiria que, em 2023, o coeficiente aplicável fosse de 0,5625 (ou seja, 75% menos 25%), e não o coeficiente integral de 0,75 que foi efetivamente utilizado na liquidação. A Requerente sublinha que esta redução está expressamente prevista na lei para o segundo ano de atividade, desde que o sujeito passivo não aufira rendimentos das categorias A ou H — condição que se verifica no seu caso.
BB) No entendimento da Requerente, este argumento reforça a ilegalidade da liquidação emitida, demonstrando que, mesmo sob a interpretação mais desfavorável à Requerente, o imposto apurado não respeitou os critérios legais de determinação do rendimento tributável.
CC) Por conseguinte, sustenta a Requerente que a liquidação deve ser anulada e substituída por uma nova que aplique corretamente o coeficiente reduzido, seja de 50% ou de 25%, conforme se reconheça 2023 como primeiro ou segundo ano de atividade.
DD) A Requerente requer a anulação da liquidação de IRS de 2023 e a sua substituição por uma nova liquidação que aplique corretamente o coeficiente reduzido de 0,375, resultando num imposto a pagar de €11.686,98. Reitera que a AT deve pautar a sua atuação pelos princípios da boa fé, justiça e imparcialidade, abstendo-se de litigância desnecessária e respeitando as legítimas expectativas dos contribuintes
EE) Em jeito de conclusão, a Requerente defende que a liquidação de IRS impugnada é ilegal não só por violar as regras materiais de aplicação do regime simplificado, mas também por padecer de vícios formais e procedimentais graves, nomeadamente a utilização de fundamentação a posteriori e a inversão indevida do ónus da prova, em afronta aos princípios da legalidade, boa fé e segurança jurídica.
FF) A Requerente peticiona como segue: “[T]ERMOS EM QUE, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, ser determinada a anulação dos atos tributários, incluindo a liquidação de IRS do ano de 2023 acima identificada, nos termos peticionados, com as necessárias consequências legais, nomeadamente, a devolução do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, tudo com as demais consequências legais.”
13. A Requerida apresentou requerimento, no qual alega:
I.B) Alegações da Requerida:
A) A Requerida, veio aos autos requerer a extinção da instância arbitral por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT.
B) Fundamenta esse pedido no facto de ter sido proferido, em 13 de julho de 2025, despacho de revogação do ato tributário impugnado (a liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023) por parte da Exma. Senhora Subdiretora-Geral para os Impostos sobre o Rendimento.
C) Alega que, com essa revogação, a pretensão material da Requerente teria sido satisfeita, tornando-se inútil a continuação do processo arbitral.
D) O documento anexo ao requerimento revela que a revogação do ato não foi integral, mas apenas meramente parcial e que a AT não acolheu a totalidade da pretensão da Requerente.
E) Com efeito, no documento anexo ao requerimento, a AT concluiu que o ano de 2022 deve ser considerado como o primeiro ano de atividade da Requerente, com base na existência de um contrato de prestação de serviços com início em outubro de 2022 e na entrega da declaração Modelo 3 de IRS, com preenchimento do anexo B nesse mesmo ano, ainda que sem rendimentos declarados. Com base nessa interpretação, propõe-se a aplicação da redução de 25% ao coeficiente de 0,75, nos termos do artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS, por se considerar que 2023 corresponde ao segundo ano de atividade da Requerente.
F) Assim, a AT reconhece que a liquidação de IRS de 2023 enferma de vício na parte em que não aplicou a redução de 25% do coeficiente, propondo a sua anulação parcial e a emissão de nova liquidação com base no coeficiente de 0,5625.
G) No entanto, mantém a sua posição quanto à inaplicabilidade da redução de 50%, que constitui precisamente o cerne da pretensão da Requerente.
H) A AT sustenta que a Requerente iniciou a sua atividade ainda em 2022, mesmo sem emissão de recibos nesse ano e que, por isso, não pode beneficiar da redução mais favorável prevista para o primeiro ano de atividade.
I) Importando ainda sublinhar que, apesar de devidamente notificada nos termos do artigo 17.º do RJAT, a Requerida não apresentou resposta ao pedido de pronúncia arbitral dentro do prazo legal e não procedeu à remessa do processo administrativo instrutor, conforme lhe era exigido. Esta omissão processual tem consequências relevantes: por um lado, implicou a preclusão do seu direito de defesa; por outro, permite ao Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 110.º, n.º 5 do CPPT, apesar da falta de contestação não implicar a confissão dos factos articulados pela Requerente, considerar como verdadeiros os factos alegados pela Requerente, desde que devidamente documentados e não infirmados por outros elementos constantes dos autos.
J) Em síntese, a Requerida reconhece parcialmente o erro na liquidação impugnada, mas mantém a divergência quanto ao enquadramento do início da atividade da Requerente, defendendo a aplicação da redução de 25% e não de 50%.
II. THEMA DECIDENDUM:
14. O thema decidendum reporta-se à questão de saber se a revogação parcial do ato tributário impugnado — concretamente, da liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023 — por despacho da Subdiretora-Geral para os Impostos sobre o Rendimento, determina a inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, e, em caso afirmativo, em que medida tal revogação satisfaz a pretensão material da Requerente e justifica a extinção parcial da instância. Em segundo lugar, importa apurar se, na parte não revogada do ato tributário, subsiste ilegalidade por omissão da aplicação da redução de 50% do coeficiente de 0,75, prevista no n.º 10 do artigo 31.º do Código do IRS, por se verificar que o ano de 2023 corresponde ao primeiro ano de atividade profissional da Requerente em território português, sem que esta tenha auferido rendimentos das categorias A ou H, e, em consequência, se deve ser anulada a liquidação na parte remanescente, com apuramento do imposto devido com base no coeficiente reduzido.
Cumpre, então, agora, proferir decisão.
III. SANEAMENTO:
15. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRS de 2023 ora impugnada, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
16. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (Cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
17. A ação é tempestiva, porque apresentada no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
18. Quanto à competência do CAAD para apreciação da (i)legalidade de atos de primeiro, segundo e terceiro grau, considera o tribunal que é atualmente entendimento pacífico tanto na Jurisprudência como na Doutrina que os atos de indeferimento de pretensões dos sujeitos passivos – ou seja, atos de segundo grau - poderão ser arbitráveis junto do Centro de Arbitragem Administrativa, na condição de, eles próprios, terem apreciado a legalidade de um ato de liquidação de imposto - i.e., de um ato de primeiro grau.
19. Naquele sentido, adequado se mostra trazer à colação jurisprudência arbitral (concretamente a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 272/2014-T do CAAD que pode ser lida inhttps://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&listPage=180&id=614 ) e doutrina (Jorge Lopes de Sousa que, no seu “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária” e Carla Castelo Trindade, in “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”), que sustenta que a jurisdição arbitral é competente para arbitrar pretensões relativas à declaração da legalidade de atos de liquidação de tributos - atos de primeiro grau - quando, num ato de segundo grau, a AT se tenha pronunciado relativamente à legalidade de tal ato.
20. Assim sendo, o Tribunal considera-se competente para a apreciação da pretensão da Requerente, em virtude de esta respeitar também à apreciação da legalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito da reclamação graciosa n.º ...2024...despoletada pela Requerente com referência aos atos tributários (de liquidação) de IRS, respeitante ao ano de 2023 e ainda à apreciação da legalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do Recurso hierárquico n.º ...2024..., tendo a AT, nessas mesmas decisões de indeferimento e tal como veremos adiante nos pontos M) e N) do probatório, apreciado a legalidade daquele ato de liquidação.
21. O processo não enferma de nulidades.
22. Não foram identificadas questões que obstassem ao conhecimento do mérito.
IV. DECISÃO:
IV.A) Factos que se consideram provados:
23. Antes de entrarmos na apreciação do mérito das questões submetidas a julgamento, cumpre-nos fixar a matéria factual que é relevante para a respetiva decisão:
A) A Requerente tem nacionalidade australiana e passou a residir em Portugal em novembro de 2022. (Cf. artigos 6º e 7.º do PPA);
B) Em 22.12.2022, requereu a sua inscrição como Residente Não Habitual (RNH), com efeitos a partir do ano de 2022, tendo o pedido sido deferido. (Cf. artigo 8º do PPA);
C) A Requerente submeteu declaração de início de atividade, fazendo reportar os seus efeitos a 01.01.2023, enquadrando-se no regime simplificado, com o código CIRS principal 1336 (“Designers”) e código secundário 1519 (“Outros prestadores de serviços”). (Cf. artigo 9º do PPA);
D) No ano de 2022, a Requerente não auferiu quaisquer rendimentos da categoria B, tendo entregue, por lapso, a declaração Modelo 3 de IRS, com anexo B preenchido a zeros, o que originou uma liquidação com valor nulo. (Cf. artigo 10º do PPA);
E) Em julho de 2023, foi emitida a nota de liquidação n.º 2023..., referente ao ano de 2022, com valor nulo. (Cf. artigo 21º do PPA);
F) Em 11.06.2024, a Requerente entregou a declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2023, preenchendo os anexos B e J, e declarando rendimentos da categoria B, no valor de €147.387,55, oriundos do estrangeiro. (Cf. artigo 12º do PPA);
G) Os rendimentos foram pagos maioritariamente pela empresa E... Inc., com sede nos EUA, ao abrigo de contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, bem como pelas empresas B... Inc., C... Ltd. e D... LLC, todas com sede nos EUA. (Cf. artigo 13º do PPA);
H) A Requerente emitiu 25 faturas-recibo com data de prestação de serviços em 2023 e que totalizaram €147.387,55, algumas das quais foram emitidas em janeiro de 2024, mas com referência expressa à data da transação em 2023. (Cf. artigo 24º do PPA e Doc. n.º 3 junto ao PPA);
I) A liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023, foi notificada à Requerente em 26.07.2024, com imposto a pagar de €22.741,05, tendo sido paga em 11.09.2024. (Cf. artigo 14º do PPA e Doc. n.º 2 junto ao PPA);
J) A liquidação aplicou o coeficiente de 0,75 previsto para o regime simplificado, sem aplicar a redução de 50% prevista no artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS. (Cf. artigo 16º do PPA);
K) A liquidação considerou despesas afetas à atividade profissional no montante de €18.943,56, incluindo a dedução específica de €4.104, mas não considerou o valor de €3.164,57 para efeitos do apuramento dos 15%, tendo esse montante sido acrescido à matéria coletável. (Cf. artigos 37.º e 38.º do PPA);
L) A Requerente apresentou o cálculo do rendimento tributável e do imposto a pagar, assumindo a aplicação do coeficiente de 0,75 com redução de 50%, nos termos do artigo 31.º, n.º 10 do CIRS. Com base nos rendimentos declarados para o ano de 2023, apurou um rendimento coletável de €147.387,55 e um imposto a pagar de €11.686,98. (Cf. artigo 40º do PPA)
M) A Requerente apresentou reclamação graciosa em 28.08.2024 (à qual foi atribuído o n.º ...2024...), ao abrigo do artigo 68.º e seguintes do CPPT, que foi indeferida por despacho de 01.10.2024, com fundamento na entrega de declaração com anexo B no ano anterior. (Cf. artigos 17º e 18.º do PPA);
N) A Requerente interpôs recurso hierárquico (ao qual foi atribuído o n.º ...2024...), que foi indeferido com nova fundamentação: ausência de prova dos rendimentos e despesas de 2023. (Cf. artigos 19º, 22.º e 23.º do PPA);
O) A decisão do recurso hierárquico reconheceu que “o ano de 2023 poderia, eventualmente, corresponder ao primeiro ano em que a recorrente se encontra coletada”, mas manteve a liquidação nos moldes originais. (Cf. artigo 22.º do PPA);
P) Em 17.01.2025, a Requerente foi notificada da decisão final do recurso hierárquico. (Cf. artigo 23.º do PPA);
Q) A Requerente juntou ao pedido arbitral nove documentos (Cf. artigo 90.º do PPA e Docs. nºs 1 a 9 juntos ao PPA);
R) A AT foi notificada em 26.06.2025 para apresentar resposta e remeter o processo administrativo instrutor no prazo de 30 dias, nos termos do artigo 17.º do RJAT. (Cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD);
S) A AT não apresentou resposta ao pedido arbitral dentro do prazo legal e não remeteu o processo administrativo instrutor ao Tribunal Arbitral. (Cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD);
T) Em 17.09.2025, a AT apresentou requerimento invocando a inutilidade superveniente da lide, juntando decisão de revogação parcial (despacho datado de 13.07.2025) da Exmª Senhora Subdiretora-geral que recaiu sobre informação n.º 304/2025 da Direção de Serviços o Imposto sobre o rendimento Singular que propunha a revogação parcial do ato tributário sindicado, propondo ainda a aplicação da redução de 25% ao coeficiente de 0,75, por considerar que 2023 foi o segundo ano de atividade. (Cf. Requerimento entrado no Sistema de Gestão Processual do CAAD em 17.09.2025 e Doc. n.º 1 que vinha a coberto de tal requerimento);
U) A AT fundamentou essa posição com base na existência de um contrato com início em outubro de 2022 e na entrega da declaração Modelo 3 de IRS, com preenchimento do anexo B nesse ano, ainda que sem rendimentos declarados. Reconhece que a Requerente não auferiu rendimentos das categorias A ou H em 2023. (Cf. Requerimento entrado no Sistema de Gestão Processual do CAAD em 17.09.2025 e Doc. n.º 1 que vinha a coberto de tal requerimento);
V) Em 15.04.2025, pelas 16:00 horas, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (Cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD);
W) O pedido foi aceite em 17.04.2025, pelas 12:34 horas (Cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD).
IV.B) Factos não provados:
24. Não se provou que a Requerente tenha exercido atividade profissional em sede de categoria B do IRS durante o ano de 2022.
25. Não se provou que a Requerente tenha auferido rendimentos da categoria B em 2022.
26. Não se provou que tenha emitido recibos verdes ou prestado serviços remunerados em 2022.
27. Não se provou que o contrato com a E... tenha sido executado ou gerado rendimentos em 2022.
28. Não se provou que existam elementos que infirmem a presunção de veracidade da declaração Modelo 3 de IRS, de 2022, com o Anexo B preenchido a zeros.
29. Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.
IV.C) Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:
30. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
31. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito. (Cf. art.º 596.º do CPC).
32. A matéria de facto dada como provada resulta da análise dos documentos juntos pela Requerente e referidos no probatório. Estes documentos são coerentes entre si, foram apresentados em tempo útil e não foram contrariados por qualquer elemento probatório da Requerida.
33. A ausência de resposta da AT ao pedido de pronúncia arbitral e a omissão da remessa do processo administrativo instrutor impedem a produção de prova em sentido contrário, sendo aplicável o disposto no artigo 110.º, n.º 5 do CPPT.
34. A AT, apesar de reconhecer parcialmente o vício do ato tributário, não logrou demonstrar que a Requerente exerceu atividade profissional em 2022. A mera existência de um contrato com data de início em outubro de 2022 não é suficiente para comprovar o exercício efetivo de atividade, sobretudo quando não foram emitidos recibos nem auferidos rendimentos nesse ano. A liquidação de IRS de 2022, com valor nulo, reforça essa conclusão.
35. Por outro lado, os elementos relativos ao ano de 2023 demonstram inequivocamente que foi nesse ano que a Requerente iniciou a sua atividade profissional em Portugal, com emissão de recibos e recebimento de rendimentos da categoria B, sem rendimentos das categorias A ou H.
IV.D) Matéria de Direito (fundamentação):
IV.D.1) Inutilidade superveniente da lide meramente parcial:
36. O requerimento da AT entrado no SGP do CAAD em 17.09.2025, ao invocar a revogação do ato tributário impugnado por despacho de 13.07.2025, pretende sustentar a inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT. Com isso, a AT requer a extinção da instância arbitral, alegando que a pretensão da Requerente foi satisfeita por outro meio.
37. Contudo, o conteúdo do Doc. n.º 1 (que acompanha tal requerimento) contradiz essa alegação. O documento revela que, após análise interna, a AT reconheceu que o ano de 2022 deve ser considerado como o primeiro ano de atividade da Requerente, com base na data de início do contrato com a E... (13.10.2022) e na entrega da declaração Modelo 3 de IRS, com preenchimento do Anexo B, ainda que sem valores. Com base nessa interpretação, propõe-se a anulação da liquidação de IRS de 2023 apenas na parte em que não foi aplicada a redução de 25% do coeficiente de 0,75, e não a de 50%, como pretendido pela Requerente.
38. Ora, esta proposta de revogação não satisfaz integralmente a pretensão material da Requerente, que sempre sustentou que o ano de 2023 foi o seu primeiro ano de atividade e que, por isso, lhe deveria ser aplicada a redução de 50% do coeficiente, nos termos do artigo 31.º, n.º 10 do Código do IRS. A AT, ao propor a aplicação da redução de 25%, mantém uma divergência substancial quanto ao enquadramento jurídico e fiscal da situação, o que significa que, na parte não revogada pela AT, subsiste o litígio.
39. Em síntese, apesar da alegada revogação, o requerimento da AT entrado no SGP do CAAD em 17.09.2025 e o conteúdo do Doc. n.º 1 que o acompanhou, demonstram que não houve reconhecimento integral da pretensão da Requerente, mas sim uma tentativa de limitar a correção ao coeficiente de 25%, mantendo-se o desacordo quanto ao momento do início da atividade, i.e., se ele ocorreu em 2022 ou em 2023. Por isso, a inutilidade superveniente da lide é meramente parcial, pelo que, na parte não revogada, o processo arbitral deve prosseguir para apreciação do mérito da pretensão da Requerente, tanto mais que a Requerente manifestou vontade no sentido do prosseguimento dos autos para decisão sobre a parte não revogada do ato tributário sindicado.
40. Os n.ºs 1 e 2 do art.º 13º do RJAT, dizem: “1 – Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º. 2 – Quando o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último ato se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.
41. A Requerida não procedeu à revogação parcial das liquidações sindicadas no prazo previsto no n.º 1 do acima transcrito art.º 13º do RJAT.
42. Assim sendo, resulta meridianamente claro que o regime previsto naquele normativo não tem aqui aplicação.
43. A AT, por despacho de 03.07.2025, revogou parcialmente o ato objeto de impugnação conforme consta da Informação n.º 304/2025 de 11.07.2025 da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento Singular, datada de 11.07.2025 e sobre a qual recaiu o despacho de revogação da Exm.ª Senhora Subdiretora-geral de 13.07.2025 e que se encontrava anexa ao aludido requerimento superveniente junto ao SGP do CAAD em 17.09.2025, i.e., já depois de esgotado o prazo previsto no n.º 1 do art.º 13º do RJAT, donde, depois de decorridos os 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral.
44. Atenta a revogação parcial dos atos tributários de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, tornava-se, assim, inútil o prosseguimento da presente lide no que respeitava à pretensão anulatória do ato tributário sindicado na parte em que ele já havia sido revogado pela Requerida, atendendo a que no momento em que cumpria proferir decisão já tal ato, em parte, se não se mantinha na ordem jurídica, tendo sido revogado antes pela Requerida, sendo que, na parte em que se mantinha, apresentou a Requerente pedido no sentido de que mantinha interesse no prosseguimento da lide.
45. Não obstante, por revogação meramente parcial, os presentes autos perderam, ainda assim, parte do seu objeto.
46. Verificando-se a inutilidade superveniente da lide na parte em que a AT revogou os atos de liquidação aqui sindicados. Ou seja, a impugnação perde utilidade nessa parte, pois o ato administrativo já foi corrigido pela Requerida.
47. Adequado se mostrando trazer aqui à colação a decisão arbitral tirada no Processo n.º 672/2018-T, consultável inhttps://caad.org.pt/tributario/decisoes/view.php?l=MjAxOTA0MjIxMTIzMDEwLlA2NzJfMjAxOFQgLSAyMDE5LTAzLTI1IC0gSlVSSVNQUlVERU5DSUEgLnBkZg%3D%3De onde a dado passo de diz: “(...) Com efeito, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da causa, a solução do litígio deixe de ter interesse e utilidade, o que justifica a extinção da instância (cfr. artigo 277.º, al. e), do Código de Processo Civil). Como referem LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA, RUI PINTO, a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou se encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”. Assim, se, por virtude de factos novos ocorridos na pendência do processo, o escopo visado com a pretensão deduzida em juízo já foi atingido por outro meio, então a decisão a proferir não envolve efeito útil, pelo que ocorre, nesse âmbito, inutilidade superveniente da lide. Decorre da actuação administrativa dada como provada que a pretensão formulada pela Requerente, que tinha como finalidade a declaração de ilegalidade e anulação por este Tribunal do acto sindicado, ficou prejudicada porquanto a supressão desse acto e seus efeitos da ordem jurídica foi conseguida por outra via, depois de iniciada a instância. Na verdade, a prática posterior do acto expresso de revogação da liquidação impugnada (cfr. art.º 79.º, n.º 1 da LGT) implica que a instância atinente à apreciação da legalidade dessas liquidações se extingue por inutilidade superveniente da lide, dado que, por terem sido eliminados os seus efeitos pela revogação anulatória, perde utilidade a apreciação, em relação a tais liquidações, dos vícios alegados em ordem à sua invalidade, ficando sem objecto a pretensão impugnatória contra elas deduzida.”
48. A inutilidade superveniente da lide (aqui meramente parcial) ficava, assim, incontornavelmente demonstrada nos presentes autos.
49. No que tange, agora, estritamente à questão da responsabilidade pelas custas, estatui o n.º 3 do art.º 536.º do CPC como segue: “Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.”
50. Nessa conformidade, sustenta este Tribunal que a inutilidade superveniente da lide (meramente parcial) é da responsabilidade da Requerida, na medida em que, não só não revogou parcialmente o ato tributário de liquidação sindicado antes da constituição do tribunal arbitral e nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 13º do RJAT; como só veio a revogá-lo (em parte) posteriormente, constituindo-se esta (a Requerida), portanto, como responsável pelo pagamento das custas em função da parte revogada na pendência do presente processo arbitral.
51. E constatada a revogação meramente parcial dos atos tributários sindicados, relativamente à parte não revogada, os presentes autos terão de prosseguir para apreciação do mérito.
IV.D.2) Apreciação do mérito da parte não revogada do ato tributário de liquidação aqui sindicado:
52. Apesar da revogação parcial do ato tributário impugnado, subsiste o litígio quanto à correta aplicação do coeficiente de tributação no âmbito do regime simplificado de IRS, concretamente no que respeita à não aplicação da redução de 50% prevista no n.º 10 do artigo 31.º do Código do IRS.
53. A questão central prende-se com a qualificação do ano de 2023 como o primeiro ano de atividade profissional da Requerente em Portugal e com as consequências fiscais que daí decorrem.
54. Nos termos do artigo 31.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, os rendimentos da categoria B obtidos por sujeitos passivos enquadrados no regime simplificado são determinados através da aplicação de um coeficiente de 0,75, quando se trate de atividades profissionais previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do mesmo Código.
55. A atividade de “Designer”, exercida pela Requerente, encontra-se expressamente incluída nessa tabela, sob o código 1336. O n.º 10 do mesmo artigo 31.º do CIRS, estabelece que os coeficientes previstos nas alíneas b), c) e f) do n.º 1 são reduzidos em 50% no período de tributação do início da atividade e em 25% no período seguinte, desde que, nesses períodos, o sujeito passivo não aufira rendimentos das categorias A (trabalho dependente) ou H (pensões). No caso em apreço, está demonstrado que a Requerente não auferiu rendimentos dessas categorias em 2023. Nesse sentido veja-se o Ponto U) do probatório.
56. A Requerente iniciou formalmente a sua atividade profissional em Portugal em 1 de janeiro de 2023, conforme declaração de início de atividade submetida junto da Autoridade Tributária.
57. Embora tenha entregue uma declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2022, que integrava também o Anexo B, este encontrava-se preenchido “a zeros”, não tendo sido auferido qualquer rendimento da categoria B nesse ano.
58. A liquidação de IRS de 2022 resultou num valor nulo, o que confirma a ausência de atividade tributável.
59. A AT, na decisão do recurso hierárquico, reconheceu que “o ano de 2023 poderia, eventualmente, corresponder ao primeiro ano em que a recorrente se encontra coletada”, admitindo implicitamente que não existem elementos que infirmem essa qualificação. A mera entrega de uma declaração com anexo B com preenchimento “a zeros” não configura, por si só, o exercício efetivo de atividade profissional, nem pode obstar à aplicação do benefício fiscal previsto para o primeiro ano de atividade e consubstanciado no n.º 10 do artigo 31.º do CIRS.
60. Acresce que, nos termos do artigo 75.º da Lei Geral Tributária, as declarações fiscais dos contribuintes gozam de presunção de veracidade, salvo prova em contrário. A AT não apresentou qualquer elemento que demonstrasse que a Requerente exerceu atividade profissional em 2022, nem que auferiu rendimentos da categoria B nesse ano. O contrato com a entidade estrangeira E..., embora datado de outubro de 2022, não foi acompanhado de qualquer emissão de recibos ou prestação efetiva de serviços nesse ano, sendo os rendimentos declarados exclusivamente relativos a 2023.
61. Nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito de tributar recai sobre a administração tributária.
62. Não tendo a AT logrado demonstrar que o ano de 2022 foi efetivamente o primeiro ano de atividade, deve prevalecer a presunção de veracidade das declarações da Requerente, que indicam 2023 como o início da sua atividade profissional.
63. Verificando-se que 2023 foi o primeiro ano de atividade da Requerente, e não tendo esta auferido rendimentos das categorias A ou H, impunha-se à AT a aplicação da redução de 50% ao coeficiente de 0,75, nos termos do artigo 31.º, n.º 10, do Código do IRS.
64. A não aplicação dessa redução configura uma clara violação das regras legais de liquidação do imposto. A liquidação sindicada aplicou o coeficiente integral de 0,75, resultando num rendimento coletável de €147.387,55 e num imposto a pagar de €22.741,05. Com a aplicação da redução de 50%, o coeficiente aplicável seria de 0,375, o que resultaria num rendimento tributável de €55.270,33. Acrescendo o montante de €3.164,57 por insuficiência de despesas para efeitos do n.º 13 do artigo 31.º, o rendimento tributável seria de €58.434,90, e o imposto devido, à taxa de 20%, seria de €11.686,98. (Cf. Ponto L) do probatório).
65. Em face do exposto, e considerando que a AT não demonstrou que o ano de 2022 foi o primeiro ano de atividade da Requerente, impõe-se reconhecer que o ano de 2023 corresponde ao início da sua atividade profissional em Portugal.
66. Por conseguinte, a liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023, é ilegal na parte em que não aplicou a redução de 50% do coeficiente de 0,75, devendo ser anulada nessa parte e substituída por nova liquidação que apure o imposto devido com base no coeficiente reduzido, nos termos do artigo 31.º, n.º 10, do Código do IRS.
IV.D.3) Fundamentação sucessiva ou “a posteriori”:
67. A Requerente sustenta ainda que a decisão proferida em sede de recurso hierárquico introduziu uma nova fundamentação, distinta da que constava do ato de liquidação e da decisão da reclamação graciosa, o que configuraria uma situação de fundamentação a posteriori.
68. No caso dos autos, entende este tribunal que essa alegação não pode deixar de proceder.
69. Com efeito, a liquidação impugnada limitou-se a aplicar o coeficiente de 0,75 com base na entrega de declaração com anexo B no ano anterior, sem qualquer referência à necessidade de prova dos rendimentos ou despesas declarados. A decisão da reclamação graciosa seguiu a mesma linha argumentativa, sustentando que a Requerente não podia beneficiar da redução prevista no artigo 31.º, n.º 10 do CIRS por ter entregue declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, com preenchimento do Anexo B ainda que com preenchimento a zeros, no ano de 2022. Já a decisão do recurso hierárquico introduz um novo fundamento, ao invocar, pela primeira vez, a ausência de prova dos rendimentos e despesas de 2023 como razão autónoma para indeferir a aplicação da redução do coeficiente.
70. Esta nova motivação não constava do ato originário, nem da decisão da reclamação graciosa, sendo apresentada apenas em sede de controlo administrativo subsequente com a apreciação do recurso hierárquico.
71. É verdade que quanto à fundamentação da decisão subjacente ao ato tributário tem de se concluir que a mesma tem que constar da notificação ao destinatário, devendo ser contemporânea desta.
72. Não sendo admissível uma fundamentação a posteriori, através da qual se alterem ou acrescentem elementos que não constavam da fundamentação da decisão notificada. O que significa que, além das características inerentes à fundamentação – tem que ser expressa, clara, suficiente, coerente – poder-se-á adiantar uma outra, configurando a necessidade de a fundamentação da decisão ter que ser atual, devendo ser efetuada, in totum, no momento em que é notificada a decisão final e não posteriormente.
73. Donde se infere que a fundamentação a posteriori não é admissível, ou seja, a fundamentação tem de integrar-se no próprio ato e ser contemporânea dele.
74. A este propósito, este tribunal não pode deixar de concordar com a Requerente quando esta sustenta que: “(...) Após a submissão das suas declarações de rendimentos, os contribuintes não têm de enviar à AT toda a documentação atinente ao que foi por si declarado. (...) Apenas poderão ter de vir a fazê-lo se, em processo de divergência ou posteriormente, ou numa ação inspetiva, a AT vier suscitar dúvidas quanto ao declarado. (...) Aliás, a AT nunca suscitou nenhuma dúvida quanto ao declarado, apenas invocando a falta de comprovação dos rendimentos e despesas de uma forma genérica, quando o objeto da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em nada se prende com o que foi declarado, mas somente com a forma e regras de liquidação do imposto. (...) Aliás, a AT, tanto não colocou em causa os elementos declarados pela Requerente, que processou e emitiu a liquidação de IRS em conformidade, não tendo emitido qualquer liquidação adicional posteriormente nem efetuado quaisquer correções ao declarado ou aberto qualquer procedimento de divergências.”
75. A jurisprudência emanada dos tribunais superiores vai repudiando também a fundamentação a posteriori. Vejamos,
76. A fundamentação a posteriori é irrelevante para a decisão judicial que vai apreciar a legalidade de um concreto ato tributário de liquidação, na medida em que não será com base na fundamentação subsequente que poderá ser aferida a eventual legalidade do ato tributário sindicado judicialmente. Neste sentido, veja-se o Acórdão do STA, tirado no âmbito do Processo n.º 0324/15, de 27-01-2016, onde se diz: “O tribunal tem de quedar-se pela formulação de um juízo sobre a legalidade do ato tal como ele ocorreu, apreciando a sua legalidade à luz da sua fundamentação contextual. Sabido que o direito à fundamentação dos atos administrativos reclama que o particular apenas tenha de defender-se dos pressupostos que aí foram enunciados e dos quais se distraíram os efeitos lesivos, não será de admitir qualquer fundamentação a posteriori nem o aproveitamento do ato quando isso implique a valoração de razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, pois se assim não fosse o particular ver-se-ia surpreendido em juízo com a invocação de uma outra realidade e isso representaria uma contração do seu direito de impugnação contenciosa face à impossibilidade de utilizar os meios conferidos por lei para sindicar os atos tributários e que são mais favoráveis que os meios conferidos por lei para impugnar decisões judiciais.”
77. A fundamentação a posteriori que completasse, clarificasse ou até mesmo se pudesse configurar como tendo um carácter inovador, quando comparada com a fundamentação do ato tributário notificado ao interessado, colocaria em causa princípios de segurança jurídica e até poderia coartar os direitos de defesa do interessado que a jurisprudência e a doutrina claramente não aceitam.
78. In casu, entende-se que se verifica efetivamente uma situação de fundamentação a posteriori, já que a decisão proferida em sede de recurso hierárquico introduz uma nova motivação, distinta da que constava do ato de liquidação e da decisão da reclamação graciosa, ao invocar, pela primeira vez, a ausência de prova dos rendimentos e despesas como fundamento autónomo para indeferir a aplicação da redução prevista no artigo 31.º, n.º 10 do CIRS. Tal fundamento não constava da liquidação nem da decisão da reclamação graciosa, sendo apresentado apenas em sede de controlo administrativo subsequente em sede de apreciação do recurso hierárquico.
79. E assim sendo, não pode este tribunal arbitral subscrever a jurisprudência que admite a suficiência de uma fundamentação meramente implícita ou corrigida a posteriori, como a que dimana do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8.6.2011, tirado no âmbito do Processo n.º 068/11. Pelo contrário, entende-se que a fundamentação relevante para aferir a legalidade do ato tributário é a que consta do próprio ato, tal como notificado ao interessado, sendo irrelevante qualquer fundamentação subsequente que altere ou complemente os seus pressupostos.
80. A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem sido clara ao distinguir entre a fundamentação formal e a substancial, exigindo que, mesmo quando não haja referência expressa a preceitos legais, o quadro jurídico adotado seja inequívoco e cognoscível pelo destinatário. No presente caso, não se verifica essa condição, porquanto o novo fundamento invocado em sede de recurso hierárquico não permite concluir que o quadro jurídico tenha sido conhecido ou cognoscível no momento da notificação do ato, nem que tenha integrado a motivação originária. O destinatário não se pode substituir ao autor do ato, nem antecipar fundamentos que não lhe foram comunicados. A fundamentação é requisito do ato, e o seu cumprimento deve ser aferido no momento da notificação, não podendo ser suprido ou alterado posteriormente.
81. Resulta do exposto que, no presente caso, se verifica uma situação de fundamentação a posteriori, porquanto a decisão proferida em sede de recurso hierárquico introduziu um novo fundamento — a alegada ausência de prova dos rendimentos e despesas — que não constava nem do ato de liquidação nem da decisão da reclamação graciosa.
82. Tal prática contraria o princípio da contemporaneidade da fundamentação, consagrado na jurisprudência dos tribunais superiores e compromete o direito de defesa do contribuinte, ao permitir que sejam invocados em sede de controlo administrativo subsequente pressupostos não comunicados no momento da notificação do ato.
83. A fundamentação relevante para aferir a legalidade do ato tributário é, pois, aquela que integra o próprio ato e é contemporânea da sua notificação, sendo irrelevante qualquer fundamentação subsequente que altere ou complemente os seus fundamentos.
84. A fundamentação a posteriori, quando aduzida em sede de recurso hierárquico, não contamina retroativamente o ato de liquidação. O que está em causa é a legalidade do ato tal como foi praticado e notificado ao contribuinte. A jurisprudência é clara: “O tribunal tem de quedar-se pela formulação de um juízo sobre a legalidade do ato tal como ele ocorreu, apreciando a sua legalidade à luz da sua fundamentação contextual.” Neste sentido veja-se Acórdão do STA, Processo n.º 0324/15, de 27-01-2016. Intuindo-se daqui que, em princípio, o vício de fundamentação a posteriori afeta apenas a decisão do recurso hierárquico, não o ato de liquidação originário, salvo se essa nova fundamentação for usada para tentar suprir ou justificar retroativamente o ato impugnado. Ora, in casu, foi exatamente isso que a AT tentou, o que, no entendimento deste tribunal, é de todo em todo inadmissível. Embora o vício seja formalmente da decisão do recurso hierárquico, ele não pode deixar de ter reflexos na apreciação da legalidade do ato de liquidação, já que, em sede de apreciação do recurso hierárquico, a liquidação foi mantida com base em fundamentos novos, não constantes do ato originário, devendo enfocar-se que aí a AT até admitiu que a Requerente havia iniciado a sua atividade em 01.01.2023, ou seja, fazendo cair o argumentário inicial que estava a suportar a liquidação ali controvertida. Nessa circunstância, a AT tentava justificar a legalidade da liquidação com base em argumentos posteriores, o que é, como visto, claramente vedado.
85. E assim sendo, este tribunal não pode considerar esses fundamentos novos para validar o ato impugnado. Ou seja, a liquidação não é anulável por vício próprio de fundamentação a posteriori, mas não pode ser “salva” por essa fundamentação posterior, o que não pode deixar de levar à sua anulação por vício de aplicação errada do direito ou erro nos pressupostos em que assentou.
86. Em conclusão, reconhece este tribunal que, in casu, se verifica uma situação de fundamentação a posteriori, sendo irrelevante, para efeitos de aferição da sua legalidade, a motivação introduzida apenas em sede de recurso hierárquico. A fundamentação a posteriori introduzida pela AT em sede de recurso hierárquico não integra nem altera a fundamentação do ato de liquidação originário, não sendo admissível para efeitos de aferição da sua legalidade. O vício afeta, portanto, a decisão do recurso hierárquico, não se comunicando formalmente ao ato tributário. Contudo, na medida em que a AT tenta justificar a liquidação com base em fundamentos não constantes do ato originário, a liquidação não pode deixar de ser anulada, por vício de erro nos pressupostos ou de aplicação indevida do regime legal, não podendo ser “salva” por fundamentação posterior.
IV.D.4) Questões de conhecimento prejudicado:
87. Julgando-se, tal como já se deixou antever, procedente o PPA na parte não abrangida pela revogação parcial do ato tributário, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento de outras questões suscitadas pela Requerente, por se revelar desnecessário à decisão. Designadamente, não se aprecia: i) A aplicabilidade do artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; ii) A questão da aplicação de um coeficiente de 0,75 com redução de 25%, que a Requerente invoca como argumentário meramente alternativo ou subsidiário, na eventualidade de não se reconhecer o ano de 2023 como primeiro ano de atividade da aqui Requerente.
88. Tais questões não carecem de apreciação autónoma, porquanto a decisão de mérito ora proferida satisfaz integralmente a pretensão remanescente da Requerente e determina a anulação parcial do ato tributário com apuramento do imposto devido nos termos por si defendidos.
IV.D.4) Da restituição do imposto indevidamente pago e da liquidação de juros indemnizatórios a favor da Requerente:
89. Estatui o art.º 43º da LGT, sob a epígrafe “Pagamento indevido da prestação tributária”, como segue: “1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas. 3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito; c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária. d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução. 4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios. 5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”
90. O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende, aliás, do acima transcrito n.º 1 do art.º 43.º, da LGT.
91. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».
92. Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários.
93. O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
94. O pagamento de juros indemnizatórios depende da existência de quantia a reembolsar e, em face da aventada decisão de anulação parcial do ato de liquidação de IRS de 2023, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.
95. Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.
96. Na sequência da anulação parcial da liquidação sindicada de IRS de 2023, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias indevidamente pagas e reportadas ao ano de 2023, na parte em que elas estão enfermadas de ilegalidade, o que, em termos de valor se determinará em sede de execução voluntária do presente julgado.
97. O direito a juros indemnizatórios, é regulado, como visto, no acima transcrito art.º 43.º da LGT.
98. Diz o n.º 1 do art.º 43.º da LGT que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
99. Ora, julgando este tribunal arbitral no sentido de que a liquidação de IRS de 2023, enferma de ilegalidade, designadamente, por desconsideração do n.º 10 do art.º 31.º do CIRS, enfermando ainda do vício de violação do dever de fundamentação contemporânea, nos termos do artigo 77.º da LGT, ficou, assim, inequivocamente patenteada a legitimidade do aludido pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente por subsunção no referido n.º 1 do art.º 43.º da LGT, já que a liquidação sub judicio é imputável à AT e mostra-se manifestamente enfermada, sendo, por isso, devidos juros desde o dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito, em conformidade com o estatuído no art.º 43º da LGT e art.º 61º do CPPT.
100. É, por isso, a Requerente credora da AT do montante correspondente ao IRS de 2023 indevidamente pago (Cf. Ponto I) do probatório) e a determinar em execução voluntária do presente julgado, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios vencidos e vincendos, a calcular até à emissão da respetiva nota de crédito.
V. DECISÃO:
Face ao exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide:
A) Declarar parcialmente extinta a instância por inutilidade superveniente da lide decorrente da eliminação voluntária da ordem jurídica de parte do ato de liquidação impugnado por revogação parcial decidida pela Requerida;
B) Declarar ilegal a decisão de indeferimento expresso que recaiu sobre a reclamação graciosa n.º ...2024..., entretanto apresentada e dirigida à apreciação da legalidade da liquidação aqui sindicada;
C) Declarar ilegal a decisão de indeferimento expresso que recaiu sobre o recurso hierárquico n.º ...2024..., entretanto apresentado e que controvertia a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e também a legalidade daquela liquidação de IRS de 2023, por estar enfermada do vício de violação do dever de fundamentação contemporânea, nos termos do artigo 77.º da LGT;
D) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, anular parcialmente a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, de 2023, n.º 2024..., de 22.741,05 €, por estar enfermada de ilegalidade e por erro nos pressupostos de facto e de direito em que assentou;
E) Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida à restituição à Requerente do valor correspondente à anulação parcial do ato de liquidação por (em parte) o mesmo haver sido indevidamente pago, o que se determinará em sede de execução voluntário do presente julgado;
F) Julgar Procedente o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios a determinar nos termos do art.º 43º da LGT e 61º do CPPT.
VI. VALOR DO PROCESSO:
Fixo o valor do processo em 11.054,07 € em conformidade com o disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão do art.º 3º do regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS:
Fixo o valor das Custas em 918,00 €, calculadas em conformidade com a Tabela I do regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária em função do valor do pedido (sendo que, tal valor foi o indicado pela Requerente no PPA e não contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações sindicadas) a cargo da Requerida, nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e ainda art.º 4.º, n.º 5 do RCPAT e art.º 527, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Novembro de 2025.
O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do n.º 5, do art.º 131.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão da alínea e), do n.º 1, do art.º 29.º do RJAT.
O Árbitro,
(Fernando Marques Simões)