Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 224/2025-T
Data da decisão: 2025-11-05  IRC  
Valor do pedido: € 393.250,00
Tema: IRC. Livre Circulação de Capitais. Fundos de Investimento Não-Residentes. Tributação de juros e dividendos. Retenção na Fonte.
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SUMÁRIO

I                A liberdade de circulação de capitais e, consequentemente, a proibição de adopção de medidas restritivas dessa liberdade, encontram-se consagradas nos arts. 63.º e seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, como concretização do artigo 18.º do mesmo Tratado. 

II              O art. 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro que determine que os juros ou dividendos distribuídos por sociedades residentes a um Organismo de Investimento Colectivo não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os juros ou dividendos distribuídos a um Organismo de Investimento Colectivo residente estão isentos dessa retenção. 

III            Os n.os 1, 3 e 10 do art. 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, ao limitarem o regime neles previsto a Organismos de Investimento Colectivo constituídos segundo a legislação nacional, excluindo organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de país terceiro, estabelecem uma discriminação arbitrária não permitida pelo direito da União Europeia, por ser contrária à livre circulação de capitais, estabelecida como uma liberdade fundamental pelo art. 63.º do TFUE.

IV            A liberdade de circulação de capitais goza de primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efectividade da livre circulação de capitais.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1.     A..., empresa de investimento constituída e a operar no Luxemburgo, com o NIF luxemburguês ... (doravante “Requerente”), que celebrou um contrato de financiamento com o Fundo de Investimento Imobiliário Fechado B... (doravante “B...”), com o NIF ...,  apresentou, no dia 7 de Março de 2025, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa por ele apresentada, relativa aos actos de retenção na fonte de IRC referentes ao ano de 2020, que incidiram sobre os juros por ele auferidos em território nacional, no montante total de € 393.250,00, tendo por objecto mediato a anulação das referidas liquidações, peticionando a restituição do imposto indevidamente retido, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

6.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 19 de Maio de 2025; foi-o regularmente, e é materialmente competente.

7.     Por Despacho de 19 de Maio de 2025, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.

8.     A AT apresentou a sua Resposta em 18 de Junho de 2025, juntamente com o processo administrativo.

9.     Por Despacho de 20 de Junho de 2025, foi a Requerente notificada para pronunciar-se sobre a matéria de excepção contida na resposta, o que a Requerente fez em requerimento de 4 de Julho de 2025.

10.  Por Despacho de 21 de Julho de 2025, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.

11.  A Requerente e a Requerida apresentaram alegações em 10 de Setembro de 2025.

12.  O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objecto do processo.

13.  O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

14.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

15.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

16.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     A Requerente é uma entidade com residência fiscal no Luxemburgo.

2.     A Requerente é um OIC constituído, em 2013, sob a forma Societé d’Investissement à Capital Variable – Fonds d’Investissement Spécialisé (SICAV-SIF), a operar nos termos da legislação Luxemburguesa.

3.     A Requerente assume a forma de Fundo de Investimento Alternativo (“FIA”) – estando sujeita à Lei de 13 de Fevereiro de 2007, alterada pela Lei de 12 de Julho de 2013, que transpôs para o ordenamento jurídico Luxemburguês a Directiva n.º 2011/61/EU – o regime equivalente ao que se aplica aos OIC estabelecidos de acordo com a legislação portuguesa, nomeadamente os Organismos de Investimento Alternativo (“OIA”), abrangidos pela Directiva n.º 2011/61/EU, nos termos do Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de Abril, e nos termos do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo (“RGOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpôs a definição de OIC para a legislação nacional.

4.     A Requerente realizou investimentos e financiamentos em projectos imobiliários, entre os quais o projecto “...”, em ..., Lisboa.

5.     Neste caso, a Requerente celebrou, a 15 de maio de 2020, um contrato de financiamento com o B..., no montante total de € 200.000.000,00, o qual vencia juros trimestralmente.

6.     No período de tributação de 2020, a Requerente auferiu juros no montante total de € 2.621.666,67, sendo que € 868.888,89 foram auferidos no mês de Julho de 2020 e € 1.752.777,78 no mês de Setembro.

7.     Sobre esses juros pagos pelo B..., incidiu IRC, o qual foi liquidado e cobrado, a título definitivo, através do mecanismo de retenção na fonte, à taxa de 15%, tal como decorre do Acordo para evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e o Luxemburgo (“ADT”), em vigor à data dos factos.

8.     O B..., actuando na qualidade de substituto tributário, procedeu à retenção na fonte em sede de IRC de um montante total de € 393.250,00:

 

 

 

9.     Por entender ter ocorrido aí uma discriminação assente no facto de não ser residente em Portugal, em violação do Direito da União Europeia, a ora Requerente deduziu no dia 7 de Agosto de 2024 reclamação graciosa (autuada com o n.º ...2024...) contra tais liquidações e retenções na fonte de IRC.

10.  Passado o prazo de quatro meses para decisão, ocorreu em 7 de Dezembro de 2024 o indeferimento tácito dessa reclamação graciosa.

11.  A 7 de Março de 2025, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

5.     Além do que precede, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

6.     Pelo que antecede, entendemos serem não-procedentes algumas dúvidas factuais formuladas pela Requerida, e que analisaremos de seguida.

 

III. Matéria de dúvidas factuais e de Excepção

 

III. A. Na Resposta da AT

 

1.     A Requerida começa por suscitar uma série de dúvidas factuais, antes de apresentar a sua defesa por excepção.

2.     Desde logo, alega que não existe, nos autos, documentação emitida pela entidade competente daquele Grão-Ducado do Luxemburgo que ateste que a Requerente seja um OIC.

3.     Além disso, alega que a Requerente devia ter demonstrado, e não o fez, que não accionou o mecanismo de crédito de imposto previsto no art. 24.º, 1, b) da CDT entre Portugal e Luxemburgo – um requisito para se afastar a hipótese de ela beneficiar duplamente do peticionado reembolso do imposto.

4.     Por outro lado, alega que não está provada a existência de retenção na fonte, nomeadamente que os documentos comprovam o pagamento de totais de juros, mas não a dedução do imposto retido, e que as declarações de Modelo 30 correspondentes a Julho e Setembro de 2020 são igualmente omissas – conquanto reconheça que o B..., na qualidade de substituto tributário (art. 20.º da LGT) procedeu à entrega junto dos cofres da AT do montante total € 393.250,00, através das guias de pagamento n.º ... e  ..., valor correspondente ao imposto devido por retenção na fonte à taxa de 15%, (por aplicação da CDT Portugal / Luxemburgo).

5.     De seguida, a Requerida apresenta três excepções, relativas a:

a)     Intempestividade do pedido de reembolso; 

b)    Inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte; 

c)     Incompetência, em razão de matéria, do tribunal arbitral. 

6.     Sobre a intempestividade do pedido de reembolso, alega que foi desrespeitado o prazo de 2 anos estabelecido no art. 137.º, 3 do CIRC – um prazo contado, relativamente a Julho de 2020, a partir de 20 de Agosto de 2020 (art. 94.º, 6 do CIRC), terminando a 20 de Agosto de 2022 – tornando intempestiva a reclamação graciosa, deduzida somente no dia 7 de Agosto de 2024.

7.     Sobre a inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte, a Requerida lembra que, nos termos do art. 132.º, 3 do CPPT, em caso de retenção na fonte a impugnação judicial será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa – sendo a exigência legal de uma impugnação administrativa necessária determinada pelo objectivo de obter, por via de um procedimento de segundo grau, a reapreciação da legalidade do acto impugnado, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão, antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial. Ora, havendo lugar a prévia impugnação administrativa necessária para efeito de poder ser deduzida a impugnação judicial dos actos de retenção na fonte, o pedido de revisão oficiosa apenas poderá ser entendido como preenchendo esse requisito procedimental se for apresentado no prazo de dois anos legalmente previsto para a reclamação graciosa (excluindo a Requerida que vigore o prazo de 4 anos para ser suscitada a revisão dos actos com base em erro imputável aos serviços, nos termos do art. 78.º, 1 e 7 da LGT).

8.     Concluindo-se que o pedido de reclamação graciosa foi apresentado intempestivamente, para efeito de poder ser considerado como correspondendo à impugnação administrativa a que se refere o artigo 132.º, 3, do CPPT, verificar-se-ia a inimpugnabilidade dos actos tributários que constituem objecto do pedido arbitral, por falta de precedência de impugnação administrativa dentro do prazo legalmente previsto.

9.     Adicionalmente, a Requerida assinala as consequências da falta de preenchimento dos requisitos do art. 2º, 1, a) da “Portaria de vinculação” (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) – lembrando que, atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem, o intérprete não pode ampliar o objecto fixado pelo legislador no que concerne à vinculação da AT aos tribunais arbitrais – o que atentaria ainda contra os princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação dos poderes (arts. 2.º e 111.º da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (art. 20.º da CRP) e da legalidade (arts. 3.º, 2, 202.º, 203.º e 266.º, 2 da CRP), como corolários, ainda do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, 2 da LGT.

10.  Sobre a incompetência, em razão de matéria, do tribunal arbitral, a Requerida sustenta que a Requerente, na sua qualidade de substituído tributário, pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efectuadas pelo substituto tributário, sem que tenha desencadeado tempestivamente um procedimento de reclamação graciosa nos termos do artigo 132.º do CPPT, precludindo o seu direito de fazê-lo, e sem que a AT se tenha pronunciado sobre a matéria, seja por não ter sido ela a proceder às retenções na fonte, seja em virtude do indeferimento tácito, assente numa rejeição liminar por intempestividade, no âmbito da qual a AT não tomou posição expressa sobre a legalidade das liquidações ou das retenções na fonte, ou sobre a existência de erro imputável aos serviços.

11.  Além de que, no entendimento da Requerida, o que a Requerente pretende não é a apreciação, directa ou indirecta, de uma liquidação, mas a determinação jurídica da violação, ou não, do art. 78.º da LGT, como fundamento do indeferimento – uma apreciação abstracta que não cabe ao Tribunal Arbitral.

 

III. B. No requerimento da Requerente de 4 de Julho de 2025

 

12.  No seu requerimento de 4 de Julho de 2025, a Requerente começa por se pronunciar sobre as dúvidas factuais suscitadas pela Requerida na sua Resposta.

13.  Quanto à sua qualificação como OIC, a Requerente lembra que juntou ao PPA documentação oficial que atesta a sua natureza, a sua localização e o seu quadro jurídico – e aditou ainda um print do portal da entidade reguladora de OIC, a Comission de Surveillance du Secteur Financier ("CSSF") e que atesta que a Requerente se encontra sujeita à Lei de 13 de Fevereiro de 2007, e é, consequentemente, um Fundo de Investimento Alternativo.

14.  Quanto à retenção na fonte aplicada sobre os juros auferidos pela Requerente, esta insiste que a documentação comprova rigorosamente os montantes retidos e a sua adequação ao que resulta da CDT Portugal / Luxemburgo, e que essa comprovação pode ser reforçada, adicionalmente, no âmbito de uma inspecção tributária realizada ao B... . Recapitulando:

15.  Quanto às declarações de Modelo 30, as eventuais omissões serão lapso desconhecido e não imputável à Requerente, não colocando em causa a existência de retenção na fonte sobre os rendimentos auferidos pela Requerente.

16.  Quanto ao mecanismo de crédito de imposto, previsto no art. 24.º,1, b) da CDT Portugal / Luxemburgo, a Requerente esclarece que no Luxemburgo os OIC beneficiam de uma isenção de IRC, nos termos do art. 66.º, 1 da Lei de 13 de Fevereiro de 2007, que estatui que “Além da entrada de capital cobrada através da contribuição de capital destinada às sociedades civis e comerciais, bem como da taxa de subscrição mencionada no Artigo 68, nenhuma outra taxa deverá ser paga pelos fundos de investimento especializado referidos na presente lei” – pelo que, não havendo imposto a pagar, igualmente não haverá imposto a recuperar, pelo que se torna impossível violar qualquer preceito da CDT.

17.  Depois de se pronunciar sobre as questões factuais, a Requerente aborda a matéria de excepção suscitada pela Requerida.

18.  Sobre a suposta intempestividade da reclamação graciosa apresentada a 7 de Agosto de 2024, a Requerente contrapõe a interpretação, hoje pacífica, de que aos sujeitos pacíficos é possível o recurso aos meios disponibilizados no art. 78.º, 1 da LGT, no prazo de quatro anos – desde que verificado um erro imputável aos serviços, como a Requerente sustenta que sucedeu, porque, tendo havido substituição tributária, o erro cometido pelo substituto é um erro que tem de ser imputado “aos serviços” a que substituiu aquela entidade que procedeu à retenção na fonte; sendo, portanto, decorrência da delegação, pela AT, do seu poder-dever de cobrança de liquidação e cobrança dos tributos.

19.  Sobre a alegada inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte, a Requerente assinala que a tempestividade da reclamação graciosa já resolve esta excepção – até porque, havendo precedência da referida reclamação, removem-se os obstáculos à vinculação da AT à decisão arbitral (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e também não há pronúncia indevida (art. 28.º, 1, c) do RJAT).

20.  Lembrando que o que se visa é assegurar que o contribuinte não recorre ao tribunal antes de qualquer tomada de posição da administração sobre a situação gerada com o acto do contribuinte, e que isso, no caso, se encontra formal e materialmente assegurado.

21.  Sobre a suposta incompetência, em razão de matéria, do tribunal arbitral, a Requerente esclarece que a posição da AT é a de sugerir que se trataria aqui, não de uma genuína impugnação judicial, mas de uma acção administrativa – visto que o que aparentemente se colocaria em causa seria somente a admissibilidade de um pedido precedente ao pedido de pronúncia arbitral.

22.  Em seu apoio, a Requerente convoca o Acórdão de 18 de Novembro de 2020 do STA (Proc. 0608/13.4BEALM 0245/18), que estabelece que 

nos processos de impugnação judicial, apresentados da sequência [...] de indeferimento (mesmo que, por motivos formais) de reclamações graciosas, recursos hierárquicos e/ou pedidos de revisão oficiosa dos atos tributários [...] O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos questões tributárias que impliquemcontendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidaçãoainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo [...] [o] meio processual da ação administrativa só pode [ser] utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.

23.   Concluindo que, no seguimento do indeferimento do meio gracioso, se o contribuinte pretender a apreciação da legalidade da liquidação de um acto tributário e, consequentemente, a sua anulação, o meio processual adequado é a impugnação judicial (do qual o pedido de pronúncia arbitral se considera ser um meio processual alternativo), pelo que se tem vindo a afirmar que, quando o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (decisão administrativa) e um mediato (legalidade da administração). Sendo já pacífico, na jurisprudência dos tribunais superiores, que, existindo apresentação tempestiva de pedido de reclamação graciosa, terá de se admitir a impugnabilidade da decisão que sobre tal pedido venha a ser proferida, ou, alternativamente, reagir contra o silêncio que sobre ele recair.

 

III. C. Apreciação da matéria de excepção

 

24.  Quanto às dúvidas factuais suscitadas pela Requerida na sua Resposta, julgamos que elas eram patentemente infundadas, dada a documentação apresentada, dada a oneração probatória que recai, num contexto de retenção na fonte, sobre um mero substituído, e dada ainda a irrelevância de alguma factualidade controvertida para a solução jurídica encontrada.

25.  Além disso, a Requerente dissipou, adequadamente, no seu requerimento de 4 de Julho de 2025, alguma dúvida que pudesse ter subsistido. E isso ficou reflectido na matéria de facto que consideramos provada.

26.  Quanto às excepções, há duas linhas argumentativas dominantes na argumentação da Requerida: uma relativa à intempestividade, da qual se faz derivar, em parte, a própria inimpugnabilidade e a incompetência do tribunal arbitral; e um outra relativa a uma alegada falta de “primeira pronúncia” da AT sobre a legalidade dos actos ora impugnados, que se traduziria numa inidoneidade do meio processual – e, agora com este outro fundamento, também a inimpugnabilidade dos actos e a incompetência do tribunal arbitral, por falta de “pronúncia precedente”.

27.  A Requerida vem sustentar a intempestividade da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e, consequentemente, a caducidade do direito à acção arbitral, uma vez que sustenta a inexistência de erro imputável aos serviços, que permitisse o recurso ao meio processual utilizado num prazo superior ao de dois anos, o prazo previsto para a reclamação administrativa – sustentando que, tratando-se de actos de retenção na fonte, não terá existido qualquer erro que lhe possa ser imputado.

28.  Todavia, os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a AT tem de observar na globalidade da sua actividade, impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei (cfr. acórdão do STA de 07.04.2022, Proc. n.º 02555/13), estabelecendo-se, no art. 78.º, 1 da LGT, o dever oficioso de revogar os actos tributários ilegais.

29.  Sendo agora pacífico na jurisprudência (cfr. acórdão do STA de 19.11.2014, Proc. n.º 0886/14) que tal revisão por iniciativa de administração tributária pode realizar-se a pedido do contribuinte (art. 78.º, 7 da LGT, e também arts. 49.º, 1 da LGT e 86.º, 4 do CPPT), e que o indeferimento, expresso ou tácito, desse pedido de revisão é susceptível de impugnação contenciosa, nos termos do art. 95.º, 1 e 2, d) da LGT e do art. 97.º, 1, d) do CPPT, quando estiver em causa a apreciação da legalidade do acto de liquidação, não ficando essa possibilidade prejudicada pela circunstância de a reclamação graciosa ter sido apresentada depois de esgotado o prazo de impugnação administrativa, mas não o prazo dos 4 anos para a revisão do acto de liquidação “por iniciativa da Administração Tributária” – sendo que a única diferença para o contribuinte é a de que, se impugnar o acto dentro do prazo de reclamação administrativa, pode invocar qualquer ilegalidade; enquanto que, depois daquele prazo, estará limitado a invocar erro imputável aos serviços, ou duplicação de colecta.

30.  Em suma, a revisão do acto tributário por iniciativa da Administração Tributária pode ser efectuada, a pedido do contribuinte, no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou, no caso de o tributo não ter sido pago, a todo o tempo), sendo-lhe reconhecido o direito a uma decisão sobre o pedido formulado (Acórdãos do STA de 14.03.2012, Recurso n.º 01007/11, e de 09.11.2016, Recurso n.º 01524/15).

31.  Nessa medida, tendo-se respeitando, na reclamação graciosa, o prazo de “quatro anos após a liquidação” consignado no artigo 78.º da LGT, impõe-se concluir que inexiste qualquer intempestividade que obste à sua apreciação – desde que se admita ter ocorrido “erro imputável aos serviços”.

32.  Quanto ao requisito da verificação de “erro imputável aos serviços”, é jurisprudência do STA que:

[e]mbora o conceito de erro imputável aos serviços” aludido na 2.ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro” – Acórdão de 06.02.2013, Proc. n.º 0839/11. 

33.  Ora, entende a Requerente nos presentes autos que os actos impugnados são inválidos, em virtude da sua incompatibilidade com o Direito da União Europeia, sustentando a sua posição em jurisprudência consolidada nos tribunais superiores e na jurisdição arbitral.

34.  A jurisprudência do STA estabelece que:

existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração” – Acórdão de 19.11.2014, Proc. n.º 0886/14.

35.  E estabelece ainda que:

não pode bastar para atribuir o erro à atuação do sujeito passivo, entre o mais, a existência de uma declaração apresentada ou a prestação de uma informação, por este, aos serviços da AT, porquanto se trata de comportamentos a que está, legalmente, vinculado, sendo imprescindível avaliar, ainda, o grau de determinabilidade e/ou essencialidade do conteúdo de tal conduta/elementos, no sentido da posição final, errónea, traduzida no ato tributário praticado (e a rever).” – Acórdão de 07.04.2022, Proc. n.º 02931/16BEBRG.

36.  Em casos de substituição e de retenção na fonte, a Requerida continua a estar vinculada ao princípio da legalidade (arts. 266.º, 2 da CRP, 55.º da LGT e 3.º, 1 do CPA). Portanto, quando se esteja perante um acto tributário ilegal, independentemente da respectiva autoria ou de quem o praticou, e de ser ou não favorável ao Estado, esse acto ilegal não deve subsistir na ordem jurídica, pelo que a Requerida tem o dever de impulsionar o procedimento tributário nesse sentido.

37.  Ora, como vem entendendo uniformemente o STA, havendo erro na liquidação

é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro” já que “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços” – Acórdão de 12.12.2001, Proc. n.º 026.233.

38.  Assim, sem prejuízo das demais condições, uma vez que o erro decorreu de uma invalidade do próprio imposto, por desconformidade com o art. 63.º do TFUE, considera-se esse erro “imputável aos serviços”, uma vez que o erro não é associável à conduta da Requerente.

39.  Tendo sido apresentada a reclamação graciosa dentro do prazo de 4 anos, é a mesma tempestiva, pelo que não se verifica, por conseguinte, a intempestividade dessa reclamação, nem a caducidade do direito de acção relativamente ao pedido de pronúncia arbitral, improcedendo esta excepção.

40.  Pelo que não procedem, igualmente, as excepções de inimpugnabilidade dos actos tributários de retenção na fonte, e de incompetência, em razão de matéria, do tribunal arbitral, na parte em que elas eram feitas decorrer da alegada intempestividade da prévia reclamação graciosa.

41.  Subsiste, todavia, o argumento de que o indeferimento tácito da reclamação graciosa teria assentado numa rejeição liminar por intempestividade, não tendo havido da parte da AT, portanto, a necessária apreciação de legalidade que se exige como ponto de referência de uma verdadeira e própria impugnação judicial – suscitando-se uma questão que se designaria, com maior propriedade, como de inidoneidade do meio processual.

42.  Ora, seja pela via da reclamação graciosa, seja pela via da revisão oficiosa, equiparadas uma à outra como “recursos à via administrativa” antecedentes da via judicial, para efeitos de vinculação da AT aos Tribunais Arbitrais[1], importa que as pretensões que compõem um pedido de pronúncia arbitral tenham podido ser objecto de uma apreciação da respectiva legalidade por parte da AT, independentemente de tal apreciação ter sido efectuada na sequência de reclamação graciosa, ou na sequência de revisão oficiosa – porque, num conjunto de situações em que a AT não procede ela própria à liquidação, importa conceder à AT a oportunidade de se pronunciar sobre tais actos, apreciando a sua legalidade, pois que só nesta hipótese existirá um verdadeiro litígio que justifica a intervenção judicial.

43.  Resta, portanto, saber se, tendo ocorrido um mero indeferimento tácito da reclamação graciosa, não ocorreu qualquer pronúncia da AT quanto ao mérito do pedido – o que alegadamente determinaria que o meio judicial adequado para contestar os actos tributários impugnados não seria a presente arbitragem, ao abrigo do art. 2.º, 1 do RJAT, mas antes a acção administrativa a que se referem os artigos 50.º e 58.º do CPTA.

44.  Em termos de “idoneidade processual”, a acção administrativa é, efectivamente, o meio contencioso adequado para contestar os actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade de actos de liquidação, de acordo com o disposto com o art. 97º, 1, p) do CPPT.

45.  Conforme já decidiu o STA,

À face do preceituado no art. 97.º, n.ºs 1, alíneas d) e p), e 2, do CPPT, a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (actualmente acção administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA) para impugnar um acto em matéria tributária depende do conteúdo do acto impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/acção administrativa especial” – Acórdão de 25.06.2009, Proc. n.º 0194/09.

46.  A verdade é que, mesmo num indeferimento tácito, presumido, de uma reclamação graciosa, a AT teve a oportunidade de pronunciar-se quanto ao mérito da causa, sobre a legalidade dos actos de liquidação – não o tendo feito por escolha sua: o que torna a impugnação judicial o meio idóneo para sindicar esse indeferimento, o que, por sua vez, confirma a idoneidade do recurso ao processo arbitral, atento o disposto no art. 2º do RJAT, bem como no art. 97º, 1, d) do CPPT.

47.  É hoje pacífico, na jurisprudência e na doutrina, que o indeferimento tácito é uma ficção jurídica destinada a possibilitar ao interessado o acesso aos tribunais, para obter tutela para os seus direitos ou interesses legítimos, nos casos de inércia da administração tributária sobre pretensões que lhe foram apresentadas – sendo, por isso, que da presunção de indeferimento tácito decorre a violação do dever legal de decidir que que recai sobre a AT, tornando idóneo o meio processual tributário de impugnação judicial.

48.  Como se estabeleceu no Acórdão do STA de 2 de Fevereiro de 2022 (Proc. 0848/14.9BEAVR):

O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar; por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação”.

49.  Seguindo esta jurisprudência, decidiu-se, no processo 1130/2024-T do CAAD, o seguinte:

À face desta jurisprudência, que está consolidada, desde que a pretensão formulada no processo jurisdicional tenha por objecto a legalidade de acto de liquidação ou autoliquidação, o processo de impugnação judicial é meio adequado para sua apreciação independentemente de a petição ter sido antecedida de um meio de impugnação administrativa em que não foi apreciada a legalidade do acto impugnado.

E, sendo o processo de impugnação judicial o meio adequado, também o será o processo arbitral, que é meio alternativo.

No caso em apreço, a pretensão formulada é de anulação da liquidação de IRC referente ao período de 2021, com fundamento em ilegalidade da autoliquidação por nela ter sido considerada matéria tributável diferente da que deveria ser para cálculo da derrama municipal.

Por isso, está-se perante uma pretensão que podia ser objecto de processo de impugnação judicial e, consequentemente, de processo arbitral.

Para além disso, é manifesto que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa comporta a apreciação da legalidade da autoliquidação, baseando o indeferimento na afirmação da sua legalidade, com o consequente afastamento de ela ter conduzido a uma situação de injustiça grave ou notória.

Assim, improcede a excepção de inidoneidade do meio processual.

50.  Alicerçando-se numa ficção jurídica, o indeferimento tácito comporta em si mesmo uma tomada de posição sobre a ilegalidade que tenha sido alegada, razão pela qual tem os mesmos efeitos que resultariam de um indeferimento expresso, para efeitos de reacção contenciosa.

51.  Julgam-se assim improcedentes, pelas razões que precedem, todas as excepções apresentadas pela Requerida na sua Resposta.

 

IV. Sobre o Mérito da Causa

 

IV. A. Posição do Requerente

 

1.     A Requerente começa por lembrar o regime do art. 22.º do EBF, e o facto de os juros auferidos pela Requerente não terem beneficiado da exclusão de tributação em sede de IRC prevista nesse regime – tendo, antes, sido sujeitos a tributação por retenção na fonte em Portugal à taxa final de 15%, com carácter definitivo.

2.     A Requerente considera que se verificou um tratamento discriminatório face ao Direito da EU, devido ao facto de o art. 22.º do EBF impor imperativamente, para a sua aplicação, a necessidade de os OIC se constituírem e operarem de acordo com a legislação nacional, sem, contudo, conceder que entidades da mesma natureza, que se constituam e operem nos mesmos termos ao abrigo da legislação de outro Estado-Membro da UE ou de Estado Terceiro, possam provar que cumprem exigências equivalentes às contidas na lei interna para beneficiar daquele regime fiscal.

3.     Isso, no entender da Requerente, representa uma clara violação dos princípios e liberdades previstos no TFUE.

4.     Ao estabelecer uma tributação efectiva de IRC aplicada sobre rendimentos auferidos por OICs residentes num outro Estado-Membro (em concreto, no Luxemburgo) mais gravosa do que a que seria suportada sobre rendimentos auferidos por um OIC residente em território português de idêntica natureza e em iguais circunstâncias, viola-se a liberdade de circulação de capitais, que se encontra expressamente consagrada no art. 63.º e seguintes do TFUE, enquanto princípio fundamental do Direito da EU: e recorda a propósito as conclusões do Acórdão do TJUE, relativo ao caso Emerging Markets Series (Proc. C-190/12), paradigmáticas em casos de violação, pelas ordens jurídicas nacionais, da liberdade de circulação de capitais.

5.     Reconhece que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, para se concluir que existe uma tal restrição, é necessário apurar: (i) se as situações sob análise são ou não comparáveis, (ii) se existem reconhecidas razões de interesse geral que justifiquem essa restrição (iii) e, no caso de as restrições serem justificadas, se a diferença no tratamento não se revela excessiva.

6.     A comparabilidade objectiva é em larga medida criada pela própria legislação nacional, pois, mesmo quando discrimina, sujeita à mesma tributação, isto é, começa por prever um regime que poderia ser indiscriminadamente aplicado (e só o não é porque há situações que são isentas) – além de que não se admite que uma restrição ou discriminação, como as que resultem da legislação fiscal interna, não é passível de anulação / compensação através de eventuais vantagens que os não residentes possam obter no seu país de residência.

7.     Admitir-se-á que existe uma razão de interesse geral quando resulte das necessidades: (i) de garantir a eficácia dos controlos fiscais, (ii) de preservar a coerência do sistema fiscal, e (iii) de garantir a repartição dos poderes de tributação e a salvaguarda das receitas fiscais. No primeiro caso, isso dependerá da possibilidade concedida aos contribuintes de fazerem prova de que cumprem exigências equivalentes às impostas pela lei interna. Para que a preservação da coerência do sistema fiscal possa ser um objectivo atendível, é necessário que se demonstre o nexo directo entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto, ponderados ambos pelos objectivos da regulamentação em causa. Já quanto à garantia de repartição dos poderes tributários e à salvaguarda das receitas, a opção pela não tributação dos OICs residentes destrói o argumento para a tributação, com aqueles fundamentos, dos OICs não-residentes.

8.     Ora, o próprio facto de os OICs não-residentes estarem sujeitos ao mesmo quadro jurídico já evidencia a realidade da discriminação, e a correspondente falta de fundamento – até porque, no caso dos autos, há uma actuação em quadros normativos que, conquanto distintos, ambos resultam da transposição da Directiva n.º 2011/61/UE.

9.     Sobre a desconformidade do art. 22.º do EBF com o Direito da UE, mais concretamente com o art. 63.º do TFUE, já se pronunciou o STA no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2024, de 26 de Fevereiro, assinalando que tal jurisprudência se encaminhou para o entendimento de que o art. 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

10.  E lembra que, face à primazia do Direito da EU face ao direito nacional, a restrição em apreço soçobra, por violar o art. 63.º do TFUE, sendo susceptível de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro, ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados; sem preencher qualquer dos pressupostos que justificam a aplicação do regime da liberdade de circulação de capitais consagrado naquele artigo, nomeadamente uma razão de indispensabilidade – um entendimento reforçado após a decisão uniformizadora do STA, no referido Acórdão n.º 7/2024, de 26 de Fevereiro, e após a constatação reiterada de que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os OIC não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

11.  Para lá da primazia do direito da UE, e do dever de não-aplicação da legislação nacional incompatível com aquele, a Requerente insiste que os próprios órgãos da Administração estão adstritos à obediência à lei e ao direito, como resulta dos arts. 2.º, 5 e 3.º do CPA e do art. 266.º da CRP – estendendo-se essa obediência aos “actos claros” do Direito da UE, que ocorrerá sempre que uma norma europeia aplicável a determinada situação se apresente perfeitamente clara, não levantando qualquer questão quanto à sua interpretação.

12.  E lembra que a própria jurisprudência do TJUE tem vindo a reconhecer que a aplicação integral do Direito da UE é também da responsabilidade dos órgãos de administração: no Acórdão do TJUE Manninen (C-319/02) esclarece-se que “embora a fiscalidade directa seja da competência dos Estados-Membros, estes últimos devem, todavia, exercer essa competência no respeito do direito comunitário”; e no Acórdão Günter Fuß (C-429/09) estabelece-se que esta competência deve ser estendida não apenas aos tribunais dos Estados-Membros mas também aos próprios órgãos da Administração, afirmando que “não sendo possível efectuar uma interpretação e uma aplicação da regulamentação nacional conformes com as exigências do direito da União, os tribunais nacionais e os órgãos da Administração têm o dever de aplicar integralmente o direito da União e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando de aplicar, se necessário, qualquer disposição contrária de direito interno”.

13.  De tudo isto retirando a Requerente a conclusão de que o imposto indevidamente retido lhe deverá ser reembolsado – sendo declarada a ilegalidade da liquidação e reconhecido o direito a juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento das liquidações anuladas, nos termos do art. 43.º da LGT (como também o determina o Ofício-Circulado n.º 60 052, de 03.10.2006, do SDG da Justiça Tributária).

14.  Aditando que, para preenchimento desse direito a juros indemnizatórios, há erro imputável aos serviços, o que sempre ocorre em casos em que se esteja perante uma situação de substituição tributária, e que não seja o próprio contribuinte a entregar e a liquidar o imposto junto dos Serviços.

15.  Em alegações, a Requerente retoma o essencial da argumentação já apresentada no seu pedido de constituição do tribunal arbitral e no requerimento de 4 de Julho de 2025, destacando a refutação das questões prévias relativas a elementos factuais – qualificação como OIC, efectividade da retenção na fonte, insusceptibilidade de “recuperação” de imposto no Luxemburgo.

 

IV. B. Posição da Requerida

 

16.  A Requerida começa por invocar o Acórdão Schumacker do TJUE (Proc. C-279/03), que admite que, em direito internacional, e em matéria de impostos directos, as relações entre residentes e não residentes não são comparáveis, pois apresentam diferenças objectivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar ou pessoal – para concluir que, aí onde não há comparabilidade, não é possível determinar se existe, ou não, discriminação. Concluindo até o Acórdão Truck Center (C-282/07), que sujeitos passivos residentes e não-residentes não se encontram numa situação objectivamente comparável.

17.  Aditando que, no caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento se encontram plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português, o que é atendível em termos comunitários por razões de interesse geral e de coerência do sistema fiscal nacional.

18.  Além de que as restrições aparentes à livre circulação de capitais devem ser contrabalançadas por uma averiguação quanto à eventual existência de uma neutralização da desvantagem da entidade não-residente por via de uma Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação que seja aplicável àquela entidade não-residente.

19.  A Requerida faz notar que o benefício instituído para residentes pelo art. 22.º do EBF foi contrabalançado pela criação de uma taxa de IS incidente sobre o activo global líquido dos OIC, e que evidentemente só onera os OIC residentes; e pela tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do art. 88.º, 11 do CIRC e do art. 22.º, 8 do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período – novamente onerando somente os OIC residentes.

20.  Além disso, para lá de colocar em dúvida o rigor de qualquer comparação nesta sede, a Requerida assinala ainda que, ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores. Pelo que a análise não poderá cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, devendo atender-se à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo art. 22.º do EBF relativamente aos dividendos e aos juros, pois só com esta visão global poderá concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos não-residentes que investem em Portugal são colocados numa situação desfavorável face aos fundos residentes.

21.  Daqui resultaria uma avaliação global inconclusiva, que não autorizaria a inferência categórica de que ocorreu uma discriminação, e mais ainda uma discriminação atentatória da liberdade de circulação de capitais.

22.  A Requerida assinala também que está adstrita ao princípio da legalidade positivada (art. 3.º do CPA, art. 2.º, c) da LGT), não lhe cabendo acatar as orientações interpretativas do TJUE, avaliar a compatibilidade do direito interno português com o direito da União, ou retirar corolários de qualquer incompatibilidade.

23.  Por outro lado, a Requerida sustenta que a Requerente somente alegou, mas não provou, que no caso não houve um crédito de imposto por dupla tributação internacional, a favor da Requerente ou dos seus investidores – o que faria, se tal crédito tivesse ocorrido, com que a oneração dos OICs não residentes fosse ainda menor do que a dos residentes.

24.  Por outro lado ainda, a Requerida sustenta que a jurisprudência do TJUE não tem a força obrigatória geral que a Requerente pretende atribuir-lhe, e que as decisões do TJUE, como as de qualquer outro tribunal, têm força dentro do processo a que se aplicam, e dependem, portanto, de circunstâncias concretas, não necessariamente generalizáveis.

25.  Peticionando a improcedência do pedido, a Requerida entende que não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, até por não reconhecer qualquer erro que possa ser imputado aos seus serviços.

26.  Em alegações, a Requerida retoma os argumentos já expendidos na sua resposta.

 

IV. C. Fundamentação da decisão

 

IV. C.1. Objecto

 

1.     A questão a decidir no presente processo é idêntica a outras sobre as quais a arbitragem do CAAD tem sido chamada a pronunciar-se, e reconduz-se a saber se o art. 63º do TFUE deve, ou não, ser interpretado no sentido de vedar que a legislação de um Estado‑Membro imponha a retenção na fonte da tributação correspondente a juros e dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não-residente, ao passo que os juros e dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

2.     No caso, devemos apreciar a legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, e, mediatamente, a legalidade das liquidações de IRC, por retenção na fonte, que incidiram sobre os juros de fonte portuguesa auferidos pela Requerente em 2020, para efeitos de se saber se deve seguir-se a restituição do imposto retido, acrescido de juros indemnizatórios.

3.     Reiterando que consideramos ultrapassadas as questões prévias que, no plano da factualidade, a Requerida colocou, e nomeadamente: a prova de que a Requerente é um genuíno Organismo de Investimento Colectivo (OIC); que está feita a prova das retenções na fonte; e que, para efeitos de comparabilidade, a questão da prova de impossibilidade de recuperação de imposto no Estado de residência ou na esfera dos investidores se tornou irrelevante por força da evolução jurisprudencial, seja no TJUE (acórdão AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, §§ 49, 52, 56, 66 e 67), seja no STA (acórdão uniformizador de jurisprudência de 28 de Setembro de 2023, Proc. n.º 93/19.7BALSB).

4.     Quanto a este último ponto, insista-se que é dispensada a prova negativa quanto a uma eventual “neutralização” do tratamento discriminatório – por exemplo, pela via de um crédito de imposto por dupla tributação internacional, parcial ou total, tanto na esfera da Requerente como na esfera dos investidores da Requerente, aplicado no Estado de Residência do OIC, ou dos investidores. Isto porque o TJUE tem sido consistente em rejeitar a neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição unilateral de uma vantagem no Estado da Residência; rejeitando, assim, a noção de que o tratamento discriminatório no Estado da Fonte dependa de uma análise integrada da situação global do contribuinte, ou seja, de uma análise que combine a tributação resultante da legislação nacional do Estado da Fonte e do Estado da Residência.

5.     Trata-se, aqui, de um entendimento que radica no princípio de que os Estados-Membros não podem exercer a sua soberania fiscal de forma a introduzir uma discriminação contrária às regras do Direito da União, não podendo valer-se de pretextos de “simetrias” ou de “neutralizações” entre regimes fiscais de Estados diversos.

6.     Isso não significa que o TJUE não reconheça a necessidade de se ponderar o regime resultante das CDTs para se poder tirar conclusões rigorosas sobre o tratamento discriminatório – e isto porque as CDTs são, elas próprias, parte do sistema fiscal do Estado da Fonte, pelo que a respectiva consideração é crucial para se determinar se o Estado da Fonte exerceu a sua soberania fiscal de forma conforme às regras do Direito da União. Como se consagrou no Acórdão do TJUE de 7 de Outubro de 2005, Amurta v. Inspecteur van de Belastingdienst, Proc. C-379/05:

80. Na medida em que o regime fiscal resultante de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tomá-lo em consideração a fim de dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao juiz nacional (…)

84. Há assim que responder à segunda questão que um Estado-Membro não pode invocar a existência de um crédito integral de imposto, concedido unilateralmente por outro Estado-Membro a uma sociedade beneficiária estabelecida neste último Estado-Membro, a fim de se eximir à obrigação de evitar a dupla tributação económica dos dividendos resultantes do exercício do seu poder de tributação, numa situação em que o primeiro Estado-Membro evita a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos às sociedades beneficiárias estabelecidas no seu território. Quando um Estado-Membro invoca uma convenção celebrada com outro Estado-Membro, destinada a evitar a dupla tributação, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração essa convenção no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais”.

7.     A mesma orientação de que as CDTs devem ser consideradas para determinar a existência de um tratamento discriminatório tem sido seguida, com elevado grau de consistência, pelo TJUE, como fica consignado no acórdão de 14 de Dezembro de 2006, Denkavit Internationaal BV v. Ministre de l’Économie, Proc. C-170/05.

8.     Assim, no caso vertente, a aplicação da CDT entre Portugal e o Luxemburgo, nos termos da qual os juros auferidos pela Requerente foram sujeitos a uma taxa de retenção na fonte reduzida (15%), não resultou na neutralização da diferença de tratamento, resultante da legislação nacional portuguesa, entre os juros auferidos por OICs com residência fiscal em Portugal e os juros auferidos pelo Requerente.

9.     E, sendo irrelevante para a existência de discriminação violadora da liberdade de circulação consagrada pelo Direito da União a existência de eventuais compensações internas concedidas ao OIC ou aos seus investidores pelo sistema fiscal luxemburguês, subsiste em aberto, nos precisos termos de afronta ao disposto no art. 63.º do TFUE, o problema suscitado pela Requerente, primeiro na Reclamação Graciosa, e agora no presente Processo.

 

IV. C.2. O art. 22º do EBF

 

10.  Regressados à questão principal que é objecto deste Processo, lembremos que ela se centra no artigo 22.º do EBF: o n.º 1 dessa norma dispõe que “são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo, portanto, do âmbito do regime aí previsto os OIC como o Requerente, que não foram constituídos de acordo com a legislação nacional. 

11.  O art. 22.º do EBF estabelece um regime consideravelmente mais favorável do que o regime geral de tributação em IRC, visto que, nos termos do seu n.º 3, não considera os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – excepto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1, e a isenção de derramas, estadual e municipal.

12.  O n.° 10 do mesmo artigo dispensa as empresas que distribuem juros e dividendos aos OIC da obrigação de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.

13.  Importa saber se a retenção na fonte em IRC sobre os juros distribuídos, por sociedades residentes em Portugal, a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros, ou em Estados terceiros – ao mesmo tempo que se isenta de tributação a distribuição de juros e dividendos a OIC residentes em Portugal, e se sujeita os mesmos a tributação trimestral em IS, pela verba 29 da TGIS, e à eventual aplicação da tributação autónoma, designadamente a prevista no artigo 88.º, 11 do CIRC – é conforme, ou não, com o art. 63º do TFUE.

14.  Trata-se, em suma, de aferir da conformidade com este artigo, à data dos factos relevantes, das pertinentes normas do CIRC e do EBF respeitantes ao regime de tributação dos juros auferidos pela Requerente.

 

IV. C.3. A liberdade de circulação de capitais

 

15.  O art. 26.º do TFUE estabelece uma conexão substantiva entre a criação do mercado interno e a liberdade de circulação de capitais, elevada esta, pelo art. 63.º do TFUE, ao estatuto de liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.

16.  A mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno dos Estados-Membros, cabendo aos tribunais nacionais, na sua qualidade de tribunais europeus em sentido amplo, assegurar a primazia de aplicação do direito da União Europeia, desaplicando o direito nacional de sentido contrário.

17.  A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efectiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia, através da mais fácil disponibilização de capital.

18.  O objectivo dos OIC, cujo enquadramento jurídico é definido pela Directiva 2009/65/CE, consiste em facilitar a participação dos investidores privados num mercado de valores mobiliários, idealmente integrado a nível da UE. 

19.  O TJUE desempenha uma função interpretativa decisiva, nomeadamente em sede de acções por incumprimento e de reenvios prejudiciais, devendo os tribunais nacionais conformar-se com o entendimento sobre as normas dos Tratados que venha a ser vertido na jurisprudência daquele Tribunal, sob pena de incumprimento do direito da União Europeia e de responsabilidade por parte do Estado-Membro. 

20.  A liberdade de circulação de capitais, consagrada no art. 63.º do TFUE, implica a proibição de discriminação entre capitais de um dado Estado-Membro, e capitais provenientes de fora desse Estado.

21.  Trata-se de uma norma directamente aplicável aos Estados-Membros, que devem abster-se de restringir o seu alcance por via legislativa, administrativa ou jurisdicional, embora isso não impeça os Estados-Membros de regularem em alguma medida a circulação de capitais, desde que o façam em termos compatíveis com o direito da União Europeia. 

22.  A autonomia fiscal permite aos Estados‑Membros regularem soberanamente as condições de tributação aplicáveis, desde que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais.

23.  Não obstante a fiscalidade directa ser da competência dos Estados‑Membros, o respectivo regime jurídico deve respeitar o direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.

24.  O TJUE tem sustentado que a existência de meras “divergências” entre os sistemas fiscais nacionais não é suficiente para declarar a existência de uma tal restrição.

25.  Na ausência de harmonização no plano da União Europeia, as desvantagens que podem resultar do exercício paralelo de competências dos diferentes Estados‑Membros, desde que o exercício não seja discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação. 

26.  Um dos domínios do âmbito e do programa normativo da liberdade de circulação de capitais do art. 63.º do TFUE diz especificamente respeito ao tratamento fiscal dos movimentos de capitais.

27.  A densificação do âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais tem sido levada a cabo pelo TJUE, acolhendo e sublinhando o valor enumerativo, mas não exaustivo, da Directiva n.º 88/361/CEE, de 24 de Junho de 1988, incluindo o respectivo Anexo I número IV, no qual se integra, no conceito de liberdade de circulação, um amplo conjunto de operações e transacções transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento colectivo, nas quais se incluem as que estão em causa nos presentes autos: razão pela qual a distribuição de juros efectuados à Requerente por uma sociedade residente em Portugal deve ser qualificada como “movimento de capital”, na acepção do art. 63.º do TFUE e da própria Directiva 88/361/CEE.

28.  Comecemos por esclarecer que a questão do tratamento fiscal da distribuição de juros e dividendos tem ocupado um lugar central na jurisprudência europeia, incluindo não apenas o TJUE, mas também o Tribunal EFTA[2].

29.  Este último órgão, no caso Focus Bank, e o TJUE, em casos como, entre outros, ACT GLODenkavitAmurtaTruck CenterAberdeen PropertyComissão v. Países BaixosComissão v. Portugal, Santander Asset Management e Sofina SA, a despeito das diferenças factuais e jurídicas nas respectivas decisões, apontam globalmente no sentido de dever considerar-se que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não-residentes – por exemplo imputando aos investidores residentes um crédito de imposto e sujeitando as entidades não-residentes a retenção de imposto sem imputação; ou retendo imposto sobre juros e dividendos pagos a não-residentes e não retendo no caso de juros e dividendos pagos a residentes – configura, em princípio, uma violação da liberdade de circulação de capitais, e nalguns casos também da liberdade de estabelecimento, pondo em causa o funcionamento do mercado interno.

30.  Confirmando a existência de uma área apreciável de divergências interpretativas neste domínio, as conclusões da Advogada Geral (AG) Kokott, apresentadas a propósito de um reenvio prejudicial apresentado num processo arbitral do CAAD (Processo n.º 93/2019-T), vieram sustentar uma leitura menos “formalista” do art. 63º do TFUE, reconhecendo uma maior amplitude aos Estados-Membros na conformação do regime fiscal dos OIC residentes e não-residentes, concluindo que esse artigo não se opõe à aplicação de retenção na fonte aos juros e dividendos distribuídos por uma sociedade residente, quando esses juros e dividendos sejam distribuídos a um OIC não-residente que não esteja sujeito ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no seu Estado de residência.

 

IV. C.4. A decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN no TJUE

 

31.  Os argumentos sustentados pela AT foram rebatidos na decisão do Processo (CAAD) n.º 166/2021-T, tendo sido posteriormente rejeitados pelo TJUE, na sua decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19), que entendeu que

o artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

32.  Como esta decisão considerou expressamente o regime fiscal em causa no presente processo, e, estando os tribunais nacionais juridicamente obrigados a seguir a jurisprudência do TJUE, impõe-se seguir a sua argumentação, e é o que faremos a partir daqui. 

33.  No caso AllianzGI-Fonds AEVNo TJUE reiterou o seu entendimento de que, embora não estejam sempre numa situação comparável, residentes e não-residentes são colocados nessa posição a partir do momento em que um Estado-Membro, unilateralmente ou por convenção, opte por tributar os accionistas ou obrigacionistas não-residentes de maneira menos favorável do que os residentes, relativamente aos juros e dividendos que uns e outros recebam de sociedades residentes.

34.  Especialmente relevante, em sede das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais – a liberdade que o TJUE entendeu ser pertinente neste caso –, é o facto de o tratamento fiscal menos favorável dos não-residentes os dissuadir, na qualidade de accionistas ou obrigacionistas, de investirem no Estado da residência das empresas pagadoras de juros e distribuidoras de dividendos, e constituir, igualmente, um obstáculo à obtenção de capital no exterior, por parte dessas empresas.

35.  Para o TJUE, é significativo o facto de que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os juros e dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro, ou num Estado terceiro, não podem beneficiar dessa isenção.

36.  No entender do TJUE, ao proceder a uma retenção na fonte sobre os juros e dividendos pagos aos OIC não-residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa procede a um tratamento desfavorável dos juros e dividendos pagos aos OIC não-residentes, susceptível de dissuadir, por um lado, os OIC não-residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal, e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC – constituindo, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo art. 63.º do TFUE. 

37.  No entendimento do TJUE, o facto de o art. 65.º, 1, a) do TFUE estabelecer que o disposto no art. 63.º do TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação, no que se refere ao seu lugar de residência, ou ao lugar em que o seu capital é investido, não isenta um Estado-Membro de cumprir as suas obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno, nem o exonera pela simples circunstância de esse Estado poder pensar que outro Estado-Membro, ou um Estado terceiro, se encarregará de compensar, de alguma maneira, o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação[3].

38.  É entendimento do TJUE, portanto, que as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos juros e dividendos pagos a residentes e não-residentes pelo Estado da Fonte, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de tais rendimentos. 

39.  O TJUE tem sustentado que, quando se trata de interpretar e aplicar as liberdades fundamentais do mercado interno, prevalece o entendimento segundo o qual a liberdade é a regra, e as restrições à liberdade são a excepção: pelo que o art. 65.º, 1, a) do TFUE, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita.

40.  Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre contribuintes, em função do lugar em que residam, ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais, é automaticamente compatível com o TFUE.

41.  Com efeito, a derrogação prevista no art. 65º, 1, a) do TFUE é, ela própria, limitada pelo disposto no nº 3 do mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o nº 1 desse artigo não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos: ou seja, as restrições têm como limite a garantia da própria liberdade de circulação de capitais[4].

42.  No entender do TJUE, plasmado na decisão AllianzGI-Fonds AEVN, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo art. 65.º, 1, a) do TFUE, das discriminações proibidas pelo nº 3 do mesmo artigo.

43.  Para que o regime fiscal nacional possa ser considerado compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objectivamente comparáveis, ou que ela se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral.

44.  Sobre a questão de saber se a situação dos fundos de investimento residentes e não residentes em Portugal é objectivamente comparável, o TJUE, depois de ponderados os argumentos do Estado Português (em tudo idênticos aos aqui expostos pela AT), reiterou o seu entendimento segundo o qual, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não-residentes, relativamente aos juros ou dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não-residentes passa a assemelhar-se à dos contribuintes residentes. 

45.  No caso AllianzGI-Fonds AEVN, o TJUE considerou que a legislação nacional em causa no processo principal – o mesmo regime fiscal aqui em análise – não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de juros e dividendos de origem nacional; mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos rendimentos que onera apenas os OIC não-residentes.

46.  Por exemplo, no que respeita ao Imposto do Selo (IS), o TJUE entendeu serem decisivos o facto de, por um lado, a sua matéria colectável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, sendo esse IS um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas; e, por outro lado, a legislação fiscal portuguesa distinguir, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido IS.

47.  Com efeito, observa o TJUE, mesmo considerando que esse mesmo IS possa ser equiparado a um imposto sobre os juros ou dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação procedendo ao seu pagamento ou distribuição imediatos, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não-residente.

48.  Quanto ao imposto específico previsto no art. 88º, 11 do CIRC, o TJUE, na decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, considerou significativo o facto de este imposto só incidir sobre os juros ou dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

49.  Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os juros e dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objecto os juros e dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não-residentes.

50.  Por conseguinte, a circunstância de os OIC não-residentes não estarem sujeitos ao IS e ao imposto específico previsto no art. 88º, 11 do CIRC não os coloca numa situação objectivamente diferente da situação dos OIC residentes, no que se refere à tributação dos juros e dividendos de origem portuguesa. 

51.  Quanto à alegada necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, o TJUE, na decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, entendeu que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro em causa deve ser examinada tendo em conta o objectivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas.

52.  No caso em apreço, no que diz respeito ao objecto, ao conteúdo e ao objectivo do regime português em matéria de tributação dos juros e dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, o TJUE entendeu que o referido regime foi concebido numa lógica de “tributação à saída”, ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando dele isentos os detentores de participações sociais não-residentes.

53.  Para o TJUE, se se concluir que o regime português em matéria de tributação dos juros e dividendos visa transferir essa tributação para a esfera dos detentores de participações sociais dos OIC, no intuito de não renunciar pura e simplesmente à tributação dos juros e dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal, deve entender-se que, se o objectivo da legislação nacional em causa é comprovadamente o de deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o obrigacionista ou accionista desse veículo, são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos obrigacionistas ou accionistas que devem ser consideradas determinantes, e não a técnica de tributação utilizada.

54.  A Requerente, residente no Luxemburgo, pode ter investidores estrangeiros, incluindo portugueses, e os fundos fiscalmente residentes em Portugal podem ter investidores estrangeiros, incluindo luxemburgueses.

55.  Mas a presente acção não foi intentada pelos investidores, nem os mesmos são partes nela, nem é lícito chamar à colação a posição dos referidos investidores.

56.  Por seu lado, o art. 22º do EBF não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos juros ou dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC, residentes ou não residentes, e a situação fiscal dos seus detentores de participações.

57.  Da mesma forma, a AT não afere da posição dos investidores em OIC residentes para efeitos fiscais em Portugal, para reconhecer a estes o regime fiscal previsto no art. 22º do EBF. 

58.  Seria administrativamente impraticável, e excessivamente oneroso, proceder-se a uma determinação caso a caso, totalmente particularizada, para cada OIC não-residente, ou investidor individual, com o único fito de aumentar as receitas tributárias dos Estados-Membros. É que tanto os fundos residentes em Portugal, como os não-residentes, podem ter titulares institucionais e individuais de todos os Estados da União Europeia, e de Estados terceiros: será, portanto, administrativamente mais praticável, e muito menos oneroso, circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não-residentes a quem são pagos juros ou distribuídos dividendos, obtendo-se a informação relevante numa única determinação, sem necessidade de particularizar as situações de benefício económico último. 

59.  Por outras palavras: considerando que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não-residentes a uma retenção na fonte dos rendimentos de capital que recebem, o que deve relevar é o impacto directo que as normas tributárias têm na actividade dos fundos, e não na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, o que deve ser considerado normal, até porque os investimentos transfronteiriços são um dos objectivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais no âmbito da União Europeia.

60.  Em suma, o rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo, e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu Estado de Residência, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais. 

61.  Regressando ao plano dos Fundos: a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de juros ou dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não-residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia.

62.  Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa, que tem por critério o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objectiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não-residentes.

63.  Logo, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não-residentes diz respeito a situações objectivamente comparáveis.

64.  Por outro lado, como reconheceu o TJUE no caso caso AllianzGI-Fonds AEVN, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objectivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objectivo, sendo tais razões, por um lado, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, e, por outro, a de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e outro Estado-Membro da UE, ou um Estado terceiro.

65.  Quanto à primeira razão, sempre se poderia alegar que essa coerência só seria garantida se a entidade gestora do OIC não-residente operasse em Portugal através de um estabelecimento estável, de modo a que essa entidade pudesse concretizar as retenções na fonte necessárias junto dos detentores de participações sociais residentes, bem como, em certos casos excepcionais, orientados por considerações ligadas ao facto de evitar o planeamento fiscal, junto dos detentores de participações sociais não-residentes.

66.  Contudo, para que um argumento baseado nessa justificação pudesse ser acolhido, seria necessário que estivesse demonstrada a existência de uma relação directa entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal.

67.  Ora, a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção, visto que a isenção da retenção na fonte dos juros e dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os rendimentos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes, e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte; não se podendo, pois, falar de uma relação directa, na acepção da jurisprudência do TJUE, entre a isenção da retenção na fonte dos juros e dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos juros e dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.

68.  No tocante ao objectivo de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e outro Estado-Membro da UE, ou de um Estado terceiro, o mesmo só pode ser admitido quando o regime em causa vise prevenir comportamentos susceptíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro de exercer a sua competência fiscal em relação às actividades realizadas no seu próprio território; pelo que, se Portugal optou por não tributar os OIC residentes beneficiários de juros e dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros, ou relativamente a Estados terceiros, para justificar a tributação dos OIC não-residentes beneficiários desses rendimentos.

69.  A esta luz, o art. 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que estabeleça que os juros e dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não-residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os juros e dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção – sendo esta a principal conclusão que, com firmeza, se alcança na decisão do TJUE no caso AllianzGI-Fonds AEVN, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19).

 

IV. C.5. A Uniformização de Jurisprudência: o Acórdão nº 7/2024 do STA

 

70.  Decidindo de um recurso por oposição entre acórdãos arbitrais, o STA, em Acórdão de 28 de Setembro de 2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB (publicado em 26 de Fevereiro de 2024), uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:

Conclusões:

1 — Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;

— O artº.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;

— A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

71.  Acolhendo expressamente, pois, a orientação adoptada pelo TJUE na sua decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19), o STA remove, deste modo, as últimas dúvidas que pudessem subsistir quanto à consagração jurisprudencial da referida orientação.

72.  E isso não pode, evidentemente, deixar de repercutir-se no mérito da presente causa, e na decisão a que este Tribunal chega.

73.  Conduzindo à conclusão de que os actos de retenção na fonte objecto dos presentes autos, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que se lhes reportou, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no art. 163.º, 1 do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do art. 2.º, c), da LGT e do art. 29º, 1, d) do RJAT.

 

IV. C.6. O direito aos juros indemnizatórios

 

74.  A Requerente peticiona o pagamento de juros indemnizatórios, relativamente ao montante indevidamente retido na fonte.

75.  Dispõe o art. 24.º, b) do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

76.  É hoje consensual que os tribunais arbitrais abarcam nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, até porque o processo arbitral foi desenhado como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Por sua vez, o processo de impugnação admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do teor do art. 43.º, 1 da LGT, em que se dispõe que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do art. 61.º, 4 do CPPT, que estabelece que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

77.  Igualmente o art. 24.º, 5 do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser interpretado e aplicado como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. 

78.  No caso em apreço, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como ele tem sido interpretado pelo TJUE, e agora é interpretado pelo STA.

79.  Sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal Arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respectiva ilegalidade. 

80.  Nos termos dos artigos 61.º do CPPT e 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando, anulados os actos por vício de violação de lei, se apure que a culpa do erro subjacente à anulação do acto é imputável aos serviços da Administração Tributária, ou, em bom rigor, não é imputável ao contribuinte.

81.  Uma vez verificado o erro, e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente retidos, a Requerente tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores (ilegalmente retidos) até integral restituição, sendo indiferente, ao reconhecimento desse direito, que o erro decorra especialmente da violação de normas da União Europeia, e não apenas de normas nacionais. 

82.  Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, para efeitos da aplicação art. 43º da LGT.

83.  Lembremos que, de acordo com a jurisprudência do STA:

¾   “em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação” – acórdãos de 31/10/2001, Proc. n.º 26167, e de 24/04/2002, Proc. n.º 117/02; 

¾   “Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da LGT, havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. [§] Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado” – acórdão de 07/11/2001, Proc. n.º 26404; 

¾   “há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária” – acórdão de 21/11/2001, Proc. n.º 26415; 

¾   “os juros indemnizatórios previstos no art. 43.º da LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação” – acórdãos de 28/11/2001, Proc. n.º 26223, e de 16/01/2002, Proc. n.º 26508. 

84.  À luz desta jurisprudência, não sendo os erros que afectam as retenções na fonte imputáveis ao Requerente, eles são imputáveis à Requerida. O facto de se tratar de actos de retenção na fonte, não praticados directamente pela AT, não afasta essa imputabilidade, pois a ilegalidade da retenção na fonte, quando não é baseada em informações erradas do próprio contribuinte, não lhe é imputável, mas sim aos serviços, devendo entender-se que se integra neste conceito a entidade que procede à retenção na fonte, na qualidade de substituto tributário, que assume perante quem suporta o encargo do imposto o papel da AT na liquidação e cobrança do imposto.

85.  O Pleno do STA uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29/6/2022, Proc. n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos: 

Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

86.  Assim, segundo essa jurisprudência uniformizada do STA, que por isso deve ser acatada, em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa, os juros indemnizatórios devem ser contados, não desde a data do pagamento indevido do imposto – como dispõe o art. 61º, 5 do CPPT – mas desde a data do indeferimento da reclamação graciosa, momento em que se consuma o “erro imputável aos serviços”.

87.  Logo, os juros indemnizatórios contam-se a partir da data do indeferimento tácito, ou presumido, da reclamação graciosa. Atendendo ao estabelecido no art. 61º do CPPT, tais juros são calculados à taxa legal, e contados até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos.

 

IV. C.7. Questões prejudicadas

 

88.  Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria, por isso, inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar improcedentes as excepções apresentadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

b)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade dos actos tributários de retenção na fonte ora sindicados, por erro nos pressupostos de direito, especificamente por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63º do TFUE, e declarando a ilegalidade do indeferimento tácito, ou presumido, da reclamação graciosa apresentada contra tais actos tributários;

c)     Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição da quantia relativa a essas retenções na fonte;

d)    Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde 7 de Dezembro de 2024, a data do indeferimento tácito, ou presumido, da reclamação graciosa, até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos;

e)     Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo. 

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 393.250,00 (trezentos e noventa e três mil, duzentos cinquenta euros), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT). 

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 6.426,00 (seis mil, quatrocentos e vinte e seis euros) a cargo da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 5 de Novembro de 2025

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Manuel Lopes Faustino

 

 

 

Marta Vicente

 



[1] Lembremos que que o Tribunal Constitucional, no Acórdão 244/2018, proferido em 11 de Maio de 2018 no processo 636/2017, concluiu pela “não inconstitucionalidade da norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”.

[2] Cfr., sobre esta matéria, Christiana Hji Panayi, European Union Corporate Tax Law, Cambridge, 2013, 253 ss. 

[3] Case E – 1/04, Focus Bank ASA v. The Norwegian State, 23-11-2004. 

[4] C-358/93, C-416/93, Bordessa, 23-02-1995.