SUMÁRIO
A revogação parcial pela AT do ato tributário na exata parte do objeto do pedido de pronúncia arbitral, após a instauração deste, determina a sua inutilidade superveniente no tocante a tal matéria, devendo ainda o Tribunal Arbitral conhecer de pedidos acessórios conexos, como o caso da validade de juros compensatórios impugnados que não foram abrangidos por essa revogação parcial do ato tributário.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 22 de abril de 2025, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO
1. Em 7 de fevereiro de 2025, A..., contribuinte n.º..., residente na..., n.º ..., ... ..., Bruxelas, Bélgica, apresentou Pedido de Pronúncia Arbitral tendo por objeto o ato de liquidação de IRS n.º 2024..., no valor de € 27.528,18 (vinte e sete mil, quinhentos e vinte e oito euros e dezoito cêntimos) e o ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2024..., no montante de € 3.472,38 (três mil, quatrocentos e setenta e dois euros e trinta e oito cêntimos), relativos ao ano de 2020, no valor total de € 31.000,56 (trinta e um mil euros e cinquenta e seis cêntimos) e, ainda, a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2024..., na qual se apurou um saldo a pagar de € 28.861,38 (vinte e oito mil, oitocentos e sessenta e um euros e trinta e oito cêntimos).
O Requerente solicitou, por consequência porque pagos, o reembolso dos valores indevidamente entregues a título de IRS e de juros compensatórios por causa da ilegalidade da liquidação efetuada, acrescidos de juros indemnizatórios pelo dano causado por tais pagamentos indevidos.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 10 de fevereiro de 2025, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada, nessa data, à Autoridade Tributária (AT), ora Requerida.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 1 de abril de 2025, designou o árbitro signatário, que comunicou, no prazo legalmente estipulado, a aceitação do respetivo encargo.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.
5. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 22 de abril de 2024, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta.
6. Em 6 de junho de 2025, a Requerida apresentou a resposta, assim como juntou o processo administrativo.
7. Tendo havido por parte da Requerida a indicação da revogação do ato tributário, suscitou-se a possível inutilidade superveniente da lide, havendo somente a divergência quanto ao pagamento dos juros compensatórias no que tange à parte do ato tributário que se manteve eficaz, podendo o Tribunal Arbitral decidir, dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, sobre este ponto tendo tido, ambas as partes, ocasião para se pronunciarem.
II. SANEAMENTO
8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 22 de abril de 2025, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
9. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
10. O processo não padece de vícios que o invalidem.
11. Cumpre, então, apreciar e decidir.
III. DOS FACTOS
12. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, fixa-se como segue:
A) Factos Provados
13. O Requerente é A..., contribuinte n.º..., residente na..., n.º..., ... ..., Bruxelas, Bélgica.
14. Foi destinatário de um ato de liquidação de IRS n.º 2021..., relativo ao ano de 2020, que previa um valor a pagar de € 2.139,18 (dois mil, cento e trinta e nove euros e dezoito cêntimos), tendo o Requerente procedido ao pagamento da referida quantia de forma voluntária.
15. O Requerente foi depois notificado, mediante o Ofício n.º..., datado de 30 de Outubro de 2024, da Divisão de Tributação e Cobrança da Direcção de Finanças de Braga, do projeto de decisão de alteração, ao abrigo do disposto no artigo 65.º, n.º 4, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”), da declaração de rendimentos do ano de 2020, por si entregue para, querendo, exercer o seu direito de audição prévia, no prazo de 15 dias, tendo manifestado a sua discordância do mesmo.
16. Mais tarde, foi o Requerente notificado do ato de liquidação de IRS n.º 2024..., no valor de € 27.528,18 (vinte e sete mil, quinhentos e vinte e oito euros e dezoito cêntimos) e do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2024..., no montante de € 3.472,38 (três mil, quatrocentos e setenta e dois euros e trinta e oito cêntimos), relativos ao ano de 2020, no valor total de € 31.000,56 (trinta e um mil euros e cinquenta e seis cêntimos) e, ainda, da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2024..., na qual se apurou um saldo a pagar pelo aqui Requerente de € 28.861,38 (vinte e oito mil, oitocentos e sessenta e um euros e trinta e oito cêntimos), tendo feito o seu pagamento, não obstante dele discordar.
17. Na sequência da impugnação graciosa efetuada, a AT, por decisão da Diretora-Geral de 31 de maio de 2025, entendeu por bem dar razão ao Requerente na parte em que este pediu a anulação do ato tributário, revogando parcialmente o ato de liquidação e devolvendo os respetivos valores a título de IRS e de juros compensatórios, aceitando ainda pagar os correspetivos juros indemnizatórios.
18. Contudo, nessa decisão revogatória, a AT considerou como devidos os juros compensatórios na parte da decisão que se manteve em vigor, por ter havido o retardamento do ato de liquidação imputável ao Requerente, posição por este contestada.
B) Factos não provados
19. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C) Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
20. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
21. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].
22. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos.
IV. DO DIREITO
A) A inutilidade superveniente parcial da lide como consequência da revogação parcial do ato tributário e os juros indemnizatórios devidos
23. No que tange ao ato tributário impugnado, a resposta da AT foi no sentido de dar razão ao requerente, revogando-o na parte em que aquele entendia a mesma ser ilegal, após a instauração do processo arbitral.
24. Isso implicou por parte da Requerida a aceitação da devolução dos valores correspondentes tanto ao imposto indevidamente pago como aos valores correspondentes aos juros indemnizatórios resultantes da ilegalidade praticada pela Requerida, que esta corrigiu com aquela revogação parcial.
25. Põe-se, por isso, justamente a questão da verificação de uma causa para se decidir a inutilidade superveniente da lide.
26. A inutilidade superveniente da lide é, nos termos do disposto na al. e) do art 277.º do CPC, aplicável ex vi do art. 29.º do RJAT, uma causa de extinção da instância, a qual acontece quando, “por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”.
27. O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no Processo n.º 0875/14, de 30.07.2014, explica-o muito bem: “I – A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”.
28. Acresce que o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no Processo n.º 07433/14, de 10.04.2014, refere que “1. Entre as causas de extinção da instância do processo declarativo, as quais são aplicáveis à execução supletivamente, conforme dispõe o art. 551.º, n.º 1, do CPC, na redação da Lei nº 41/2013, de 26/6, vamos encontrar a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (cfr. art. 277.º, al. e), do CPC)”.
29. Deste modo, importa saber se se preenchem os requisitos para que possa operar esta causa de extinção da instância, considerando o ato revogatório praticado pela Requerida:
- a inutilidade da lide, por a mesma se mostrar desprovida de efeitos jurídicos práticos; e
- por facto posterior ao início da instância, sendo superveniente.
30. A inutilidade superveniente da lide comprova-se porque, tendo havido a revogação do ato de liquidação impugnado, fica satisfeita a pretensão do Requerente, não tendo interesse prosseguir com os autos quanto a uma decisão final.
Assim, deve a decisão do presente Tribunal Arbitral ser no sentido de se declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de pronúncia realizado, em conformidade com o previsto na al. c) do art. 277.º do CPC, aplicável ex vi da al. e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT.
31. Por outro lado, a extinção da instância deve-se a facto posterior ao da constituição do Tribunal Arbitral porque é precisamente na resposta dada pela Requerida à notícia da criação daquele que surge a informação acerca da revogação dos atos tributários em crise, ocorrido em 31 de maio de 2025.
B) O pagamento de juros compensatórios pelo retardamento da tributação que se manteve vigente
32. Porém, o litígio não ficou totalmente resolvido com aquela posição superveniente da Requerida porque o Requerente entendeu que não teria de pagar juros compensatórios quanto à parte da liquidação que se manteve em vigor.
33. Segundo o disposto no artigo 35.º da LGT, com a epígrafe “Juros compensatórios”, “1 – São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.”
34. O principal argumento para considerar ilegal a exigência desses juros dado pelo Requerente diz respeito ao facto de a AT não ter fundamentado a sua decretação.
35. Não assiste razão ao Requerente porque não se entrevê da consulta do processo administrativo qualquer omissão relativa ao assunto.
36. Antes pelo contrário: depois de se ter sugerido, para despacho superior, a revogação parcial da decisão em crise e, nessa parte, o pagamento de juros indemnizatórios, assinalou-se que se devia manter o pagamento de juros compensatórios na parte não revogada, ponderando-se o retardamento da tributação imputável ao contribuinte por incorreto preenchimento deste da sua declaração.
37. É de transcrever o que se diz no texto da decisão de revogação da AT, nos pontos 20 a 24:
“20.Assim, a fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.
“21.Ora, observando a demonstração da liquidação de juros, conclui-se que daquela constam expressamente o cálculo de juros.
“22.Efetuado este esclarecimento, cumpre observar a acima mencionada demonstração de juros, da qual constam:
- O período de tributação (01/01/2020 a 31/12/2020).
- O número do documento base (a liquidação de IRS) sobre a qual incidiram (2024..., IRS, ato tributário colocado em crise no presente processo).
- O seu próprio número (liquidação de juros 2024...).
- Os valores base (sobre os quais incidiram os juros - 25.389,00€).
- O período de cálculo, de 01/07/2021 (primeiro dia após o termo do prazo para entrega de declarações modelo 3 de IRS relativas a rendimentos auferidos no ano de 2020) a 29/11/2024 (data de preenchimento da declaração oficiosa que deu origem à liquidação contestada, conforme disposto no nº 5 do art. 35º da LGT).
- E o valor apurado (3.472,38€).
“23.Da demonstração de liquidação constam ainda a causa da realização da mesma (Retardamento da Liquidação).
“24.Bem como as normas jurídicas que determinaram essa mesma realização (“art.ºs 91º do CIRS e 35º da LGT”).”
38. Por outro lado, como tem sido reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, o dever de fundamentação fica cumprido se tiver a intensidade suficiente no sentido de o contribuinte perceber as razões de facto e de direito que justificam o ato tributário, o que manifestamente aconteceu, e até com bastante minúcia.
39. De entre as muitas decisões que configuram os termos da fundamentação devida, é de citar, no Supremo Tribunal Administrativo, o Processo n.º 01114/05, de 02-02-2006.
V. DECISÃO
40. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
a) Declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto à pretensão processual conexa com o pedido de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação em IRS objeto dos autos, uma vez que o mesmo foi revogado;
b) Condenar a Requerida na entrega ao Requerente dos montantes pecuniários indevidamente pagos por este a título de imposto e de juros compensatórios, condenando-se também a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios consequentes à referida revogação parcial e devolução daqueles valores;
c) Absolver a Requerida do pedido de anulação do pagamento de juros compensatórios na parte do ato tributário que se manteve eficaz;
d) Condenar ambas as partes ao pagamento das custas na seguinte proporção: 20% para a Requerente e 80% para a Requerida.
VI. VALOR DO PROCESSO
41. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e art. 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de €15.500,28 (quinze mil e quinhentos euros e vinte e oito cêntimos), correspondente ao valor de imposto que o Requerente computa como tendo sido indevidamente pago, que é o valor do pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação.
VII. CUSTAS
42. Custas a cargo do Requerente e da Requerida, de acordo com o art. 12.º, n.º 2, do RJAT, do art. 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 918,00 (novecentos e dezoito euros): 80% para a AT por ter dado causa à declaração de extinção da instância, pela revogação parcial do ato tributário impugnado na pendência do processo arbitral; 20% para o Requerente por não ter tido razão na pretensão de anulação dos juros compensatórios na parte do ato tributário que se manteve vigente.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de novembro de 2025.
O Árbitro
Jorge Bacelar Gouveia
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art. 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. A redação da presente decisão rege-se pelo Acordo Ortográfico de 1990 em vigor.