Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1163/2024-T
Data da decisão: 2025-11-04  IRC  
Valor do pedido: € 44.370,99
Tema: IRC – Inspeção Tributária; Contabilidade; Declaração; Correções.
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SUMÁRIO

 

I – O sujeito passivo pode, querendo, proceder à correção dos erros contabilísticos e declarativos, em sede de autoliquidação de IRC, através de reclamação graciosa necessária, no prazo de 2 (dois) anos, a contar da apresentação da declaração, nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do CPPT, do artigo 78.º, n.º 1 da LGT e do disposto no Código do IRC, na medida em que a impugnação da autoliquidação destina-se à correção, a favor do sujeito passivo, de erros que o próprio tenha cometido contra si, incluindo os erros declarativos e os erros praticados na contabilidade, os quais, não tendo qualquer relação com a AT, são atribuíveis a conduta negligente do próprio sujeito passivo, não se enquadrando no conceito de “erro imputável aos serviços”.

 

II – Não obstante, no procedimento de inspeção tributária vigoram, nomeadamente, os princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação, obrigando a que a Autoridade Tributária, exercendo as suas atribuições e competências na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade e da justiça, adote as iniciativas e utilize os meios de prova adequados a esse objetivo.

 

III – Os serviços de inspeção tributária da AT devem, assim, verificar o cumprimento das obrigações tributárias, confirmando os elementos declarados pelo sujeito passivo, propondo as correções adequadas à matéria tributável, quer essas correções suportem ou originem a liquidação adicional de imposto, quer suportem ou originem a anulação, parcial ou total, do imposto que tenha sido liquidado, nos termos do Código do IRC.

 

IV – A presunção de verdade e boa fé da contabilidade e das declarações do contribuinte é afastada quando a contabilidade e as declarações revelarem omissões, erros ou inexatidões, bem como indícios fundados de que não refletem ou impedem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo. Se o próprio sujeito passivo reconhece e identifica especificamente erros contabilísticos e declarativos, que não derivam de erro imputável aos serviços da AT, não pode beneficiar dessa presunção.

 

V – O ónus da prova recai sobre quem invoque os factos constitutivos dos direitos da administração fiscal ou do contribuinte, respetivamente. Quando os elementos de prova estiverem em poder da AT, basta ao interessado proceder à sua correta identificação, nos termos do artigo 74.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, o que não significa que o contribuinte possa singelamente furtar-se ao cumprimento do respetivo ónus da prova e fazer substituir a prova dos factos alegados, através de meios probatórios ao seu dispor, como extratos, faturas e comprovativos de pagamento, por outros meios de prova da AT, que não se afiguram como os únicos meios disponíveis ou estritamente necessários para o efeito.

 

VI – Independentemente do prazo que o sujeito passivo dispõe para proceder à correção dos erros, impugnando a respetiva autoliquidação, através de reclamação graciosa, a AT pode (e deve) rever oficiosamente a liquidação, no âmbito da inspeção tributária, em resultado do exame à contabilidade e das correções a efetuar. Em função das correções, a AT deve emitir a respetiva liquidação adicional, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, ou proceder à anulação, parcial ou total, do imposto autoliquidado, conforme aplicável. Não obstante, a anulação de imposto liquidado e pago só poderá ocorrer se não tiver ainda decorrido o prazo de revisão oficiosa do artigo 78.º da LGT. 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra Adelaide Moura, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o presente Tribunal Arbitral singular, decide o seguinte:

I.       Relatório

 

A..., Lda., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua..., ..., R/C, ...-... Braga, doravante “Requerente”, no seguimento do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024... e da subjacente liquidação adicional de IRC n.º 2023..., respeitante ao período de tributação de 2019, no valor total de 44.370,49 EUR, incluindo juros compensatórios, com base em correções decorrentes de procedimento de inspeção tributária, veio, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral junto do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e deduzir o respetivo pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra os atos impugnados, peticionando a anulação, nos termos legais.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante “Requerida”, “Autoridade Tributária” ou “AT”.

 

O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi submetido pela Requerente em 25-10-2024, aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 29-10-2024 e notificado à AT.

 

A Requerente optou expressamente por não designar árbitro. 

 

Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, foi designada a árbitra do presente Tribunal Arbitral singular, que comunicou ao Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo no prazo legalmente previsto.

 

Ambas as Partes foram notificadas da nomeação da árbitra, não tendo qualquer delas manifestado vontade de a recusar. 

 

Em 08-01-2025, o presente Tribunal Arbitral foi constituído, conforme comunicação do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em harmonia com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.

 

Notificada do despacho do Tribunal Arbitral de 14-01-2025, a AT apresentou a sua resposta em 12-02-2025. Foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em 08-07-2025, o Tribunal Arbitral emitiu despacho a prorrogar o prazo para emissão e notificação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, bem como a solicitar a indicação dos factos sobre os quais incidiria a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, caso decidisse pela realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

Em 17-07-2025, a Requerente, notificada do despacho, indicou a matéria de facto sobre a qual deveria incidir a prova testemunhal a produzir, esclarecendo, também, as profissões e os domicílios profissionais das testemunhas arroladas.

 

Em 22-07-2025, o Tribunal Arbitral emitiu despacho a solicitar esclarecimentos da Requerente sobre se as testemunhas arroladas lhe prestaram serviços no exercício de 2019 e/ou no âmbito das questões suscitadas no respetivo PPA.

 

Em 03-09-2025, o Tribunal Arbitral emitiu novo despacho a prorrogar o prazo para emissão e notificação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT

 

Em 08-09-2025, a Requerente clarificou que as testemunhas arroladas lhe prestaram serviços no âmbito das questões suscitadas no respetivo PPA.

 

Em 02-10-2025, o Tribunal Arbitral emitiu despacho, procedendo ao agendamento da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a realizar em 08-10-202, pelas 10:15 horas, com vista à inquirição das testemunhas e produção de alegações, nos termos legais.

 

Em 06-10-2025, a AT requereu a alteração da data agendada para a referida reunião.

 

Em 07-10-2025, o Tribunal Arbitral emitiu novo despacho, reagendando a reunião do artigo 18.º do RJAT, a realizar em 24-10-2025, pelas 10:30 horas.

 

Em 15-10-2024, a Requerente requereu a alteração da data reagendada para a referida reunião.

 

Em 17-10-2025, o Tribunal Arbitral emitiu novo despacho, reagendando a reunião do artigo 18.º do RJAT, a realizar em 30-10-2025, pelas 15:00 horas.

 

Em 30-10-2025, foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas a testemunha B..., Revisto Oficial de Contas, e a testemunha C..., Contabilista Certificado, bem como produzidas as alegações orais por ambas as Partes.

 

No contexto da reunião, o Tribunal Arbitral designou a data para emissão da decisão arbitral, atendendo ao prazo do artigo 21.º do RJAT.

 

II.     Posições das Partes

 

A.     Requerente

 

A Requerente é uma sociedade por quotas, que tem como atividade principal a transformação, corte e lapidação de vidro, a execução de trabalhos de vidraria, para colocação em edifícios ou outras obras em construção e, ainda, o arrendamento, a compra e venda de bens imóveis e a revenda dos adquiridos, a administração e a gestão de imóveis próprios e a de terceiros.

 

A Requerente foi objeto de procedimento de inspeção tributária, promovido pela Direção de Finanças de Braga, tendo a liquidação adicional de IRC impugnada sido emitida com base nas correções decorrentes do respetivo Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).

O RIT foi precedido de um Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, tendo a Requerente sido notificada para efeitos do direito de audição prévia, que exerceu em 31-10-2023.

 

No RIT foi proposta pelos serviços da AT uma correção positiva ao lucro tributável da Requerente, por indevida variação de inventários de produção, no valor total de 161.162,65 EUR.

 

A correção conduziu à liquidação adicional de IRC, que a Requerente impugnou, em sede de reclamação graciosa, em 26-03-2024, por não concordar nem se conformar com a mesma.

 

A reclamação graciosa não foi decidida, presumindo-se o seu indeferimento em 26-07-2024.

 

Sucede que, por um lado, existe um erro declarativo quanto à variação de produção – errada transposição de valores da contabilidade para a IES – e, por outro, um erro de igual montante em valor absoluto quanto ao custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas, por incorreção do valor das compras.

 

Quanto à errada transposição de valores da contabilidade para a IES:

 

Na IES foi declarada uma variação da produção negativa, no valor de -161.162,65 EUR. Foram, também, declaradas vendas e prestações de serviços, no valor de 3.766.539,41 EUR, o que somado resulta num rendimento líquido (quanto a estas duas verbas) de 3.605.376,76 EUR.

 

Na contabilidade foi registada uma variação da produção negativa, no valor de -187.339,39 EUR. Foram, também, registadas vendas e prestações de serviços, no valor de 3.792.716,15 EUR, o que somado resulta, igualmente, num rendimento líquido (quanto a estas duas verbas) de 3.605.376,76 EUR.

 

Efetivamente, a conta de resultados da Requerente traz o resultado líquido formalmente influenciado em baixa pelo mencionado valor de 187.339,39 EUR, a título de variação negativa da produção que, de facto, não existiu e/ou de diferença nas vendas.

 

Quanto ao erro sobre o custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas:

 

Não obstante a variação de produção declarada, a conta de resultados contém um erro de igual montante em valor absoluto, quanto ao custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas, por via de incorreção quanto ao valor das compras.

 

Efetivamente, a conta de resultados expressa um custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas de 1.230.116,72 EUR. Contudo, as compras foram de 1.390.954,62 EUR, pelo que o custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas correto deve ser apurado em 1.417.456,11 EUR, correspondendo a uma diferença no montante de 187.339,39 EUR.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em resumo, o apuramento do resultado líquido do período e, logo, o lucro tributável, está influenciado positivamente pela diminuição do custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas, num montante igual àquele por que está influenciado negativamente pela variação de produção que não existiu.

 

Assim, a AT não deveria ter considerado a correção positiva quanto à variação da produção. Ou, mantendo-se essa correção, a AT deveria ter procedido a uma correção negativa de igual montante a propósito do custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas.

 

A prova dos factos, especialmente o erro quanto ao custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas considerado na demonstração de resultados, pode ser feita por via dos balancetes e extratos das contas fornecidos à AT no procedimento inspetivo, que poderão ser confirmados pelos ficheiros SAF-T disponibilizados à AT pelos respetivos fornecedores.

 

Tendo a Requerente informado que o erro é confirmável por consulta às faturas emitidas e constantes de ficheiros SAF-T dos fornecedores (para efeitos de prova de que as compras de 2019 ascenderam ao montante de 1.390.954,62 EUR), entende-se que foi cumprido o disposto no artigo 74.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

A AT não teve em consideração o artigo 75.º, n.º 1 da LGT, que consagra a presunção de verdade e boa-fé das declarações dos contribuintes, sendo que não resultou (nem foi alegado) qualquer indício de que a presunção fosse afastada, nos termos do artigo 75.º, n.º 2 da LGT.

 

Acresce que os erros foram suscitados pela Requerente no decurso do procedimento inspetivo, onde a AT deveria ter analisado e considerado a verdade e relevância dos factos que o contribuinte alegou em cumprimento do dever de colaboração legalmente previsto.

 

É manifesto que a AT não realizou todas as diligências que tinha ao seu alcance para a satisfação da verdade material, procurando transferir para a Requerente um ónus de prova que a legislação não lhe atribuiu.

 

Ao desconsiderar o pedido e os factos alegados pela Requerente, violando a presunção da boa fé dos contribuintes e da verdade das declarações e da contabilidade, bem como os princípios da justiça material e da tributação do rendimento real – na medida em que a correção da AT implica que a Requerente tenha de pagar imposto sobre lucro que não existiu, dado que o lucro tributável deve passar de 677.888,94 EUR para 516.726,29 EUR, por via da dedução do valor de 161.162,65 EUR –, o indeferimento da reclamação graciosa e a liquidação emitida incorrem em vício de violação de lei, o que determina a sua anulação, nos termos legais.

 

B.     Requerida

 

Os serviços de inspeção tributária (“SIT”) da Requerida procederam à correção, para efeitos de determinação do resultado tributável do exercício de 2019, no valor de 161.162,65 EUR, referente à variação nos inventários de produção da Requerente. 

 

Relativamente à variação nos inventários de produtos acabados e intermédios, a mesma não existe, porquanto apurou-se que, em 2018, os inventários finais de produção tiveram o valor de zero. Por outro lado, e de igual forma, em 2020, os inventários iniciais de produtos acabados e intermédios tiveram o valor de zero. Uma vez que, os valores dos inventários iniciais e finais de produtos acabados e intermédios tiveram o valor de zero, a variação nos inventários de produtos acabados e intermédios, em 2019, também é zero.

 

Neste desiderato, o valor declarado pela Requerente referente à “variação negativa nos inventários de produção, produtos acabados e intermédios”, no montante de 187.339,39 EUR, foi indevidamente considerado para efeitos de apuramento do resultado líquido, levando a uma diminuição no apuramento do resultado tributável para efeitos de IRC no mesmo montante.

 

A própria Requerente assume que a variação de produção declarada não existe.

 

No que concerne à variação positiva nos inventários de produção, respeitante aos produtos e trabalhos em curso, no montante de 26.176,74 EUR, na IES de 2019, além de ter sido incluído na rubrica da variação nos inventários de produção (resultando precisamente no valor declarado de -161.162,65 EUR = -187.339,39 EUR + 26.176,74 EUR), foi deduzido ao valor das vendas, declarando o valor de 3.766.539,41 EUR.

 

Este valor é inferior em 26.176,74 EUR ao montante de vendas e prestações de serviços reconhecido na demonstração dos resultados por naturezas de 2019 aprovada, que foi de 3.792.716,15 EUR, mas em que não considera qualquer variação positiva nos inventários de produção, respeitante aos produtos e trabalhos em curso.

 

A Requerente defende que, afinal, o valor contabilizado na rubrica de compras de matérias primas em 2019, no montante de 1.203.615,23 EUR, está errado, porquanto o valor que devia ter sido registado era de 1.390.954,62 EUR.

 

Todavia, no que diz respeito a esta diferença na rubrica de compras de matérias primas, que a Requerente alega que deve ser considerada para efeitos de apuramento do custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas, os SIT, no procedimento inspetivo, solicitaram à Requerente que comprovasse documentalmente o montante em causa, não tendo a Requerente dado cumprimento ao solicitado, nem demonstrado o valor em causa.

 

Acresce que, em sede de reclamação graciosa apresentada em 26-03-2024, a Requerente, embora assuma o erro apontado pela Requerida, que implicaria um aumento do resultado tributável no montante de 161.162,65 EUR, alega que tal montante seria compensado com a correção a seu favor de outro erro praticado no apuramento do custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas de 2019, tendo, para efeitos de prova, apresentado novos elementos, mormente extratos de conta corrente.

 

Da análise efetuada aos elementos juntos, nomeadamente os extratos de conta corrente das contas de compras, afere-se que, efetivamente, o total das compras, em 2019, ascendeu a 1.390.954,62 EUR (1.245.918,96 EUR + 74,00 EUR + 6.879,90 EUR + 163.795,86 EUR - 3.319,87 EUR - 22.394,23 EUR) e não ao declarado na IES de 2019, no valor de 1.203.615,23 EUR (diferença no montante de 187.339,39 EUR).

 

Por outro lado, extrai-se que não consta qualquer registo do valor do saldo inicial de matérias primas, que deveria ascender a 187.339,39 EUR, de forma a coincidir com o valor declarado a título de existências finais de matérias primas em 2018.

 

Ou seja, o cálculo do custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas deveria ascender a 1.417.456,11 EUR [valor inicial das existências de matérias primas (187.339,39 EUR) + compras (1.390.954,62 EUR) - valor final das existências de matérias primas (160.837,90 EUR)] e não ao valor de 1.230.116,72 EUR na demonstração dos resultados por naturezas de 2019.

 

A diferença de 187.339,39 EUR (1.417.456,11 EUR - 1.230.116,72 EUR) corresponde ao valor que, de facto, foi erroneamente inscrito como variação negativa nos inventários de produção, respeitante aos produtos acabados e intermédios, conforme procedimento inspetivo.

 

Sucede que a Requerente, concordando com a legalidade da correção efetuada pelos SIT da Requerida, no montante de 161.162,65 EUR, que está na origem da liquidação adicional de IRC parcialmente contestada, solicita que, por outro lado, lhe seja efetuada uma correção a seu favor, referente a outro erro praticado na autoliquidação de IRC no apuramento do custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas de 2019, no mesmo montante.

 

Destarte, relativamente à requerida consideração daquela correção da autoliquidação de IRC de 2019, atendendo-se à data em que tal pedido foi efetuado (aquando do exercício do direito de audição sobre o Projeto de RIT em 31-10-2023), a mesma foi apresentada fora do prazo para acionar a revisão da autoliquidação, nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do CPPT e primeira parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, atendendo à inexistência de erro imputável aos serviços.

 

Neste desiderato, devem decair liminarmente os argumentos aventados pela Requerente.

 

III.  Saneamento

 

O presente Tribunal Arbitral é competente, foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo, tendo sido paga a taxa de arbitragem, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, 5.º, n.ºs 1 e 2, 6.º, n.º 1, 10.º, n.º 1, alínea a), 11.º e 12.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Ambas as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 10.º, n.º 2 e 29.º do RJAT.

 

Não foi alegada qualquer matéria de exceção e o processo não enferma de nulidades. 

 

Não há qualquer obstáculo à apreciação da causa. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

 

IV.   Matéria de facto

 

A.     Factos provados

 

(i)         A Requerente é uma sociedade por quotas, que tem como atividade principal a transformação, corte e lapidação de vidro, a execução de trabalhos de vidraria, para colocação em edifícios ou outras obras em construção, e, ainda, o arrendamento, a compra e venda de bens imóveis e a revenda dos adquiridos, a administração e a gestão de imóveis próprios e a de terceiros.

 

(ii)       Relativamente ao exercício de 2019, a contabilidade da Requerente integra erros contabilísticos e a IES submetida integra erros declarativos, nomeadamente quanto à variação da produção e ao custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas.

 

(iii)     Na contabilidade e na demonstração de resultados da Requerente constam vendas e serviços no valor de 3.792.716,15 EUR e uma variação da produção no valor de 
-187.339,39 EUR.

 

(iv)      Na IES apresentada, a Requerente declarou vendas e serviços no valor de 3.766.539,41 EUR e uma variação da produção no valor de -161.162,65 EUR.

 

(v)       Na contabilidade da Requerente constam compras no valor de 1.390.954,62 EUR e um custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas no valor de 1.417.456,11 EUR.

 

(vi)      Na IES apresentada, a Requerente declarou um custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas de 1.230.116,72 EUR. 

 

(vii)    A Requerente foi sujeita a procedimento de inspeção tributária, promovido pela Direção de Finanças de Braga, com base na ordem de serviço n.º OI2023..., em sede de IRC e por referência ao ano de 2019.

 

(viii)  No seguimento das diligências no procedimento de inspeção, foi emitido o respetivo projeto de Relatório de Inspeção, o qual foi notificado à Requerente.

 

(ix)      A Requerente exerceu o direito de audição prévia em 31-10-2023 quanto ao teor do projeto de Relatório de Inspeção.

 

(x)       Os serviços de inspeção tributária da Requerida procederam à emissão do Relatório Final de Inspeção em 11-12-2023, notificando a Requerente.

 

(xi)      Do Relatório Final de Inspeção constam correções efetuadas pelos SIT da Direção de Finanças de Braga em sede de imposto (tributações autónomas) no montante de 364,16 EUR e correções à matéria coletável no total de 172.445,19 EUR.

 

(xii)    Entre as correções efetuadas consta a correção de -161.162,65 EUR ao valor declarado pela Requerente a título de variação negativa nos inventários da produção, que afeta negativamente o resultado líquido do período e o resultado tributável apurado nesse ano, por indevida contabilização de uma variação negativa que não existiu.

 

(xiii)  Com base nas correções, a Requerida emitiu a liquidação adicional de IRC n.º 2023..., de 13-12-2023, referente ao exercício de 2019, da qual resultou imposto a pagar no montante total de 44.370,49 EUR, que inclui juros compensatórios de 5.206,17 EUR, com data limite de pagamento de 31-01-2024.

 

(xiv)   A liquidação adicional de IRS n.º 2023... foi paga em 30-01-2024.

 

(xv)    Em 26-03-2024, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação adicional de IRC.

 

(xvi)   A reclamação graciosa deduzida pela Requerida não foi objeto de decisão expressa pela Requerida.

 

B.     Factos não provados

 

Não se verificaram outros factos com relevância para a decisão da causa que não tenham sido considerados provados.

 

C.     Motivação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada, em função da prova produzida nos autos e da sua relevância jurídica, nos termos do artigo 123.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a), c) e e) do RJAT.

 

Constitui um princípio do processo arbitral a “livre apreciação dos factos”, de acordo com “as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros”, manifestando o princípio da “livre apreciação da prova”, conforme disposto nos artigos 16.º, alínea e) e 19.º, n.º 1 do RJAT. 

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua convicção, em relação aos factos alegados, nos meios de prova constantes no processo, atendendo à sua experiência e conhecimento, ao abrigo do artigo 607.º, n.º 5 do CPC e regras gerais do CC. 

 

Somente quando a força probatória de certos meios de prova se encontra determinada na legislação é que a livre apreciação não domina na motivação subjacente à matéria de facto. 

 

Em concreto, tendo em consideração os respetivos ónus de alegação e de prova, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na prova produzida nos autos, incluindo os documentos e o processo administrativo juntos pelas Partes, as inquirições às testemunhas arroladas, bem como o acordo manifestado quanto a factos alegados nos articulados, nos termos legais.

 

V.     Matéria de direito

 

A.     Objeto

 

Considerando as posições assumidas pelas Partes e vertidas nos respetivos articulados, cabe ao Tribunal Arbitral, atendendo à matéria de facto provada e ao direito aplicável, apreciar e decidir sobre a legalidade dos atos tributários impugnados nos presentes autos, designadamente quanto a liquidação adicional de IRC, com base na correção relativa à variação da produção, e o alegado dever de a Requerida corrigir, também, a matéria tributável a favor da Requerente, em sede de inspeção tributária, quanto ao custo das mercadorias vendidas e matérias consumidas, em função do valor efetiva de compras efetuadas.

 

B.     Apreciação

 

Atendendo ao objeto dos autos, importa proceder a um breve enquadramento do regime jurídico e fiscal aplicável em sede de IRC e do procedimento de inspeção tributária.

 

Nos termos do artigo 5.º, n.º 2 da LGT, a tributação deve respeitar os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material. Estes princípios tributários encontram assento constitucional, num contexto fiscal, nomeadamente, nos artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

Em cumprimento dos princípios constitucionais, os impostos devem refletir, essencialmente, a capacidade contributiva dos sujeitos passivos, a qual é revelada pelos rendimentos, pelo consumo e/ou pelo respetivo património, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 da LGT.

 

Como consabido, ao abrigo do artigo 1.º do Código do IRC, o IRC incide especificamente sobre os rendimentos de pessoas coletivas, obtidos no período de tributação, pelos respetivos sujeitos passivos, os quais são definidos no artigo 2.º do mesmo Código.

 

Conforme previsto no artigo 15.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, relativamente às pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em Portugal, a matéria coletável obtém-se pela dedução ao lucro tributável dos montantes correspondentes a prejuízos fiscais e benefícios fiscais.

 

O lucro tributável é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

De modo a permitir o apuramento do lucro tributável, a contabilidade deve, nomeadamente, estar organizada de acordo com a normalização contabilística e legislação em vigor, bem como refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo em causa, por força do disposto no artigo 17.º, n.º 3 do Código do IRC.

 

Em particular, as sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada que permita o controlo do lucro tributável, nos termos do artigo 123.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

A matéria coletável é, em regra, determinada com base em declaração do sujeito passivo em causa, sem prejuízo do seu controlo pela administração fiscal, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

A declaração periódica de rendimentos deve ser enviada, anualmente, nos termos dos artigos 117.º, n.º 1, alínea b) e 120.º, n.º 1 do Código do IRC. Também a declaração de informação contabilística e fiscal deve ser enviada, anualmente, nos termos dos artigos 117.º, n.º 1, alínea c) e 121.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRC.

 

Os elementos constantes das declarações devem concordar exatamente com os obtidos na contabilidade, nos termos dos artigos 120.º, n.º 10 e 121.º, n.º 5 do Código do IRC.

 

Nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos legalmente previstos, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal presumem-se verdadeiras e de boa-fé.

 

Contudo, essa presunção de verdade e boa-fé não se verifica, designadamente, quando as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo, bem como quando o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, conforme disposto no artigo 75.º, n.º 2 da LGT.

 

A liquidação do IRC é efetuada pelo próprio sujeito passivo, nos termos do disposto no artigo 89.º, alínea a) do Código do IRC, tendo por base a matéria coletável que conste nas respetivas declarações, ao abrigo do artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC.

 

Contudo, conforme disposto no artigo 90.º, n.º 12 do Código do IRC, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º do mesmo Código, cobrando-se ou anulando-se as diferenças apuradas.

 

A administração fiscal deve proceder à liquidação adicional de IRC quando, depois de liquidado o imposto, seja de exigir, em virtude de correção efetuada, imposto superior ao liquidado, nos termos do artigo 99.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

Diferentemente, a administração fiscal deve proceder oficiosamente à anulação, total ou parcial, do IRC liquidado, sempre que este se mostre superior ao devido, nomeadamente em resultado de correção da liquidação, de exame à contabilidade, por motivos imputáveis aos serviços ou por duplicação de coleta, nos termos do artigo 103.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

Sem prejuízo, conforme previsto no artigo 103.º, n.º 2 do Código do IRC, a administração fiscal não procede à anulação quando, tendo o imposto já sido pago, tenha decorrido o prazo de revisão oficiosa do ato tributário previsto no artigo 78.º da LGT.

 

O artigo 78.º, n.º 1 da LGT prevê que a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade ou, por iniciativa da administração fiscal, no prazo de 4 (quatro) anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços. 

 

Sendo que, nos termos do artigo 131.º do CPPT, em caso de erro na autoliquidação, a reclamação graciosa deve ser deduzida no prazo de 2 (dois) anos após a apresentação da declaração subjacente à autoliquidação.

 

Ao abrigo do artigo 78.º, n.º 4 da LGT prevê-se, também, que o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos 3 (três) anos posteriores ao do ato tributário, a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

 

O cumprimento da legislação é fiscalizado pela administração fiscal, nos termos dos artigos 133.º e 134.º do Código do IRC, incluindo, por exemplo, através de inspeção tributária.

 

O procedimento de inspeção tributária é especialmente regulado pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), que visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias, conforme artigos 1.º e 2.º do RCPITA e o artigo 44.º do CPPT.

 

Nos termos do artigo 5.º do RCPITA, o procedimento de inspeção tributária obedece aos princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação.

 

O procedimento visa a descoberta da verdade material, devendo a administração fiscal adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo, por força artigo 6.º do RCPITA.

 

No âmbito do procedimento inspetivo, a inspeção tributária e os sujeitos passivos estão sujeitos a um dever mútuo de cooperação, nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do RCPITA.

 

Sob a égide dos princípios do procedimento tributário, em acréscimo aos princípios aplicáveis em sede de inspeção tributária, a administração fiscal deve exercer as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários, nos termos do artigo 55.º da LGT.

 

Em particular, ao princípio da legalidade tributária estão sujeitos a incidência, a taxa, os benefícios, as garantias dos contribuintes, a liquidação e cobrança de tributos, bem como as regras de procedimento e processo tributário, nos termos do artigo 8.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.

 

A administração fiscal deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido, nos termos do artigo 58.º da LGT. Para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento devem ser utilizados todos os meios de prova, nos termos do artigo 72.º da LGT e disposto no CPPT e no RCPITA.

 

Sem prejuízo, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração fiscal ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT. 

 

Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração fiscal, o ónus considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correta identificação junto da administração tributária, nos termos do artigo 74.º, n.º 2 da LGT.

 

Acresce que as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos do artigo 76.º, n.º 1 da LGT.

 

Face ao exposto, considerando o enquadramento jurídico e fiscal acima delineado, bem como a factualidade dada como provada, importa apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRC objeto da reclamação graciosa tacitamente indeferida pela Requerida.

 

Em primeiro lugar, a Requerente reconhece que a contabilidade e a declaração referente ao ano de 2019 padecem de erros contabilísticos e declarativos, embora esses erros alegadamente não afetem o resultado declarado na autoliquidação e o imposto liquidado.

 

Ocorrendo (e tendo a Requerente identificado) erros na contabilidade e na declaração referentes ao exercício de 2019, a Requerente podia, querendo, ter corrigido contabilisticamente esses erros, bem como apresentar declaração de substituição, nos termos do artigo 122.º do Código do IRC, ou deduzir reclamação graciosa necessária, nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do CPPT e do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, no respetivo prazo legal.

 

Conforme decisão arbitral de 09-05-2022, no âmbito do processo n.º 526/2021-T, acessível em www.caad.pt, “A impugnação da autoliquidação destina-se à correção, a seu favor, de erros que o sujeito passivo tenha cometido contra si, e em lado nenhum se estatui que estejam excluídos os erros praticados na contabilidade. (…) Falece, portanto, a tese de que à AT (…) está vedada a possibilidade de corrigir a favor da Requerente os eventuais erros que esta tenha praticado na contabilidade e que a tenham prejudicado em termos de apuramento do lucro tributável e do imposto, sejam eles os erros de relato (…) ou de erro de reconhecimento por troca de conta. E muito menos está vedada a correção daquilo que efetivamente a Requerente pretende, que é um eventual erro praticado na sua declaração de rendimentos”.

 

Não obstante, importa considerar o exposto na decisão arbitral de 13-10-2023, no âmbito do processo n.º 79/2023-T, acessível em www.caad.pt, “O erro nos valores incluídos na declaração Modelo 22 do IRC (sem qualquer relação com orientações genéricas ou atuação da AT) é atribuível a comportamento negligente do sujeito passivo, não se enquadrando no conceito de “erro imputável aos serviços” para efeitos do artigo 78.º, n.º 1 da LGT.”

 

Também como consta na decisão arbitral de 27-06-2023, no âmbito do processo n.º 640/2022-T, acessível em www.caad.pt, “o “erro imputável aos serviços” concretiza qualquer ilegalidade relevante que seja imputável à conduta negligente da administração fiscal (ou seja, sempre que a errada aplicação da lei não decorra de elementos apresentados pelo contribuinte). (…) Quando o erro que vicia a liquidação decorre de elementos do contribuinte, deve distinguir-se (i) se, na apresentação desses elementos (maxime, na apresentação de uma declaração prevista lei, como seja a declaração modelo 22 de IRC), foram observadas orientações da administração tributária às quais o erro seja imputável, ou (ii) se, sobre o elemento que originou o erro, não existia qualquer orientação da administração tributária (e.g., instruções de preenchimento, circular ou ofício-circulado). (…) Só no primeiro caso é legítimo sustentar a verificação de “erro imputável aos serviços”. No segundo, inelutavelmente, o erro é imputável ao sujeito passivo.”

 

No caso concreto, a Requerente não apresentou qualquer declaração de substituição, nem apresentou reclamação graciosa ou pedido de revisão, no prazo legal aplicável, tendo apenas alertado a Requerida e peticionado a correção daqueles erros contabilísticos e fiscais no âmbito da inspeção, em sede de exercício do direito de audição prévia, apresentando alguma documentação e requerendo à AT que consultasse os ficheiros SAF-T dos fornecedores.

 

Em segundo lugar, é certo que, no âmbito da inspeção tributária, os serviços da Requerida devem procurar a verdade material dos factos subjacentes à tributação, realizando todas as diligências adequadas ao efeito, de forma a efetuar as correções necessárias à liquidação.

 

Conforme consta na decisão arbitral de 21-09-2021, no âmbito do processo n.º 656/2020-T, acessível em www.caad.pt, “De acordo com os princípios da legalidade tributária e do inquisitório, a Autoridade Tributária e Aduaneira deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido. Verificando a Autoridade Tributária e Aduaneira, em sede de inspeção tributária, que são legalmente devidas correções à matéria tributável, as mesmas devem ser por ela efetuadas ainda que isso resulte em vantagem para o contribuinte. (…) O princípio da legalidade tributária constitui um princípio fundamental do direito constitucional fiscal, expressamente consagrado no artigo 103.º, nºs, 2 e 3 da CRP. Aí se dispõe que “[o]s impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”, sendo que [n]inguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”. Pressupondo a subordinação do legislador fiscal à Constituição, o mesmo princípio é expressamente desenvolvido no artigo 8.º da LGT, sendo concretizado em toda a legislação fiscal. O princípio da legalidade tributária vincula a AT e os tribunais, devendo aquela, em primeira linha, e estes, em segunda linha, garantir, de forma objetiva, rigorosa e imparcial, que todos os contribuintes pagam o imposto legalmente devido, todo o imposto devido e nada mais do que o imposto devido.  Isso significa que, uma vez detetada, em sede de inspeção tributária, e à luz da legislação aplicável, a situação de haver lugar a correções à matéria tributável, ainda que a favor do contribuinte, a AT tem o dever de as efetuar. (…) a conduta adotada pela AT configura uma violação do princípio da legalidade e da exigência de boa-fé na relação que deve estabelecer com os contribuintes em geral e com a Requerente em particular. Neste âmbito, espera-se que a AT atue de maneira coerente com as suas declarações no procedimento administrativo sempre que estas manifestem uma correta interpretação da lei, gerando previsibilidade, confiança e segurança jurídica na esfera jurídica do sujeito passivo. Como resulta do artigo 58.º da LGT, sob a epígrafe do princípio do inquisitório, a AT deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, e tanto assim quanto a isso tenha sido instada pelo sujeito passivo.”

 

Ou seja, a AT deve proceder às correções necessárias, sejam ou não favoráveis ao contribuinte, com base em critérios objetivos e legais, procurando a verdade material subjacente, o que pode originar a emissão de liquidação adicional, caso exista imposto em falta, nos termos do artigo 99.º do Código do IRC, ou a anulação de imposto liquidado, caso se mostre superior ao devido, nos termos do artigo 103.º do Código do IRC.

 

Afigura-se, assim, inquestionável que as correções que os serviços da Requerida podem (e devem) efetuar não têm de ser necessariamente geradoras de maior lucro tributável, podendo também ser efetivadas correções em benefício do próprio sujeito passivo.

 

Em terceiro lugar, considerando o regime do ónus da prova, compete à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos e requisitos legais que legitimam a sua atuação e ao sujeito passivo cabe provar os factos que suportam as suas pretensões e os direitos que invoca.

 

Importa, desde logo, notar que, apesar de a contabilidade e a declaração da Requerente beneficiar, em regra, da presunção de verdade e boa fé, é a própria Requerente que alega, em sede de inspeção tributária e nos presentes autos arbitrais, que a contabilidade e a declaração padecem de erros. Assim sendo, não se afigura admissível que a presunção seja aplicável.

 

Ou seja, contrariamente à posição da Requerente, partir do pressuposto de que a contabilidade é fidedigna não pode valer quando a própria Requerente admite que a contabilidade e a declaração têm erros. A aplicação cega, sem mais, dessa presunção afigurar-se-ia eminentemente irrefletida e contraproducente, atento o próprio argumentário da Requerente.

 

Acresce que o recurso a prova através de meios da AT não se deve substituir à prova da Requerente. A prova dos elementos contabilísticos e declarados pela Requerente, incluindo o valor das compras, por exemplo era possível por meios da própria Requerente, nomeadamente juntando a relação de compras e as respetivas faturas, assim como eventuais comprovativos de pagamento das mesmas, sem prejuízo de eventual confirmação da veracidade dessa prova por consulta da informação de que a AT disponha internamente.

 

Reconhecendo a Requerente erros na contabilidade e na declaração, caberia ao sujeito passivo o respetivo ónus de prova dos elementos relevantes, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT, devendo facultar os seus meios probatórios e não depender de outras eventuais diligências da Requerida, nomeadamente quando essas diligências não correspondem aos únicos meios disponíveis ou a meios indispensáveis para a descoberta da verdade em causa.

 

Conforme decisão arbitral de 15-04-2024, no âmbito do processo n.º 705/2023-T, acessível em www.caad.pt, “cessa a presunção de verdade da declaração (…) e da contabilidade do sujeito passivo, passando a caber-lhe o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca, na situação em que ele próprio assume (…) que registou erros na sua contabilidade”.

 

Em quarto lugar, relativamente à correção da AT quanto à variação da produção, e tendo em consideração que, isoladamente, a Requerente admite essa correção, confirmando não ter ocorrido aquela variação da produção, entende-se que nada obsta, considerando que a mesma decorre de correção de erro contabilístico e declarativo.

 

Efetivamente, a Requerente declarou, na IES, uma variação da produção de -161.162,65 EUR, resultante de erro contabilístico e declarativo. Sendo que, de acordo com a própria Requerente, essa variação não existiu. Por conseguinte, a correção efetuada pela AT quanto à variação da produção mostra-se devida, nos termos legais. 

 

Ambas as Partes coincidem nesta factualidade, embora a Requerente entenda que esta correção à variação da produção não devia ser efetivada de forma isolada, mas sim acompanhada por outras correções, nomeadamente quanto ao custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas e ao valor das compras efetuadas.

 

Ou seja, de acordo com a Requerente, no âmbito do RIT foi proposta uma correção, que conduziu à liquidação adicional de imposto, mas que deveria ser compensada com outra correção, que levaria à anulação de imposto liquidado, na mesma proporção. 

 

Em sede de Resposta, a Requerida admite grosso modo que os documentos juntos com o PPA permitem suportar materialmente o custo de mercadorias vendidas e matérias consumidas e do valor das compras alegados pela Requerente, mas recusa a efetivar essa correção por força dos limites da inspeção e do prazo legal para revisão dos erros constantes na autoliquidação de IRC, dado que esses erros decorrem do sujeito passivo e não dos serviços da Requerida.

 

A autoliquidação refere-se ao período de tributação de 2019. Os erros contabilísticos e declarativos, imputáveis à Requerente e não à Requerida, só foram suscitados pela Requerente em 31-10-2023, ou seja, mais de 3 anos depois. Portanto, é indiscutível que os erros foram suscitados depois do término do prazo para a Requerente deduzir, voluntariamente, a reclamação graciosa ou pedido de revisão da autoliquidação, nos termos legais. 

 

Contudo, há que considerar os princípios e as normas que subjazem a tributação, em geral, bem como os princípios, o âmbito e os objetivos da inspeção tributária, em particular, que se afiguram sobrepor à alegada necessidade de reclamação graciosa da declaração subjacente à autoliquidação, sob pena de a AT apenas poder efetuar correções a seu favor.

 

Em sede de inspeção tributária, apesar de os erros em causa não decorrerem dos serviços da Requerida na autoliquidação, atenta a factualidade em causa e o direito aplicável, o Tribunal Arbitral entende que a AT, ao rever o ato em causa, deve introduzir todas as correções adequadas, a favor ou contra o contribuinte, a bem do apuramento da verdade material e da liquidação do imposto efetivamente devido, buscando, se necessário, obter prova adicional junto da Requerente ou por outros meios para esclarecimento da sua situação tributária real.

 

Na própria Resposta, em certo contraciclo com o exposto no Relatório de Inspeção Tributária, a Requerida conclui que “da análise efetuada aos elementos juntos com a reclamação graciosa, nomeadamente os extratos de conta corrente das contas de compras de matérias primas, afere-se que, efetivamente, o total das compras, em 2019, ascendeu a 1.390.954,62 EUR e não ao valor declarado na IES 2019, (…) de 1.203.615,23 EUR (diferença no montante de 187.339,39 EUR)”, que “o cálculo do CMVMC deveria ascender a 1.417.456,11 EUR (…) e não ao valor declarado de 1.230 116,72 EUR (campo A5880 do quadro 05191-A e A5006 do quadro 03-A demonstração dos resultados por naturezas de 2019)” e que “a diferença, no montante, de 187.339,39 EUR = 1.417.456,11 EUR - 1.230.116,72 EUR, corresponde ao valor que de facto foi erroneamente inscrito como variação negativa nos inventários de produção”.

 

Se os erros suscitados pela Requerente, em sede de inspeção tributária, tivessem sido analisados pela Requerida, com base na prova facultada pela Requerente e em qualquer outra prova que se entendesse necessária produzir para o efeito, como a junta ao abrigo da subsequente reclamação graciosa ou dos presentes autos, bem como eventual informação de que a AT disponha, em cumprimento dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, poderia ter procedido a outras correções, que influenciariam a liquidação adicional emitida, ainda que isso resultasse numa vantagem para o contribuinte.

 

Em observância dos princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação, e de acordo com os princípios da legalidade e da justiça, os serviços de inspeção tributária da AT, verificando o cumprimento das obrigações tributárias, devem confirmar os elementos declarados pelo sujeito passivo, propondo as correções adequadas à matéria tributável, quer essas correções suportem ou originem a liquidação adicional de imposto, quer suportem ou originem a anulação, parcial ou total, do imposto que tenha sido liquidado, nos termos legais.

 

Nos termos do Código do IRC, não resulta nenhuma limitação expressa às correções que sejam favoráveis ao contribuinte, resultando apenas que a eventual anulação de imposto, resultante da cumulação de todas as correções efetuadas, só pode ser concretizada se não tiver decorrido o prazo de revisão oficiosa do ato tributário previsto no artigo 78.º da LGT. 

 

Não se afigura, sequer, que haja lugar a qualquer anulação de imposto, considerando que foram efetuadas outras correções pela AT em sede de inspeção tributária, as quais não foram contestadas nos presentes autos.

 

Independentemente do prazo que o sujeito passivo dispõe para proceder à correção dos erros, impugnando a respetiva autoliquidação, através de reclamação graciosa, a AT pode (e deve) rever oficiosamente a liquidação, no âmbito da inspeção tributária, em resultado do exame à contabilidade e das correções a efetuar. Em função das correções, a AT deve emitir a respetiva liquidação adicional, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, ou proceder à anulação, parcial ou total, do imposto autoliquidado, conforme aplicável. Não obstante, a anulação de imposto liquidado e pago só poderá ocorrer se não tiver ainda decorrido o prazo de revisão oficiosa do artigo 78.º da LGT.

 

Em face do exposto, considerando a prova produzida nos autos, bem como as posições manifestadas pelas Partes, afigura-se que a conduta da AT é incompatível com os princípios constitucionais e legais aplicáveis em sede de inspeção tributária, devendo, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, designadamente quando para isso tenha sido instada pelo sujeito passivo, evitando que o procedimento inspetivo sirva apenas como instrumento de agravamento da tributação.

 

Incumprindo a AT o bloco normativo aplicável, considera-se parcialmente ilegal a liquidação adicional de IRC emitida pela AT, na parte em que não considerou todas as correções, liquidando imposto superior ao legalmente devido.

 

VI.   Decisão

 

Face ao exposto, decide este Tribunal Arbitral:

 

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)      Condenar a Requerida nas custas do processo, nos termos legais.

 

VII.     Valor

 

Fixa-se o valor do processo em 44.370,49 EUR, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII.     Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.142,00 EUR, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

4 de novembro de 2025

 

A Árbitra

 

 

 

Dra. Adelaide Moura