SUMÁRIO
I. Os incrementos patrimoniais ocorridos na esfera do sujeito passivo que não se encontrem refletidos no resultado de exercício, e cuja sustentação não seja subsumível a nenhuma das exceções do artigo 21.º, n.º 1, do Código do IRC, são tributados enquanto variações patrimoniais positivas.
II. Transferências e depósitos efetuados para contas bancárias do sujeito passivo, sem que a este caiba qualquer obrigação efetiva que se lhe associe, são qualificáveis como variação patrimonial positiva para efeitos do artigo 21.º, n.º 1, do Código do IRC.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. André Festas da Silva e Dr. José Coutinho Pires (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD para formar o Tribunal Arbitral Coletivo no processo identificado em epígrafe, decidem o seguinte:
RELATÓRIO
A.... Lda., NIPC ... com sede na Rua ..., nº ..., ..., Almada (“Requerente”), veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, ou “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada “AT” ou “Requerida”), com vista à anulação parcial da liquidação de IRC do ano de 2020, com o n.º 2024..., datada de 18/10/2024, na parte respeitante ao adicionamento indevido de € 503.698,93 e, por consequência, anuladas, na proporção, as liquidações de juros compensatórios e derrama conjuntamente liquidados, com as legais consequências.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à AT no dia 03/03/2025.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), e artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, foram designados os árbitros Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha, Dr. José Coutinho Pire e Dr. Henrique Nunes pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo os árbitros aceite nos termos legalmente previstos.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 08/05/2025.
Após o despacho de 09/05/2025, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo (“PA”) em 13/06/2025.
O Dr. Henrique Nunes renunciou às funções arbitrais. Por despacho de 15/05/2025, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD determinou a sua substituição, como árbitro no presente processo, pelo Dr. André Festas da Silva, que aceitou a nomeação.
O Tribunal Arbitral promoveu a organização da reunião prevista no n.º 1 do artigo 18.º do RJAT em ordem à produção da prova testemunhal arrolada pela Requerente, tendo a inquirição da testemunha realizado-se no dia 05/09/2025.
A Requerida apresentou as suas alegações escritas em 14/09/2025. A Requerente apresentou as suas alegações escritas em 15/09/2025
SANEAMENTO
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e encontram-se legalmente representadas.
Inexistem questões prévias que cumpra apreciar, nem vícios que invalidem o processo.
QUESTÕES DECIDENDAS E POSIÇÃO DAS PARTES
Questões a decidir
Com base na posição das partes vertida nos articulados e na prova produzida, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar as seguintes questões:
1) Se a Requerente logrou justificar a divergência, no montante de € 512.675,58, apurada no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) em apreço, entre as entradas nas suas contas bancárias (conforme declarado pelas instituições bancárias em causa) e o valor das vendas e serviços prestados em 2020 (conforme constante das obrigações declarativas apresentadas pela Requerente)?
2) Se a liquidação impugnada sofre do vício de falta de fundamentação?
Posição da Requerente
Em 2020, dado que as linhas de crédito que a Requerente possuía no passado se encontravam esgotadas (conta corrente caucionada de 50.000€ e dois financiamentos de médio e longo prazo que ascendiam a 75.000€), bem como todas as outras dificuldades anteriormente elencadas, levou a que a Requerente recorresse a mais um financiamento, agora na linha COVID19 (motivado pelas facilidades estatais e bancárias fornecidas na altura fruto das circunstâncias pandémicas), de 50.000,00€, que obteve em 08/08/2020.
Foi por a AT não ter compreendido a estratégia financeira inovadora e inclusivamente disruptiva (apesar de totalmente legal) que o RIT qualificou e considerou como omissões de proveitos as diversas operações de movimentos dos cartões bancários VISA que mais não eram do que fontes de financiamento (com um plafond que atingia cerca de 50.000,00€) e que alimentaram as contas do Banco Santander e Banco Bic e Montepio por intermédio de cartões pré-pagos.
Assim, o adicionamento dos valores em causa é indevido, por isso ilegal, já que não se tratou de quaisquer honorários pagos por clientes que devam ser sujeitos a tributação em sede de IRC, mas antes de meros movimentos de entrada e saída de dinheiro para resolver problemas de tesouraria, até porque todos os proveitos circularam no Banco Montepio e todos os movimentos de cartões circularam nas contas Santander, Banco Bic e Montepio. Em consequência, o dito adicionamento desrespeita as normas contidas no artigo 17.º e seguintes do Código do IRC, bem como o princípio vigente de tributação pelo lucro real decorrente do artigo 104º da Constituição.
Acresce que a liquidação impugnada sofre de insuficiente fundamentação (porquanto limita-se a adicionar os valores das contas bancárias sem justificar como é que os valores são respeitantes a proveitos), o que vai contra o disposto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária.
Posição da Requerida
No âmbito da ação de inspeção externa promovida pelos Serviços de Inspeção Tributária, foi objeto de análise o cruzamento dos movimentos bancários (após derrogação sigilo bancário) com volume de negócios declarado pela Requerente. Da comparação entre o valor das entradas ocorridas em 2020 nas três contas bancárias tituladas pela Requerente (junto da Caixa Económica Montepio Geral, Banco Santander Totta SA e Banco BIC Português SA) tais como transferências bancárias, pagamentos por Terminal de Pagamento Automático (TPA), entradas em dinheiro, que ascendeu a € 767.991,58 (depois de expurgar os valores que tiveram origem em contas bancárias tituladas pelo seu sócio-gerente que configuram financiamento do sócio), com o valor dos rendimentos declarados e considerando ainda a variação nos saldos de clientes, os SIT apuraram a existência de omissões de rendimentos. Foi apurada uma divergência de € 512.675,58, cuja origem não foi possível determinar.
Perante a ausência de elementos probatórios sólidos e estando em causa a entrada de fluxos financeiros no circuito patrimonial da Requerente sem suporte documental bastante, a Requerida considerou que tais movimentos configuram rendimentos da atividade operacional da Requerente de acordo com a legislação aplicável.
MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes:
1. A Requerente iniciou a sua atividade em 1993, e tinha, em 2020, como objeto social “Atividades médicas, fisioterapia, eletroterapia, enfermagem, cinesioterapia, consultas, análises, ecografia e estomatologia. Importação, exportação e comércio por grosso e a retalho de material desportivo, aluguer de equipamentos diversos na área da saúde, publicidade e prestação de serviços na área da consultadoria desportiva e gestão de imóveis próprios” (cf. alegado no artigo 3.º do PPA e não contestado pela Requerida).
2. A Requerente foi notificada do RIT, no qual, entre o mais, se pode ler:
“As instituições bancárias estão obrigadas a comunicar à AT, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º-A da LGT (Lei Geral Tributária), através da declaração Modelo 40, o valor dos fluxos de pagamentos com cartões de débito e de crédito ou por outros meios de pagamento eletrónico, efetuados ao sujeito passivo.
Da consulta ao sistema informático da AT, mais concretamente, das declarações modelo 40, verifica-se que foram creditados em contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, valores relativos a pagamentos efetuados por terceiros, através de TPA (Terminal de Pagamento Automático), de acordo com o seguinte quadro:

Da análise comparativa, entre o montante total evidenciado no quadro anterior e o valor do volume de negócios (isento de IVA) de 2020 declarado pelo sujeito passivo, conclui-se que o montante declarado pelas instituições bancárias se apresenta bem superior, pelo que foi solicitada a colaboração do sócio-gerente do sujeito passivo, no sentido de procurar uma justificação para tal diferença de valores.
Num primeiro momento, foi concedida a autorização, de forma voluntária, para acesso a todos os documentos bancários disponíveis em 2020, nas contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, tendo sido efetuada a correspondente solicitação junto do Banco de Portugal, conforme consta do anexo 1.
Da resposta apresentada pelo Banco de Portugal, foi possível verificar a existência de diversos tipos de contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, sendo que as de depósitos à ordem (DO), são as seguintes:

Da análise ao seu conteúdo, designadamente, a todas as entradas de valores nos respetivos extratos bancários, foi possível confirmar a existência de uma divergência com os dados declarados nas obrigações declarativas apresentadas pelo sujeito passivo, tendo nesta sequência, e devido à multiplicidade de valores movimentados, solicitado esclarecimentos adicionais ao gerente do sujeito passivo.
Juntam-se como anexos 2, 3 e 4, respetivamente, o somatório das entradas na conta da Caixa Económica Montepio Geral SA, conta do Banco Santander Totta SA e na conta do Banco Bic Português SA.
No esclarecimento efetuado pelo gerente em 22-02-2024, fomos pelo próprio informados do seguinte:
- A sociedade A..., Lda., recebeu nas suas contas bancárias diversos valores provenientes de cartões de crédito e de cartões pré-pagos relacionados com contas bancárias tituladas pelo seu gerente, em virtude de necessidades de tesouraria da própria sociedade.
Desta forma, e apesar de nada constar averbado no livro de atas da sociedade, solicitou-se ao contribuinte B..., na qualidade de sócio gerente da sociedade A..., Lda., o seguinte:
- A disponibilização de “Todos os extratos bancários, bem como dos próprios extratos dos cartões de crédito e dos cartões pré-pagos do ano de 2020 (…)” associados às contas bancárias tituladas pelo próprio gerente e que sustentam movimentos bancários/financeiros a favor da sociedade A..., Lda., conforme notificação pessoal efetuada no dia 22-02-2024 e que se junta como anexo 5.
No dia 12-03-2024, e para cumprimento da notificação pessoal efetuada em 22-02-2024, o gerente da sociedade procedeu à confirmação da documentação bancária, relacionada no auto de declarações elaborado para o efeito- anexo 6, e onde é declarado pelo próprio gerente, que não dispõe de mais nenhum elemento bancário associado a movimentos bancários efetuados a favor da sociedade A..., Lda.
Neste contexto, procedeu-se à análise dos elementos destes extratos bancários, designadamente as saídas de verbas das contas bancárias tituladas pelo gerente, e a sua correspondente entrada nas contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, tendo sido possível verificar, entre outros, um conjunto de operações bancárias relacionadas:
Com o terminal de pagamento automático (vulgarmente designado como TPA) associados a contas bancárias tituladas pela sociedade;
E com transferências bancárias.
No que respeita aos pagamentos (recebimentos na esfera da sociedade) efetuados através de TPA, convém salientar que foi solicitado junto das duas entidades bancárias com TPA, concretamente, a Caixa Económica Montepio Geral e o Banco Bic, o extrato detalhado do fecho dos TPA’s durante o ano de 2020, com o objetivo de recolher evidências de pagamentos provenientes de cartões bancários associados a contas bancárias tituladas pelo sócio-gerente da sociedade, tendo resultado no apuramento dos seguintes montantes:

Assim, e perante o descrito no quadro anterior, foi possível concluir que dos valores que deram entrada nas contas bancárias da sociedade através do TPA, o montante de 32.223,03€ têm origem em contas bancárias do gerente da sociedade, pelo que este montante não será tido em consideração mais à frente, aquando da comparação entre os totais das entradas e o volume de negócios declarado pelo sujeito passivo.
No entanto, e para além das operações descritas anteriormente, para as quais foi possível associar de forma efetiva a saída de dinheiro da conta bancária do gerente para uma conta titulada pela sociedade, verificaram-se diversos levantamentos em numerário efetuados nas contas tituladas pelo gerente e para os quais não foi possível associar de forma direta, quer quanto ao valor, quer quanto à data (levantamento versus depósito) com entradas em numerário nas contas da sociedade.
Perante este facto, e tendo conhecimento da existência de uma conta do SNC “27821 – Contrato conta corrente”, que no ano de 2020: - Iniciou com um saldo credor de 237.739,01 euros: - Terminou com um saldo credor de 246.508,24 euros; - Evidencia, um acumulado de movimentos a crédito (expurgando o saldo inicial) de 737.449,14 euros.
E, que de acordo com o contabilista certificado, foi criada para evidenciar os movimentos financeiros entre os órgãos sociais (que também são a gerência) e a sociedade.
Recorreu-se à análise conjugada das contas “111- Caixa” e “27821”, de forma a verificar e a recolher elementos adicionais que permitissem estabelecer uma relação entre os diversos levantamentos de dinheiro efetuados na conta bancária do gerente e a correspondente entrada nas contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo.
Porém, da análise efetuada destas duas contas da contabilidade do sujeito passivo, não foi possível estabelecer nenhuma relação direta, dado que os movimentos contabilísticos efetuados a débito da conta “111”:
- Ou resultam de levantamentos em numerário efetuados nas contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, como é exemplo os movimentos efetuados através dos documentos internos com o n.º ..., ... e ... do diário 1 de 31/01/2020, e como tal não apresentam qualquer relação com as contas bancárias do gerente;
- Ou resultam de valores efetuados no final do mês, e que apesar de terem como contrapartida a conta “27821” não permitem, porque não se encontram documentados para tal, estabelecer uma análise dos momentos (dias e valores) a que respeitam este movimento, como é exemplo, o primeiro trimestre do ano, evidenciado nos movimentos contabilísticos com os números internos 101054 (do diário 1, de 31/01/2020), 102055 (do diário 1, de 29/02/2020) e 103042 (do diário 1, de 31/03/2020), no montante de 50.500,00 euros, 44.000,00 euros e 71.000,00 euros, respetivamente.
Perante o exposto, em especial no que se refere aos movimentos referentes a levantamentos em numerário, efetuados nas contas bancárias tituladas pelo gerente do sujeito passivo, não foram recolhidos elementos suficientes que permitam concluir que este dinheiro teve como destino as contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, pelo que não serão tidos em conta para efeitos da análise aos valores que deram entrada nestas mesmas contas bancárias (as tituladas pelo sujeito passivo).
Desta forma, e seguindo os critérios anteriormente descritos, procede-se ao apuramento, por tipologia, dos valores que deram entrada nas contas bancárias tituladas pela sociedade, e para os quais o sujeito passivo não apresentou justificação, dado que os mesmos já se encontram expurgados dos valores provenientes das contasbancárias do seu gerente:

(…)
“Desta forma, e retirando aos valores das entradas nas contas bancárias tituladas pela sociedade, dos valores que comprovadamente tiveram origem em contas bancárias tituladas pelo seu gerente, tais como transferências bancárias, pagamentos por TPA, obtemos o seguinte montante, repartido por banco:

Com base no montante apurado no quadro anterior, que totaliza o valor de 767.991,90 euros, procede-se à sua comparação com o valor declarado pelo sujeito passivo como volume de negócios (vendas e serviços prestados), para efeitos de determinação do resultado líquido do período de tributação, o que permite evidenciar o seguinte:

Perante a diferença apurada no quadro anterior, procedeu-se a uma análise mais aprofundada dos valores envolvidos, dado encontrarmo-nos perante a análise dos valores recebidos nas contas bancárias, relacionando quer a totalidade dos rendimentos declarados (com o IVA incluído), quer a evolução dos saldos dos clientes do sujeito passivo, o que permite apurar a seguinte divergência:

Desta forma, estamos perante um valor que deu entrada nas contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo, concretamente 512.675,58 euros, e para o qual não se identifica a correspondência com os réditos declarados (adicionado do IVA), nem com os recebimentos de clientes.
Da consulta aos elementos disponíveis no sistema informático da AT, verifica-se que o sujeito passivo averbou apenas uma conta bancária afeta à sua atividade empresarial, a que corresponde ao Montepio Geral, conforme documento que se junta como anexo 9.
No entanto, no decurso do presente procedimento de inspeção, concluiu-se pela utilização, por parte do sujeito passivo, na esfera da sua atividade empresarial de mais 2 contas bancárias, uma no Banco BIC e outra no Banco Santander, conforme se verifica na consulta ao quadro 6.
O que permite concluir que as três contas bancárias indicadas anteriormente, foram utilizadas pelo sujeito passivo no âmbito da sua atividade empresarial tributada em IRC, sendo que nas mesmas constam a entrada de verbas, para as quais o sujeito passivo não apresenta a devida correspondência ao nível dos rendimentos e ganhos declarados fiscalmente, nem ao nível dos recebimentos dos seus clientes.
Relativamente à utilização de contas bancárias por parte de sujeitos passivos de IRC, como é o caso da sociedade A..., Lda., o n.º 1 do artigo 63.º-C da LGT, vem estipular a obrigatoriedade de que nestas contas apenas, e somente, devem ser movimentados os recebimentos afetos à sua atividade empresarial.
Assim, perante o estipulado no n.º 1 do artigo 63.º-C da LGT, e porquê as mesmas respeitam a contas bancárias utilizadas/movimentadas no âmbito da atividade económica/empresarial desenvolvida pelo sujeito passivo, determina-se que: - A divergência apurada de 512.675,58 euros, apurada no quadro anterior, será objeto, no decurso do presente procedimento de inspeção, do respetivo enquadramento e tratamento tributário.
V.1.3 Omissão de rendimentos
Tal como se referiu anteriormente, foram identificados movimentos financeiros a favor do sujeito passivo, registados nas contas bancárias utilizadas no âmbito da sua atividade empresarial, e para os quais não se identificou a correspondente participação (positiva) no apuramento do lucro tributável, previsto no artigo 17.º do CIRC.
Dado que a atividade empresarial desenvolvida pelo sujeito passivo assenta, essencialmente, na prestação de serviços na área da medicina desportiva (consultas, exames e tratamentos), os valores recebidos nas suas contas bancárias, e para os quais não se encontram evidências de respeitarem a rendimentos e ganhos declarados, nem ao recebimento de crédito concedido a clientes, são considerados como serviços prestados de saúde, enquadrados em sede de IRC como rendimentos e ganhos previstos na alínea a) do n.º 1 do Art.º 20.º do CIRC, e como tal, sujeitos a tributação em sede de IRC no período da sua obtenção, que coincide com o momento do seu recebimento, conforme artigo 18.º do mesmo diploma legal.
Acresce que, os serviços prestados na área da medicina desportiva, se encontram isentos de IVA ao abrigo do artigo 9.º do CIVA, pelo que o montante a acrescer como rendimentos e ganhos do exercício de 2020, no apuramento do lucro tributável previsto no Art.º 17.º do CIRC, será o de 512.675,58 euros, conforme apurado na parte final do ponto V.1.2.
Desta forma, e ao abrigo do estipulado nos artigos 17.º, 18.º, 20.º e 123.º todos do CIRC, as omissões de rendimentos e ganhos no período de tributação de 2020, totalizam 512.675,58 euros, influenciando adeterminação do lucro tributável.”
(cf. Documento 2 junto ao PPA).
3. Com base no RIT, foi emitida a liquidação de IRC do ano de 2020, com o n.º 2024..., datada de 18/10/2024, com o valor de € 130.900,56 (cf. Documento 1 junto ao PPA).
4. Em 25/02/2025, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.
Factos não provados
Consideram-se não provados os seguintes factos relevantes alegados pela Requerente:
1. Durante o ano de 2020, o valor das omissões de rendimentos indicado no RIT corresponde a operações onde 5 cartões pré-pagos (exclusivos da entidade bancária Montepio) foram sempre carregados com recurso aos cartões de crédito Montepio, Santander e Banco Bic, que eram a fonte de financiamento da empresa.
2. De seguida, foram efetuados levantamentos em numerário no Multibanco e depositados esses mesmos valores no Banco Montepio ou, alternativamente, efetuados pagamentos no TPA do Banco Bic que se encontrava na posse da empresa.
3. Uma vez disponíveis os valores depositados no Banco Bic por intermédio do TPA, estes seriam levantados para posterior depósito no Banco Montepio (em numerário ou transferência bancária ou TPA), onde estava sediada a conta da empresa para efeitos do IRC.
Motivação da matéria de facto provada e não provada
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi do artigo 29.º n.º 1, alínea e), do RJAT).
Quanto ao ónus da prova, cumpre referir que, nos termos do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), cabe à AT a prova dos factos constitutivos da existência de uma variação patrimonial positiva, e que, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LGT, os dados e apuramentos inscritos na contabilidade da Requerente presumem-se verdadeiros. Interessa tmabém relembrar o valor probatório do RIT, tal como entendido pelos Tribunais Superiores. No sumário do Acórdão de 13-04-2010, processo n.º 02800/08, o Tribunal Central Administrativo Sul reconhece força probatória plena ao RIT:
“2. O relatório da acção inspectiva é um documento autêntico, com força probatória plena, apenas ilidível nos termos da lei, no que concerne às circunstâncias objectivas, nele atestadas, com base na percepção directa do seu autor”.
No sumário do Acórdão de 26-06-2014, processo n.º 07148/13, o Tribunal Central Administrativo Sul disse o seguinte:
“(i) O valor probatório do relatório de inspecção está condicionado pela aplicação do princípio do contraditório. (ii) Assim, o valor probatório do relatório da inspecção tributária só poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Já o Tribunal Central Administrativo Norte, no Acórdão de 12-01-2017, processo n.º 00250/15.3BEPRT, veio esclarecer em que medida o sujeito passivo pode abalar o valor probatório de um RIT. Começando por relembrar o disposto no artigo 76.º, n.º 1, da LGT (nos termos do qual as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei), o Tribunal veio dizer o seguinte:
“a “fé” creditada às informações (objetivas) da inspeção tributária apenas poderia ser afastada por meio de prova “que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”.
“se o contribuinte pretende contrariar a “fé” creditada aos factos objetivos expostos no relatório não lhe basta negá-los, impugná-los ou simplesmente contestar a sua força probatória pela falta de documentos que os comprovem. Porque o facto de não constarem do Relatório final da Auditoria realizado pela IGF (ou mesmo no Relatório da Inspeção Tributária) todos os documentos de suporte aos factos relatados não impede que se considerem provados, se contra eles a IMPUGNANTE não ofereceu prova bastante para abalar a “fé” de que gozam os factos objetivos constantes do relatório”.
Desta jurisprudência retira-se que o RIT tem “força probatória plena, apenas ilidível nos termos da lei”, e que cumpre ao sujeito passivo impugnar os factos contidos no RIT, e oferecer prova para abalar a fé de que gozam os factos contidos no RIT (ao abrigo do artigo 76.º, n.º 1, da LGT).
O Tribunal Arbitral deu como provados os factos elencados supra mediante a análise dos documentos juntos pela Requerente, do PA e pela posição assumida pelas partes em relação aos mesmos.
No que tange aos factos não provados, a testemunha C... (autor do parecer junto ao PPA como Documento 4) afirmou que, até 2024, não era contabilista certificado da Requerente. Ora, os factos em causa ocorreram em 2020. A testemunha em causa não demostrou ter conhecimento direto e pessoal dos factos relevantes para a apreciação da causa, porquanto não teve qualquer relação com os pagamentos, recebimentos, financiamentos e movimentos bancários efetuados em 2020 pela Requerente.
Importa também realçar que a testemunha afirmou que não fez cruzamento linear entre cada um dos levantamentos e os depósitos e que, no final do ano, há uma diferença no total entre os €16.000,00 e €18.000,00. Temos que seria imprescindível justificar individualmente cada levantamento e depósito, por data e valor, não bastando fazer uma avaliação global. Ter-se-ia de fazer uma conexão entre o dinheiro que saía de uma conta e entrava supostamente na outra. Só assim poderíamos saber se cada depósito ou pagamento feito na conta da sociedade correspondia a valores provenientes de um financiamento.
Por último, sublinhe-se que o depoimento prestado não se mostrou complementados e/ou corroborados por outros elementos de prova objetivos e concordantes.
Conclui-se, assim, que a testemunha e o seu parecer não foram suficientemente consistentes nem seguros em ordem a mostrar que os montantes recebidos nas contas bancárias da Requerente correspondiam a valores depositados e/ou transferidos pela própria Requerente ou pelo seu gerente.
Mais, tendo em conta as regras da experiência afigura-se-nos pouco plausível um esquema de financiamento bancário onde, durante um ano, através de cartões de crédito são transferidos montantes para cartões pré-pagos e posteriormente transferidos ou levantados e depositados em numerário na conta da Requerente, sem qualquer suporte contabilístico e sem o consentimento dos próprios Bancos.
Pelo exposto, julgam-se não provados os factos alegados pela Requerente supra identificados.
DA MATÉRIA DE DIREITO
Da variação patrimonial positiva
Tal como resulta do exposto supra, a Requerente não logrou justificar a divergência, no montante de € 512.675,58, apurada no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) em apreço, entre as entradas nas suas contas bancárias e o valor das vendas e serviços prestados em 2020. Assim sendo, temos por corretas as correções aritméticas empreendidas pela AT, no âmbito de um procedimento inspetivo ao exercício de 2020, na medida em que as ditas correções correspondem a entradas nas consta bancárias tituladas pela Requerente sem correspondência com os réditos declarados.
Note-se que, de acordo com o artigo 17.º (Determinação do lucro tributável) do CIRC:
“ 1 - O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.
(…)
3 - De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes”.
Estabelece o artigo 21.º (Variações patrimoniais positivas) do CIRC, na redação vigente à data dos factos, o seguinte:
“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto:
a) As entradas de capital, incluindo os prémios de emissão de acções, bem como as coberturas de prejuízos, a qualquer título, feitas pelos titulares do capital;
b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação legalmente autorizadas;
c) Os incrementos patrimoniais sujeitos a imposto sobre as sucessões e doações;
d) As relativas a impostos sobre o rendimento.
e) O aumento do capital próprio da sociedade beneficiária decorrente de operações de fusão, cisão, entrada de ativos ou permuta de partes sociais, com exclusão da componente que corresponder à anulação das partes de capital detidas por esta nas sociedades fundidas ou cindidas.”
Transferências e depósitos efetuados para uma conta bancária do sujeito passivo, sem que a este caiba qualquer obrigação efetiva que se lhe associe, é definível como variação patrimonial positiva, pois uma tal entrada de capital permite-lhe diminuir os seus passivos, sem qualquer contrapartida firme e indiscutível – Vd., RUI MARQUES, Código do IRC – Anotado e Comentado, 2.ª edição, Almedina, 2019, pp. 189-190. Neste sentido: Acórdão do TCA Sul, processo n.º 582/05.BELRS de 05/12/2024; Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 316/2022-T, em 18/06/2023; e 402/2020-T, em 09/07(2021.
GUSTAVO COURINHA salienta que: “variações patrimoniais são uma demonstração da pretensão de completude do IRC e da proximidade ao rendimento real (de que são um corolário), não deixando zonas por tributar. Elas ultrapassam os meros resultados contabilisticamente registados pela empresa e relevados fiscalmente e abarcam quaisquer outras oscilações de património (acréscimos ou decréscimos) apuradas no período de tributação” (in Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, p. 93).
Daqui se retira que as variações patrimoniais que não estejam refletidas no resultado líquido do período de tributação são consideradas para efeitos de determinação do lucro tributável, salvo se se encontrarem expressamente excluídas pelas diversas alíneas a) a e) do artigo 21.º do CIRC. Quanto a estas, desde já, se refere que a Requerente não alega qualquer facto que possa ser subsumido em algum das exceções. Perscrutando as exceções, não se afigura a este Tribunal Arbitral que se possa enquadrar a situação em apreço em nenhuma delas.
Pelo exposto, improcede o pedido de anulação dos atos tributários impugnados com fundamento em violação das normas contidas no artigo 17.º e seguintes do Código do IRC, ou do princípio vigente de tributação pelo lucro real decorrente do artigo 104.º da Constituição.
Da falta de fundamentação da liquidação impugnada
A Requerente invoca ainda a insuficiente fundamentação da liquidação.
O direito à fundamentação, relativamente aos atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos tem consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias - Título II da parte 1ª da CRP - artigo 268.º, n.º 3 - tendo o respetivo princípio constitucional sido densificado no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT.
A fundamentação tem a função de dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do ato ou pela sua impugnação. A fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio ato (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do ato um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação).
A falta ou insuficiência de fundamentação do ato, vício de natureza formal (e não substancial), verifica-se, pois, quando o respetivo ato não exterioriza de modo claro, suficiente e congruente, as razões por que apresenta determinado conteúdo decisório: o ato só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato administrativo (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do ato.
Note-se também que a fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do tipo concreto de cada ato (cf. Acórdãos do STA, processo n.º 0787/08 de 05/03/2009, e processo n.º 0399/13.9 BEAVR de 24/04(2019).
No caso em concreto, analisando o RIT, verificamos que a Requerida indica expressamente os fundamentos da liquidação – omissão de rendimentos identificados nas contas bancárias da Requerente. A Requerente discorda dos fundamentos da decisão. Contudo, não se verifica insuficiente fundamentação, conforme alegado pela Requerente. Na verdade, as divergências existentes entre a AT e a Requerente são, como resulta do processo, questões de qualificação dos valores detetados nas contas bancárias da Requerente que a Requerente no seu articulado alega, qualifica e esgrime sem qualquer limitação.
Improcede também o vício de falta de fundamentação da liquidação impugnada.
Face aos fundamentos aduzidos supra, conclui-se que liquidação de imposto e a liquidação de juros compensatórios em apreciação devem ser mantidas na ordem jurídica, o que se determina.
DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar o pedido de pronúncia arbitral totalmente improcedente e, em consequência, absolver a Requerida do pedido;
b) Condenar a Requerente nas custas do processo, em razão do decaimento.
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VALOR DA CAUSA: Fixa-se o valor do processo em € 130.900,56, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
TAXA ARBITRAL: Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 4 de novembro de 2025
A Presidente do Tribunal Arbitral
(Rita Correia da Cunha)
O Árbitro vogal - relator
(André Festas da Silva)
O Árbitro vogal