Sumário:
I -Constitui jurisprudência uniforme que resulta do n.º 1, do artigo 52.º, do Código do IRS, que basta a fundada possibilidade de existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de participações sociais para que a AT se possa valer das presunções previstas nos números subsequentes do mesmo artigo, não sendo exigível à AT que prove o valor real da transmissão em causa.
II -A lei não tipifica os factos com base nos quais a AT pode fundar a sua convicção de que pode existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para efeitos do mecanismo previsto no artigo 52.º do Código do IRS.
III -Verificados os pressupostos do n.º 1 do artigo 52.º do Código do IRS, impende sobre o sujeito passivo o ónus de provar que o valor declarado corresponde ao valor real da transmissão, de modo a ilidir a presunção estatuída no n.º 3 do mesmo artigo.
IV -Conseguindo o sujeito passivo fazer tal prova, há que anular o ato tributário, por violação da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 10.º, n.º 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRS.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1.A..., titular do NIF ..., e B..., titular do NIF ..., ambos residentes na Rua ..., n.º..., ...-... Faro (doravante, os“Requerentes”), vieram nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, do ato de liquidação adicional do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “IRS”) com o n.º 2024..., relativo ao ano de 2021, e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2024..., da qual resulta um montante a pagar de € 11.464,65, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida no reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios .
2.De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
3.O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 26 de junho de 2025, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
4.Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 4 de setembro de 2025.
5.Os Requerentes alegam, em síntese, que a liquidação adicional de IRS que lhes foi notificada está ferida de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, na medida em que resulta de uma correção em sede de tributação de mais-valias mobiliárias assente numa presunção legal de determinação do valor de realização – patente no artigo 52.º, n.º 1, do Código do IRS – cujos requisitos de aplicação não foram respeitados pela Requerida e que, além disso, ainda em sede inspetiva, os Requerentes teriam conseguido provar o valor real da transação, e que é de valor inferior ao apurado pela Requerida por aplicação da mencionada presunção, pelo que a liquidação em causa violaria ainda o princípio da capacidade contributiva plasmado no artigo 103.º, de Constituição da República Portuguesa.
6. A Requerida, estribando-se essencialmente na prática de mercado e numa argumentação de viabilidade económica para defender que existe a possibilidade séria de o valor declarado não correspondeu ao real valor de venda/realização, e amparando-se na recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que no acórdão de uniformização de jurisprudência tirado em 29 de abril de 2025, no processo n.º 01255/19.2BELRA, entende que “[o] artigo 52.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS, na redação introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a lei presume que o valor real da transmissão de ações ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto”, pugna pela manutenção da liquidação adicional notificada aos Requerentes.
7. Atenta a jurisprudência citada, entendeu o Tribunal notificar os Requerentes, em 15.9.2025, por despacho proferido ao abrigo do artigo 18.º do RJAT (no qual se determinou a dispensa de realização de reunião e de produção de alegações), em cumprimento dos princípios da livre condução do processo e da determinação das diligências de prova consagrados nas alíneas c) e e), do artigo 16.º, do RJAT, para virem ao autos produzir prova adicional relativamente ao preço efetivo da cessão de quotas, tendo os Requerentes vindo a fazê-lo por requerimento de 29.9.2025, ao qual a Requerida respondeu em 3.10.2025, pugnando pela irrelevância dos elementos trazidos aos autos.
II. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1.Desde 6.9.2012 e pelo menos até 2021, o Requerente A... e a Requerente B... eram sócios, respetivamente, das sociedades C..., Lda. (doravante, C...), com o NIPC ... e D..., Lda. (doravante, D...), com o NIPC... .
2.O Requerente A... era titular de uma quota com o valor nominal de € 5.100, correspondente a 51% do capital social da C..., que resultou da sua entrada inicial, em setembro de 2012, e do aumento de capital ocorrido em 22.12.2012 – facto não controvertido e provado nos termos do Doc. n.º 1 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”).
3. A Requerente B... era titular de uma quota com o valor nominal de € 5.100, correspondente a 51% do capital social da D... . que resultou da sua entrada inicial, em setembro de 2012, e do aumento de capital ocorrido em 22.12.2012 – facto não controvertido e provado nos termos do Doc. n.º 2 junto ao PPA.
4.Nessa mesma data, 22.12.2012, A... e B... celebraram contratos de opção de compra das suas quotas, respetivamente, na C... e na D..., com a sociedade E... SGPS – Unipessoal, Lda., titular do NIPC ... (“E...”) - facto admitido por acordo.
5.Nos termos desses contratos, ficou acordado que uma eventual venda das participações seria realizada pelo valor nominal das mesmas – provado através dos Docs. n.os 3 e 4 juntos com o PPA e não impugnado.
6.A E... foi constituída em 22.12.2012 – facto público e comprovado por consulta do NIPC da E... ao portal https://publicacoes.mj.pt.
7.Desde essa data e até 6.7.2022 o Requerente A... foi gerente da E... – facto público e comprovado por consulta do NIPC da E... ao portal https://publicacoes.mj.pt.
8.A E... tornou-se titular de 49% do capital social da C... e de 49% do capital da D... em 27.12.2012 – facto inferido pelo tribunal dos Docs. n.os 1 e 2 juntos com o PPA e resultante do processo administrativo instrutor.
9.Em 1.7.2021, os Requerentes alienaram as suas quotas na C... e na D... à E..., correspondentes a 51% do capital social destas sociedades – facto não controvertido e provado pelos Docs. n.os 5 e 6 juntos com o PPA.
10.A E... pagou, a cada um dos Requerentes, o montante de € 5.100,00 pela aquisição das mencionadas quotas – facto provado através dos Docs. n.os 7 e 8 juntos com o PPA, bem como pelas demonstrações financeiras da E... juntas com o requerimento probatório de 29.9.2025.
11.Os Requerentes omitiram as vendas das quotas no anexo G da declaração modelo 3 de IRS relativa a 2021 – facto admitido por acordo.
12.Em 2024, por força dessa falta de declaração, a AT iniciou uma inspeção tributária interna, de âmbito parcial, relativa ao IRS de 2021 dos Requerentes.
13.A AT considerou que as quotas alienadas tinham o valor contabilístico de € 5.870,97, (C...), e de € 79.370,78, no que respeita à D..., tendo estes montantes sido determinados a partir dos balanços das sociedades – facto não impugnado e constante do relatório de inspeção.
14.No contexto dessa inspeção, foi solicitado aos Requerentes que comprovassem a efetividade do preço e que justificassem a razão para as vendas terem ocorrido pelo valor nominal dada a diferença para o valor contabilístico apurado nos termos do balanço, tendo os Requerentes respondido aos Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”) e fornecido documentação variada nesse sentido - facto provado pelo processo administrativo instrutor.
15.Tendo mantido a posição de que o preço indicado pelos Requerentes não correspondia ao real, a AT emitiu a liquidação adicional aqui sindicada, fundando-se no artigo 52.º do Código do IRS – facto admitido por acordo.
16.Terminado o procedimento inspetivo, a AT notificou os Requerentes da liquidação adicional de IRS n.º 2024 ... e correspondente acerto de contas n.º 2024 ..., do qual resultou o montante de imposto a pagar de 11.464,65 € até à data de 14.1.2025 – facto não controvertido e constante do Doc. n.º 12 junto com o PPA
17.Em 12.1.2025 os Requerentes pagaram o imposto – facto não controvertido e provado pelo Doc. n.º 13 junto ao PPA.
A.2. Factos dados como não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
1.Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
2.Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
3.Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, bem como a informação pública extraível do portal de publicações de atos societários do Ministério da Justiça, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
4. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
III. DO DIREITO
1.Nos presentes autos pedem os Requerentes a anulação da liquidação adicional de IRS de 2021 com fundamento i) em erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que alegam ter efetivamente recebido, cada um, o montante de € 5.100 pela venda das respetivas quotas à E...; ii) em violação de lei, por não se encontrarem cumpridos os pressupostos de aplicação do artigo 52.º, n.os 1 e 3 do Código do IRS na redação em vigor à data dos factos, e, iii) na violação do princípio da capacidade contributiva, decorrente do artigo 103.º da CRP.
2.Temos, portanto, no essencial, duas grandes questões a dirimir: i) a AT podia ou não, no caso dos autos, lançar mão da presunção estabelecida no n.º 3 para possibilitar o exercício da faculdade conferida pelo n.º 1, do artigo 52.º, do Código do IRS, na redação vigente em 2021; e ii) podendo fazê-lo, o que significa que impendia sobre os sujeitos passivos (Requerentes) o ónus de provar o real valor da transação, conseguiram ou não os sujeitos passivos comprovar que o valor real da transação foi o indicado nos contratos de cessão de quotas, o que significa que tal montante é o que deve servir como valor de realização para efeitos de determinação da eventual mais-valia tributável.
3.No que respeita à primeira questão, os Requerentes não haviam declarado a venda das quotas na sua declaração de IRS de 2021, o que originou (como os próprios reconhecem, “compreensivelmente”) uma inspeção tributária e, de facto, foi demonstrado pela AT que o valor contabilístico das quotas em causa excedia largamente o respetivo valor nominal, como se pode verificar pelo projeto de relatório e relatório final de inspeção juntos aos autos.
4.No exercício em causa, os n.os 1 e 3, do artigo 52.º, do Código do IRS, estabeleciam o seguinte:
“Artigo 52.º
Divergência de valores
1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.
[…]
3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço” (sublinhados nossos).
5.Nos últimos anos, tem sido amplamente discutido na jurisprudência judicial e arbitral qual o método legal de aplicação da faculdade estabelecida no n.º 1.
6.Entendem uns que a AT deveria, primeiro, fazer prova de factos indiciários que conduzissem à probabilidade séria de divergência entre o valor declarado e o valor real, só depois se aplicando a presunção do n.º 3, e não servindo esta última para espoletar, por si, a aplicação do n.º 1,[1];
7.E, outros, que a Administração Tributária pode fundar a prova da divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão na diferença de valores entre aquele e o resultante do último balanço (ou seja, utilizar a presunção do n.º 3 como indício para fundamentar o exercício da faculdade concedida no n.º 1).[2]
8.Independentemente de qual seja das duas a posição que entendemos ser a mais correta, facto é que, hoje em dia, o STA proferiu já jurisprudência uniformizadora, por acórdão tirado em 29 de abril de 2025, no âmbito do já referido processo n.º 1255/19.2BELRA, nos termos da qual “[o] artigo 52.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS, na redação introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a lei presume que o valor real da transmissão de ações ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto”, instituindo a mencionada alínea b), do n.º 2, para os valores mobiliários não cotados o regime aplicável, pelo n.º 3, à alienação de quotas.
9.Este entendimento foi também confirmado no caso de sociedade por quotas, no acórdão do STA proferido no processo n.º 306/19.5BELRA, de 9 de julho de 2025, em cujo sumário se pode ler que “[o] artigo 52.º, n.º 3, na redação introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a lei presume que o valor da transmissão da quota é o que lhe corresponder apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto.”.
10.Em obediência ao princípio da unidade do sistema jurídico, que é “factor decisivo na interpretação e aplicação da lei - art. 9 e 10 do Cód.Civil -, imposto, até e desde logo, pela própria «coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica»” (v. acórdão do STA de 18.12.1996, relativo ao processo n.º 013176), por força da jurisprudência uniformizadora do Supremo Tribunal Administrativo, assume este tribunal arbitral que a primeira questão é resolvida no sentido de que, verificando-se essa discrepância entre o valor da quota apurado no balanço e o valor declarado da sua venda, pode a AT lançar mão da faculdade estabelecida no n.º 1 do artigo 52.º do Código do IRS, e determinar o valor real da transmissão.
11.Sendo certo que “nada na lei obsta a que a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da operação seja indiciada pela existência de relações especiais e / ou de uma operação por valor inferior ao real ou de mercado. Na verdade, a lei não define nem limita os factos em que a AT se pode basear para considerar “fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da operação”, como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido 21.5.2020, no âmbito do processo n.º 00357/18.7BEVIS (sublinhados nossos).
12.E com efeito verifica-se da análise do Relatório de Inspeção, do processo administrativo instrutor e mesmo da Resposta, que o fundamento da AT para liquidar adicionalmente imposto no caso dos autos é precisamente esse: o valor pelo qual os Requerentes alegam ter vendido as quotas é inferior ao que resultaria do respetivo valor do balanço, considerando mesmo a AT, no Relatório de Inspeção, quanto à C..., “que não seria razoável que alguém vendesse uma quota de 51% da sociedade por apenas € 5.100,00, quando o seu valor rondaria, pelo menos €5.870,61 (€11.511,71 x 51%)” (sublinhados nossos) e alinhando idêntico raciocínio para a Rosácea, cuja discrepância é superior (de € 5.100 para cerca de € 79.000).
13.Damos, portanto, por adquirido, que a Requerida não violou a lei ao usar o mecanismo previsto no artigo 52.º do Código do IRS, tendo demonstrado adequadamente as razões para as suas dúvidas, que começaram pela própria falta de declaração pelos Requerentes, e tendo explicitado devidamente os cálculos a que chegou tanto para a determinação do preço presumido de alienação como para a avaliação das empresas em causa.
14.Contudo, a jurisprudência uniformizadora em que nos vimos baseado também reconhece – como não poderia deixar de ser, em face da jurisprudência constitucional que se tem dedicado à análise da tributação de rendimentos presumidos à luz do princípio da capacidade contributiva como refração do princípio da igualdade tributária, refletida, por exemplo, na atual redação do artigo 73.º da LGT (v., por todos, o acórdão n.º 348/2025, de 28 de maio do Tribunal Constitucional, e demais jurisprudência constitucional ai citada ) – que a presunção estabelecida no n.º 3 do citado artigo 52.º do Código do IRS é ilidível.
15.Refira-se que tanto no Relatório de Inspeção, como na Resposta, como no contraditório exercido em relação aos novos elementos trazidos aos autos pelos Requerentes em cumprimento do despacho arbitral, a Requerida nunca alegou a falsidade de quaisquer documentos, nem os impugnou;
16.Pelo contrário, assentou na presunção de veracidade conferida às declarações e contabilidade dos contribuintes, consagrada no artigo 75.º da LGT, para concluir que das IES e da contabilidade da C... e da D... resultava um valor das quotas que era superior ao valor nominal.
17.Mas não obstante considerou irrelevantes todas as tentativas dos Requerentes de provar que o valor nominal foi efetivamente o valor da transação.
18.Ora, atalhando caminho para a solução da segunda e fulcral questão acima identificada, este tribunal tem, nessa matéria, um entendimento oposto ao da Requerida e que ficou patente no elenco de factos provados.
19.Com efeito, da análise de toda a documentação trazida aos autos e recorrendo ainda aos factos instrumentais que resultaram da instrução (muito em particular o facto de o Requerente A... ser gerente da E... e de a E... ser já sócia da C... e da D... à data da alienação das quotas em causa, o que pode justificar racionalmente que as transações tenham sido feitas pelo valor nominal, independentemente das motivações atuais ou intenções futuras dos intervenientes), este tribunal deu como provado que o preço efetivo de cada uma das transações em causa foi de € 5.100.
20.Diga-se, aliás, que na p. 17 do relatório de inspeção, a Requerida refere que cada um dos Requerentes alienou as quotas aqui em causa por € 5.100,.
21.Na sequência da audição prévia apresentada pelos Requerentes, a AT entendeu que “[o] que efetivamente se constatou é que detendo os sócios alienantes 51% do capital social das empresas em 30/06/2021 e considerando com base no último balanço que a quota que A... , detinha na sociedade C..., LDA, assume o montante de €5.870,97, e que o valor da quota que B..., detinha na sociedade “ D..., LDA”, assume o montante de €79.370,78, tendo por base os valores dos capitais próprios da respetiva sociedade à data de 30/06/2021, e considerando o estipulado no n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS «Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.», considera-se fundadamente que existem divergências entre o valor declarado e o valor real da transmissão, pelo que se encontram reunidos os pressupostos para que a AT proceda à determinação do valor da transmissão segundo a regra definida no nº 3 do mesmo artigo 52.º.”
22.Ao longo do procedimento administrativo, e já no contexto do processo arbitral, a AT nunca alegou que os Requerentes tivessem recebido um valor superior ao declarado, mas apenas que havia fundados indícios de divergência entre o valor declarado e o valor real da transação, e, usando da presunção estabelecida no n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS, fez equivaler esse valor real ao valor apurado com base no balanço.
23. E, de acordo com a jurisprudência uniformizadora a que nos vimos referindo, pelo facto de ter a presunção a seu favor, a Requerida bem andou até esse ponto.
24.Contudo, também resulta dessa jurisprudência, como bem cita a Requerida na Resposta e já se citou na presente decisão, que o artigo 52.º, n.º 3 (que tem regime idêntico ao da alínea b), do n.º 2), do Código do IRS) institui uma presunção nos termos da qual o valor real da transmissão […] é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto” (v. por acórdão do STA de 29.4.2025, relativo ao processo n.º 1255/19.2BELRA, sublinhados nossos).
25.E entendeu este tribunal que os Requerentes provaram que o montante que receberam pela alienação das quotas em causa foi, efetivamente, o valor nominal, tendo-o demonstrado através de comprovativos de transferências, bancárias, demonstrações financeiras e balancetes, documentos cuja veracidade não foi impugnada pela AT mas a que a AT resolveu não atender como prova.
26.Pelo que as correções efetuadas (e a liquidação adicional de imposto que delas deriva) violam a norma resultante das disposições conjugadas do artigo 10.º, n.º 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRS.
27.De facto, não pode a Requerida servir-se da presunção de veracidade patente no artigo 75.º da LGT e até reconhecer a colaboração dos sujeitos passivos durante o procedimento inspetivo, para depois concluir que nenhum dos elementos probatórios trazidos pelos sujeitos passivos, até mesmo já durante o processo arbitral, tem dignidade suficiente para provar que a sua teoria está errada, limitando-se a referir que “os documentos que os Requerentes agora juntam em nada vêm acrescentar e/ou alterar às conclusões constantes do Relatório de Inspeção”.
28.Com efeito, tal como se desenvolveu amplamente na doutrina sobre indispensabilidade de custos em sede de IRC, com paralelo no caso dos autos quanto às opções de gestão dos contribuintes, “a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.” (v. acórdão do STA de 28.6.2017, proferido no âmbito do processo n.º 0627/16).
29.E portanto, se – perante um esforço probatório acrescido sobre o sujeito passivo decorrente da aplicação do artigo 52,º do Código do IRS após a sua leitura uniformizadora fixada pelo STA - a Requerida não duvida da contabilidade das empresas em causa, se não impugna os documentos trazidos aos autos pelos Requerentes, se não levanta a hipótese de se estar perante uma simulação ao abrigo do artigo 39.º da LGT ou de uma situação abusiva enquadrável no artigo 38.º, n.º 2, do mesmo diploma, por, por exemplo, estarmos perante uma operação entre partes relacionadas – que é o caso – não se vê razão para este tribunal não acolher a prova produzida pelos Requerentes no sentido de que o preço efetivo de alienação das quotas foi, de facto, o seu valor nominal. Ou seja, não pode no caso concreto, tornar a presunção numa presunção inilidível, ou assente em factos de prova, na prática, impossíveis.
30.Tudo visto, em preparação da decisão, entende este Tribunal Arbitral, pelos motivos expostos, que a liquidação de IRS em crise é anulável, posto que está inquinada de erro sobre os pressupostos de facto e ferida de vício de violação de lei, em concreto da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 10.º, n.º 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRS, o que constitui erro imputável aos serviços, gerador da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT, na medida em que os Requerentes provaram ter pago imposto que se vem a verificar não ser devido.
31.Por força do decidido quanto a estes vícios, fica prejudicado o conhecimento dos restantes alegados pelos Requerentes.
IV. DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2022..., relativa ao ano de 2021, no montante de € 11.464,65 e, em consequência, condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios e nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 11.464,65, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de outubro de 2025
O Árbitro,
João Taborda da Gama
[1] Caso do Acórdão do STA de 22.6.2022, proferido no âmbito do processo n. º 121/14.2BELRA e das decisões arbitrais proferidas nos processos n.os 812/2019-T, 5/2022-T e 641/2023-T.
[2] Assim, por exemplo, a decisão arbitral proferida no processo n.º 919/2023-T e o acórdão do STA proferido em 28.2.2024 no âmbito do processo n.º 1255/19.2BELRA.