Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 428/2025-T
Data da decisão: 2025-10-30  IRS  
Valor do pedido: € 14.150,02
Tema: IRS; mai-valias; valor de aquisição; primazia da substância sobre a forma
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SUMÁRIO: 

1.Ao privilegiar a substância sobre a forma, o sistema fiscal reforça a justiça material e a coerência interna do ordenamento tributário, assegurando que situações equivalentes em termos económicos recebam tratamento idêntico em termos fiscais.

2.De acordo com o princípio da primazia da substância sobre a forma, a inclusão dos custos de construção devidamente comprovados na valoração do bem imóvel decorre, antes de mais, dos princípios fundamentais do sistema jurídico-tributário, em especial o da capacidade contributiva e o da tributação pelo rendimento líquido.

3.Não se pode considerar que a aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 46.º do CIRS dependa de o imóvel se encontrar, no momento da sua alienação, inscrito na matriz predial urbana com uma natureza distinta daquela que possuía no momento da aquisição. 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão

 

1. RELATÓRIO

 

1.A..., titular do número de identificação fiscal ... e B..., titular do número de identificação fiscal..., (doravante abreviadamente designados por “Requerentes”), ambos com morada em ..., Países Baixos, vieram, a 29.04.2025, ao abrigo da alínea a), do n.º 1,do artigo 2.º e dos n. os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre a (i)legalidade dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) e correspondentes juros compensatórios, emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), identificados pelos n.º 2024 ... e 2024 ..., do qual resultou IRS adicional e juros compensatórios a pagar no montante total de  14 150,02€, conforme resulta das demonstrações de acerto de contas n.º 2024 ... e 2024..., que tiveram por base, respetivamente, o Estorno da liquidação n.º 2024 ... e 2024 ... . 

 

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 02.05.2025. 

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 24.06.2025. 

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 17.07.2025. 

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 25.09.2025, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por ter não sido requerida nem considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada por despacho proferido em 26.09.2025, tendo sido concedida às partes a faculdade de produção de alegações finais simultâneas no prazo de 10 dias, tendo a Requerida apresentado as suas em 07.10.2025 e a Requerente, em virtude de comprovadas falhas de comunicação, em   

 

1.1 Dos factos alegados pelo Requerente 

 

 

8. Os Requerentes adquiriram, no dia 20.09.2018, o prédio urbano, inscrito sob o artigo matricial..., sito em , na União de Freguesias de ... e..., concelho de Lagoa, através de escritura pública de compra e venda celebrada com a vendedora e (anterior) proprietária deste bem imóvel, tendo as partes acordado, como contrapartida da transmissão da propriedade do referido bem imóvel, o montante pecuniário de 600 000,00€, respeitando o prédio urbano a um lote de terreno para construção urbana, denominando-se “lote número um” e encontrando-se registada a autorização de loteamento titulada pelo respetivo alvará. 

 

9. Os Requerentes procederam à realização de obras de reabilitação do prédio urbano por si adquirido, tendo, para tal, contratado uma empresa especializada no setor da construção imobiliária (i.e., C..., Lda.), por forma a efetivarem as obras de reabilitação projetadas, a saber, uma obra de construção de uma moradia com piscina, tendo o referido prestador de serviços realizado as obras de reabilitação no prédio urbano e emitido aos Requerentes um conjunto de faturas, tendo estes suportado um montante total de 340 290,26€, a título de custos de construção no imóvel em apreço, conforme melhor detalhado na tabela: 

 

 

 

 

10. Subsequentemente à realização das mencionadas obras, os Requerentes procederam à alienação do seu direito de propriedade, no dia 23.11.2023, pelo montante de 850 000,00€, conforme resulta do contrato de compra e venda celebrado, tendo apresentado, com referência ao período de tributação do ano 2023, as respetivas Declarações Modelo 3 de IRS, a 21.06.2024, tendo preenchido o respetivo Anexo G, por forma a contemplar as mais-valias apuradas com a alienação do imóvel em causa, tendo sido posteriormente notificados pela AT da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, com referência ao período de 2023, no montante de 14 150,02€, bem como das Demonstrações de acerto de contas n.º 2024 ... e 2024 .... 

 

11. De acordo com a informação disponibilizada pela AT, para efeitos de emissão da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, relativa ao período de 2023, não foi aceite, com referência a cada sujeito passivo, o montante de 201 286,60€, considerado pelos Requerentes no quadro 4 do Anexo G das respetivas Declarações Modelo 3 de IRS, posição não aceite pelos Requerentes e que está na base do presente pedido de pronúncia arbitral. 

 

 

1.2  Argumentos das partes

12. Os Requerentes sustentam a ilegalidade da liquidação adicional acima mencionada com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

a)    Por forma a densificar e concretizar o conceito de mais-valias para efeitos de tributação em sede de IRS, dispõe o n.º 1 do artigo 10.º do CIRS que “[c]onstituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, sendo os ganhos obtidos no momento da prática do ato de alienação onerosa dos direitos reais sobre bens imóveis e constituídos pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais), nos termos da alínea a) do n.º 4 e n.º 3 do artigo 10.º do CIRS; 

b)    O incremento patrimonial valorado para efeitos de IRS, resultando do diferencial apurado entre o valor de realização de um determinado bem imóvel e o seu valor de aquisição, corresponde, na sua globalidade, ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano; 

c)     Na concretização dos ganhos que se encontram dentro do âmbito de sujeição a imposto, importa considerar como valor de realização, de forma residual, o valor da respetiva contraprestação, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do CIRS; 

d)    No que concerne ao valor de aquisição, quando estejam em causa bens imóveis adquiridos a título oneroso, dispõe o n.º 1 do artigo 46.º do CIRS que se considera “valor de aquisição o que tiver servido para efeitos de liquidação do imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis (IMT)”;

e)    O n.º 3 do artigo 46.º do CIRS contempla uma regra especial aplicável às situações em que os imóveis são construídos pelos próprios sujeitos passivos esclarecendo que, nestas circunstâncias, o valor de aquisição dos imóveis “corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele”; 

f)     O STA, no âmbito do Processo n.º 0315/14.0BEFUN, de 07 de janeiro de 2020, esclarecendo que “no caso em que o imóvel tenha sido construído pelo sujeito passivo, admite que o mesmo possa, para efeitos de cálculo do ganho a partir do qual se apura a mais-valia a tributar, beneficiar do maior de um dos seguintes valores: i) valor patrimonial tributário do imóvel originário (quando este seja depois objeto de reconstrução total, dando origem a um novo imóvel) ou ii) valor do terreno (calculado segundo as regras do n.º 1 e 2 do artigo 46.º do CIRS, ex vi n.º 4 do mesmo artigo), acrescido do valor dos custos de construção”.

g)    Considerou igualmente o referido Acórdão, que o valor de aquisição não pode deixar de ser o valor apurado no momento da aquisição – seja o valor patrimonial do imóvel inscrito na matriz àquela data, seja o mesmo apurado a partir do somatório do valor do terreno e dos custos de construção, ou seja,  o valor do imóvel determinado no momento em que o mesmo ingressa na titularidade do adquirente (ou reportado a esse momento, caso o mesmo tenha sido adquirido através de um contrato de locação financeira – artigo 46.º, n.º 5, do CIRS;

h)    Os Requerentes adquiriram o bem imóvel sub judice, tendo contratado uma empresa de construção, por forma a efetivarem as obras de edificação/reabilitação planeadas neste imóvel, encontrando-se as despesas efetuadas devidamente comprovadas através da emissão das correspondentes faturas, com a identificação do concreto bem imóvel na sua descrição; 

i)      A teleologia da dedutibilidade destas despesas no cômputo das mais-valias inscreve-se no princípio genérico de que o rendimento sujeito a tributação deve ser um rendimento líquido, correspondente à capacidade contributiva efetivamente adquirida, pelo que os encargos comprovadamente incorridos que apresentem uma conexão evidente ou necessária com a obtenção do rendimento, mesmo tratando-se de um rendimento de natureza não recorrente, irregular ou fortuito, como é o caso das mais-valias, devem ser subtraídos ao valor de realização;  

j)      A possibilidade de consideração dos custos de construção no bem imóvel resultam, desde logo, dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento líquido, de tal modo que, pressupondo a sua evidente e necessária conexão com os rendimentos obtidos, deverão ser devidamente valorados à luz do incremento patrimonial gerado; 

k)     Em sede de IRS o documento comprovativo e justificativo dos custos não tem de assumir as formalidades legais exigidas para as faturas em sede de IVA, pelo que, por maioria de razão, há que admitir a prova a partir de documentos, cheques, declaração de quitação ou outros, que não faturas ou faturas-recibo; 

l)      O que o CIRS exige é que os custos de construção sejam devidamente comprovados, de maneira a não oferecerem qualquer dúvida quanto ao facto de terem sido despendidos naquela edificação, não havendo nenhuma remissão genérica para o CIVA nem, muito menos, especificamente dirigida às exigências formais das faturas impostas por esse diploma, não se podendo laborar como se ela existisse;  

m)  No caso, verifica-se que (i) quer os custos suportados com a construção do bem imóvel se encontram devidamente titulados pelas respetivas faturas, e pelo contrato de empreitada que lhes subjaz; (ii) como resulta inequivocamente que os mesmos foram despendidos naquela concreta edificação, tal como consta das próprias faturas que mencionam expressamente o lugar do bem imóvel (i.e., identificação do Lote 1 da Urbanização ...), pelo que os custos de construção possuem um nexo necessário e evidente com a obtenção do rendimento em causa, não podendo ser, nesta sede, desconsiderados; 

n)    Ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 46.º, do CIRS, deveria ter sido considerado no valor de aquisição do bem imóvel relevante para efeitos de tributação em sede de IRS, o montante adicional de 340 290,26€, fruto dos custos de construção operados, realidade que foi desconsiderada na liquidação adicional de IRS em análise;

o)    Subsidiariamente, o preceito normativo constante da alínea a), do n.º 1, do artigo 51.º do CIRS contempla duas tipologias de encargos distintas: (i) os encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos; e (ii) as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação;

p)    Atentando na letra da lei, não pode deixar de conclui-se, desde logo, que o encargo há de estar ligado à valorização do bem alienado, não estando incluídos encargos que tenham por escopo a mera preservação do valor do bem, mas, tão só os que se destinem a aumentar o seu valor físico e económico, sendo que as obras efetuadas no bem imóvel, contribuíram, cabalmente, para essa valorização, não se tratando de meras operações de manutenção ou de preservação; 

q)    As obras respeitaram a intervenções de alteração do bem imóvel, denotando o carácter estrutural da sua configuração, indo além de uma mera operação de conservação das infraestruturas, devendo considerar-se os custos suportados a este título, no valor de 340 290,26€, subsumíveis no conceito de encargos com a valorização dos bens, para efeitos de aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS, devendo considerar-se que o referido montante acresce ao valor de aquisição do bem imóvel para a determinação do valor das mais-valias sujeitas a imposto; 

r)     Sendo julgado procedente o presente pedido, que lhe sejam pagos, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, da LGT, os respetivos juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária. 

 

 

13. A AT respondeu por impugnação com base nos fundamentos sinteticamente elencados: 

a)     O imóvel identificado na matriz pelo art.º ..., corresponde a um lote de terreno para construção, nos  termos do artigo 6.º, n.º1, alínea c), e do n.º 3, do CMI, e mais especificamente no nº 3, sendo que na escritura de aquisição celebrada em 2018 o imóvel mostra-se assim delimitado e, aquando da escritura publica de alienação datada de 23.11.2023, mantem-se esta mesma identificação, tendo, portanto, o bem imóvel objeto de transação passível de gerar mais-valia, um urbano sem natureza habitacional (art.º 6, n.º 1- a) e nº 2, CIMI; 

b)     Revela-se incongruente o argumento de que o teor do art.º 46, nº3 CIRS não teria sido considerado pelos serviços, (i.é, os custos de construção correspondentes, ao que no contrato de empreitada se mostra identificado como a “construção de uma moradia com piscina no terreno para construção urbana…” sito na freguesia do Carvoeiro), na medida em que o valor de aquisição a considerar na concretização do apuramento conforme o determinado no artigo 10, n.º 4,  e artigo 43, n.º 1, do CIRS, deve corresponder ao imóvel adquirido e posteriormente alienado e este, na situação dos autos, não corresponde a um terreno com implantação de uma construção de natureza habitacional, não se encontrando qualquer elemento que, em registo patrimonial, permita concluir-se ter o prédio em questão assumido natureza distinta (i. e. natureza habitacional e não lote para construção urbana); 

c)     As obras realizadas são identificadas na petição inicial como obras de reabilitação, tendo sido contratada uma empresa de construção para a sua efetivação e encontrando-se explicitado no contrato de empreitada celebrado e no objeto delimitado, em que é que se materializavam essas obras, tendo sido alienado o direito de propriedade no ano de 2023, apenas quando as obras se mostraram concluídas, sendo de difícil aceitação terem as obras cujos custos os Requerentes pretendem ver atendidas na determinação do ganho, corresponderem a uma qualquer intervenção em edifício que já existisse, visando introduzir melhores condições, seja de segurança, seja de habitabilidade ou de funcionalidade, enfim preservando e incrementando valor; 

d)     O conceito de reabilitação é bastante distinto das obras que os Requerentes intentam validar e que na realidade se traduzem numa edificação implantada num lote de terreno, a qual foi já concedida com autorização administrativa para tal, embora a existência patrimonial desta construção não se mostra minimamente reconhecida, por exemplo mediante a apresentação do modelo 1 do CIMI; 

e)     Sendo certo que o n.º 3 do artigo 46.º do CIRS determina qual o valor de aquisição a considerar quando esteja em causa imóvel construído pelos titulares do direito de propriedade, correspondente ao valor do terreno acrescido dos custos de construção comprovados, na situação em análise parece ser difícil esta ponderação quando o imóvel transacionado é o artigo matricial identificado sob nº ..., (i.é, um terreno para construção e não uma terreno com implantação de uma habitação, concretamente uma moradia, com piscina); 

f)      Não é possível a consideração de custos de construção de uma moradia com piscina a acrescer ao valor de aquisição de um prédio urbano cuja natureza é de terreno para construção, não se aferindo em que é que uma alegada implantação de uma construção incrementou valor de um lote de terreno urbano; 

g)      A despesa a acrescer tem de se mostrar indissociável do bem imóvel concretamente definido, ou inerente e necessário ao negócio gerador de mais-valia, ademais quando a exigência desta conetividade igualmente visa evitar situações de dupla tributação económica e/ou algumas situações eivadas de traços menos claros, o que na situação dos autos não se verifica; 

h)     Não se verificam preenchidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT, por forma a que se constitua a favor dos Requerentes qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

1.3. Saneamento  

 

 

14. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas, estando o cumpridos os requisitos previstos para a coligação de autores, nos termos do  n.º 1, do artigo 3.º, do RJAT, visto que aos pedidos em apreço corresponde igual forma processual, a sua apreciação tem por base as mesmas circunstâncias de facto e os pedidos mostram-se suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas, porquanto a tais liquidações será forçosamente aplicado o mesmo enquadramento jurídico-tributário. 

 

15. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).  

 

16. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa. 

 

2      FUNDAMENTAÇÃO

2.1       Factos dados como provados

17. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)     Os Requerentes adquiriram, no dia 20.09.2018, o prédio urbano, inscrito sob o artigo matricial ..., sito em ..., na União de Freguesias de ... e ..., concelho de Lagoa, através de escritura pública de compra e venda celebrada com a vendedora e anterior proprietária deste imóvel – a D..., Lda.; (Doc. 2).  

b)    As partes acordaram, como contrapartida da transmissão da propriedade do referido imóvel, o montante pecuniário de 600 000,00€; (Doc. 2).

c)     O prédio urbano respeitava a um lote de terreno para construção urbana, denominando-se “lote número um” e encontrando-se registada a autorização de loteamento titulada pelo respetivo alvará; (Doc. 2). 

d)    Os Requerentes procederam à realização de obras de reabilitação do prédio urbano por si adquirido, tendo, para tal, contratado uma empresa especializada no setor da construção imobiliária (i.e.,  C..., Lda.), por forma a efetivarem as obras de reabilitação projetadas; (Doc. 3) 

e)    O contrato celebrado destinava-se a uma obra de construção de uma moradia com piscina, no lote de terreno para construção urbana sito em ..., lote 1, União de Freguesias de ... e ..., concelho de Lagoa, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa, sob o n.º ..., e inscrito na respetiva Matriz Predial sob o artigo urbano n.º...; (Doc. 3)

f)      A empresa C..., Lda. realizou as obras de reabilitação no prédio urbano e emitiu aos Requerentes um conjunto de faturas, no montante total de 340 290,26€; (Doc. 4; tabela no § 9)

g)     Os Requerentes procederam à alienação do seu direito de propriedade sobre o imóvel, no dia 23.11.2023, pelo montante total de 850 000,00€; (Doc. 5)

h)    Com referência ao período de tributação de 2023, os Requerentes, na situação de não residentes e mantendo a opção pela tributação separada, apresentaram as respetivas Declaração Modelo 3 de IRS, no dia 21.06.2024, (cf. demonstrações de liquidação de IRS, identificadas pelos n.º 2024 ... e 2024...), tendo preenchido o respetivo Anexo G, por forma a contemplar as mais-valias apuradas com a alienação do imóvel; (Doc. 6)

i)      Para efeitos de emissão da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, com referência a 2023, não foi aceite, com referência a cada sujeito passivo, o montante de 201 286,60€, considerado pelos Requerentes no quadro 4 do Anexo G das respetivas Declarações Modelo 3 de IRS; (Doc. 7)

j)      Foi solicitado pela AT os elementos documentais que comprovassem a factualidade inscrita, razão da abertura dos procedimentos de divergência, tendo os serviços concluído não ser de aceitar os custos de construção, pelo que o valor de despesas e encargos considerandos justificados foi apenas de 42.566€ em cada liquidação; (PA)

k)     Os Requerentes notificados, pela AT, da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, com referência ao período de 2023, no montante global de 14 150,02€, bem como da Demonstrações de acerto de contas n.º 2024... e 2024...; (Doc. 1).

 

2.2          Factos não provados

 

18. Com relevo para a decisão de mérito não existem factos não provados com relevância para a decisão do caso concreto. 

 

2.3          Motivação

 

19. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

20. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4              Questões a decidir 

 

21. O IRS incide objetivamente sobre o montante anual dos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos, englobando as categorias previstas no n.º 1 do artigo 1.º do Código do IRS, após aplicação das deduções e abatimentos legalmente previstos. Nesse contexto, e de acordo com o n.º 1 do artigo 9.º do mesmo Código, integram o conceito de incrementos patrimoniais as mais-valias, desde que não se enquadrem noutras categorias de rendimentos.

 

22. Em Portugal, a tributação das mais-valias imobiliárias obtidas por não residentes encontra a sua base legal no CIRS. O artigo 15.º, n.º 2, estabelece o princípio da territorialidade, segundo o qual “os sujeitos passivos não residentes ficam sujeitos a IRS quanto aos rendimentos obtidos em território português”. O artigo 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS, esclarece que se consideram rendimentos obtidos em território português “os rendimentos respeitantes a imóveis nele situados, incluindo as mais-valias resultantes da sua transmissão”. 

 

23. Por sua vez, o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, define como mais-valias, na categoria G do IRS, “os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”. Já o artigo 43.º, n.º 2, prevê que apenas 50% da mais-valia líquida apurada é considerada para efeitos de tributação.

 

24. Os ganhos realizam-se no momento da alienação onerosa e correspondem à diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição do bem, deduzida da parcela qualificada como rendimento de capitais, nos termos da alínea a) do n.º 4 e do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS. O incremento patrimonial apurado para efeitos de IRS resulta, assim, do saldo entre mais-valias e menos-valias realizadas no mesmo exercício fiscal.

 

25. No que se refere ao valor de realização, para efeitos de IRS, deve considerar-se, de forma residual, o montante da respetiva contraprestação, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do Código. Quanto ao valor de aquisição de bens imóveis adquiridos a título oneroso, dispõe o n.º 1 do artigo 46.º que se toma como referência o valor utilizado para efeitos de liquidação do imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis (IMT). 

 

26. Em situações em que os imóveis são construídos pelos próprios sujeitos passivos, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece que o valor de aquisição corresponderá ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, prevalecendo o que for mais elevado. Assim, para imóveis construídos pelos próprios, o valor de aquisição deve refletir (i) o valor patrimonial na matriz ou (ii) o valor do terreno somado aos custos de construção devidamente comprovados, consoante qual seja superior.

 

27. De acordo com o artigo 74.º, n.º 1 da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Isto significa que cabe à administração tributária provar os factos que justificam a liquidação de um tributo, bem como eventuais correções efetuadas, enquanto o contribuinte deve provar os factos que fundamentam o seu direito a deduções, isenções ou benefícios fiscais. Este princípio visa garantir um equilíbrio entre as partes, assegurando que as decisões fiscais se baseiem em elementos objetivos e devidamente comprovados. Importa, pois, atentar nos elementos probatórios, de natureza documental, que constam do processo. 

 

28. No processo judicial tributário, a prova documental assume igualmente valor probatório reforçado, uma vez que é através dela que o contribuinte ou a AT procura demonstrar a legalidade ou ilegalidade dos atos praticados. Atendendo ao carácter predominantemente escrito deste processo, os documentos — fiscais, contabilísticos, contratuais, matriciais ou registais — constituem o meio de prova privilegiado, em detrimento de outros meios como a prova testemunhal. A sua relevância encontra suporte legal no artigo 115.º da LGT, que consagra o princípio da verdade material, no artigo 74.º da LGT, relativo ao ónus da prova, e ainda nos artigos 362.º e seguintes do Código Civil, que definem o conceito e valor da prova documental.

 

29. Resulta dos autos que os sujeitos passivos, na qualidade de não residentes em território português, apenas se encontram sujeitos a tributação relativamente aos rendimentos obtidos em território nacional, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, do CIRS. No caso concreto, está demonstrado que os únicos rendimentos auferidos pelos Requerentes se enquadram na Categoria G, correspondente aos ganhos provenientes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis situados em Portugal.

 

30. Resulta provado que o imóvel objeto da transação, inscrito na matriz predial sob o artigo ..., corresponde a um lote de terreno para construção, conforme decorre do artigo 6.º, n.º 3, do CIMI. Tal qualificação encontra-se expressamente consignada na escritura de aquisição celebrada em 2018 (doc. 2) e manteve-se inalterada na escritura pública de alienação datada de 23 de novembro de 2023 (doc. 5), onde o bem é descrito como “... prédio urbano denominado lote 1, composto por lote de terreno para construção urbana... inscrito na matriz sob o artigo ... ...”.

 

31. No entanto, importa ter presente, de acordo com o princípio da primazia da substância sobre a forma, que a inclusão dos custos de construção na valoração do bem imóvel decorre, antes de mais, dos princípios fundamentais do sistema jurídico-tributário, em especial o da capacidade contributiva e o da tributação pelo rendimento líquido, pelo que, sendo evidente a ligação desses custos aos rendimentos obtidos, impõe-se que sejam devidamente considerados na apreciação do acréscimo patrimonial verificado.

 

32. O princípio da prevalência da substância sobre a forma manifesta-se no entendimento de que, para efeitos de IRS, a comprovação dos custos não depende do cumprimento das formalidades legais próprias das faturas exigidas em sede de IVA, sendo admissível a prova através de documentos diversos – como cheques, declarações de quitação ou outros meios equivalentes – que não sejam necessariamente faturas ou faturas-recibo. O que o CIRS exige é que os custos de construção estejam devidamente demonstrados. Em suma, o elemento determinante consiste em verificar se esses custos se encontram comprovados de modo inequívoco, revelando-se efetivamente suportados na realização da obra.

 

            33. No caso em apreço, constata-se que (i) os encargos suportados com a construção do imóvel se encontram devidamente documentados pelas correspondentes faturas e pelo contrato de empreitada que lhes serve de base; (ii) resulta de forma inequívoca que tais valores foram efetivamente aplicados na edificação em causa, conforme decorre das próprias faturas, as quais identificam expressamente o local do imóvel (designadamente, o Lote 1 da Urbanização...). Assim, os custos de construção apresentam um nexo direto e indissociável com o rendimento em apreço, não podendo, por conseguinte, ser desconsiderados para efeitos fiscais.

 

34. Deste modo, e à luz do exposto, não se pode considerar que a aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 46.º do CIRS dependa de o imóvel se encontrar, no momento da sua alienação, inscrito na matriz predial urbana com uma natureza distinta daquela que possuía no momento da aquisição, como defende a Autoridade Tributária na resposta apresentada. Tal exigência não resulta do texto legal nem do seu espírito, sendo incompatível com a interpretação sistemática e teleológica da norma.

 

35. Do mesmo modo que o princípio da primazia da substância sobre a forma impede que se estabeleça uma correspondência automática entre a prova exigida em sede de IRS e a prova requerida para efeitos de IVA, também não pode ser imposta uma equivalência com a prova em matéria de IMI. A Autoridade Tributária não deve, pois, impor uma condição não prevista na lei, de natureza meramente formal, que contraria os princípios estruturantes do sistema jurídico-tributário, nomeadamente os da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e da justiça material.

 

36. Acresce que a própria AT reconhece a realização de obras no prédio em causa e não põe em causa a autenticidade ou validade dos documentos que as comprovam. O essencial é verificar se os custos invocados dizem efetivamente respeito à construção e se se encontram devidamente comprovados, sendo que a avaliação desses custos deve ser feita em função da obra concreta que foi realizada.

 

37. Torna-se, por isso, incongruente desconsiderar tais custos, quando é evidente que o imóvel transmitido integra as construções nele efetuadas. Qualquer entendimento contrário implicaria uma diferenciação arbitrária e injustificada entre os contribuintes que alienam imóveis com obras totalmente concluídas e aqueles cuja construção ainda não se encontra integralmente finalizada, violando os princípios da igualdade e da coerência na aplicação da lei fiscal.

 

38. O princípio da primazia da substância sobre a forma constitui um dos pilares do direito fiscal contemporâneo, impondo que a qualificação e o tratamento jurídico-tributário dos factos se determinem com base na sua realidade económica e substancial, e não apenas na configuração formal que lhes é dada pelas partes. Este princípio visa assegurar que a tributação incida sobre a verdadeira capacidade contributiva revelada pelos factos, evitando que a forma jurídica adotada sirva como instrumento de evasão, dissimulação ou distorção da realidade económica. Ao privilegiar a substância, o sistema fiscal reforça a justiça material e a coerência interna do ordenamento tributário, assegurando que situações equivalentes em termos económicos recebam tratamento idêntico em termos fiscais.

 

39. A aplicação deste princípio deve, porém, ser neutra e equilibrada, sem pender sistematicamente a favor do contribuinte ou da Administração Tributária. A sua função é garantir a verdade material e a correta determinação da obrigação fiscal, não servir como mecanismo de favorecimento de uma das partes. Assim, tanto deve corrigir situações em que a forma é utilizada para obter vantagens indevidas, como impedir que o formalismo excessivo conduza à tributação de realidades que, em substância, não correspondem a um acréscimo patrimonial. A observância imparcial do princípio da primazia da substância sobre a forma constitui, pois, uma exigência de legalidade, equidade e segurança jurídica no sistema fiscal.

 

40. Não há lugar ao pagamento de juros compensatórios por parte dos Requerentes, uma vez que não se verificam os pressupostos legais previstos no artigo 35.º, n.º 1, da LGT. Com efeito, tais juros apenas são devidos quando o atraso na liquidação do imposto resulte de facto imputável ao contribuinte, o que manifestamente não ocorre no presente caso. As liquidações adicionais de IRS foram emitidas com base em erro da Autoridade Tributária, não havendo, portanto, qualquer fundamento jurídico que legitime a exigência de juros compensatórios aos Requerentes.

 

41. Por último, importa salientar que, conforme amplamente demonstrado na petição arbitral, assiste ao contribuinte o direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT. Com efeito, a AT incorreu em erro nos pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a emissão das liquidações adicionais de IRS ora em causa, determinando uma cobrança indevida de imposto. Tal erro imputável aos serviços da Administração confere ao contribuinte o direito à reposição integral da legalidade e à correspondente reparação pelos prejuízos causados pela indevida privação de disponibilidade do montante pago, o que se concretiza através da atribuição de juros indemnizatórios.

 

42. Estes juros destinam-se a restabelecer o equilíbrio patrimonial violado pela atuação injustificada da AT. O seu reconhecimento traduz, portanto, a aplicação dos princípios da boa administração, da justiça e da tutela da confiança, que impõem que o contribuinte não suporte as consequências financeiras de atos ilegais da própria Administração. Assim, uma vez anuladas as liquidações impugnadas, deve a AT proceder à restituição dos montantes pagos em excesso, acrescidos dos correspondentes juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido até ao reembolso efetivo, garantindo-se, deste modo, a plena realização da justiça tributária.

 

3      DECISÃO 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral: 

a)     Anular os atos tributários de liquidação adicional de IRS e correspondentes juros compensatórios, emitidos pela Requerida; 

b)    Condenar a Requerida à devolução dos requerentes dos montantes pagos em excesso, acrescido de juros indemnizatórios legalmente devidos.

4      VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 14.150,02€ nos termos do artigo 306.º, n.º 1, do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT. 

 

5      CUSTAS 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918.00€, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

 

 

 

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de outubro de 2025

 

O Árbitro

 

 

Jónatas Machado