Sumário:
1. Com a anulação administrativa (revogação) da liquidação na pendência da ação arbitral, aceite pelo requerente, o tribunal declara a extinção do processo por inutilidade superveniente da lide.
2. Não existe direito a juros indemnizatórios: não existe um erro imputável aos serviços, pois a liquidação de IRS fica-se a dever à não apresentação da declaração de IRS por parte do requerente (e dos documentos de suporte detidos na sua esfera e não na da AT), tendo, perante isso, a AT, que proceder a liquidação oficiosa.
Decisão Arbitral
Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Nuno Miguel Morujão e Tomás Cantista Tavares, relator (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25/8/2025, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., portador do Cartão de Cidadão n.º ..., emitido pela República Portuguesa e válido até 10.08.2030, Contribuinte ..., residente na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, adiante simplesmente designada por “Requerente”,
apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação da Liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., relativa a 2021, no valor de total de € 757.683,41, dos quais € 37.639,55 respeitam a juros compensatórios, e reflexamente a anulação do indeferimento expresso da Reclamação graciosa intentada com o n.º de processo ...2024... .
A Requerente pede ainda a restituição da importância que considera indevidamente liquidada, acrescida de juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 25/8/2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira foi notificada nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT. A Autoridade Tributária e Aduaneira veio informar ao processo que procedeu à revogação do ato de liquidação impugnado, entendendo, porém, que não são devidos juros indemnizatórios, por inexistência de erro imputável aos serviços.
Notificada para o efeito, a Requerente apresentou requerimento em que pede a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, por o ato impugnado ter sido anulado administrativamente em 26/9/2025, por Despacho da subdiretora geral da AT – Imposto sobre o rendimento; mantendo, porém, interesse em que o Tribunal decida sobre o tema dos juros indemnizatórios.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e o Tribunal é competente.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) A AT emitiu liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., relativa a 2021, no valor de IRS e juros compensatórios de € 757.683,41, porque o requerente não entregou atempadamente a declaração anual de rendimentos.
B) Inconformado, o requerente deduziu reclamação graciosa, e perante o seu indeferimento expresso intentou a presente ação arbitral, onde solicita, entre outras coisas, a anulação do ato impugnado, acrescido de juros indemnizatórios.
C) Em 26/9/2025, a Subdirectora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira proferiu despacho em que, além do mais, decidiu a revogação ao ato impugnado, mas negando a AT o direito a juros indemnizatórios.
D) O Requerente aceitou essa revogação, mas entende que o tribunal tem que decidir a questão dos juros indemnizatórios.
E) Os documentos de suporte para o apuramento do rendimento real (bancários e outros) – e exatas informações neles ínsitas – não estavam na posse nem na esfera da AT, quando efetuou a liquidação oficiosa de IRS.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
2.2.1. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.2.2. Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
3. Matéria de direito
A Requerente impugnou a liquidação de IRS e juros compensatórios, relativa a 2021, no valor total de € 757.683,41, incluindo IRS e juros compensatórios. Esse ato impugnado foi revogado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, mas que não reconheceu o direito do Requerente a juros indemnizatórios.
O Requerente defende que deve ser extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao imposto e juros compensatórios, mantendo-se a necessidade de decisão judicial quanto aos juros indemnizatórios. O interesse processual do Requerente era obter a anulação das liquidações impugnadas e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios (como o indicou no requerimento inicial).
Tendo as liquidações sido anuladas administrativamente, verifica-se inutilidade superveniente da lide, quanto a essa parte, pois estão satisfeitas as pretensões do Requerente.
O interesse em agir constitui um pressuposto processual ( [1] ) ou condição da acção ( [2]) e "consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção".( [3] )
A desnecessidade no prosseguimento da ação, nessa parte, reconduz-se à falta de um pressuposto processual ou condição da ação que constitui uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso [artigos 277.º, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
Esta exceção dilatória é causa de extinção da instância e implica a absolvição da Requerida da instância, nos termos dos artigos 277.º, alínea e), e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Todavia, mantém-se a necessidade de decisão judicial quanto aos juros indemnizatórios, porque foram solicitados no pedido do requerimento inicial (e corroborado o pedido de decisão pelo tribunal dessa questão, formulado pelo requerente após a revogação) e porque a anulação administrativa não os reconheceu – e neste segmento mantém-se o interesse da ação.
O art. 43.º n.º 1, da LGT indica que o contribuinte só tem direito a juros indemnizatórios quando se determine em ação judicial (também arbitral) que houve erro imutável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso dos autos, o requerente não entregou a declaração de IRS; e perante isso, a AT efetuou uma liquidação oficiosa, contestada pelo requerente e anulada pela AT, pois, na verdade, tributa-se a realidade, a verdadeira riqueza económica do sujeito, ainda atestada posteriormente.
Para a decisão quanto aos juros indemnizatórios seguimos a jurisprudência do TCA Sul no proc. 594/20.4BELRS, de 6/2/2025, que diz, basicamente o seguinte: havendo liquidação oficiosa, porque o contribuinte, que tem a incumbência legal, não entrega atempadamente a declaração e documentos de suporte, não existe erro imputável aos serviços se a AT não estava em condições de dispor detalhadamente dessa informação, para a tributação pelo rendimento real, mas a mesma estava na esfera do contribuinte.
É o que acontece no caso concreto: para o apuramento do rendimento real, em IRS, exigem-se documentos de suporte, de terceiros, nomeadamente bancos, que a AT não possuía, de forma detalhada, nem lhe era legítimo exigir, pois estamos perante um imposto de gestão de massas, com milhões de contribuintes, a quem, por isso, se exige aos contribuintes, em termos legais, que declarem e documentem o que declaram. Logo, se a AT não dispunha de esses elementos de suporte para a emissão da liquidação oficiosa, a mesma não é imputável à AT – mas a erro e atraso de declaração e apresentação desses documentos são da responsabilidade do contribuinte.
4. Encargos do processo
De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, «da decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral».
Pelo que se referiu ocorre uma causa de extinção da instância que é imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois apenas revogou a liquidação depois de constituído o Tribunal Arbitral.
A regra básica sobre responsabilidade por encargos dos processos é a de que deve ser condenada parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, a causa de extinção da instância é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que lhe é imputável a responsabilidade pelas custas do presente processo.
O tema dos juros indemnizatórios não impacta no que se refere: o pedido principal da ação arbitral (anulação da liquidação) foi totalmente procedente e causado pela AT; e o pedido de juros indemnizatórios podia ou não consta da ação declarativa e não impacta no valor da ação (art. 97.ºA, n.º 1, al. a), do CPPT).
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
– Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira, na parte do imposto e juros compensatórios;
– Julgar extinta a instância, nessa mesma parte;
– Não conceder ao requerente o direito a juros indemnizatórios.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 757.683,41.
7. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 11.016,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 13/10/2025
Os Árbitros
José Poças Falcão (árbitro-presidente)
Nuno Miguel Morujão (árbitro vogal)
Tomás Cantista Tavares (relator)
[1] Neste sentido, ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, páginas 253-254.
[2] Neste sentido, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 82-83.
[3] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 170.