SUMÁRIO:
I. «O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
A interpretação do artigo 63.º do TFUE acabada de mencionar é incompatível com o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que este último limita o regime de isenção [rectius: exclusão de tributação] nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-membros da União Europeia» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB (na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
II. «Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.os 1 e 3, da LGT» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 29 de junho de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 093/21.7BALSB.
DECISÃO ARBITRAL
Requerente: A..., organismo de investimento coletivo (“OIC”) melhor identificado infra (cfr. ponto 1 do Relatório)
Entidade Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira
A Árbitra Sónia Fernandes Martins, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído a 14 de maio de 2025, decidiu o seguinte:
I. Relatório
1. A..., OIC constituído e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, contribuinte fiscal português n.º ... e contribuinte fiscal francês n.º..., com sede em ..., ..., ..., Marseille, em França, representado pela sua entidade gestora B..., pessoa coletiva de Direito francês n.º ..., com sede em ..., ..., ..., Marseille, em França (“Requerente”), apresentou perante o CAAD, dirigido ao seu Ex.mo Presidente, pedido de pronúncia arbitral a 3 de março de 2025, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 10.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAMT”).
2. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente solicitou ao Tribunal Arbitral a declaração de ilegalidade (e concomitante anulação) das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), no montante total de 43.839,19 EUR, atinentes ao período de tributação de 2022, operadas mediante o mecanismo de retenção na fonte sobre dividendos de fonte portuguesa, constituindo tais atos tributários o objeto mediato da ação arbitral. Peticionou, de igual modo, a restituição do imposto (43.839,19 EUR) e o pagamento de juros indemnizatórios desde o dia 20 de setembro de 2024 até ao processamento das respetivas notas de crédito.
3. A propositura da ação arbitral teve lugar após a apresentação perante o Diretor de Finanças de Lisboa de reclamação graciosa daqueles atos tributários a 20 de maio de 2024, a qual foi indeferida por decisão de 18 de novembro de 2024 do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, constituindo esta decisão o objeto imediato da ação arbitral.
4. No âmbito do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pugnou pela preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, por via disso, pela violação do princípio do primado do Direito da União Europeia plasmado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), porquanto a impossibilidade de aplicação na sua esfera (enquanto OIC não residente em território nacional) do regime ínsito no artigo 22.º, n.os 1, 3, e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) representa uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal.
5. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Entidade Requerida”).
6. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD a 5 de março de 2025, tendo sido notificado à Entidade Requerida a 7 de março de 2025.
7. A Árbitra Signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado a designação a 7 de março de 2025.
8. No dia 22 de abril de 2025, as partes foram notificadas de tal designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
9. O Tribunal Arbitral foi constituído a 14 de maio de 2025.
10. No dia 17 de junho de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
11. Na sua resposta, a Entidade Requerida sustentou carecer de razão a posição perfilhada pelo Requerente, tendo, em síntese, referido:
· Quanto à (por si invocada) exceção dilatória de caducidade do direito de ação:
«Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a impugnação contenciosa de atos administrativos anuláveis deve ser intentada no prazo de três meses. De acordo com o n.º 2 do artigo 58.º do CPTA, a contagem desse prazo obedece ao regime previsto no artigo 279.º do Código Civil (CC). Atenta a circunstância de a reclamação graciosa não ter sido decidida no decurso do prazo legal para a decisão da mesma (120 dias), o facto que ocorreu em primeiro lugar foi, indubitavelmente, o indeferimento tácito da reclamação graciosa. Para efeitos de impugnação contenciosa, findou em 20-12-2024. Ora, a petição inicial nos presentes autos só deu entrada em tribunal depois do términus do prazo, pelo que é manifesto que foi apresentada muito para além do prazo legal previsto no artigo 58.º n.º 2 alínea b) do CPTA […]».
· Quanto ao mérito da causa:
«[N]o presente caso não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º. do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente. E, ainda, que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu Estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores. Ou seja, a aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes não pode levar a concluir, em nossa opinião, por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois, como se viu, embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não se pode afirmar que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados-membros que auferem dividendos com fonte em Portugal sejam objetivamente comparáveis. E, não sendo as situações comparáveis, parece difícil de aceitar o argumento da requerente de que a legislação nacional, e particularmente o artigo 22.º do EBF, está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais […]. [Por outro lado,] não cabe à administração tributária a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia […]. Em face do exposto e inexistindo qualquer ilegalidade sobre os atos impugnados, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios».
12. No dia 22 de junho de 2025, o Requerente apresentou perante o Tribunal Arbitral requerimento, de cujo conteúdo resulta o seguinte:
«O Requerente é um organismo de investimento coletivo em valores mobiliários constituído de acordo com o direito francês sob a forma de fond commun de placement e a operar sob a supervisão da Autorité des Marchés Financiers, conforme declaração que se junta como documento n.º 1.
O Requerente é residente para efeitos fiscais em França, conforme certificado de residência fiscal que se junta como documento n.º 2 […].
[C]omo resulta da declaração emitida pela Autorité des Marchés Financiers, o número de registo do Requerente é ..., pelo que, desde já, se requer que seja relevado este lapso e retificado o introito do pedido de pronúncia arbitral […].
O voucher emitido pelo custodiante C... (cf. doc. n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral) contém de facto um lapso na segunda linha dos dividendos, uma vez que contém o valor do rendimento bruto […].
Por fim, embora, salvo o devido respeito, não se apreenda o alcance e o sentido da exceção invocada […].
A reclamação graciosa na origem dos presentes autos foi apresentada em 20.05.2024, ou seja, no prazo de dois anos, conforme previsto nos artigos 137.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (Código do IRC) e 132.º, n.º 3 e n.º 4 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)[…].
Por seu turno, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa em 02.12.2024, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 03.03.2025, ou seja, no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária».
13. Por despacho de 23 de junho de 2025, o Tribunal Arbitral (i) dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT e (ii) convidou o Requerente a pronunciar-se sobre a matéria de exceção invocada pela Entidade Requerida em sede de resposta.
14. Por despacho de 8 de setembro de 2025, o Tribunal Arbitral notificou as partes (i) da faculdade de apresentação de alegações escritas simultâneas; (ii) para pagamento da taxa de arbitragem subsequente e (iii) da data destinada à prolação da decisão arbitral (13 de outubro de 2025).
15. A 29 de setembro de 2025, a Entidade Requerida apresentou alegações escritas, tendo reiterado o entendimento que expressara em sede de resposta.
II. Saneamento
16. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.os 1, parte inicial, e 2, 6.º, n.os 1, 3 e 4, e 11.º do RJAMT.
17. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAMT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
18. Não se verificam nulidades.
19. Foi, porém, invocada matéria de exceção pela Entidade Requerida, pelo que a sua apreciação (cfr. ponto IV. infra) precederá a (eventual) apreciação do mérito da causa pelo Tribunal Arbitral.
III. Matéria de Facto
20. Relativamente à matéria de facto, não impende sobre o Tribunal Arbitral o ónus de pronúncia sobre todos os factos alegados pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os que importam à boa decisão da causa e de discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT].
21. Deste modo, os factos pertinentes ao julgamento da causa foram selecionados e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida atentas as várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito carentes de resposta (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).
A. Factos provados e respetiva motivação
22. O Tribunal Arbitral considera assente a seguinte factualidade:
a. O Requerente é um OIC em valores mobiliários (“organisme de placement collectif en valeurs mobilières”), sob a forma de fundo comum de investimento (“fonds commun de placement”), com sede em ..., ..., ..., Marseille, em França [cfr. processo administrativo e, bem assim, documento n.º 1 do requerimento apresentado a 22 de junho de 2025];
b. O Requerente opera, sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC em valores mobiliários [cfr. processo administrativo e, bem assim, documento n.º 1 do requerimento apresentado a 22 de junho de 2025];
c. A entidade B..., pessoa coletiva de Direito francês n.º..., sob a forma de “société anonyme à directoire et conseil de surveillance”, com sede em ..., ..., ..., Marseille, em França, assume o papel de sociedade gestora do Requerente [cfr. documentos n.os 1 e 2 do requerimento apresentado a 22 de junho de 2025];
d. O Requerente não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente em França, aí se encontrando sujeito à lei fiscal francesa [cfr. processo administrativo e, bem assim, documento n.º 2 do requerimento apresentado a 22 de junho de 2025];
e. O Requerente é uma entidade transparente para efeitos fiscais, não sendo tributado em sede de “imposto sobre o rendimento” em França (i.e., no seu Estado de residência):
«[…] [A]s mutual funds are not legal entities and are transparent for tax purposes, they are automatically outside the scope of corporate income tax (“CIT”)» [tradução nossa: «Como os fundos de investimento não são entidades jurídicas e são transparentes para efeitos fiscais, estão automaticamente excluídos de tributação em sede de imposto sobre o rendimento das sociedades»] [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral];
f. A tributação em sede de “imposto sobre o rendimento” ocorre antes na esfera dos participantes do Requerente, incidindo sobre o rendimento distribuído por este [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral];
g. No ano de 2022, o Requerente manteve investimentos em território nacional mediante a detenção de participações diretas nas seguintes sociedades comerciais residentes (para efeitos fiscais) em Portugal [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral]:
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Sociedade portuguesa
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ISIN
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Ações (n.º)
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D..., S.A.
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PT...
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334.109
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E..., SGPS, S.A.
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PT...
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106.523
|
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F..., SGPS, S.A.
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PT...
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108.675
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h. No ano de 2022, por força da detenção das referidas participações sociais, o Requerente auferiu dividendos totalizando o montante bruto de 175.356,77 EUR [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral]:
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Tipologia de rendimentos
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Data do pagamento
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Montante bruto (EUR)
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Dividendos
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26.04.2022
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63.480,71
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Dividendos
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16.05.2022
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83.620,56
|
|
Dividendos
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16.09.2022
|
28.255,50
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i. Tais rendimentos foram tributados em Portugal em sede de IRC, mediante retenção na fonte, no montante total de 43.839,19 EUR [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral]:
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Tipologia de rendimentos
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Montante bruto (EUR)
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Retenções na fonte (EUR)
|
|
Dividendos
|
63.480,71
|
15.870,18
|
|
Dividendos
|
83.620,56
|
20.905,14
|
|
Dividendos
|
28.255,50
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7.063,88
|
j. Os dividendos auferidos pelo Requerente ascenderam ao montante líquido de 131.517,57 EUR [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral]:
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Montante bruto (EUR)
|
Retenções na fonte (EUR)
|
Montante líquido (EUR)
|
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63.480,71
|
15.870,18
|
47.610,53
|
|
83.620,56
|
20.905,14
|
62.715,42
|
|
28.255,50
|
7.063,88
|
21.191,62
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k. A sociedade C..., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., em França, assumiu o papel de intermediário financeiro [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral];
l. Nesse contexto, foi retido na fonte e entregue junto dos cofres do Estado, mediante a submissão das guias de retenção na fonte n.os..., ... e ..., IRC, no montante total de 43.839,19 EUR, incidente sobre os dividendos acima discriminados [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral];
m. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo ao IRC, no montante de 43.839,19 EUR, suportado em Portugal, seja ao abrigo da Convenção destinada à Eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França (“CEDT Portugal/França”), seja ao abrigo da lei interna francesa [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral];
n. No dia 20 de maio de 2024, o Requerente apresentou perante o Diretor de Finanças de Lisboa reclamação graciosa, em sede da qual requereu a anulação das liquidações de IRC (i.e., dos atos de retenções na fonte), no aludido montante, referentes ao período de tributação de 2022 [cfr. processo administrativo];
o. A título adicional, o Requerente solicitou a restituição de tal quantitativo (43.839,19 EUR) e, bem assim, a condenação da Entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios [cfr. processo administrativo];
p. O Requerente alicerçou os fundamentos da sua reclamação graciosa na preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, face ao tratamento discriminatório injustificado, em sede de IRC, concedido aos OIC não residentes (por força da exclusão de tributação dos OIC residentes ínsita no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF) [cfr. processo administrativo];
q. Por despacho de 19 de setembro de 2024, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, notificado a 23 de setembro de 2024, o Requerente tomou conhecimento do projeto de decisão de indeferimento da aludida reclamação graciosa [cfr. documento n.º 3 do pedido de pronúncia arbitral];
r. Por despacho de 18 de novembro de 2024, do Chefe da Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, notificado a 2 de dezembro de 2024, o Requerente viu indeferida a reclamação graciosa que apresentara [cfr. documento n.º 4do pedido de pronúncia arbitral];
s. No dia 3 de março de 2025, por dissentir da posição perfilhada pela Direção de Finanças de Lisboa, o Requerente propôs a ação arbitral na origem dos presentes autos;
t. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou a declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, das liquidações de IRC do período de tributação de 2022, no montante total de 43.839,19 EUR, assim como o reembolso deste quantitativo acrescido de juros indemnizatórios computados desde o dia 20 de setembro de 2024 até ao processamento das inerentes notas de crédito;
u. Em concreto, o Requerente sustentou a preterição da liberdade de circulação de capitais ínsita no artigo 63.º do TFUE e, por conseguinte, do princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, atenta a discriminação em sede de IRC – em desfavor das entidades (OIC) não residentes – operada pelo disposto no artigo 22.º, n.os 1, 3, e 10, do EBF;
v. No dia 17 de junho de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo;
w. No âmbito da sua resposta, para além de ter invocado a exceção dilatória de caducidade do direito de ação, a Entidade Requerida pugnou pela conformidade à lei da decisão de indeferimento da reclamação graciosa das liquidações de IRC e, consequentemente, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
B. Motivação
23. O Tribunal Arbitral formou a sua convicção após ter analisado (i) o acervo documental carreado para os autos pelo Requerente; (ii) a resposta da Entidade Requerida e (iii) o processo administrativo.
C. Factos não provados
24. Inexistem factos com relevância para a boa decisão da causa que não tenham sido dados como provados.
IV. Apreciação da Matéria de Exceção
25. Em sede de resposta, a Entidade Requerida sustentou ter caducado o direito de ação do Requerente com fundamento na aplicação do disposto no artigo 58.º, n.os 1, alínea b), e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), nos termos do qual:
«Salvo disposição legal em contrário, a impugnação de atos […] anuláveis tem lugar no prazo de: três meses»; «Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 59.º, os prazos estabelecidos no número anterior contam-se nos termos do artigo 279.º do Código Civil, transferindo-se o seu termo, quando os prazos terminarem em férias judiciais ou em dia em que os tribunais estiverem encerrados, para o 1.º dia útil seguinte».
26. Equivoca-se, porém, a Entidade Requerida, uma vez que este regime não se mostra aplicável na situação em apreço.
27. No caso sub judice afigura-se antes aplicável o regime previsto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT[1], 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT[2], e 137.º, n.os 1, 2 e 4, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”)[3].
28. Da aplicação conjugada destes preceitos legais resulta poder o substituído tributário (in casu, o Requerente) propor ação arbitral da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa (objeto imediato dos presentes autos) no prazo de 90 (noventa) dias a contar da respetiva notificação.
29. Em conformidade pronunciam-se SERENA CABRITA NETO e CARLA CASTELO TRINDADE:
«[O] artigo 102.º do CPPT fixa o prazo para apresentação da petição inicial de impugnação judicial. Ora, o n.º 1 do artigo 10.º do RJAT é o seu correspondente para a arbitragem tributária, ali se fixando os prazos para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral.
Assim, a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT dispõe, em matéria de prazos, que o pedido de constituição do tribunal arbitral deve ser apresentado, sob pena de caducidade: – no prazo de 90 (noventa) dias a contar dos factos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT […].
Note-se, porém, que a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT será aplicável apenas aos casos em que o pedido de pronúncia arbitral tenha como objeto as situações previstas no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, ou seja, a apreciação pelos tribunais arbitrais de atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamentos por conta. A remissão operada para o artigo 102.º do CPPT é apenas, insista-se nesta ideia, para os factos dele constantes, pretendendo estabelecer o dies a quo do prazo para apresentação do pedido e que será, em regra, igual na impugnação judicial e na arbitragem – ainda que, como se verá, o prazo propriamente dito possa ser diferente» – cfr. SERENA CABRITA NETO e CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário (Processo, Arbitragem e Execução), Volume II, 2017, p. 456.
30. Conforme se infere da matéria de facto provada, tendo o Requerente sido notificado da referida decisão a 2 de dezembro de 2024 (cfr. alínea r) da matéria de facto provada), a propositura da ação arbitral a 3 de março de 2025 é tempestiva, não se verificando a exceção dilatória (de caducidade do direito de ação) invocada pela Entidade Requerida.
31. Claudica por isso a posição aventada pela Entidade Requerida nos artigos 12.º a 20.º da sua resposta, improcedendo a aludida exceção dilatória.
V. Objeto da Pronúncia Arbitral
32. O thema decidendum da presente ação arbitral consiste em aferir da conformidade à lei – in casu, à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e, por via disso, ao princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP – do regime ínsito no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF e, por conseguinte, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, concomi-tantemente, das mencionadas liquidações de IRC por retenção na fonte, referentes ao período de tributação de 2022, no montante total de 43.839,19 EUR.
33. Nessa sequência, cumpre indagar do direito do Requerente à restituição do imposto retido, no montante total de 43.839,19 EUR, nos termos do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT), bem como do seu direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT (igualmente, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT).
VI. Matéria de Direito
34. Quanto à matéria sob contenda, sem mais delongas, cumpre atentar na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a qual, por referência a situação similar à dos presentes autos (conducente, no presente caso, à “dispensa”[4] da obrigação de reenvio prejudicial, prevista no artigo 267.º, 3.º parágrafo, do TFUE”), pelo Tribunal Arbitral], preconiza:
«O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção» – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
35. E, bem assim, na jurisprudência nacional, a qual visa “acomodar” o sentido decisório perfilhado por aquele Tribunal Europeu no âmbito do referido processo de reenvio prejudicial (Caso AllianzGi-Fonds).
36. Com efeito, neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo emitiu pronúncia uniformizadora de jurisprudência mediante a prolação do acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023 no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB[5].
37. Neste aresto – a cujo sentido decisório o Tribunal Arbitral expressa e integralmente adere –, o Supremo Tribunal Administrativo perfilha a seguinte posição:
«Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
A interpretação do artigo 63.º do TFUE acabada de mencionar é incompatível com o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-membros da União Europeia».
38. Do exposto resulta entender a referida jurisprudência que o artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF colide com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, por discriminar[6] injustificadamente os OIC não residentes (face aos OIC residentes) em sede de IRC.
39. Neste contexto, importa assim chamar à colação o regime de tributação em IRC dos rendimentos de capitais (i.e., dos dividendos) auferidos por OIC residente e não residente em Portugal[7] (no pressuposto deste último ser residente em França, como sucede na situação dos presentes autos):
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Tributação dividendos
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OIC não residente (como o Requerente)
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OIC residente
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Retenção na fonte
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Sujeito
[artigo 94.º, n.os 1, al. c), 3, al. b), 5 e 6, do CIRC]
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Dispensado
[artigo 22.º, n.º 10, do EBF]
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Tributação a final
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Não sujeito
[nos termos da legislação francesa (*)]
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Não sujeito
[artigo 22.º, n.os 1 e 3, do EBF]
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Artigo 22.º do EBF (na redação do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro):
«São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional» [n.º 1];
«Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1» [n.º 3];
«Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1» [n.º 10].
Artigo 94.º do CIRC:
«O IRC é objeto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português: rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à atividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada» [n.º 1, alínea c)];
«As retenções na fonte têm natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm carácter definitivo: quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis» [n.º 3, alínea b)];
«Excetuam-se do disposto no número anterior as retenções que, nos termos do n.º 3, tenham carácter definitivo, em que são aplicáveis as correspondentes taxas previstas no artigo 87.º [25%, nos termos do seu n.º 4]» [n.º 5];
«A obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC ocorre na data que estiver estabelecida para obrigação idêntica no Código do IRS ou, na sua falta, na data da colocação à disposição dos rendimentos, devendo as importâncias retidas ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas e essa entrega ser feita nos termos estabelecidos no Código do IRS ou em legislação complementar» [n.º 6].
(*) cfr. alínea e) da matéria de facto provada.
40. Constata-se, pois, operar o regime doméstico um tratamento diferenciado em sede de IRC entre OIC residentes e não residentes – aqueles não são tributados sobre dividendos oriundos de sociedade residente em Portugal; estes são-no mediante retenção na fonte, de natureza liberatória, sem possibilidade de neutralização no Estado de residência do imposto suportado em Portugal, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França (atenta, desde logo, a inexistência de uma situação de dupla tributação jurídica internacional, face ao regime fiscal francês[8]) seja ao abrigo da legislação interna francesa.
41. Aqui chegados, cumpre então realçar (mediante transcrição) os excertos dos referenciados arestos europeu e nacional que darão “amparo” à ausência de justificação para a situação discriminatória em causa e, desse modo, às questões suscitadas pelas partes – e comummente emergentes desta temática –, levando a concluir pela preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE:
· Quanto à liberdade fundamental preterida (i.e., a liberdade de circulação de capitais[9]):
«No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-membro não podem beneficiar dessa isenção. Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes. Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º do TFUE […]» [sublinhados nossos] – cfr. Parágrafos 37 a 39 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Por força dos […] princípios da aplicabilidade direta e do primado, qualquer parte num litígio pode invocar em juízo, em apoio da sua pretensão, uma disposição comunitária e, se necessário for, solicitar a desaplicação de norma nacional com ela incompatível.
No caso “sub iudice” está em causa a apreciação de normas de direito interno (cf. artigo 22.º do EBF) e a sua compatibilidade com a liberdade de circulação de capitais, estatuída no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
· Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis (tornando inoperante qualquer derrogação à aplicação da liberdade fundamental preterida):
«[…] [H]á que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal [i.e., no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF] se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem. Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia[10] […]. Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes. Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 71 a 74 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Para aferir se existe, ou não, uma situação de discriminação é necessário determinar, desde logo, se as duas situações são, ou não, comparáveis […]. [C]omo regra, a condição de residente não é comparável à de não residente, sendo este facto geral veiculado pelas decisões do Tribunal de Justiça Europeu. Contudo, em muitos casos, tendo como referência, nomeadamente, o elemento teleológico da disposição de direito interno, o Tribunal de Justiça Europeu entendeu que residentes e não residentes podem estar em situações comparáveis […]. [D]eve considerar-se decisivo, para efeitos de comparabilidade, o facto de a lei portuguesa diferenciar expressamente, para efeitos de retenção na fonte, entre fundos de investimento residentes e não residentes, que não a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos seus investidores» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
· Quanto à inexistência de razões imperiosas de interesse geral (tornando inoperante qualquer derrogação à aplicação da liberdade fundamental preterida):
® Assentes na preservação da coerência do regime fiscal nacional:
«[N]o presente processo […], a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte […]. Consequentemente, não há uma relação direta […] entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo. A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 79 a 81 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
® Assentes na repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros visados:
«[…] [Q]uando um Estado-membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos […]. Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros também não pode ser acolhida» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 83 e 84 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
42. Chegados a este ponto, urge analisar a situação sob contenda.
43. Ao arrepio da posição aventada pela Entidade Requerida (cfr. artigos 29.º e 30.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025)[11], o Requerente é um OIC sob a forma de fundo de investimento mobiliário (i.e., um “organisme de placement collectif en valeurs mobilières”, sob a forma de “fonds commun de placement”, cfr. alínea a) da matéria de facto provada), tendo sido constituído e operando ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009[12], que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC em valores mobiliários, e foi transposta para a legislação portuguesa pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro.
44. Face à comum fonte normativa europeia – a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009 –, é possível inferir a similitude das regras aplicáveis à constituição e modus operandi dos OIC portugueses (residentes para efeitos fiscais em Portugal) e do Requerente (não residente em território nacional)[13].
45. A título adicional, extrai-se da matéria de facto provada ter o Requerente suportado IRC, no montante global de 43.839,19 EUR, mediante retenção na fonte de natureza liberatória, sobre dividendos de fonte portuguesa no montante global de 175.356,77 EUR (cfr. alíneas h) a j) da matéria de facto provada), não tendo neutralizado em França (i.e., no Estado de residência) tal carga tributária, por força do regime aplicável – nomeadamente: (i) da lei fiscal francesa, nos termos da qual o Requerente não está sujeito a imposto congénere ao IRC; e (ii) da CEDT Portugal/França, aplicável a situações de dupla tributação jurídica internacional, o que, no presente caso, não sucede, atenta, desde logo, a aludida não sujeição a imposto no Estado de residência por parte do Requerente.
46. Carece assim de fundamento a posição avançada pela Entidade Requerida, no sentido de o Requerente não ter logrado demonstrar a não dedução em França do imposto suportado em Portugal (cfr., nomeadamente, artigo 81.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025).
47. Por outro lado, a alegada discrepância – aventada pela Entidade Requerida (cfr. artigo 7.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025) – entre os montantes (dividendos e IRC) refletidos pelo substituto tributário nas declarações “Modelo 30” (193.361,76 EUR e 48.340,45 EUR, respetivamente) e identificados pelo Requerente nos presentes autos (175.356,77 EUR e 43.839,19 EUR, respetivamente) reveste somenos importância, na medida em que estes quantitativos assumem uma ordem de grandeza inferior à daqueles.
48. Ademais, a Entidade Requerida não encetou quaisquer diligências – nomeadamente, junto do C... – com vista a dissipar as suas pretensas dúvidas, o que não pode deixar de merecer censura ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT e dos poderes inspetivos que lhe estão cometidos, nomeadamente ao abrigo do artigo 63.º, n.º 1, alínea d), da LGT.
49. Sendo certo, contrariamente à posição por si perfilhada (cfr. artigos 58.º a 62.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025), estarem os seus serviços vinculados à aplicação do Direito da União Europeia e, por conseguinte, à desaplicação de norma nacional conflituante:
«[R]esulta do princípio do primado do direito da União, tal como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça […], que os órgãos encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União têm a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para garantir a plena eficácia desse direito, não aplicando, se necessário, qualquer disposição ou jurisprudência nacionais contrárias ao referido direito. Isso implica que esses órgãos, para garantir a plena eficácia do direito da União, não devem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição ou jurisprudência por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional» – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 4 de dezembro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º C-378/17 (Caso Minister for Justice/Commissioner vs. Workplace).
50. Em sentido similar pronuncia-se a doutrina:
«[A] cooperação ou a lealdade comunitária ou ainda a designada “cláusula de fidelidade” impõe aos Estados-membros – incluindo às suas Administrações – assegurar o cumprimento das obrigações comunitárias, tomando todas as medidas gerais ou especiais para o efeito […].
[N]ão se encontra hoje apenas nos atos de Direito interno as fontes definidoras do âmbito e da extensão do campo material de atuação da Administração Pública […]. [A] Administração Pública dos Estados-membros não se limita hoje a executar a legalidade proveniente dos órgãos internos do Estado, encontrando-se também mobilizada, segundo decorre do Direito Comunitário primário, a executar os atos jurídicos provenientes das estruturas decisórias da Comunidade Europeia e da União Europeia […].
Há nesta ampliação material de tarefas uma modificação do próprio papel da Administração Pública nacional que, apesar de continuar estruturalmente do Estado, acaba por funcionalmente assumir uma natureza comunitária […].
[A] transformação da Administração Pública dos Estados-membros em centro principal de execução do Direito Comunitário, reforçando ainda mais a já complexa pluralidade concorrencial de fontes de Direito e o papel metodologicamente ativo dos órgãos administrativos na exata determinação da normatividade definidora da sua conduta […], vem arrastar para as estruturas administrativas – e não apenas para o juiz, tal como tem sido habitualmente entendido e estudado – delicadas questões sobre a articulação em concreto entre o Direito Comunitário e o Direito interno […], ampliando-se, também por esta via, a tarefa da Administração Pública na determinação da legalidade vinculativa da sua atividade» – cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública: o Sentido da Vinculação da Administração à Juridicidade, Almedina, março de 2007, pp. 472, 474 e 475.
51. Em face do exposto, afigura-se aplicável ao Requerente a jurisprudência acima identificada: o lugar da sua residência (França, ao invés de Portugal) determinou a tributação por si sofrida em sede de IRC, o que, nos termos supra mencionados, redunda numa discriminação (injustificada) contrária à liberdade circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE e ao princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP[14].
52. Sendo certo irrelevar nesta sede, contrariamente à posição perfilhada pela Entidade Requerida (cfr., nomeadamente, artigo 55.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025), o regime de tributação aplicável aos titulares das respetivas unidades de participação, na medida em que «não há uma relação direta […] entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo» – cfr. Parágrafo 80 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds)[15].
53. Irrelevando de igual modo, ao arrepio da posição adotada pela Entidade Requerida (cfr., nomeadamente, artigos 51.º a 53.º, 56.º, 89.º e 90.º da resposta apresentada a 17 de junho de 2025), a tributação dos OIC residentes em sede de tributação autónoma (cfr. artigos 22.º, n.º 8, do EBF e 88.º, n.º 11, do CIRC) e, bem assim, em sede de Imposto do Selo (“IS”) (cfr. verba 29 da Tabela Geral do IS):
«[…] [I]mporta salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. Além disso, como salientou a advogada-geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402). Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes» – cfr. Parágrafos 53 e 56 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
54. Perante o exposto, o Tribunal Arbitral entende que o regime previsto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF atenta contra a liberdade de circulação de capitais plasmada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE e, desse modo, contra o princípio do primado do Direito europeu consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, inquinando de ilegalidade os atos tributários e em matéria tributária objeto dos presentes autos, impondo-se, por via disso, a sua anulação nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) e a restituição do imposto (indevidamente) retido, no montante de 43.839,19 EUR, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, da LGT.
55. Em consequência, haverá que aferir do pedido formulado pelo Requerente de pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, que o mesmo entende ser de computar desde a decisão (presumida) tácita de indeferimento da reclamação graciosa (i.e., a partir do dia 20 de setembro de 2024).
56. No que respeita ao direito à perceção de juros indemnizatórios, o Supremo Tribunal Administrativo emitiu recentemente pronúncia uniformizadora de jurisprudência mediante a prolação, no âmbito do processo n.º 078/22.6BALSB, do Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de maio de 2025.
57. Neste aresto, o Supremo Tribunal Administrativo entende:
«[…] [A] impugnação judicial das retenções na fonte em causa está sujeita à reclamação administrativa necessária (artigo 132.º, n.os 3 e 4, do CPPT) […]. [A] obrigação de pagamento de juros indemnizatórios não depende apenas da prova do prejuízo do contribuinte; importa também que tais prejuízos, derivados de atuação pública ilegal, sejam imputáveis à Administração Fiscal. Tal nexo de imputabilidade em relação à Administração Fiscal apenas se verifica quando ocorre o indeferimento do meio administrativo impugnatório das retenções na fonte em apreço […]. É que, através da instauração do meio impugnatório gracioso, foi ativado o poder-dever da Administração Fiscal de, no quadro do exercício dos poderes revisivos do ato tributário, corrigir as retenções na fonte contestadas, conformando-as com o ordenamento jurídico da União Europeia […].
Perante a desaplicação de norma legal com fundamento na sua desconformidade com o Direito da União Europeia, e perante a inerente anulação das retenções na fonte indevidas […], a consequente obrigação da AT de reconstituição da situação ex ante impõe, não apenas a restituição dos montantes indevidamente pagos a título de imposto retido, mas também o pagamento de juros indemnizatórios, computados desde a data do indeferimento, expresso ou tácito, do meio impugnatório administrativo intentado contra as retenções na fonte indevidas até à data do processamento da respetiva nota de crédito» [sublinhados e negrito nossos].
58. Neste âmbito, o Supremo Tribunal Administrativo já teve oportunidade de salientar não ser esta sua posição jurisprudencial atentatória da tutela ressarcitória decorrente do artigo 22.º da CRP (nem da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e do princípio do primado do Direito da União Europeia plasmado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP), tendo sustentado a este respeito como se segue:
«Não parece […] que algum rigor na interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços”, enquanto pressuposto do direito a juros indemnizatórios – conducente a que tal erro apenas se tenha por verificado, nos casos em que o imposto foi liquidado por substituto ou em que foi liquidado pela Administração nos termos declarados pelo contribuinte, quando a Administração se pronunciou ou teve a oportunidade de se pronunciar, corrigindo, a ilegalidade e o não fez –, ponha em causa a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto no artigo 22.º da CRP e se afigure discriminatório e propulsor da violação do princípio da livre circulação de capitais e do primado do direito comunitário sobre o direito interno, constitucionalmente assegurado. É que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios é apenas uma via expedida de assegurar a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, sem contender com a via tradicional de assegurar tal direito» [sublinhados nossos] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de março de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 0405/14.
«[…] [A] Constituição e a lei não exigem que a reparação de prejuízos causados por atos ilegais tenha de ser assegurada através do pagamento de juros indemnizatórios, antes esta reparação pode ser obtida quer para além do montante dos juros, desde que se comprovem prejuízos superiores, quer nos casos em que não sejam devidos juros mas haja prejuízos imputáveis à atuação administrativa, sendo contudo, para tal necessário que o lesado intente ação própria para esse fim, na qual demonstre a existência do direito a essa reparação […]» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de novembro de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 0822/09-30.
59. Constata-se, pois, ter o Supremo Tribunal Administrativo mantido a posição que há muito sufraga e de que é reflexo o Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 29 de junho de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 093/21.7BALSB:
«Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.os 1 e 3, da LGT» [sublinhado nosso].
60. De acordo com esta posição, aquando da emissão (por substituto tributário) de ato de retenção na fonte indevido, o contribuinte tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da Entidade Requerida na aceção do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, a partir do momento em que esta se pronuncie – de forma tácita ou expressa – em sentido desfavorável à pretensão do contribuinte, pugnando pela legalidade daquele ato tributário.
61. Na situação sob contenda, não obstante ter sido ultrapassado pela Entidade Requerida o prazo legal (de 4 meses[16]) destinado à prolação da decisão do procedimento de reclamação graciosa, não é suscetível de relevar a formação de qualquer decisão (presumida) tácita de indeferimento, pela seguinte ordem de motivos:
i.) O Requerente não contestou nem administrativa[17] nem judicialmente[18] o aludido ato silente. Sendo certo que, no plano jurídico, este só releva «para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial», como expressamente determina o n.º 5 do artigo 57.º da LGT;
ii.) A Entidade Requerida emitiu uma decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
iii.) O Requerente reagiu judicialmente desta decisão expressa no âmbito dos presentes autos, constituindo o seu objeto imediato.
62. Em sentido consonante pronuncia-se a doutrina:
«O indeferimento tácito é uma ficção jurídica destinada a possibilitar ao interessado o acesso aos tribunais, para obter tutela para os seus direitos ou interesses legítimos, nos casos de inércia da administração tributária sobre pretensões que lhe foram apresentadas.
Tratando-se de uma faculdade de acesso à via contenciosa, da não impugnação do indeferimento tácito não advêm consequências negativas para o interessado, designadamente a não impugnação no prazo legal não tem como corolário a caducidade do direito de vir a impugnar o ato expresso de indeferimento quando ele, tardiamente, venha a ser praticado, não se formando por isso o chamado caso decidido ou resolvido, isto é, a preclusão do direito de impugnação com fundamento em vícios geradores de anulabilidade.
Por ter como objetivo permitir ao interessado reagir contra a inércia indevida da Administração, o indeferimento tácito deixa de ser relevante quando tal inércia deixa de existir por ser proferido, mesmo para além do prazo legal, um ato expresso de decisão da pretensão apresentada à administração tributária, pois este abre aos interessados a possibilidade de impugnação contenciosa […].
Se, após ter decorrido o prazo para a formação do indeferimento tácito, mas antes da apresentação da impugnação contenciosa, for proferido um ato expresso de indeferimento da pretensão formulada em procedimento tributário, o único ato impugnável será o ato expresso» [sublinhado nosso] – cfr. DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª Edição, 2012, pp.483 e 484.
63. Em conformidade, claudica o entendimento perfilhado pelo Requerente quanto ao dies a quo do seu direito à perceção de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT (i.e., a partir de 20 de setembro de 2024, momento da formação da decisão (presumida) silente de indeferimento da reclamação graciosa, cfr. artigos 156.º a 159.º do pedido de pronúncia arbitral).
64. Aqui chegados, sob evocação do desiderato uniformizador ínsito no artigo 8.º, n.º 3, do CC, o Tribunal Arbitral adere à posição (há muito) sufragada por aquele Tribunal Superior em matéria de juros indemnizatórios.
65. Pelo que, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, o Requerente tem direito à perceção de juros indemnizatórios (sobre o montante de 43.839,19 EUR) a partir da prolação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa (18 de novembro de 2024) até à emissão das respetivas notas de crédito.
VII. Decisão
Por tudo quanto se expôs, o Tribunal Arbitral julga:
i.) Improcedente a exceção dilatória de caducidade do direito de ação invocada pela Entidade Requerida;
ii.) Procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente, declarando a ilegalidade – com fundamento na preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e, concomitantemente, do princípio do primado do Direito europeu sobre o Direito interno previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP – das liquidações de IRC por retenção na fonte, relativas ao período de tributação de 2022, no montante total de 43.839,19 EUR (quarenta e três mil, oitocentos e trinta e nove euros e dezanove cêntimos), assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, anulando, por via disso, os aludidos atos tributários e em matéria tributária, nos termos do artigo 163.º do CPA;
iii.) Parcialmente procedente o pedido de condenação da Entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios na aceção do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sendo estes devidos (sobre o montante de 43.839,19 EUR) desde a prolação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa (18 de novembro de 2024) até à emissão das respetivas notas de crédito.
VIII. Valor da causa
Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT), e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“Regulamento de Custas”), o Tribunal Arbitral fixa o valor do processo (da causa) em 43.839,19 EUR (quarenta e três mil, oitocentos e trinta e nove euros e dezanove cêntimos).
IX. Custas arbitrais
O Tribunal Arbitral condena a Entidade Requerida nas custas do processo, as quais perfazem 2.142 EUR (dois mil, cento e quarenta e dois euros), em consonância com os artigos 527.º, n.º 1, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT), 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAMT e, bem assim, com os artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.os 1 e 5, do Regulamento de Custas e Tabela I anexa a este.
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Lisboa, 13 de outubro de 2025
A Árbitra
Sónia Fernandes Martins
[1] «O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado: no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma […]» [sublinhado nosso].
[2] «A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes: notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código […]» [sublinhados nossos].
[3] «Os sujeitos passivos de IRC, os seus representantes e as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis pelo pagamento do imposto podem reclamar ou impugnar a respetiva liquidação, efetuada pelos serviços da administração fiscal, com os fundamentos e nos termos estabelecidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário» [n.º 1]; «A faculdade referida no número anterior é igualmente conferida relativamente à autoliquidação, à retenção na fonte e aos pagamentos por conta, nos termos e prazos previstos nos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, sem prejuízo do disposto nos números seguintes» [n.º 2]; «A impugnação dos atos mencionados no n.º 2 é obrigatoriamente precedida de reclamação para o diretor de finanças competente, nos casos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário» [n.º 4] [sublinhados nossos].
[4] [A] força da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.º do TFUE pode privar de causa a obrigação prevista no artigo 267.º, terceiro parágrafo, do TFUE e esvaziá-la assim de conteúdo, designadamente quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a outra questão suscitada em processo análogo e já decidida a título prejudicial» [sublinhado nosso] – cfr., a título exemplificativo, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de outubro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º C-561/19 (Caso Consorzio Italian Management). Em sentido similar, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de outubro de 1982, proferido em sede do processo n.º 283/81 (Caso Cilfit).
[5] Esta pronúncia uniformizadora tem sido adotada nos sequentes acórdãos sobre o tema. A título exemplificativo: Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de julho de 2024, proferidos no âmbito dos processos n.os 0758/19.3BELRS, 0760/19.5BELRS, 02467/21.4BELRS; de 29 de maio de 2024, proferidos no âmbito dos processos n.os 0755/19.9BELRS e 0806/21.7BELRS; de 2 de julho de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 01665/20.2BELRS.
[6] Quanto ao conceito de discriminação, vide BEN TERRA e PETER VATEL, European Tax Law, Wolters Kluwer, 2012, pp. 58 e 63, e, bem assim, NIELS BAMMENS, The Principle of Non-discrimination in International and European Tax Law, IBFD Doctoral Series, 2012, p. 9.
[7] Vide, também, ANA PAULA DOURADO, JESSICA M. MÜLLER, LEIDSON RANGEL e CHRISTOPH SPENGEL, Tax Neutrality Treatment of Investment Funds in the European Union; World Tax Journal, Volume 16, Issue 3, agosto de 2024, p. 451 (tabela 1).
[8] «Em direito francês, os OICVM agrupam as sociedades de investimento de capital variável (SICAV) e os fundos comuns de investimento (FCI). Por força do artigo 208.º, 1.º bis A, Código Geral dos Impostos (code général des impôts, a seguir “CGI”), as SICAV estão isentas do imposto sobre as sociedades em relação aos lucros realizados no âmbito do seu objeto legal. Quanto aos FCI, a sua qualidade de copropriedade coloca-os de pleno direito fora do âmbito de aplicação do imposto sobre as sociedades» [sublinhado nosso] – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de maio de 2012, proferido no âmbito dos processos apensos C-338/11 a C-347/11 (Caso Santander Asset Management).
[9] Nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, «[…] são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros […]». A liberdade de circulação de capitais opõe-se assim a tratamentos discriminatórios suscetíveis de demover determinado sujeito/entidade de investir noutro Estado-membro – cfr., a título de exemplo, Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de outubro de 2009, 10 de abril de 2014, e 2 de junho de 2016, respetivamente proferidos no âmbito dos processos n.os C-493/09 (Caso Comissão vs. Portugal), C-190/12 (Caso Emerging Markets Series) e C-252/14 (Caso Pensioenfonds Metaal en Techniek).
[10] No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de abril de 2014, proferido no âmbito do processo n.º C-190/12 (Caso Emerging Markets Series).
[11] Ademais, contraditória com a posição por si assumida no artigo 35.º da referida resposta – «Sendo o requerente um organismo de investimento coletivo e um sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável, deverá o peticionado ser julgado improcedente, pelo que se impugna todos os factos alegados pela requerente, por não corresponderem à verdade ou por deles não se poder retirar o efeito jurídico almejado pelo requerente» [sublinhado nosso].
[12] À data dos factos que relevam no âmbito dos presentes autos, esta diretiva assume as alterações introduzidas pelas seguintes diretivas e regulamento europeus:
® Diretiva 2010/78/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010;
® Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011;
® Diretiva 2013/14/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013;
® Diretiva 2014/91/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014;
® Regulamento (UE) 2017/2402 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2017;
® Diretiva (UE) 2019/1160 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019;
® Diretiva (UE) 2019/2034 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019;
® Diretiva (UE) 2019/2162 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019;
® Diretiva (UE) 2021/2261 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de dezembro de 2021.
[13] «[…] [T]he UCITS Directive is one of the main, if not the main, European framework covering collective investment schemes. The UCITS Directive stipulates common rules to be used to determine the types of investment funds. It envisages the approximation of the conditions of competition for UCITS at the EU-level, making it easier for a UCITS to market its units in other Member-States and it adopts, as its cornerstone, the principle of mutual recognition, which grants investment funds a passport to invest in any other Member State» [tradução nossa: A Diretiva OICVM é um dos principais, senão o principal, quadro jurídico europeu abrangendo os organismos de investimento coletivo. A Diretiva OICVM estabelece regras comuns para determinar os tipos de fundos de investimento. Prevê a aproximação, ao nível da UE, das condições de concorrência aplicáveis aos OICVM, facilitando que um OICVM comercialize as suas unidades de participação noutros Estados-membros, e adota, como pedra angular, o princípio do reconhecimento mútuo, que confere aos fundos de investimento um passaporte para investir em qualquer outro Estado-membro] – cfr. MARIO TENORE, Investment Fund Taxation (Domestic Law, EU Law, and Double Taxation Treaties), Chapter 7: Investment Fund Taxation and Fundamental Freedoms: Four Approaches to Comparability, Wolters Kluwer, 2018, pp. 153 e 154.
[14] «Não obstante o tratado não se referir à questão da primazia do direito da União Europeia face ao direito nacional, esta questão resulta do posicionamento do TJ, apresentado muito claramente no caso Costa v ENEL [nota de rodapé 37: «De 15 de julho de 1964, proc. C-6/64»]. Firmou-se, por conseguinte, a partir desse acórdão, a regra de que sempre que haja um conflito entre o direito interno e o direito da União Europeia, prevalece este último, independentemente de a disposição nacional ser anterior ou ter surgido ulteriormente à norma da União Europeia» – cfr. JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, Direito Fiscal da União Europeia: tributação direta, Almedina, 2018, p. 29. No mesmo sentido, vide ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, Almedina, 1997, pp. 125 e 126, e, bem assim, ALBERTO XAVIER, Direito Tributário Internacional, Almedina, 2007, p. 216.
[15] Em sentido similar, na legislação fiscal francesa, vide parágrafos 28 a 32 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de maio de 2012, proferido no âmbito dos processos apensos C-338/11 a C-347/11 (Caso Santander Asset Management): «Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OICVM beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório ou não da referida regulamentação […]. Acresce que […], a isenção fiscal de que beneficiam os OICVM residentes não está subordinada à tributação dos rendimentos distribuídos aos seus detentores de participações […]. A regulamentação nacional em causa nos processos principais não estabelece assim nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OICVM de capitalização – sejam estes residentes ou não residentes – e a situação fiscal dos seus detentores de participações. Quanto aos OICVM que procedem à distribuição dos dividendos recebidos, a regulamentação em causa também não tem em conta a situação fiscal dos seus detentores de participações». Vide, ainda, neste contexto, MARIO TENORE, Investment Fund Taxation (Domestic Law, EU Law, and Double Taxation Treaties), Chapter 7: Investment Fund Taxation and Fundamental Freedoms: Four Approaches to Comparability, Wolters Kluwer, 2018, pp. 149 e 150, e, bem assim, ANA PAULA DOURADO, JESSICA M. MÜLLER, LEIDSON RANGEL e CHRISTOPH SPENGEL, Tax Neutrality Treatment of Investment Funds in the European Union; World Tax Journal, Volume 16, Issue 3, agosto de 2024, p. 449.
[16] «O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses […]» – cfr. artigo 57.º, n.º 1, da LGT.
[17] Mediante a interposição de recurso hierárquico, nos termos dos artigos 80.º da LGT e 76.º, n.º 1, do CPPT.
[18] Mediante a propositura de impugnação judicial ou ação arbitral, nos termos dos artigos 95.º, n.os 1 e 2, alínea d), da LGT e 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT. No caso de ação arbitral, ex vi dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), e 29.º, alínea a), do RJAMT.