SUMÁRIO:
I – A expropriação por utilidade pública consiste numa aquisição originária, não subsumível ao conceito de transmissão relevante para efeitos do artigo 10.º do Código do IRS.
II – No caso concreto dos autos, em que a garantia prestada para suspender a execução foi uma hipoteca, esta garantia real não pode ser entendida como uma garantia equivalente à garantia bancária para efeitos dos artigos 53.º, da LGT e 171.º, do CPPT.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A..., com o NIF ... e residente na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Viana do Castelo (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 6 de março de 2025, automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade, com a consequente anulação, do indeferimento tácito do recurso hierárquico que manteve a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra o ato tributário de liquidação adicional de IRS n.º 2024... (acerto de contas n.º 2024...), referente ao ano de 2023, decorrente da tributação de mais-valias apuradas na sequência de uma expropriação por utilidade pública, que resultou na determinação de imposto a pagar no montante de € 23.477,34.
Mais pede a Requerente a condenação da AT, nos termos dos artigos 53.º, da LGT e 171.º, do CPPT, na indemnização por prestação de garantia indevida e reembolso dos encargos com a garantia hipotecária a prestar para suspensão do processo de execução fiscal instaurado por falta de pagamento da liquidação contestada.
B. Fundamentação do pedido:
O pedido de pronúncia arbitral funda-se nos factos e argumentos que, sucintamente, se enunciam:
1. A Requerente e sua irmã eram proprietárias, em comum e partes iguais, de um prédio rústico que integrou a herança de seu pai, falecido em maio de 1992;
2. Por deliberação da Câmara Municipal respetiva, foi aprovada a declaração de utilidade pública da expropriação da parcela 38 do terreno rústico propriedade da Requerente e de sua irmã, tendo sido celebrada, em março de 2023, escritura de expropriação amigável, tendo cada uma das proprietárias recebido uma indemnização de € 129 560,00 pelos danos causados pela aludida expropriação;
3. Em 25 de junho de 2024, a Requerente apresentou a declaração de IRS do ano de 2023 e, em 2 de julho de 2024, foi notificada pela AT de que a referida declaração havia sido selecionada para análise, por ter sido detetada uma alineação de imóveis não declarada;
4. Em 7 de agosto de 2024, a Requerente apresentou declaração de substituição, tendo incluído no Anexo G os valores relativos à indemnização decorrente da expropriação, no estrito cumprimento das indicações da AT, aí tendo declarado: (i) Data da aquisição do imóvel – 3 de março de 2013; (ii) Valor de aquisição – € 37,50; (iii) Data da realização – 3 de março de 2023; (iv) Valor da realização – € 129 564,50;
5. A Requerente foi notificada, em 9 de agosto de 2024, da demonstração da liquidação adicional de IRS de 2023, com o valor a pagar de € 23 477,34, na sequência do que apresentou reclamação graciosa, pugnando pela ilegalidade e anulabilidade da liquidação, por erro na aplicação do direito, já que os rendimentos tributados decorriam de uma indemnização por expropriação por utilidade pública, e não eram passíveis de tributação em sede de IRS;
6. Em 13 de setembro de 2024 foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, com dispensa de audição prévia, dado que, no entendimento da AT, a questão se limitava à interpretação da lei e não a elementos factuais;
7. A AT fundamenta a decisão de indeferimento da reclamação graciosa no entendimento de que a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º, do CIRS, complementa a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, sustentando que as expropriações estão incluídas no conceito de alienação onerosa e que a liquidação impugnada foi realizada em conformidade com a legislação aplicável, tendo por base a declaração de rendimentos apresentada pela Requerente;
8. A Requerente apresentou, em 14 de outubro de 2024, recurso hierárquico, sem que tivesse obtido decisão dentro do prazo previsto no n.º 5 do artigo 66.º, do CPPT, presumindo-se o seu indeferimento tácito;
9. A Requerente não pagou a liquidação contestada no prazo de pagamento voluntário e foi instaurado processo de execução fiscal, para cuja suspensão a Requerente irá constituir hipoteca voluntária sobre imóvel da sua titularidade a favor da AT;
10. A questão a decidir centra-se em saber se existe ou não existe no CIRS uma norma de incidência real que inclua, no âmbito da tributação das mais-valias, os ganhos resultantes de expropriação;
11. O Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de setembro, prevê no artigo 1.º que os bens imóveis podem ser expropriados por causa de utilidade pública, mediante o pagamento de justa indemnização, que, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º, do mesmo Código “(...) não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração ascircunstâncias e condições de facto existentes naquela data.”;
12. A expropriação é considerada como uma restrição ou limitação de direito público ao direito de propriedade, que não implica a transferência de direitos reais sobre imóveis, pois ela é a causa extintiva desses direitos;
13. Deste modo, a expropriação não equivale a uma alienação onerosa do direito de propriedade, resultante do normal exercício do direito de o proprietário alienar o bem, mas antes numa privação forçada do direito de propriedade com a inerente extinção dos direitos reais sobre os imóveis;
14. Nesse contexto o pagamento de indemnização ao expropriado não configura um preço de aquisição do bem, mas o ressarcimento do prejuízo criado pela expropriação, pelo que o valor da indemnização por expropriação de utilidade pública não é passível de enquadramento no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, como ganho proveniente de uma alienação onerosa de direitos reais;
15. O enquadramento e tributação das mais-valias na categoria G limita-se às situações elencadas no artigo 10.º, n.º 1, do CIRS, que não contempla expressamente a expropriação e o artigo 44.º do CIRS não é uma norma de incidência tributária, visando apenas determinar a matéria tributável, que não poderá servir para alargar o âmbito da incidência objetiva e colmatar lacunas nas referidas normas de incidência;
16. Não restam dúvidas de que a decisão de indeferimento do recurso hierárquico e a liquidação adicional de IRS do ano de 2023 padecem de erro grosseiro na aplicação do direito por violação, designadamente, do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, o que determina necessariamente a sua ilegalidade e anulabilidade, que desde já se requer, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 163.º do CPA aplicável ex vi artigo 29.º, alínea d), do RJAT, com todas as consequências legais;
17. A título subsidiário, acrescenta-se que ao liquidar IRS por mais-valias na sequência de uma expropriação por utilidade pública, a AT adotou interpretação normativa ferida de inconstitucionalidade orgânica, o que se argui para todos os efeitos legais;
18. No âmbito da execução fiscal instaurada, a Requerente irá constituir (a breve trecho), a favor da AT, garantia mediante hipoteca voluntária sobre imóvel de sua propriedade, aceite por despacho de 04-02-2025;
19. Nos termos previstos no artigo 53.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, o devedor que, para suspender a execução ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado pelos prejuízos resultantes da sua prestação, quando se verifique, em sede judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo;
20. Atento o erro imputável aos serviços, acima demonstrado, determinante da ilegalidade da liquidação objeto da presente ação, tem a Requerente direito a ser indemnizada pelos prejuízos resultantes da indevida constituição de garantia idónea, designadamente os custos com a constituição de hipoteca voluntária do seu imóvel a favor da AT, havendo ainda lugar, em momento posterior, ao cancelamento da hipoteca voluntária;
21. A Requerente formula os pedidos de (i) anulação do indeferimento tácito do recurso hierárquico que manteve na ordem jurídica a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa e a liquidação contestada e de (ii) anulação da liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao IRS de 2023, com todas as consequências legais, nomeadamente o reembolso dos encargos com a garantia que venha a ser prestada, para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal instaurado por falta de pagamento da referida liquidação, nos termos e para os efeitos dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.
C. Da resposta Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT, através do despacho arbitral de 14 de maio de 2025, a Requerida apresentou resposta e juntou o processo administrativo, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, com a consequente manutenção da liquidação impugnada. Para o efeito, enuncia a AT os seguintes fundamentos:
1. Entende a Requerente que a indemnização emergente de expropriação por utilidade pública não está sujeita a IRS (mais-valias), sem que tenha razão;
2. Em contrapartida, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem o entendimento de que tal situação tem enquadramento legal no disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS e, por conseguinte, os ganhos terão de ser tributados em conformidade;
3. Dispõe o n. º 1 do artigo 11.º da LGT, que “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.”;
4. Ora, um dos mais básicos princípios de interpretação é aquele que nos diz que nenhuma norma deve ser interpretada isoladamente;
5. Na determinação do sentido da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, há que convocar a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º do mesmo diploma legal, que estatui que “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: a) … b) No caso de expropriação, o valor de realização”, assim se concluindo que a tributação de mais-valias decorrentes de expropriações de bens imóveis foi expressamente prevista pelo legislador;
6. Sendo questionável a técnica legislativa utilizada, não deixa de ser clara a conclusão de deverem ser tributadas as mais-valias geradas pelo pagamento de indemnizações determinadas por expropriações cujo montante seja superior ao valor de aquisição dos imóveis (naturalmente corrigido de acordo com o disposto no artigo 50.º do mesmo código);
7. Além disso, a regra 17.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) vem estatuir que, para efeitos de IMT, o valor tributável dos bens expropriados por utilidade pública é o montante da indemnização;
8. Sendo que já a parte final do parágrafo 1.º do artigo 19.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD), vigente à data da entrada em vigor do CIRS, cominava que o valor dos bens expropriados por utilidade pública para efeitos de sisa seria o montante da indemnização, salvo se esta tivesse sido estabelecida por acordo ou transação, sem que, todavia, as expropriações fossem expressamente mencionadas nos artigos 2.º e 8.º do CIMSISSD (relativos à incidência da sisa), tal como ainda hoje não o são no artigo 2.º - relativo à incidência do IMT - do CIMT (que sucedeu ao CIMSISSD);
9. O que só tem uma explicação possível, isto é, que o legislador entendeu que as expropriações se subsumiam à regra geral constante quer do artigo 2.º do CIMSISSD, quer do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, segundo os quais a sisa ou, respetivamente, o IMT “incide sobre as transmissões a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional.”;
10. Ora, atendendo quer ao elemento sistemático, quer ao elemento histórico, não pode deixar de se considerar que a consideração das expropriações como transmissões onerosas para efeitos de IMT não pode deixar de revestir idêntica natureza para efeitos de IRS, devendo presumir-se, de acordo com o disposto no n.º 3 artigo 9.º do Código Civil, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas;
11. Em qualquer dos diplomas citados, sempre a figura da expropriação foi considerada objeto de tributação, embora essa referência apenas surja no capítulo intitulado “determinação do valor tributável”, o que também acontece no Código do IRS, entrado em vigor em 01-01-1989;
12. Logo, revestindo a natureza de transmissão onerosa, a expropriação está abrangida pela norma de incidência relativa a mais-valias constante do Código do IRS;
13. No que respeita ao pedido de indemnização por prestação indevida de garantia no processo de execução fiscal instaurado, deve referir-se que, conforme referido pela Requerente, ainda não foi prestada a devida garantia e, como tal, o pedido é extemporâneo;
14. A indemnização por prestação de garantia indevida está prevista no artigo 53.º da LGT; ora, quando o artigo 53º da LGT se refere à equivalência à garantia bancária, essa equivalência dirige-se a formas ou modalidades de garantia e não às garantias concretamente prestadas, que, quando indevidamente prestadas são sempre passíveis de causar prejuízos de alguma envergadura;
15. Não se pode dizer que a hipoteca ou o penhor levem à assunção de despesas dificilmente determináveis e é incontestado que estas formas de garantia não são equivalentes à garantia bancária, como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 24.10.2012, prolatado no processo nº 0528/12);
16. A falta de equivalência da hipoteca e do penhor reconduz-se à falta de um especial potencial danoso, porquanto nenhuma destas modalidades de garantia possui uma estrutura intrinsecamente onerosa, como as garantias bancárias e equivalentes (como é o seguro-caução) em que o contribuinte suporta forçosamente uma despesa, cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual é mantida;
17. O que não significa que o lesado pela prestação desta garantia (hipoteca ou penhor), não possa exigir a reparação dos prejuízos que efetivamente sofreu, direito que lhe é assegurado pelo artigo 22.º da Constituição e pela Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (Lei nº 67/2007, de 31.12);
18. Assim sendo, não poderá o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida ser apreciado nos presentes autos;
19. Posto isto, e em face da argumentação até aqui aduzida, é evidente a conformidade legal da liquidação de IRS impugnada, com o n.º 2024..., referente ao ano de 2023 (ou “do exercício de 2023”), que não enferma de qualquer vício, pelo que deve manter-se, sendo confirmada.
*
Pelo Despacho Arbitral de 18 de junho de 2025, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, por não terem sido invocadas exceções nem requerida a produção de prova adicional, tendo as Partes sido convidadas, nos termos do n.º 1 do artigo 120.º, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a produzirem alegações escritas no prazo simultâneo de quinze dias.
Mais se indicou que a decisão arbitral seria proferida dentro do prazo estabelecido pelo artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, notificando-se a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas no prazo designado, nas quais reiteraram as posições assumidas nos respetivos articulados.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 14 de maio de 2025, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa fixa-se como segue.
A. Factos Provados:
1. Por deliberação de 13 de janeiro de 2023, da Câmara Municipal de Viana do Castelo, foi declarada a utilidade pública da expropriação da parcela de terreno n.º 38, com a área de 12 640,00 m2, de que a Requerente era comproprietária com sua irmã, correspondente ao prédio rústico inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., daquele concelho (Doc. n.º 2 junto ao PPA);
2. Em 3 de março de 2023, foi celebrada no Notariado Privativo da Câmara Municipal de Viana do Castelo, escritura de expropriação amigável da referida parcela de terreno, tendo as comproprietárias recebido uma indemnização no valor global de € 259 120,00, cabendo a cada uma a quantia de € 129 560,00 (Doc. n.º 3 junto ao PPA);
3. Com data de 2 de julho de 2024, a Direção de Serviços de IRS emitiu notificação à Requerente, de que a declaração modelo 3 de IRS referente aos rendimentos de 2023, identificada com o n.º ..., havia sido selecionada para análise, por ter sido detetada uma alienação de imóveis não declarada (Doc. n.º 4 junto ao PPA);
4. Face à divergência assinalada, em 7 de agosto de 2024, a Requerente apresentou a declaração de substituição identificada com o n.º..., contendo um anexo G – Mais-valias e outros incrementos patrimoniais, no qual inscreveu a alienação da sua quota parte no prédio rústico identificado em 2., o valor da indemnização decorrente da expropriação por utilidade pública (€ 129 564,50), a data da aquisição (03.03.1993) e o respetivo valor de aquisição (€ 37,50) – (Doc. n.º 5 junto ao PPA);
5. Tendo por base a declaração de substituição identificada no ponto anterior, a AT emitiu, em 7 de agosto de 2024 a liquidação de IRS n.º 2024... (acerto de contas n.º 2024...), de que resultou o valor a pagar de € 23 477,34, em que se incluem juros compensatórios de € 97,27 (Doc. n.º 1 junto ao PPA);
6. A Requerente deduziu reclamação graciosa tendo em vista a anulação da liquidação de IRS n.º 2024... referente ao ano de 2023, que, instaurada sob o n.º ...2024..., foi objeto de decisão de indeferimento, conforme a notificação expedida através de ofício da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Viana do Castelo, datado de 11 de setembro de 2024 (Doc.s n.ºs 6 e 7 juntos ao PPA e PA);
7. A decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por despacho do Diretor de Finanças de Viana do Castelo, tem por base informação contendo a seguinte fundamentação (Doc.s n.ºs 6 e 7 juntos ao PPA e PA):


8. Na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente interpôs, em 14 de outubro de 2024, o recurso hierárquico registado sob o n.º ...2024..., transferido para decisão da Direção de Serviços do IRS (Doc. n.º 8 junto ao PPA e PA);
9. Na falta de pagamento da liquidação de IRS do ano de 2023, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2024..., para cuja suspensão a Requerente prestou, em 11 de março de 2025, garantia constituída por hipoteca voluntária sobre fração autónoma de sua propriedade, aceite pela AT, tendo suportado os correspondentes emolumentos (Docs. n.ºs 10 e 11 juntos ao PPA e Docs. A e B juntos ao PPA por requerimento de 21 de março de 2025);
10. À data da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral, a Requerente não tinha sido notificada de qualquer decisão proferida no recurso hierárquico interposto (facto não contestado).
B. Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C. Fundamentação da matéria de facto provada:
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorreram da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e à resposta da Requerida e processo administrativo instrutor.
III.2 DO DIREITO
1. 1. A questão decidenda
A questão a decidir no presente processo é a de saber se o valor da indemnização recebida pela Requerente, relativa à expropriação por utilidade pública da sua quota-parte num prédio rústico, é passível de tributação como rendimento de mais-valias, à face do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, que, na redação da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, em vigor à data da expropriação, estabelece o seguinte:
Artigo 10.º- Mais-valias
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados
rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;
(…)
Com amparo em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, tanto na vigência do Código do Imposto de Mais Valias como na vigência do CIRS, e em decisões proferidas em processos arbitrais tributários, a Requerente defende que o valor da indemnização recebida por expropriação por utilidade pública de um imóvel não é relevante para efeito de mais-valias, mesmo quando o seu valor é determinado por acordo, dada a inexistência de norma de incidência que expressamente o preveja.
Por seu turno a Requerida, recorrendo aos elementos histórico e sistemático, considera que quer no anterior Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD), quer no atual Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) que lhe sucedeu, embora não existisse então, como não existe agora, norma de incidência que determine a sujeição a imposto do valor da indemnização por expropriação por utilidade pública, sempre tal valor foi tributado como valor de alienação, não havendo razão para que seja tratado de maneira diferente em sede de imposto sobre o rendimento, tanto mais que o artigo 44.º, n.º1, alínea b), do Código do IRS, estabelece que, para determinação dos ganhos sujeitos a IRS, se considera o valor da indemnização, em caso de expropriação, como valor de realização.
Apreciando:
As normas de incidência objetiva, enquanto comandos gerais e abstratos que estabelecem a previsão dos pressupostos de facto da tributação, definindo um dos elementos essenciais do imposto, estão submetidas ao princípio da legalidade tributária (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP) e, dada a sua função garantística, as suas lacunas são insuscetíveis de integração por analogia – princípio da tipicidade (artigo 11.º, n.º 4, da LGT).
Resulta do artigo 4.º, n.º 2, alínea g), da Lei n.º 106/88, de 17 de setembro, através da qual a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização legislativa para aprovar o Código do IRS, que apenas são considerados rendimentos de mais-valias “os ganhos resultantes de transmissão onerosa de bens imóveis ou de partes sociais e outros valores mobiliários, da cessão do arrendamento e de outros direitos e bens afetos, de modo duradouro, ao exercício de atividades profissionais independentes, da transmissão onerosa da propriedade intelectual ou industrial ou de experiência adquirida no sector comercial, industrial ou científico, quando o transmitente não for o seu titular originário;”
O preâmbulo do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, refere que:
(…)
12 - Outra categoria - a categoria G - é constituída pelas mais-valias.
Houve que optar entre um enunciado taxativo das mais-valias tributáveis e uma definição genérica de ganhos de capital. A primeira solução, permitindo evitar dificuldades de aplicação e rupturas com o sistema actual, em que o imposto de mais-valias incide em situações tipificadas, foi considerada preferível, sem embargo de se inovar quanto ao âmbito de incidência.
Tratando-se de rendimentos excepcionais, foi ponderado o regime tributário adequado em face da excessiva gravosidade que a tributação englobada poderia gerar, prevendo-se, para esta categoria, um específico regime de tributação, envolvendo uma substancial dedução à matéria colectável.
Alarga-se a tributação a ganhos não sujeitos ao actual imposto de mais-valias, tais como os gerados pela transmissão onerosa de qualquer forma de propriedade imóvel.
(…)” – sublinhados nossos.
A questão é a de saber se a expropriação por utilidade pública mediante pagamento da justa indemnização ao expropriado, direito que lhe é constitucionalmente garantido (artigo 62.º, n.º 2 da CRP) consubstancia uma “transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, sem que tal facto se encontre expressamente previsto na norma de incidência real (artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS).
A este respeito, têm a doutrina e a jurisprudência considerado que “a expropriação por utilidade pública consiste numa aquisição originária, por o beneficiário da expropriação adquirir um direito totalmente novo e independente do direito e da posição que sobre ele tinha o anterior proprietário” (cfr. o Acórdão do STA, de 2021.11.10 no Processo n.º 01260/11.7BEPRT e jurisprudência nele citada), não sendo “subsumível ao conceito de transmissão, relevante para efeitos do artigo 10.º do Código do IRS em virtude de a sua tipicidade evidenciar o carácter seletivo da tributação das mais-valias, dando o elenco exaustivo ou taxativo dos factos geradores de imposto, não sendo tributáveis outras mais-valias que não sejam as previstas no elenco deste normativo” (Acórdão do STA, de 2023.12.13, Processo n.º 0280/16.0BEAVR), e que a não tributação em sede de IRS da indemnização recebida pelo expropriado “(…) é, aliás, comum à generalidade das indemnizações que visam compensar danos patrimoniais comprovados, como decorre do artigo 9.º, n.º 1, do CIRS, pelo que o que seria incompatível com o princípio da igualdade seria o tratamento fiscal mais desfavorável das indemnizações decorrentes de expropriações por utilidade pública.” (Decisão Arbitral de 2023.06.20, Processo n.º 116/2023-T).
Louvando-nos na jurisprudência vinda de citar e, estando igualmente em causa nos presentes autos a apreciação da legalidade de uma liquidação de IRS, na qual foi tributado o valor da justa indemnização atribuída à Requerente pela expropriação por utilidade pública de uma parcela de terreno de que foi proprietária, há que declarar a ilegalidade de tal liquidação, por erro sobre os pressupostos de direito e determinar a sua anulação, bem como dos atos de segundo e terceiro graus que a mantiveram na ordem jurídica.
2. Do pedido de indemnização por prestação indevida de garantia
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 – primeira parte, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, entre os quais o de apreciar pedidos de indemnização por prestação indevida de garantia.
Está provado nos autos que a Requerente constituiu hipoteca voluntária sobre um imóvel de sua propriedade, tendo suportado o custo dos emolumentos correspondentes, vindo o pedido indemnizatório formulado na petição inicial.
A indemnização por prestação indevida de garantia vem regulada nos artigos 53.º, da LGT e 171.º, do CPPT, que estabelecem:
“Artigo 53.º - Garantia em caso de prestação indevida
1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”.
“Artigo 171.º - Indemnização em caso de garantia indevida
1 - A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.
2 - A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.”.
Em ambos os preceitos transcritos se restringe a indemnização por prestação indevida de garantia à “garantia bancária ou equivalente”, entendendo-se como tal “as formas de garantia que impliquem para o interessado suportar uma despesa cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual aquela é mantida”[1].
No caso concreto dos autos, em que a garantia prestada para suspender a execução, foi a hipoteca voluntária, esta garantia real não pode ser entendida como uma garantia equivalente à garantia bancária para efeitos dos artigos 53.º, da LGT e 171.º, do CPPT.
Isso não significa, no entanto, que o executado que tenha prestado garantia, por hipoteca voluntária, para suspender uma execução fiscal em que é exigido o pagamento do imposto indevidamente liquidado, não possa ser ressarcido dos danos comprovadamente decorrentes da prestação dessa garantia, em processo autónomo visando efetivar a responsabilidade civil extracontratual da AT.
Por não ser o processo arbitral tributário o meio idóneo para decidir do pedido de indemnização concretamente formulado pela Requerente, julga-se o mesmo improcedente.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito enunciados supra, decide-se:
a. Anular a liquidação adicional de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023, por erro sobre os pressupostos de direito;
b. Anular a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2024..., que teve a mesma liquidação por objeto;
c. Anular a decisão de indeferimento tácito do recurso hierárquico n.º ...2024..., interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
d. Julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação indevida de garantia.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 23 477,34 (vinte e três mil, quatrocentos e setenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos), indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de outubro de 2025.
O Árbitro,
Mariana Vargas
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2019-09-01, Processo n.º 03025/17.3BEPRT 0585/18. Cfr. ainda JORGE LOPES DE SOUSA, in Código do Procedimento e do Processo Tributário, anotado e comentado, Volume III, 6ª edição 2011, pág. 242.