Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 265/2025-T
Data da decisão: 2025-10-23  IRS  
Valor do pedido: € 3.950,57
Tema: IRS – n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro – Isenção das remunerações auferidas por tripulante residente em Portugal e embarcado em navios (ou embarcações) registados noutro Estado-membro da U.E. e operados por entidade estrangeira alegadamente sujeita ao “Tonnage Tax”
Versão em PDF

 

 

DECISÃO ARBITRAL

SUMÁRIO:

 

I.               O artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, deve ser interpretado no sentido de exigir que os navios ou embarcações estejam registados por pessoas coletivas que tenham exercido a opção pelo regime português de “Tonnage Tax” ou por um regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que aprovado pela Comissão Europeia e compatível com os critérios constantes da Decisão SA.48929 da Comissão Europeia.

II.             In casu, verifica-se a ausência de prova robusta, oficial e verificável quanto à sujeição da entidade pagadora ao regime fiscal em causa, à composição da tripulação e à adesão formal ao regime aprovado. 

III.           A divergência entre os documentos apresentados e a insuficiência de elementos de prova impedem a verificação dos pressupostos legais da isenção.

 

I. RELATÓRIO:

 

1.     A..., NIF ..., casado com B..., NIF ..., de nacionalidade portuguesa, residente na Rua ..., n.º ..., na cidade de Vila do Conde, apresentou, em 20.03.2025, pelas 15:01 horas, um pedido de pronúncia arbitral, invocando o regime previsto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, de ora em diante apenas designado por RJAT) e em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira. 

2.     No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.

3.     Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

4.     Em 14.05.2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.

5.     Em conformidade com o estatuído na alínea c) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 03.06.2025 para apreciar e decidir o objecto do processo.

6.     Em 02.07.2025, a Requerida apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação, refutando os vícios imputados pelo Requerente à liquidação de IRS e juros compensatórios, de 2023, n.º 2024... e demonstração de acerto de contas n.º 2024... da qual resultou um valor a pagar de 3.390,57 €. Na mesma data, a Requerida apresentou o Processo Administrativo a que se refere o no n.º 2 do art.º 17º do Decreto-Lei n.º 10/2021, de 20 de Janeiro (doravante PA),

7.     Em 08.10.2025, foi proferido e inserido no Sistema de Gestão Processual do CAAD (doravante SGP) despacho que, ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 16º, alíneas c) e e), 19º,nº 1 e 29º, nº 2 do RJAT), e do princípio da proibição de atos inúteis (art.º 130º do Código de Processo Civil, ex vi da alínea e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT): i) dispensava a reunião prevista no art.º 18º do RJAT; ii) convidava as partes a, querendo, apresentarem alegações escritas simultâneas.

8.     Nenhuma das partes apresentou alegações finais.

9.     A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste: i) Na declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de IRS e juros compensatórios, de 2023, n.º 2024... e demonstração de acerto de contas n.º 2024... da qual resultou um valor a pagar de 3.390,57 €, por estar enfermado do vício de violação de lei; ii) Em consequência do eventual decretamento da ilegalidade daqueles atos de liquidação, na restituição à Requerente do valor pago em excesso; iii) No pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios correspondentes, por estarem preenchidos os pressupostos do art.º 43.º da LGT. 

10.  Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

I.A) Alegações do Requerente:

 

A)   No Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante PPA), diz-se que o Requerente, residente em Portugal, na Rua ... n.º ..., em Vila do Conde, exerceu, em 2023, a atividade profissional de marinheiro de 1.ª classe, ao serviço da empresa “C... A/S”, com sede na Dinamarca, ao abrigo de um contrato individual de trabalho. 

B)   Essa atividade foi desempenhada a bordo dos navios “...” e “...”, ambos operados pela referida empresa.

C)   Aduz-se ainda no PPA que durante o período em causa, o Requerente esteve embarcado por mais de 90 dias, cumprindo assim o requisito temporal previsto na legislação nacional para efeitos de isenção de IRS. 

D)   Refere-se ainda no PPA que os navios em questão tinham uma composição de tripulação com pelo menos 50% de cidadãos oriundos da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, conforme documentação que dizem haver juntado.

E)   A empresa empregadora, alega o Requerente no PPA, encontra-se abrangida pelo regime fiscal dinamarquês conhecido como “Danish Tonnage Tax Scheme”, que consiste num modelo especial de tributação baseado na tonelagem dos navios, em vez da tributação sobre os lucros reais. Este regime é reconhecido pela União Europeia como compatível com os princípios de concorrência e auxílios estatais, sendo análogo ao regime português previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.

F)    Em 27 de setembro de 2024, o Requerente foi notificado para apresentar documentação comprovativa da sua atividade profissional e da sujeição da empresa ao regime de “tonnage tax”, o que alega ter feito, juntando declarações da empresa e registos de embarque. 

G)   Apesar disso, foi emitida uma liquidação de IRS relativa ao ano de 2023, que o Requerente pagou, embora não se conforme com a mesma.

H)   O Requerente fundamenta o seu pedido de pronúncia arbitral na conjugação de normas internacionais e nacionais: i) Em primeiro lugar, invoca o artigo 15.º, n.º 3 da Convenção entre Portugal e a Dinamarca para Evitar a Dupla Tributação, que estabelece que as remunerações obtidas por um trabalhador a bordo de navios explorados por empresas de um dos Estados contratantes podem ser tributadas nesse Estado — neste caso, na Dinamarca;  ii) Em segundo lugar, invoca o regime especial previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, que institui um modelo de tributação baseado na tonelagem dos navios e prevê, no seu artigo 4.º, n.º 1, a isenção de IRS para os tripulantes de navios abrangidos por esse regime, desde que: 1. Os navios estejam registados em Portugal ou noutro Estado-Membro da UE ou do EEE; 2. A empresa tenha exercido a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável; 3. O tripulante tenha permanecido a bordo por mais de 90 dias durante o ano fiscal.

I)     O Requerente sustenta que o “Danish Tonnage Tax Scheme” é um regime análogo ao português, aprovado pela Comissão Europeia, e que a empresa empregadora está sujeita a esse regime. Assim, entende que os requisitos legais estão preenchidos e que a isenção deve ser reconhecida.

J)    Para reforçar a sua posição, o Requerente invoca jurisprudência arbitral, nomeadamente decisões proferidas pelo CAAD nos processos n.ºs 355/2023-T e 667/2023-T, que interpretam o artigo 4.º do DL 92/2018 de forma alargada, permitindo a aplicação da isenção mesmo quando a empresa está sujeita a um regime de “tonnage tax” estrangeiro, desde que este seja reconhecido como equivalente e compatível com os objetivos do regime português.

K)   O Requerente conclui que a liquidação de IRS efetuada pela Autoridade Tributária é ilegal, por violação do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, e requer a sua anulação, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.  

11.  A Requerida apresentou Resposta, na qual alega:

 

I.B) Alegações da Requerida:

 

A)   Na Resposta, a Requerida começa por reconhecer os elementos factuais apresentados pelo Requerente, nomeadamente, que este prestou serviços como marinheiro de 1.ª classe em 2023, ao serviço da empresa “C... A/S”, sediada na Dinamarca, e que trabalhou a bordo dos navios “...” e “...”.

B)   Contudo, a Requerida impugna todas as alegações que não estejam devidamente comprovadas ou que colidam com a sua interpretação legal. Em particular, contesta que o Requerente tenha demonstrado, com prova documental idónea, que a empresa empregadora tenha aderido ao regime especial de determinação da matéria coletável previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.

C)   A Requerida sublinha que os documentos apresentados pelo Requerente não provêm de autoridades fiscais oficiais da Dinamarca, mas sim de entidades privadas, como a D..., que adquiriu recentemente a C... . Além disso, refere que não foi apresentada qualquer declaração autenticada que comprove que os navios em causa estão efetivamente abrangidos pelo regime dinamarquês de “tonnage tax”.

D)   A Requerida também aponta a ausência de prova quanto à composição da tripulação dos navios, nomeadamente se pelo menos 50% dos tripulantes têm nacionalidade portuguesa, de um Estado-Membro da UE, do EEE ou de país de língua oficial portuguesa, como exige o artigo 3.º, n.º 3 do DL 92/2018.

E)   Assim sendo, a Requerida considera que os elementos fáticos apresentados não satisfazem os requisitos legais para a concessão da isenção de IRS pretendida.

F)    A posição jurídica da Requerida assenta numa interpretação restritiva do Decreto-Lei n.º 92/2018, ou seja, sustenta que o regime de isenção previsto no artigo 4.º do diploma só é aplicável quando os rendimentos são pagos por entidades que tenham sede ou direção efetiva em Portugal e que tenham optado pelo regime especial de determinação da matéria coletável previsto no próprio diploma.

G)   A Requerida invoca ainda a Lei n.º 42/2018, de 9 de agosto, que conferiu ao Governo autorização legislativa para criar este regime, sublinhando que essa autorização está limitada a entidades sujeitas a IRC em Portugal. Assim, considera que o benefício fiscal não pode ser estendido a empresas estrangeiras, mesmo que estas estejam sujeitas a regimes análogos de “tonnage tax” nos seus países de origem.

H)   A Requerida rejeita a ideia de que exista um “tonnage tax europeu” harmonizado, explicando que cada Estado-Membro tem autonomia para definir o seu regime fiscal, desde que respeite as regras da concorrência e dos auxílios estatais da União Europeia. 

I)     Refere que a Comissão Europeia apenas emite orientações para garantir a conformidade dos regimes nacionais com o mercado interno, mas não estabelece um regime comum.

J)    A Requerida também invoca o princípio da legalidade tributária, sublinhando que os benefícios fiscais devem ser interpretados restritivamente e que não é admissível a aplicação analógica em matéria tributária. Assim, considera que a isenção prevista no DL 92/2018 não pode ser estendida por interpretação extensiva a empresas estrangeiras que não estejam sujeitas ao regime português.

K)   Por fim, a AT conclui que, não estando demonstrada a adesão da empresa “ C... A/S” ao regime português de “tonnage tax”, nem estando comprovados os requisitos legais relativos à composição da tripulação e à natureza da embarcação, não se verificam os pressupostos para a concessão da isenção de IRS.

L)   Peticionando seja julgado improcedente o PPA por não provado, mantando-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado e, consequentemente, devendo ser absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.   

 

II. THEMA DECIDENDUM:

 

12.  thema decidendum reporta-se à questão de saber se a isenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, pode ser aplicada a rendimentos pagos por uma entidade estrangeira, sujeita a um regime de “tonnage tax” vigente noutro Estado-Membro da União Europeia e se, no caso concreto, o Requerente logrou demonstrar o preenchimento dos requisitos legais exigidos para beneficiar dessa isenção.

 

Cumpre, então, agora, proferir decisão.

 

III. SANEAMENTO:

 

13.  O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRS e JC ora impugnada, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

14.  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (Cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). 

15.  A ação é tempestiva, porque apresentada no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). 

16.  O processo não enferma de nulidades. 

17.  Não foram identificadas questões que obstassem ao conhecimento do mérito.

 

IV. DECISÃO:

 

IV.A) Factos que se consideram provados:

 

18.  Antes de entrarmos na apreciação do mérito das questões submetidas a julgamento, cumpre-nos fixar a matéria factual que é relevante para a respetiva decisão:

 

A)   O Requerente é residente fiscal em Portugal no ano de 2023; (Cfr. cabeçalho do PPA, onde o Requerente se identifica e se considera residente na Rua..., n.º ..., Vila do Conde e fls. 18/38 do PA);

B)    No ano de 2023, o Requerente exerceu a atividade profissional de marinheiro de 1.ª classe, ao abrigo de contrato individual de trabalho, ao serviço da entidade empregadora denominada “C... A/S, sociedade de direito dinamarquês e com sede na Dinamarca (Cfr. Doc. n.º 1 a 3, juntos ao PPA e artigo 1.º do PPA) .

C)    Os navios em que o Requerente embarcou, no ano de 2023, foram os seguintes: i) “...” e ii) “...”. (Cfr. Docs. n.ºs 2 e 3 juntos ao PPA e artigo 3.º do PPA);  

D)    O Requerente esteve embarcado, no total, por um período superior a 90 dias durante o ano de 2023. (Cfr. Docs. nºs 2 e 3 juntos ao PPA e artigo 4.º do PPA);

E)    A E... emitiu declaração onde atesta os períodos de embarque do Requerente, a sua categoria profissional e os navios em que prestou serviço. (Cfr. Doc. n.º 2 junto ao PPA)

F)     Foi junta aos autos uma declaração emitida por entidade privada (D...), onde se atesta que a empresa “C... A/S” esteve sujeita ao regime dinamarquês de “tonnage tax” (o denominado Dannish Tonnage Tax Scheme”, no ano de 2023. (Cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA); 

G)   Através da notificação n.º GIC-..., de 28.06.2024 da Direção de Serviços de IRS, foi o Requerente notificado no sentido de que a declaração de rendimentos relativa ao ano de 2023, com identificação I6395/51, havia sido selecionada para análise por ter sido detetada uma situação de “comprovação dos rendimentos isentos declarados”. (Cfr. fls. 21/38 do PA);  

H)   Através do Ofício n.º GPS2024..., de 17.09.2024 do serviço de Finanças de Vila do Conde, foi o Requerente notificado, na sequência da notificação referida no ponto G) do probatório, de que deveria prestar os devidos esclarecimentos e de que, decorrido o prazo de 15 dias, sem a regularização da situação detetada, o procedimento prosseguia para a correção dos valores declarados. Diz-se ainda naquele Ofício: “Por justificação internet, em 2024-07-08, anexou declaração emitida pela entidade patronal C..., contendo o rendimento auferido e deduções efetuadas. Na declaração de rendimentos Mod.3 de IRS de 2023, indicou rendimentos isentos sujeitos a englobamento no quadro 4 do anexo H, com o código de benefício 412, no valor de 29.571,92 €, relativos a rendimentos obtidos de entidade com sede na Dinamarca e aí considerados obtidos, de acordo com o disposto no artigo 4.° do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, correspondentes a renumerações auferidas na qualidade de tripulantes dos navios ou embarcações consideradas para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável. Pela leitura ao DL n° 92/2018 de 13/11, este pretendia dinamizar a marinha mercante portuguesa, tendo por isso criado um regime fiscal especial para IRC (por opção), o qual consta em anexo a esse diploma. Esse regime especial para IRC, apenas se aplica a empresas com sede em Portugal. Prevê de facto, o artigo 4° do diploma, uma isenção em Portugal para IRS, mas no seu n.º 1, refere que apenas é aplicável aos navios ou embarcações considerados para esse regime especial. Pela declaração que apresentou deduz-se que a empresa para a qual trabalhou em 2023 o tripulante A..., tem sede na Dinamarca e o navio também nesse país registado. Se tal empresa tivesse sede em Portugal e optasse por este regime especial para IRC, então o tripulante português podia beneficiar da isenção para IRS em Portugal. Assim, o tripulante português não pode beneficiar da isenção em IRS para 2023. Assim, fica V. Ex.ª notificado(s) nos termos e para os efeitos previstos no artigo 60.º da Lei Geral Tributária, de que, poderá, querendo, no prazo de 15 dias contados a partir do 3.º dia seguinte ao do registo postal da presente notificação, exercer a direito de audição sobre o projeto de decisão de correção aos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2023, conforme se explicita: eliminar a linha do quadro 4 do anexo H, contendo rendimento obtido de € 29.571,92 e demais referências. Indicar no quadro 4A do Anexo J com os seguintes elementos: código rendimento: A01; País da fonte:208; Rendimento bruto € 29.571,92. Indicar no quadro 4C do Anexo J, linha 451: Linha Q4A – 401; país da entidade pagadora – 208 e Dias permanência no país de exercício do emprego ->183. O direito de audição poderá ser exercido por escrito ou oralmente. (...).”  (Cfr. fls. 21e 22 de 38 do PA);  

I)     O aqui Requerente exerceu o direito de audição, pugnado pela verificação/preenchimento de todos os requisitos e condições para a isenção pretendida, fundando esse petitório no seguinte: 1. Alegou que, por decisão transitada em julgado do CAAD ,no processo nº 355/203-T, foi-lhe dada razão numa situação idêntica: 2. Apresentou documentos comprovativos de que trabalhou, em 2023, para a empresa C... A/S, sediada na Dinamarca, por mais de 90 dias, e que esta empresa está abrangida pelo "Danish Tonnage Tax Scheme; 3. Referiu que este regime é aprovado pela União Europeia e permite que companhias marítimas sejam tributadas com base na tonelagem dos navios, em vez dos lucros. 4. Alegou que o regime dinamarquês corresponde ao previsto no Decreto-Lei nº 92/2018, de 13 de novembro. (Cfr. fls. 27 a 38 do PA);  

J)    Na sequência do exercício do direito de audição referido no ponto I) do probatório, foi elaborada a Informação de 03.10.2024 que está junta ao PA a fls. 17 a 20 e sobre a qual recaiu o despacho do Exmº Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Vila do Conde, de 03.10.2024, com o seguinte teor: “Concordo. Tendo por base a informação e fundamentos dela constantes, procede-se alteração dos rendimentos nos termos do artigo 65, n.º 4 do Código IRS. Notifique-se. Serviço de Finanças de Vila do Conde, 2024-10-03. O chefe do Serviço de Finanças. Ass.. ... .”

K)   Na informação referida no ponto J) do probatório referia-se, em breve síntese, o seguinte: 1. Consultando a base de dados da AT, verificou-se que o contribuinte constava como residente em Portugal em 2023, com morada em Vila do Conde. Na declaração de IRS Modelo 3 de 2023, foi indicada residência fiscal em Portugal, com tributação conjunta, o que implica que o IRS incide sobre todos os rendimentos, incluindo os obtidos no estrangeiro, conforme o artigo 15.º, nº 1 do CIRS. 2. A decisão do CAAD mencionada aplica-se apenas ao processo específico e não a outras situações semelhantes. 3. Quanto à aplicação do Decreto-Lei nº 92/2018: i) Este diploma institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios, benefícios fiscais e contributivos para tripulantes e um registo simplificado de embarcações; ii) O regime especial aplica-se a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em Portugal, que exerçam atividades comerciais de transporte marítimo e não estejam abrangidos pelo regime simplificado do artigo 86.º-A do Código do IRC; iii) Os benefícios fiscais para tripulantes aplicam-se a navios registados em Portugal ou noutro Estado-Membro da UE/EEE, desde que explorados por entidades que optem pelo regime especial; iv) O artigo 4.º prevê isenção de IRS para remunerações de tripulantes, desde que permaneçam a bordo por pelo menos 90 dias por ano. Os rendimentos isentos devem ser englobados para efeitos de taxa de IRS; v) Os tripulantes estão sujeitos ao regime geral da Segurança Social, com taxa contributiva de 6%; vi) A aplicação do regime depende de a entidade exploradora do navio ter sede ou direção efetiva em Portugal e ser tributada em Portugal pelo regime da "tonnage tax"; vii) O preâmbulo do diploma reforça que o regime visa incentivar o setor marítimo em Portugal; viii) Não foi provado que a entidade empregadora tem sede ou direção efetiva em Portugal e é tributada pelo regime da "tonnage tax", pelo que não se verificam os requisitos legais para aplicar o regime de isenção de IRS. 3. Assim, nos termos do artigo 65.º, nº 4 do CIRS, foi efetuada a alteração dos rendimentos, incluindo o Anexo J para sujeitar os rendimentos estrangeiros à tributação, conforme o ofício GPS202.... (Cfr. fls. 18  a 20 de 38 do PA);  

L)   Em 20.03.2025, pelas 15:01 horas, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (Cfr. Sistema de Gestão Processual do CAAD);

M)  O pedido foi aceite em 24.03.2025, pelas 11:52 horas (Cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD).

 

IV.B) Factos não provados:

 

  1. Não se provou que a empresa “C... A/S” tenha exercido a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.
  2. Não se provou que os navios em que o Requerente embarcou estivessem abrangidos por esse regime especial português.
  3. Não se provou que a empresa “C... A/S” tenha sido tributada efetivamente na Dinamarca em sede de “tonnage tax” no ano de 2023, com base em prova emitida por autoridade fiscal competente.
  4. Não se provou que pelo menos 50% da tripulação dos navios em que o Requerente embarcou fosse composta por cidadãos portugueses, da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou de países de língua oficial portuguesa, conforme exigido pelo artigo 3.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 92/2018.
  5. Não se provou que os rendimentos auferidos pelo Requerente tenham sido efetivamente tributados na Dinamarca.

24.  Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.

 

IV.C) Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:

 

25.  Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

26.  Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito. (Cfr. art.º 596.º do CPC).

27.  A convicção sobre os factos dados como provados e não provados (acima explicitados) assentou na análise crítica da prova e fundou-se nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados que não foram impugnadas pela parte contrária e, nomeadamente, na prova documental junta aos autos pela Requerente e nos documentos constantes do PA junto aos autos, conforme remissão feita a propósito de cada ponto do probatório, sendo indicado expressamente em cada um daqueles pontos o(s) documento(s) que contribuíram para a extração do correspondente facto.

28.  A valoração dos documentos atendeu ao seu valor probatório, ao seu teor e aos factos que os mesmos comprovam, em si mesmos ou em conjugação com os demais, sendo de salientar que as informações oficiais, fazem fé, quando devidamente fundamentadas e se se basearem em critérios objetivos. (Cfr. artigos 76º, n.º 1 da LGT e 115º, n.º 2 do CPPT).

29.  A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica da prova documental junta aos autos, nomeadamente, as declarações emitidas pela E... e pela entidade privada D... .

30.  A declaração da E..., enquanto entidade representativa de armadores, foi considerada suficiente para atestar que o período de embarque do Requerente foi superior a 90 dias, a sua categoria profissional e os navios em que prestou serviço. Não obstante, tal declaração não tem valor probatório bastante para comprovar a composição da tripulação dos navios, nem a afetação dos mesmos ao regime fiscal previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018. 

31.  Quanto à declaração da empresa dinamarquesa – D... -, o Tribunal entendeu que, por não ter sido emitida por autoridade fiscal oficial, carece de força probatória bastante para comprovar a sujeição da empresa ao regime de “tonnage tax” dinamarquês. Acresce que a declaração é genérica, não identificando os navios abrangidos nem os termos concretos da adesão ao regime. Tal declaração foi considerada suficiente para atestar que o período de embarque do Requerente foi superior a 90 dias.

32.  O tribunal relevou negativamente a divergência quanto aos períodos de embarque constante da declaração da E... (Doc. n.º 2 junto ao PPA) e da D... (Doc. n.º 3 junto ao PPA). 

33.  O Tribunal valorou negativamente a ausência de qualquer documento emitido por autoridade fiscal dinamarquesa que atestasse a tributação efetiva da empresa ou dos rendimentos do Requerente, bem como a inexistência de prova sobre a composição da tripulação que é elemento essencial para a aplicação do regime de isenção previsto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018.

 

IV.D) Matéria de Direito (Apreciação do Mérito):

 

34.  A questão que se coloca no presente caso diz respeito à possibilidade de aplicação da isenção de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, aos rendimentos auferidos por um tripulante português embarcado em navios operados por uma empresa estrangeira - neste caso, dinamarquesa - que se encontra sujeita ao regime de “tonnage tax” vigente no seu país de origem.

35.  O Requerente, residente fiscal em Portugal, apresentou pedido de pronúncia arbitral visando a anulação da liquidação de IRS, relativa ao ano de 2023, alegando que os rendimentos auferidos como tripulante da empresa “C... A/S”, sediada na Dinamarca, deveriam beneficiar da isenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro. Alega que a empresa empregadora está sujeita ao regime dinamarquês de “tonnage tax” e que os navios em que trabalhou - “...” e “...” - cumprem os requisitos legais, nomeadamente a composição da tripulação e o tempo de embarque superior a 90 dias.

36.  A Autoridade Tributária contestou o pedido, defendendo que a isenção apenas se aplica a entidades que tenham aderido ao regime português de determinação da matéria coletável com base na tonelagem e que o Requerente não apresentou prova bastante da sujeição da empresa ao referido regime, nem da composição da tripulação exigida por lei. Vejamos,

37.  A Requerida defende que a isenção de IRS prevista no Decreto-Lei n.º 92/2018 só pode ser aplicada quando os rendimentos são pagos por entidades que tenham aderido ao regime português de “tonnage tax”, estejam sujeitas a IRC em Portugal e cumpram os requisitos legais expressamente previstos. Qualquer outra interpretação, por mais equitativa que possa parecer, não encontra respaldo na letra da lei, na autorização legislativa que lhe deu origem, nem na finalidade do regime. 

38.  A Autoridade Tributária sustenta que tal isenção não é aplicável nesta situação, com base numa interpretação estrita e sistemática da legislação nacional, em conformidade com os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade tributária. Com efeito, o artigo 103.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa consagra que os impostos e os benefícios fiscais só podem ser criados por lei. Em matéria tributária, não é admissível a analogia, conforme resulta do artigo 11.º, n.º 4 da Lei Geral Tributária e do artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, o que significa que os benefícios fiscais não podem ser estendidos a situações não expressamente previstas na lei.

39.  O Decreto-Lei n.º 92/2018 institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios, conhecido como “tonnage tax”, bem como um conjunto de benefícios fiscais aplicáveis aos tripulantes desses navios. 

40.  O artigo 4.º, n.º 1 do diploma estabelece que estão isentas de IRS as remunerações auferidas pelos tripulantes de navios considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável. O artigo 2.º, n.º 2 especifica que este regime é aplicável aos tripulantes de navios registados no registo convencional português ou noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que sejam utilizados por pessoas coletivas que tenham exercido a opção pelo regime especial previsto no próprio diploma.

41.  A expressão “neste regime” é, para a AT, determinante. Ela deve ser interpretada como referindo-se exclusivamente ao regime português de “tonnage tax” e não a regimes análogos existentes noutros Estados-Membros da União Europeia. 

42.  Esta leitura é reforçada pela Lei n.º 42/2018, de 9 de agosto, que conferiu ao Governo autorização legislativa para criar este regime especial. O artigo 2.º dessa lei estabelece que o regime apenas pode ser aplicado a pessoas coletivas que tenham sede ou direção efetiva em Portugal, estejam sujeitas a IRC e exerçam atividades comerciais relacionadas com o transporte marítimo. Assim, qualquer extensão da isenção a empresas estrangeiras, ainda que sujeitas a regimes semelhantes, ultrapassaria os limites da autorização legislativa.

43.  A AT rejeita a ideia de que exista um “tonnage tax europeu” harmonizado. 

44.  Embora vários Estados-Membros da UE tenham adotado regimes de tributação com base na tonelagem, cada um fê-lo de forma autónoma, com regras próprias, sujeitas apenas ao escrutínio da Comissão Europeia em matéria de auxílios de Estado. 

45.  A aprovação de um regime pela Comissão não implica que os benefícios fiscais concedidos por um Estado possam ser automaticamente reconhecidos por outro. 

46.  A dimensão europeia do “tonnage tax” reside apenas na necessidade de conformidade com as regras de concorrência e não na existência de um regime comum.

47.  Além disso, a AT sublinha que o objetivo do Decreto-Lei n.º 92/2018 é promover o crescimento da marinha mercante nacional, atrair navios para o registo português e fomentar o emprego marítimo em Portugal. 

48.  A concessão de isenção de IRS a tripulantes de navios operados por empresas estrangeiras, sem qualquer ligação fiscal ao território português, desvirtuaria esse propósito. 

49.  O preâmbulo do diploma é claro ao apontar para a necessidade de revitalizar o setor marítimo nacional, criar oportunidades de emprego para marítimos portugueses e combater o declínio da frota nacional.

50.  Explicitada com desenvolvimento a hermenêutica da AT e não obstante a consistência formal dessa interpretação restritiva (sustentada na literalidade do artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 92/2018, na autorização legislativa conferida pela Lei n.º 42/2018 e no princípio da legalidade tributária) importa agora ponderar se essa leitura, embora juridicamente defensável, é a que melhor realiza os objetivos materiais e finalísticos do regime instituído.

51.  A hermenêutica restritiva, ao exigir que a entidade pagadora dos rendimentos esteja sujeita ao regime português de determinação da matéria coletável com base na tonelagem, é, não pode este Tribunal deixar de o admitir, formalmente consistente. 

52.  Contudo, ela pode comprometer a eficácia do regime e desvirtuar o seu espírito europeu, frustrando os objetivos de promoção do emprego marítimo qualificado e da competitividade da marinha mercante nacional no contexto da União Europeia.

53.  É precisamente neste ponto que se impõe uma leitura mais ampla e sistemática do artigo 4.º do diploma, em linha com a jurisprudência arbitral consolidada, nomeadamente a decisão proferida no Processo n.º 355/2023-T, que reconhece que a isenção pode abranger rendimentos pagos por entidades sujeitas a regimes de “tonnage tax” equivalentes, aprovados pela Comissão Europeia, desde que verificados os requisitos materiais da norma.

54.  Uma tal hermenêutica não ignora os limites da legalidade tributária, mas antes os reconcilia com os princípios da integração europeia, da igualdade de tratamento entre trabalhadores marítimos e da efetividade das normas fiscais que preveem benefícios fiscais. A letra da lei não pode ser lida em abstração do seu espírito e é esse espírito (europeu, competitivo e inclusivo) que deve orientar a aplicação da norma no caso concreto. Vejamos,

55.  Este Tribunal Arbitral Singular não pode deixar de notar que o regime português de “tonnage tax”, previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, foi previamente submetido à apreciação da Comissão Europeia no contexto dos auxílios de Estado, tendo sido aprovado pela Decisão SA.48929, de 6 de abril de 2018, consultável inhttps://ec.europa.eu/competition/state_aid/cases/273110/273110_1994553_134_2.pdf

56.  Essa decisão é fundamental para compreender os limites e a compatibilidade do regime com o direito da União Europeia, especialmente no que respeita à concorrência fiscal e à liberdade de prestação de serviços no setor marítimo.

57.  A Decisão SA.48929 da Comissão Europeia aprovou o regime português de “tonnage tax” como compatível com o mercado interno, nos termos do artigo 107.º, n.º 3, alínea c) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). 

58.  A Comissão considerou que o regime não constituía uma ajuda de Estado proibida, desde que respeitasse os critérios de não discriminação e proporcionalidade. Para a Comissão o regime português de “tonnage tax” promove a competitividade da marinha mercante europeia, alinhando-se com os objetivos da política comum de transportes e, por isso, está em conformidade com as Diretrizes da Comissão sobre auxílios estatais ao setor marítimo, nomeadamente as de 2004 e 2017 e que, respetivamente, podem ser lidas in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52004XC0117%2801%29 e ainda in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52017XC0413(01) . 

59.  A decisão sublinha que o regime deve ser acessível a empresas que operem navios estrategicamente e comercialmente geridos a partir de um Estado-Membro da UE ou do EEE, e que respeitem critérios de elegibilidade comuns, como a composição da tripulação e o registo dos navios.

60.  A Decisão SA.48929, de 6 de abril de 2018, aprova o regime português de “tonnage tax” como compatível com o mercado interno, nos termos do artigo 107.º, n.º 3, alínea c) do TFUE. 

61.  Essa aprovação não se limita a validar o regime português em abstrato, ou seja, ela insere-o num quadro europeu de regimes fiscais convergentes, sujeitos a critérios comuns definidos nas Orientações comunitárias sobre auxílios estatais ao setor marítimo.

62.  O Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13.11, incorpora expressamente esses critérios, nomeadamente: i) A possibilidade de os navios estarem registados noutros Estados-Membros da UE ou do EEE; ii) A exigência de gestão estratégica e comercial a partir de um Estado-Membro; iii) A valorização da composição da tripulação com cidadãos da EU ou do EEE.

63.  A proximidade entre a letra do Decreto-Lei n.º 92/2018 e os termos da Decisão SA.48929 da Comissão Europeianão é acidental: ela revela uma intenção legislativa de alinhamento com os critérios europeus de compatibilidade fiscal, o que reforça a admissibilidade de uma leitura que reconheça regimes estrangeiros equivalentes na senda do que vem sendo decidido na jurisdição arbitral . Este paralelismo textual e material entre o diploma nacional e a decisão europeia revela que o legislador português não pretendeu criar um regime isolado ou fechado, mas sim um regime compatível e interoperável com os demais regimes europeus equivalentes. A expressão “neste regime” a que a Requerida enfaticamente aludia, constante do artigo 2.º, n.º 2, deve ser lida à luz dessa vocação europeia, e não como uma cláusula de exclusão de regimes estrangeiros. É essencialmente aqui que a hermenêutica defendida por este tribunal diverge da que vem sendo sustentada pela AT e está reproduzida na Resposta, mas já antes havia sido explicitada na ficha doutrinária que consubstancia a Informação Vinculativa n.º 22424, com despacho de 06.11.2023 consultável inhttps://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/rendimento/cirs/Documents/PIV_22424.pdfe que esclarece que: i) A isenção prevista no artigo 4.º do DL n.º 92/2018 só é aplicável a rendimentos pagos por entidades que tenham exercido a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável previsto no próprio diploma; ii) A AT considera que não é suficiente que a entidade esteja sujeita a um regime de tonnage tax estrangeiro, i.e., é necessário que tenha aderido ao regime português; iii) Reforça que, por se tratar de uma norma de benefício fiscal, a interpretação deve ser restritiva e não admite aplicação analógica com regimes de outros Estados-Membros.

64.  Assim, a interpretação alargada e não restritiva não representa uma extrapolação arbitrária, mas antes uma leitura conforme com os princípios que resultam do acervo comunitário (ou do “acquis communautaire”, se se preferir o consagrado termo francês), nomeadamente os que decorrem da política comum de transportes, da liberdade de circulação de trabalhadores e da igualdade de tratamento entre cidadãos da União. O Decreto-Lei n.º 92/2018, ao incorporar critérios europeus e ao ser aprovado pela Comissão Europeia no âmbito da Decisão SA.48929, revela uma clara intenção de conformidade com esse acervo, o que legitima uma leitura que reconheça (para efeitos de aplicabilidade do regime português) regimes fiscais equivalentes em vigor noutros Estados-Membros. Ela é coerente com o espírito do diploma, com o contexto europeu em que foi aprovado e com a jurisprudência arbitral que reconhece essa abertura normativa. A decisão proferida no Processo n.º 355/2023-T do CAAD é paradigmática nesse sentido, ao afirmar que “o propósito do regime, ao nível europeu, ficaria desvirtuado se apenas os residentes do país proprietário da embarcação pudessem auferir do regime fiscal de isenção sobre as remunerações.”

65.  A limitação da isenção apenas a empresas portuguesas poderia ser vista, à luz do direito da União, como uma discriminação indireta, ou seja, como uma violação manifesta do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, previsto no artigo 18.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

66.  Por outro lado, a exclusão de tripulantes de navios operados por empresas europeias pode restringir a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de circulação de trabalhadores, previstas nos art.ºs 56.º e 45.º do TFUE.

67.  É claro que este tribunal não olvida a autonomia legislativa dos Estados-Membros, ou seja, cada Estado define os seus próprios regimes de “tonnage tax” e a aprovação pela Comissão de regimes de “tonnage tax”, nomeadamente, para efeitos de ajudas de Estado, não implica harmonização ou extensão automática entre países desses mesmos regimes de “tonnage tax”. 

68.  A tal propósito, diga-se que a Autoridade Tributária sustenta na sua Resposta que não existe um “tonnage tax europeu” harmonizado, mas sim uma multiplicidade de regimes nacionais aprovados pela Comissão Europeia no contexto das regras de auxílios de Estado. Invoca que, em matéria de tributação direta, os Estados-Membros mantêm ampla margem de conformação dos seus sistemas fiscais e que a dimensão europeia do regime português se limita à sua compatibilidade com o mercado interno, não implicando qualquer obrigação de reconhecimento recíproco entre regimes nacionais. 

69.  Este argumento é formalmente correto: o “tonnage tax” não é um imposto harmonizado pela União Europeia e cada Estado-Membro define os seus próprios critérios de elegibilidade, tributação e benefícios. 

70.  Contudo, a AT extrai dessa premissa uma conclusão que a este tribunal se apresenta como excessiva: que o regime português só pode aplicar-se a entidades sujeitas ao IRC em Portugal e que tenham exercido a opção pelo regime previsto no próprio Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13/11. 

71.  Essa leitura ignora que o diploma admite expressamente navios registados noutros Estados-Membros da UE ou do EEE e que o preâmbulo e os objetivos do regime visam promover o emprego marítimo qualificado em Portugal, mas também a competitividade da marinha mercante nacional num contexto europeu.

72.  Em jeito de conclusão se dirá que o direito europeu pode ser chamado à colação para interpretar o espírito e os objetivos do regime português de “tonnage tax”, especialmente no que respeita à não discriminação e à integração no mercado interno. Aceita-se também que a influência do direito europeu na tarefa interpretativa aqui realizada não pode ultrapassar os limites da legalidade tributária nacional, nem substituir os requisitos formais e materiais previstos no Decreto-Lei n.º 92/2018. Reconhece-se ainda que compatibilidade europeia reforça a legitimidade do regime, mas não alarga automaticamente o seu âmbito de aplicação.

73.  Nesta conformidade, resulta meridianamente claro para este tribunal que a posição do Requerente se revela, do ponto de vista jurídico e sistemático, mais sustentável e conforme com os princípios do direito da União Europeia e com o espírito do próprio diploma e não tanto com a sua letra. Desde logo, porquanto (e também) o Decreto-Lei n.º 92/2018 não exige que os navios estejam registados em Portugal, admitindo expressamente que possam estar registados noutros Estados-Membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu. Esta abertura geográfica revela uma vocação europeia do regime, que não se limita ao território nacional, mas visa promover a competitividade da marinha mercante portuguesa num contexto de integração europeia.

74.  Relevando ainda o facto de o regime português de “tonnage tax” ter sido previamente aprovado pela Comissão Europeia, através da Decisão SA.48929, de 6 de abril de 2018, como compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.º, n.º 3, alínea c) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Essa decisão insere o regime português num conjunto de regimes europeus equivalentes, sujeitos a critérios comuns definidos nas Diretrizes da Comissão sobre auxílios estatais ao setor marítimo. Entre esses critérios, destaca-se a exigência de que os navios sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-Membro da UE ou do EEE, o que inclui empresas como a C... A/S, sediada na Dinamarca.

75.  A posição da Autoridade Tributária assenta numa leitura restrita do artigo 2.º, n.º 2 do diploma, segundo a qual a isenção apenas se aplica a entidades que tenham exercido a opção pelo regime previsto “no presente decreto-lei”, ou seja, o regime português de “tonnage tax”. Esta interpretação é reforçada pela referência à Lei n.º 42/2018, que autorizou o Governo a legislar apenas para entidades com sede ou direção efetiva em Portugal e sujeitas a IRC. A AT sustenta ainda que, por se tratar de uma norma de benefício fiscal, a isenção deve ser interpretada restritivamente, não sendo admissível a analogia nem a extensão a regimes estrangeiros.

76.  Não obstante a força formal destes argumentos e em face do ante dito, a posição do Requerente revela-se, do ponto de vista jurídico e sistemático, mais sustentável e conforme com os princípios do direito da União Europeia e com o espírito do próprio diploma. 

77.  A leitura restritiva da AT, ao excluir empresas estrangeiras sujeitas a regimes equivalentes, desvirtua o propósito europeu do regime e pode configurar uma restrição injustificada à liberdade de circulação de trabalhadores e à liberdade de prestação de serviços, protegidas pelos artigos 45.º e 56.º do TFUE. Ao limitar a isenção apenas a empresas portuguesas, o Estado português estaria a criar uma barreira fiscal à mobilidade de trabalhadores marítimos, contrariando os objetivos da política comum de transportes e os princípios da não discriminação por nacionalidade (art.º 18.º do TFUE).

78.  Importando ainda sublinhar que esta interpretação alargada e sistemática tem sido acolhida de forma reiterada pela jurisprudência arbitral. Em decisões como as proferidas nos Processos n.º 290/2024-T, 355/2023-T e 667/2023-T, os tribunais arbitrais reconheceram que o artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 92/2018 deve ser interpretado no sentido de abranger também os navios registados e operados por empresas que tenham aderido a regimes de “tonnage tax” em vigor noutros Estados-Membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que equivalentes ao regime português, não vendo este tribunal razões substanciais, não obstante a controvérsia interpretativa, para dissentir da hermenêutica ali firmada.

79.  Devendo chamar-se aqui à colação as seguintes decisões arbitrais que aceitaram a posição do Requerente, i.e., entenderam que a isenção do art.º 4.º do DL n.º 92/2018 pode aplicar-se quando o empregador está noutro Estado-Membro e os navios preencham os requisitos enunciado naquele diploma e bem assim como as demais condições ali previstas se mostrem verificadas. Segue-se a identificação dos processos com uma breve síntese: 1. Processo n.º 355/2023-T - decisão de 23.01.2024. Síntese: O tribunal arbitral afirmou expressamente: “O propósito do regime, ao nível europeu, ficaria desvirtuado se apenas os residentes do país proprietário da embarcação pudessem auferir do regime fiscal de isenção sobre as remunerações.” Entendeu-se ali que o art.º 4.º do DL 92/2018 é aplicável a tripulantes de navios registados noutro Estado-Membro (Dinamarca no caso) desde que estejam preenchidos os requisitos do regime (navio elegível/opção pelo regime análogo; >50% tripulação UE/EEE; permanência ≥90 dias. Concluiu-se pela desconformidade das liquidações, julgando-se procedente o PPA; 2. Processo n.º 667/2023-T - decisão de 24.04.2024. Síntese: declarou-se que o navio em causa era elegível para efeitos do regime de “tonnage tax” e que o Requerente reuniu o requisito de permanência ≥90 dias, aplicando-se, por isso, a isenção do art.º 4.º do DL 92/2018; 3. Processo n.º 646/2024-T - decisão de 26.03.2025. Síntese: reafirma-se que o art.º 4.º do DL 92/2018 se interpreta como abrangendo navios registados noutro Estado-Membro quando exista um regime análogo de “tonnage tax” e quando se verifiquem os restantes requisitos (incluindo a composição da tripulação). 

80.  Adequado se mostrando trazer agora à discussão a argumentação esgrimida pela Requerida na sua Resposta e baseada na limitação da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 42/2018.

81.  Diga-se, desde já, que ela pode ser rebatida com uma leitura sistemática e constitucionalmente conforme da relação entre a autorização legislativa e o conteúdo normativo do Decreto-Lei n.º 92/2018. Vejamos,

82.  É certo que a Lei n.º 42/2018, de 9 de agosto, conferiu ao Governo autorização legislativa para criar um regime especial aplicável a pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em Portugal, sujeitas a IRC e que exerçam atividades comerciais relacionadas com o transporte marítimo. No entanto, essa delimitação diz respeito ao âmbito subjetivo das entidades beneficiárias do regime de “tonnage tax” e não necessariamente ao universo dos trabalhadores marítimos que podem beneficiar da isenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018.

83.  A isenção de IRS prevista nesse artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018 dirige-se aos tripulantes, pessoas singulares residentes em Portugal e não às entidades operadoras dos navios. 

84.  Ademais, o facto de o regime de “tonnage tax” se aplicar apenas a empresas sujeitas a IRC e que exerçam actividades comercias relacionadas com o transporte marítimo, não impediu que o legislador, no mesmo diploma, tenha adotado uma abordagem europeia quanto à elegibilidade dos navios e embarcações, como, aliás, se verifica no artigo 2.º, n.º 2, que admite expressamente navios registados noutros Estados-Membros da UE ou do EEE.

85.  A interpretação restritiva da AT, ao excluir a possibilidade de reconhecimento de regimes equivalentes estrangeiros, confunde o âmbito da autorização legislativa com o alcance material da norma fiscal aplicável aos trabalhadores. 

86.  O legislador não ultrapassou os limites da autorização ao prever que navios registados noutros Estados-Membros possam ser considerados para efeitos de isenção, desde que operados por entidades sujeitas a regimes de “tonnage tax” aprovados pela Comissão Europeia.

87.  Aliás, essa abertura normativa encontra respaldo na Decisão SA.48929 da Comissão Europeia, que reconhece o regime português como compatível com o mercado interno, no contexto de um quadro europeu de regimes fiscais convergentes. A interpretação ampla, ao reconhecer a equivalência entre regimes aprovados pela Comissão, não amplia o âmbito subjetivo da autorização legislativa, mas apenas realiza os objetivos materiais e sistemáticos do diploma, em conformidade com os princípios do acervo comunitário.

88.  Por fim, importa sublinhar que a isenção de IRS prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018 visa beneficiar trabalhadores residentes em Portugal, independentemente da nacionalidade da entidade que lhes paga os rendimentos, desde que verificados os requisitos legais. Negar essa possibilidade com base numa leitura excessivamente restritiva da autorização legislativa compromete a eficácia do regime e frustra os objetivos de competitividade e integração europeia que o diploma visa prosseguir.

89.  Isto dito, falece esta parte do argumentário da Requerida.

90.  Volvendo agora para o tema da prova, a Requerida admite que, mesmo vingando a interpretação mais ampla do artigo 4.º do DL 92/2018, o Requerente não apresentou prova suficiente dos requisitos legais exigidos. Sustentando a Requerida que não foi demonstrado, com documentos emitidos por autoridades fiscais competentes, que a empresa “C... A/S” tenha aderido ao regime português de “tonnage tax”. Também não foi comprovado que os navios em causa estejam abrangidos por esse regime, nem que pelo menos 50% da tripulação tenha nacionalidade portuguesa, da UE, do EEE ou de país de língua oficial portuguesa, como exige o artigo 3.º, n.º 3 do diploma. Vejamos,

91.  É certo que o Requerente, in casu, não apresentou qualquer documento emitido por autoridade fiscal dinamarquesa que comprove, de forma inequívoca, que a empresa “C... A/S” se encontra sujeita ao regime de “tonnage tax” dinamarquês. 

92.  A única prova apresentada consiste numa declaração da própria empresa, sem qualquer autenticação oficial e numa declaração da E..., entidade privada que representa os navios em causa, indicando as datas de embarque e desembarque e o número de dias embarcado. Nenhuma destas declarações tem força probatória bastante nos termos do artigo 370.º do Código Civil, que exige que documentos com valor oficial sejam emitidos por autoridade competente ou autenticados.

93.  Os documentos juntos aos autos são declarações de entidades privadas — nomeadamente da D..., que adquiriu a C...— e também não têm valor probatório bastante nos termos do artigo 370.º do Código Civil. A declaração apresentada pela empresa dinamarquesa, embora afirme a sujeição ao regime de “tonnage tax”, não é um certificado oficial emitido por autoridade fiscal competente da Dinamarca e não demonstra formalmente que o regime abrange os navios em que o contribuinte embarcou. Além disso, não há qualquer prova de que este regime seja efetivamente análogo ao regime português, nem de que os critérios relativos à composição da tripulação e à duração do embarque foram cumpridos.

94.  Esta ausência de prova oficial impede, reconheça-se, a AT de verificar, com segurança, se os navios em causa estão efetivamente abrangidos por um regime análogo ao previsto no DL 92/2018 e se a empresa empregadora aderiu formalmente a um tal regime dinamarquês. 

95.  Ademais, a incerteza quanto à natureza e extensão do regime estrangeiro não pode deixar de comprometer a aplicação de um benefício fiscal nacional, cuja verificação depende de elementos externos não controláveis pela administração fiscal portuguesa.

96.  Outro requisito essencial do regime de isenção previsto no artigo 3.º, n.º 3 do DL 92/2018, é a exigência de que pelo menos 50% da tripulação dos navios seja composta por cidadãos portugueses, da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou de países de língua oficial portuguesa. A ausência de prova sobre a composição da tripulação é particularmente grave. Nada se diz na prova apresentada sobre este ponto, o que tornava impossível à AT a verificação objetiva de um requisito legal essencial. Este critério visa garantir que o benefício fiscal se traduz em efetiva promoção do emprego europeu ou lusófono no setor marítimo. No entanto, o Requerente não apresentou qualquer documento oficial ou lista de tripulantes que permita aferir a nacionalidade da tripulação dos navios “...” e “...”. 

97.  Para além disso, a ausência de documentos oficiais suscita dificuldades práticas significativas de controlo. 

98.  A Autoridade Tributária não dispõe de meios para auditar ou confirmar a veracidade das declarações empresariais estrangeiras, nem para certificar que os navios específicos estavam sujeitos ao regime alegado. Os regimes de “tonnage tax” variam entre Estados-Membros em termos de requisitos, abrangência de frota e condições de aplicação, pelo que não é suficiente assumir uma propalada equivalência normativa. A alegação de que uma empresa está sujeita a um regime de “tonnage tax” estrangeiro exige demonstração concreta de que esse regime é materialmente análogo ao português e que os navios em causa estão efetivamente abrangidos.

99.  A AT não dispõe de mecanismos próprios para verificar esta informação junto de entidades estrangeiras, o que tornava impossível o controlo da veracidade do alegado. 

100.                Esta limitação prática é particularmente crítica quando se trata de um benefício fiscal, cuja atribuição deve ser transparente, objetiva e verificável.

101.                E isto dito, meridianamente se conclui que a ausência de prova oficial e verificável quanto àqueles pressupostos de aplicabilidade da isenção prevista no n.º 1 do art.º 4.º do DL n.º 92/2018, impede a Autoridade Tributária de exercer controlo efetivo sobre tais pressupostos, o que compromete a segurança jurídica e a integridade do sistema. Estas dificuldades práticas de prova e controlo não são meramente formais: são estruturais e substanciais. A concessão de benefícios fiscais exige um elevado grau de certeza e verificabilidade, sob pena de se abrir a porta a situações de erosão da base tributável e concorrência fiscal desleal. Permitir a aplicação de uma isenção com base em documentação não oficial, ou em presunções não verificáveis, comprometeria a eficácia do sistema de controlo tributário e criaria assimetrias injustificadas entre empresas nacionais e estrangeiras.

102.                A aceitação de documentos não oficiais, ou a presunção de que regimes estrangeiros são equivalentes ao português sem prova formal, abre a porta a uma erosão da base tributável nacional. Permitir que contribuintes residentes em Portugal beneficiem de isenções com base em regimes fiscais estrangeiros, sem controlo direto da AT, cria um precedente que pode ser explorado de forma abusiva.

103.                A posição da Autoridade Tributária, ao exigir prova robusta, oficial e verificável da sujeição da empresa ao regime português de “tonnage tax” (ou, pelo menos, a um regime estrangeiro equivalente com reconhecimento formal) não se limita a uma leitura restrita da lei. Trata-se de uma exigência legítima de rigor administrativo e de salvaguarda da legalidade tributária, indispensável à correta aplicação de benefícios fiscais e à proteção da integridade do sistema fiscal. A ausência de prova oficial e a impossibilidade prática de controlo eficaz tornam inviável a concessão da isenção pretendida, sob pena de se abrir um precedente que fragiliza a integridade do sistema fiscal português.

104.                Assim, mesmo aceitando este Tribunal Arbitral Singular uma interpretação mais ampla do artigo 4.º do DL 92/2018, a fragilidade da prova apresentada pelo Requerente e a impossibilidade de controlo por parte da AT, seriam, por si só, razões suficientes para negar provimento ao pedido. 

105.                A fragilidade da prova consubstancia-se ainda numa divergência objetiva entre os documentos apresentados. Vejamos,

106.                A declaração da empresa dinamarquesa (referida no ponto F) do probatório) indica que o Requerente esteve embarcado, em 2023, durante 128 dias; enquanto a declaração da E... (referida no ponto E) do probatório) aponta para 213 dias no mesmo período temporal, ou seja, vislumbrando-se aqui uma diferença de 85 dias. 

107.                Embora ambos os totais ultrapassem o mínimo legal de 90 dias (não o olvida este tribunal), cumprindo-se, assim, o requisito previsto no n.º 3 do art.º 4.º do DL n.º 92/2018, esta discrepância revela inconsistência/incongruência na prova documental, afetando a sua credibilidade e dificultando a verificação por parte da AT. Nenhum daqueles documentos é emitido por autoridade pública ou fiscal e ambos são declarações privadas. A divergência pode indiciar erros de registo, omissões ou falta de coordenação entre entidades que deveriam prestar informação convergente. Em matéria tributária, a prova deve ser clara, verificável e suficiente e essa exigência, entende este tribunal, não se compadece com inconsistências documentais desta natureza.

108.                Por outro lado, o Requerente invoca a Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Dinamarca, sustentando que os rendimentos auferidos a bordo de navios explorados por empresa dinamarquesa devem ser tributados exclusivamente na Dinamarca. 

109.                A Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (doravante CDT), foi assinada a 14 de dezembro de 2000. Esta CDT foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 6/2002 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 5/2002, ambos publicados no Diário da República, I Série, n.º 46, de 23 de fevereiro de 2002. No seu artigo 15.º, n.º 3, a CDT estatui como segue: “Não obstante as disposições anteriores deste artigo, as remunerações de um emprego exercido a bordo de um navio ou de uma aeronave explorado no tráfego internacional por uma empresa de um Estado Contratante podem ser tributadas nesse Estado.” Assim sendo, a CDT atribui competência tributária à Dinamarca para tributar os rendimentos aqui em causa, mas não exclui automaticamente a competência de Portugal enquanto Estado de residência, ou seja, há aqui uma competência concorrencial entre o reino da Dinamarca e o Estado português. Portugal continua a poder tributar esses rendimentos, desde que aplique o mecanismo de eliminação da dupla tributação previsto na CDT, o que pressupõe que o Requerente demonstre que os rendimentos foram efetivamente tributados na Dinamarca, o que não se verifica nos autos.

110.                O facto de o Requerente ser residente fiscal em Portugal reforça, aliás, a legitimidade da tributação por parte da Autoridade Tributária. Nos termos do artigo 15.º do Código do IRS, os residentes em território nacional são tributados pela totalidade dos seus rendimentos, independentemente da origem geográfica dos mesmos. A tributação universal aplica-se por defeito e qualquer afastamento dessa regra exige prova robusta e inequívoca, o que, in casu, não foi apresentado. 

111.                O sujeito passivo que pretende beneficiar da isenção prevista no art.º 4.º do Decreto-lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, tem, portanto, o ónus de provar documentalmente os factos constitutivos do seu direito, em conformidade com o previsto no artigo 74.º da LGT. Em matéria de isenções, o ónus da prova recai inteiramente sobre o contribuinte, que deve demonstrar, de forma clara, objetiva e documentalmente comprovada, que preenche todos os requisitos legalmente exigidos para o efeito. O sujeito passivo que pretende beneficiar da isenção aqui em causa, tem, portanto, o ónus de provar documentalmente os factos constitutivos do seu direito, nos termos gerais do direito tributário português, conforme previsto no artigo 74.º da LGT. Em concreto, a prova exigida deve abranger três dimensões principais: (i) a sujeição do empregador ao regime fiscal aplicável; (ii) a efetiva abrangência dos navios pelo regime; e (iii) o cumprimento dos requisitos quantitativos e temporais exigidos para os tripulantes, nomeadamente, a composição da tripulação e os períodos de embarque. A ausência de documentação oficial que comprove estes elementos inviabiliza a concessão da isenção, sendo insuficiente para o efeito a apresentação de declarações da própria empresa estrangeira ou de documentos internos. Da jurisprudência arbitral já firmada (por exemplo, processos n.º 667/2023-T e 290/2024-T), pode intuir-se que a interpretação ampla em relação a regimes estrangeiros carece de fundamentação robusta e de meios de prova fidedignos.

112.                Em síntese, a posição do Requerente é juridicamente mais sustentável no plano abstrato, por estar alinhada com os princípios europeus e com a jurisprudência arbitral consolidada. No entanto, a insuficiência da prova apresentada no caso concreto impede a aplicação da isenção pretendida. A tensão entre uma leitura europeísta e a exigência de rigor probatório não pode ser resolvida em desfavor da legalidade tributária. 

113.                Sem prova bastante, não pode o Requerente pretender fruir o benefício fiscal previsto no artigo 4.º do DL 92/2018.

114.                A aplicação concreta da isenção exige mais do que uma interpretação sistemática: exige prova bastante e verificável. 

115.                E é precisamente neste ponto que a posição do Requerente enfrenta fragilidades relevantes, tal como acima sobejamente se demonstrou.  

116.                As dificuldades práticas de prova estendem-se à própria verificação da abrangência do regime: regimes estrangeiros de “tonnage tax” variam significativamente em termos de requisitos e efeitos. Um concreto regime pode impor condições distintas quanto à frota abrangida, à composição mínima de tripulação ou à forma de opção tributária, tornando complexa a comparação direta com o regime português. Na aplicação da lei, deve assegurar-se que só se concede a isenção quando os elementos essenciais são efetivamente equivalentes; caso contrário, estaria a extrapolar-se o alcance do diploma legal, violando o princípio da legalidade tributária e o requisito de tipicidade. Além disso, há obstáculos administrativos e internacionais que reforçam a necessidade de exigir prova oficial. A cooperação administrativa entre Estados-Membros, embora prevista em instrumentos da União Europeia e em convenções internacionais, implica formalidades, traduções, legalizações e prazos muitas vezes extensos, sendo insuficiente a apresentação de declarações internas sem validação oficial. 

117.                Perante estas circunstâncias, era legítimo e proporcional que se exigisse que a prova fosse apresentada em documentos oficiais, certificados por autoridades competentes, capazes de demonstrar, de forma objetiva e verificável, a sujeição do empregador ao regime, a abrangência dos navios, a composição da tripulação e os períodos de embarque. A ausência de tais elementos constituía fundamento suficiente para a AT indeferir o pedido de isenção, não apenas pelo risco de fraude, mas também pelo imperativo de segurança jurídica e pela necessidade de controlo efetivo do cumprimento das normas fiscais; tal como, aqui, constitui fundamento para se julgar improcedente o pedido arbitral. 

118.                Em jeito de conclusão se dirá que a exigência probatória decorre do texto legal, da tipicidade do benefício, do princípio da legalidade tributária, da dificuldade/impossibilidade prática de controlo sobre regimes estrangeiros e da necessidade de se prevenirem fraudes e abusos. 

119.                A posição da AT, fundamentada na insuficiência probatória apresentada pelo Requerente, encontra suporte sólido no ordenamento jurídico português e constitui medida proporcional e adequada à proteção do erário público. Sem prova oficial robusta, não se pode reconhecer a isenção, garantindo assim que apenas os sujeitos de direito expressamente abrangidos pelo regime de “tonnage tax” beneficiem do correspondente tratamento fiscal.

120.                Assim, mesmo aceitando-se, como o faz este tribunal arbitral singular, uma interpretação mais ampla do artigo 4.º do DL 92/2018, a fragilidade da prova apresentada pelo Requerente e a impossibilidade de controlo por parte da AT, seriam, por si só, razões suficientes para negar provimento ao pedido.

121.                Face ao exposto, e por não se encontrarem preenchidos os requisitos legais para a concessão da isenção de IRS prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, julga-se o pedido de pronúncia arbitral improcedente, mantendo-se integralmente a liquidação de IRS impugnada.


V. DECISÃO:

 

Face ao exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide:

 

A)   Julgar improcedente o pedido formulado na presente ação arbitral, fundado na ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, n.º 2024..., relativo ao ano de 2023, do qual resultou, de acordo com a correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2024..., o valor a pagar de IRS e JC que se cifra em 3.950,57 €, com a consequente manutenção na ordem jurídica daquelas liquidações ora impugnadas;  

B)    Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida à restituição à Requerente do valor correspondente; 

C)    Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI. VALOR DO PROCESSO:

 

Fixo o valor do processo em 3.950,57 € em conformidade com o disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão do art.º 3º do regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. CUSTAS:

 

Fixo o valor das Custas em 612,00 €, calculadas em conformidade com a Tabela I do regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária em função do valor do pedido (sendo que, tal valor foi o indicado pela Requerente no PPA e não contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações sindicadas) a cargo do Requerente,  nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e ainda art.º 4.º, n.º 5 do RCPAT e art.º 527, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2025.

 

O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do n.º 5, do art.º 131.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão da alínea e), do n.º 1, do art.º 29.º do RJAT.

 

 

 

 

O Árbitro,

 

(Fernando Marques Simões)