Sumário:
I. Não é juridicamente possível anular o ato impugnado que, por outra via (administrativa) já não existe na ordem jurídica, pois foi anulado administrativamente.
II. Não subsiste interesse no prosseguimento da lide porquanto a utilidade do controlo jurisdicional sobre a legalidade da liquidação impugnada mostra-se alcançada por via do mencionado despacho de revogação.
III. A inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido alcançado por outro meio.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Alexandra Gonçalves Marques, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral, em formação singular, constituído em 12 de Setembro de 2025, decide:
I. Relatório: das partes e do objeto do processo
1. A Requerente, A..., NIF..., residente na ... ...-..., Madrid, Espanha, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante, RJAT), e deduzir pedido de pronúncia arbitral, nos termos que constam da petição inicial apresentada, para apreciar a legalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2023..., do ano de 2022, no valor total de imposto a pagar de 99.555,40, bem como da reclamação graciosa deduzida contra aquele ato.
Fundamenta o seu pedido do seguinte modo:
A Requerente, residente fiscal em Espanha, foi notificada da liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022, que apurou o valor a pagar de 99.555,40 euros, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS).
O rendimento declarado pela Requerente que deu origem à liquidação em causa diz respeito a mais-valias imobiliárias auferidas pela Requerente pela alienação de direitos reais sobre bens imóveis localizados em território nacional.
Alega a Requerente que da liquidação em causa resulta o pagamento de imposto superior ao devido. Com efeito, as mais-valias declaradas, no montante de 355.555,00 Euros, foram sujeitas a uma tributação autónoma à taxa de 28%, da qual resultou o valor a pagar a título de IRS de 99.555,40 €. Porém, as mais-valias auferidas pela Requerente deveriam ter sido consideradas em 50% do seu valor para efeitos de aplicação da taxa. Não tendo a liquidação sido efetuada, nestes termos, ocorreu um excesso de liquidação.
Conclui, assim, que a liquidação é ilegal e deve ser anulada.
2. A AT veio apresentar requerimento a informar os autos que em 25-09-2025, por despacho da Sub-Diretora Geral da AT – Área de Gestão Tributária dos Impostos sobre o Rendimento (IR), foi proferido “despacho de revogação do ato parcialmente contestado, concernente à liquidação de IRS n.º 2023..., respeitante ao período de tributação de 2022, no montante de EUR 49.777,70.”.
3. Na “Informação”, à qual o despacho de revogação adere, consta o seguinte (cf. pontos 11 a 16):
11. A lei, à data dos factos, dispunha que o saldo apurado entre as mais-valias e menos-valias imobiliárias,quando auferido por residentes em território português, era sujeito a englobamento obrigatório, sendo, como tal, tributado às taxas progressivas previstas no n.0 1 do artigo 68.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das PessoasSingulares ("IRS"), em 50% do seu valor, por força do disposto na alínea b) do n.0 2 do 43.º do Código do IRS e, quando auferido por não residentes em território português, era tributado, na sua totalidade, à taxa autónoma de 28%, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.0 do Código do IRS, sem prejuízo dos residentes noutroEstado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (com intercâmbio de informação em matéria fiscal) poderem optar pelo englobamento dos rendimentos, nas mesmas condições que eram aplicáveis aos residentes, considerando-se para efeitos de determinação da taxa todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território.
12. Porém, a jurisprudência tem vindo a considerar que o referido quadro legal violava os artigos 0
63. e 65.0 do Tratado de Funcionamento da União Europeia ("TFUE") por constituir uma discriminação negativa suscetívelde restringir a circulação de capitais, com destaque para o Acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunalde Administrativo ("STA") de 09.12.2020, proferido no âmbito do Processo n.º 75/20.6BALSB, bem como para a Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia ("TJUE") de 18.03.2021, proferida no âmbito do Processo C-388/19 (Caso MK).
13. Ora, considerando ainda que nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 68.º ·A da Lei Geral Tributária("LGT"), a administração tributária deve rever as orientações genéricas quando, entre outros fatores, exista acórdãode uniformização de jurisprudência proferido pelo STA.
14. Assim, nos procedimentos administrativos e processos judiciais pendentes, no quadro normativo em que ainda não tinha entrado em vigor a alteração legislativa introduzida pela Lei n.0 24-D/2022, de 30 de dezembro, foi, por despacho do SEMF nº 177/2021-XXII, de 04/06/2021, decidido aplicar, caso a caso, o disposto no nº 2 do artigo43° do CIRS aos sujeitos passivos não residentes, mantendo-se a tributação autónoma à taxa especial de 28%.
15. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, é o artigo 43.0 da Lei Geral Tributária (LGT) que define ospressupostos do direito aos mesmos a favor do contribuinte, consignando, na sua redação atual, sob a epígrafe «Pagamento indevido da prestação tributária»:
"1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houveerro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido..."
16. Nos termos do n.0 5 do artigo 13.º do RJAT, são atribuídos à apresentação do pedido de constituição detribunal arbitral os efeitos da apresentação de impugnação judicial, pelo que são igualmente devidos jurosindemnizatórios quando se determine, em processo arbitral, que houve erro imputável aos serviços de que tenharesultado pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 7 de julho de 2025.
5. Em 8 de julho de 2025, o pedido foi aceite pelo Presidente do CAAD e, nesse mesmo dia, automaticamente, notificado à AT.
6. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitra, que comunicou a aceitação.
7. No dia 25 de agosto de 2025, as Partes foram notificadas da designação efetuada, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e e), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
8. O Tribunal Arbitral ficou constituído em 12 de setembro de 2025.
9. Em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, em 15 de setembro de 2025 foi proferido despacho arbitral a notificar a AT para, querendo, apresentar resposta.
10. Em 6 de outubro de 2025, a AT apresentou requerimento a informar os autos da revogação do ato.
11. Por despacho de 7 de outubro de 2025, a Requerente foi notificada para informar se pretendia prosseguir com o pedido de pronúncia arbitral, tendo em conta o despacho de revogação da liquidação de IRS, referente ao ano 2022.
12. Em 7 de outubro de 2025, a Requerente veio aos autos juntar cópia do despacho de revogação, e dizer que:
“2. A referida Decisão ao anular o ato de liquidação em contenda nos presentes autos, impele a natural inutilidade superveniente da lide por falta de objeto do Processo.
3. De qualquer forma, a Requerente vem pelo presente requerer ao Tribunal Arbitral a prolação de uma decisão final que determine não só a referida inutilidade superveniente da lide, assim como homologue de forma clara a totalidade dos termos constates da decisão da Autoridade Tributária, quanto ao pagamento de juros desde a data do pagamento da prestação tributária até à emissão da nota de crédito a seu favor bem como quanto à obrigação de restituição integral do montante de imposto liquidado em excesso no valor de €49.777,70.
4. Juros esses que ascendem, à data, ao valor de € 1.634,09, assim como todos os que se venham a contar até ao integral cumprimento da decisão ora em causa.
13. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
14. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
15. O processo não enferma de nulidades.
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Da Inutilidade Superveniente da Lide
Considerando que:
a) Em 7 de julho de 2025, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, nos termos que constam da petição inicial apresentada, para apreciar a legalidade do ato de liquidação de liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022, que apurou o valor a pagar de 99.555,40 euros (cf. pedido de constituição de tribunal arbitral).
b) Notificada para apresentar Resposta, a AT veio apresentar requerimento, no qual informa os autos que o ato impugnado foi revogado, por despacho da Sub-Diretora Geral da AT (cfr. requerimento da Requerida).
c) A Requerente juntou aos autos despacho de revogação do ato impugnado, com base em Informação dos Serviços (cf. antecedentes pontos 2 e 3).
d) A Requerente veio declarar que, atendendo à revogação do ato impugnado, a instância deve ser extinta por inutilidade superveniente da lide (cf. requerimento de 7 de outubro de 2025).
Cabe concluir, por um lado, que não é juridicamente possível anular o ato impugnado que, por outra via (administrativa) já não existe na ordem jurídica, pois foi anulado administrativamente por despacho proferido pela Sub-Diretora Geral da AT, com data de 25 de setembro de 2025. Como tal, o juízo acerca da sua ilegalidade que viesse a ser proferido, com a consequente anulação do mesmo, não produziria qualquer efeito útil. Pelo que, não resta outra alternativa senão julgar a presente instância extinta por impossibilidade superveniente da lide.
Por outro lado, constata-se que o resultado pretendido pela Requerente com o pedido formulado já foi concretizado, na pendência da lide. Donde, cumpre concluir que a presente instância é, supervenientemente, inútil, em termos que conduzem, igualmente, à extinção da lide.
A este respeito pronunciou-se já́ o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão de 30 de Julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 0875/14, no qual referiu que:
“A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277.º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”.
A propósito da inutilidade da lide, a Requerente acrescenta que “vem pelo presente requerer ao Tribunal Arbitral a prolação de uma decisão final que determine não só a referida inutilidade superveniente da lide, assim como homologue de forma clara a totalidade dos termos constates da decisão da Autoridade Tributária, quanto ao pagamento de juros desde a data do pagamento da prestação tributária até à emissão da nota de crédito a seu favor bem como quanto à obrigação de restituição integral do montante de imposto liquidado em excesso no valor de €49.777,70. “.
Ora, porque a Requerente pretendia, com o pedido de constituição do tribunal arbitral, que fosse apreciada a legalidade do ato de liquidação de IRS e obter a sua anulação, com as consequências legais que decorrem dessa anulação: restituição do imposto pago em excesso, acrescida de juros, mostra-se que esses efeitos foram já obtidos por via administrativa, i.e., por via da decisão da Sub-Diretora Geral da AT, com data de 25 de setembro de 2025, que procedeu à revogação parcial do ato de “liquidação de IRS n.º 2023..., respeitante ao período de tributação de 2002, no montante de 49.777,70 Euros, com a consequente correção da liquidação de IRS referente ao ano de 2022, bem como o deferimento do pedido de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º do LGT”.
Assim sendo, não subsiste interesse no prosseguimento da lide porquanto a utilidade do controlo jurisdicional sobre a legalidade da liquidação impugnada foi alcançada por outra via. E consequentemente, os efeitos dessa revogação administrativa – restituição do imposto pago e pedido de juros indemnizatórios – mostram-se alcançados por via do mencionado despacho de revogação.
Em face do exposto, entende este Tribunal que se verifica a inutilidade superveniente da lide quanto à apreciação da legalidade e consequente anulação do ato tributário impugnado pela Requerente, de tal forma que se julga extinta a instância nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, alínea e), do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Da responsabilidade por custas
Uma vez que a revogação do ato sindicado nos presentes autos foi efetuada na pendência dos presentes autos, cabe concluir que, quer a impossibilidade, quer a inutilidade da lide, são imputáveis à Requerida, por força do disposto no artigo 536.º, n.º 3 e 4 do CPC, pelo que lhe cabe a responsabilidade pelo pagamento do valor integral das custas.
II. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi, artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
b) Condenar a Requerida nas custas do processo, nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT, conjugado com o artigo 536.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
III. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 49.777,70 Euros (quarenta e nove mil, setecentos e setenta e sete euros e setenta cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
IV. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 2.142,00 Euros (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4 do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 20 de outubro de 2025.
A Árbitra,
(Alexandra Gonçalves Marques)