SUMÁRIO:
I. A preterição de formalidades, tais como a não notificação do sujeito passivo para cumprir a entrega de uma declaração de rendimentos eventualmente em falta e a não notificação desse sujeito passivo para exercer o seu direito de audição, prévias à emissão de atos de liquidação de imposto e de juros compensatórios, acarretam a anulabilidade desses atos.
II. Não sendo possível subsumir-se o caso em análise no elenco das situações enunciadas no artigo 163.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo, não é de aplicar o princípio de aproveitamento do ato administrativo.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Júlio Tormenta e Ana Rita do Livramento Chacim, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., titular do número de identificação fiscal ..., residente em ...- ..., ...-..., Letónia (“Requerente”), vem, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e dos 10.º e seguintes, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o qual aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024..., referente ao ano de 2020, que apurou o valor de imposto a pagar de € 358.398,73, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., que apurou um montante de imposto a pagar no valor de € 47.917,41, no valor total a pagar de € 406.316,14.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 10.02.2025 pelo Presidente do CAAD e notificado à AT nos termos regulamentares.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do RJAT, o Conselho Deontológico, designou os árbitros do Tribunal Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a sua aceitação, nos termos legalmente previstos.
4. Em 01.04.2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, e artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
5. Desta forma, o Tribunal Coletivo foi regularmente constituído em 22.04.2025, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
6. Por despacho arbitral de 23.04.2025, foi cumprido o disposto no artigo 17.º, do RJAT, tendo a Requerida sido notificada para apresentar a sua Resposta e juntar o processo administrativo.
7. A 27.05.2025, a AT apresentou a sua Resposta, juntando aos autos um único documento que integrará o processo administrativo, concluindo pela improcedência do pedido por não provado e, consequentemente, devendo decidir-se pela sua absolvição de todos os pedidos.
8. A 11.06.2025, o Requerente, no seguimento da notificação da Resposta da AT, veio pronunciar-se sobre a Resposta da AT.
9. Por despacho de 03.07.2025 proferido pelo presente Tribunal Arbitral, a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, foi dispensada, sendo facultada às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, facultativas, por prazo simultâneo de 20 (vinte) dias contados da data da notificação desse despacho.
10. Por despacho de 13.08.2025 proferido pelo presente Tribunal Arbitral, notificou-se a Requerida para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder à junção aos autos da cópia completa do processo administrativo.
11. A 09.09.2025, o Requerente apresentou as suas alegações finais. A Requerida não apresentou alegações finais, nem procedeu à junção aos autos da cópia completa do processo administrativo.
II. POSIÇÃO DAS PARTES
II.1 CAUSA DE PEDIR DO REQUERENTE
12. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou o seguinte:
a. O Requerente é uma pessoa singular de nacionalidade portuguesa, residente fiscal na Letónia desde 27.6.2022;
b. Desde 05.01.2022, exerce a atividade de comissário de bordo, mantendo vínculo laboral com a B... AS (“B...”);
c. Em fevereiro de 2003, o Requerente celebrou um contrato de trabalho, para a categoria de assistente de bordo, com a transportadora aérea ..., sedeada nos Emirados Árabes Unidos (“EAU”);
d. O Requerente mudou-se para o Dubai, um dos EAU, onde viveu entre os anos de 2003 e 2020 (em concreto, até 07.10.2020);
e. Por falta de conhecimento, nos primeiros anos de residência, e por inércia, o Requerente nunca alterou a sua residência fiscal de Portugal, para o Dubai, nem apresentou as declarações de rendimento de IRS, em Portugal, nesses anos de 2003 a 2020;
f. O vínculo laboral com a C...vigorou entre 13.02.2003 e 10.09.2020, data em que, por motivo da pandemiaCovid, cessaram as funções por ele exercidas, como “flight purser”, ou chefe de cabine;
g. Enquanto residente no Dubai, foi titular das autorizações de residência necessárias para a permanência legal no país (“residence permit”) e suportou um conjunto de gastos inerente à sua permanência no Dubai, referentes àhabitação própria e permanente que aí adquiriu;
h. Face ao despedimento da C..., com efeitos a 10.09.2020, à impossibilidade de renovar a sua autorização de residência, que caducava em novembro de 2020, bem como à situação pandémica que se vivia em 2020, o Requerente decidiu voltar para Portugal;
i. Apresentou junto da Embaixada de Portugal em Abu Dhabi, o pedido de isenção de direitos aduaneiros para importação dos bens pessoais para Portugal, tendo-lhe sido emitido pela referida Embaixada, um certificado de residência e um certificado de bagagem, ambos datados de 13.10.2020;
j. Entre 07.10.2020 e o início de janeiro de 2022 o Requerente residiu, efetivamente, em Portugal, tendo celebrado, em 07.04.2021, um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 12 meses, com a D..., Lda., para exercer as funções de customer adviser num call center daquela entidade;
k. Em 08.04.2022, apresentou a respetiva declaração de rendimentos referente ao ano de 2021;
l. Em 27.06.2022, o Requerente alterou a sua residência fiscal para a Letónia, onde vive desde janeiro de 2022, em resultado de ter celebrado um contrato de trabalho com a. B...;
m. Tendo sido questionado pela AT, em 08.09.2024 e 24.10.2024, sobre a entrega da declaração de rendimentos de IRS Modelo 3, do ano de 2020, por a mesma não constar da base de dados da AT, o Requerente informou que não tinha “qualquer informação para poder dar cumprimento a esta obrigação fiscal”;
n. Em resposta, os Serviços da AT esclareceram, em 11.10.2024, que “os rendimentos provêm de juros/dividendos oriundos do estrangeiro, pelo que deve entregar anexo J com os mesmos”;
o. O Requerente não era, em 2020, sócio/acionista de qualquer empresa, pelo que não poderia ter recebidoquaisquer dividendos de qualquer sociedade em 2020, mantendo uma conta poupança no ... bank, em 2020, da qual recebeu juros no montante de 544.03 Dirhams dos EAU ou “AED” (equivalente a € 120,49), e depósito a prazo, também junto do ... bank, do qual recebeu juros no montante de 2,108.61 AED (equivalente a € 467,86), num total de juros recebidos em 2020 de € 588,35;
p. Através do seu pai, foi solicitada e realizada, em 07.11.2024, uma reunião presencial com os serviços da AT, tendo aquele sido informado que estes serviços não estavam autorizados a dar informações sobre os rendimentos a declarar, e que tais esclarecimentos teriam de ser prestados pela Unidade dos Grandes Contribuintes da AT;
q. Antes da notificação das liquidações de IRS e de juros compensatórios controvertidas nos presentes autos, o Requerente não recebeu qualquer notificação da AT;
r. Em 21.11.2024, o Requerente foi notificado, no seu domicílio fiscal, na Letónia, da liquidação de juros compensatórios, no valor de € 47.917,41, datada de 06.11.2024, e, apenas em 04.12.2024, foi notificado, da liquidação de IRS sob contestação, no valor de € 358.398,73, datada de 04.11.2024, as quais totalizam o montante a pagar de € 406.316,14;
s. As liquidações de IRS e juros compensatórios não foram pagas no prazo concedido pela AT para o efeito (até 16.12.2024), tendo, em consequência, sido instaurado o competente processo de execução fiscal, que corretermos sob o n.º ...2025...;
t. Verifica-se a preterição de formalidades prévias, na medida em que as liquidações de IRS e de juros compensatórios, não foram precedidas de qualquer procedimento legal que, com respeito pelos trâmites legais,e a devida fundamentação, tenham levado ao conhecimento prévio do Requerente das razões de facto e de direito que motivaram a AT à emissão daquelas liquidações;
u. Não se pode admitir que os e-mails recebidos da AT em 08.09.2024 e 24.10.2024 possam ser equiparados auma notificação, por carta registada, na assunção do artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS, e do artigo 35.º eseguintes, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”);
v. Para que tais e-mails pudessem ser equiparados a uma notificação, deveriam conter os requisitos do artigo 36.º, do CPPT, a saber, a decisão, os seus fundamentos, os meios de defesa e os prazos para reagir contra o ato notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências, o que não sucedeu;
w. Da simples leitura dos e-mails recebidos, resulta que os mesmos se limitam a alertar o Requerente para a falta de cumprimento atempado da obrigação de entrega da declaração Modelo 3, de IRS, sendo esta uma informação emitida ao abrigo do princípio da colaboração, previsto no artigo 59.º n.º 3, alíneas a) e n), da Lei Geral Tributária (“LGT”);
x. Sendo certo que tais e-mails continham ainda a informação de que “brevemente lhe será remetida, via CTT, uma notificação dando-lhe conhecimento formal dessa situação”, esta notificação nunca foi recebida pelo Requerente, via postal, nos termos do disposto no artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS, e do artigo 38.º, do CPPT;
y. O Requerente também não recebeu qualquer notificação, prévia à emissão da liquidação de IRS, acompanhada das razões de facto e de direito que sustentariam a emissão dessa liquidação e que conferisse ao Requerente um prazo para exercício de direito de audição prévia sobre a pretensão da AT;
z. Ainda que o Requerente estivesse legalmente obrigado a apresentar uma declaração de IRS referente ao ano de 2020, a falta da audição prévia dos interessados, quando não esteja dispensada, constitui um vício de forma do ato final, resultante da preterição de formalidade essencial para a sua prática do ato, que conduz à sua anulabilidade;
aa. Entre a última comunicação recebida da AT por e-mail, datada de 24.10.2024, na qual o Requerente é informado do envio de uma notificação por correio para lhe dar conhecimento formal da sua situação, e a data de emissão das liquidações de IRS e de juros compensatórios, decorreram apenas 11 dias e 13 dias, respetivamente;
bb. Com recurso a doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores sobre a essencialidade do direito de audição no procedimento tributário, conclui pela invalidade do ato praticado pela AT com preterição de tal formalidade essencial;
cc. Alega ainda falta de fundamentação, por violação do dever de fundamentação previsto no artigo 268.º, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), e artigo 77.º, da LGT, uma vez que a liquidação de IRS notificada, não contém qualquer informação sobre as disposições legais com base nas quais tal liquidação foi emitida, nem indica, ainda que de forma sumária, a origem dos rendimentos, ou a quantificação dos rendimentos que serviram de base ao apuramento do imposto, ou da taxa que foi aplicável;
dd. O dever de fundamentação impõe que as decisões da AT sejam expressas, claras, formais e acessíveis de modo que qualquer contribuinte perceba as razões de facto e de Direito que levaram a AT a praticar determinado ato, pois só dessa forma poderá o contribuinte ter os elementos mínimos que lhe permitam aferir da legalidade do ato e de, em caso de ilegalidade, dele poder reclamar ou recorrer.
ee. Sem prejuízo do que antecede, há falta de prova quanto à perceção dos rendimentos que a AT pretende imputar-lhe;
ff. Pelo que, não tendo a AT demonstrado, tal como lhe cabia em cumprimento das regras de ónus da prova (artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil e 74.º, n.º 1, da LGT), a origem e valor dos rendimentos que imputou ao Requerente, deve ser anulada a liquidação de IRS e de juros compensatórios objeto do presente pedido, por ser evidente que o Requerente não auferiu, sob qualquer perspetiva, rendimentos que pudessem legitimar o valor de imposto que lhe está a ser coercivamente cobrado;
gg. Mesmo que, no limite, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS, na redação à data, se pudesse admitir que, em 2020, o Requerente teve residência parcial em Portugal – apesar de não ter aqui residido mais de 183 dias e de aqui não dispor de habitação em condições que pudesse fazer supor a intenção do Requerente de a manter e ocupar como residência habitual – certo é que não obteve quaisquer rendimentos que devessem ser declarados – nem a Requerida invoca ou demonstra o contrário.
II.2. RESPOSTA DA REQUERIDA
13. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua Resposta na qual, em substância, alegou o seguinte:
a. Os atos impugnados não padecem de qualquer dos vícios que o Requerente lhes imputa nem de nenhuns outros, tendo os mesmos sido praticados de acordo com as disposições legais e constitucionais em vigor;
b. Ao abrigo da Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011 (“DAC1”), relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade (transposta para a ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio), a AT recebeu a informação proveniente das autoridades fiscais dos EAU;
c. Consta da informação reportada que o Requerente auferiu rendimentos de capitais no montante total de € 1.023.996,37, dos quais, € 2.304,50 são referentes a juros das contas bancárias n.º ... e n.º ... da entidade bancária ...;
d. O montante de € 419.289,84, da conta n.º..., o montante de € 11.132,43, da conta n.º..., e o montante de € 591.269,60 EUR, da conta n.º..., todos da entidade bancária ..., perfazem o montante de € 1.021.691,87, estando a sua natureza identificada como outros rendimentos;
e. A AT constatou que o Requerente não procedera, como era seu dever, à entrega de declaração de rendimentos referente ao ano de 2020, pelo que foi notificado, nos termos do artigo 76.º, n.º 3, para proceder à sua entrega no prazo de 30 dias, sob pena de aplicação do preconizado na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo;
f. Simultaneamente, e com o único propósito de alertar o Requerente para a situação, foi remetido o e-mail transcrito por este no pedido de pronúncia arbitral;
g. Decorrido o prazo de 30 dias sem que tenha regularizado voluntariamente a situação, foi remetido novo e-mail e reenviada a notificação, nos termos do artigo 39.º, n.º 5, do CPPT, vigente aquela data, cujo n.º 13 consagra expressamente que tal não prejudica a aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 45.º da LGT, isto é, que a notificação sob registo, como é o caso, considera-se validamente efetuada;
h. É falso o alegado pelo Requerente quando refere que não possuía “qualquer informação para poder dar cumprimento a esta obrigação fiscal”, uma vez que, pelo menos no que ao trabalho dependente respeitava, estava na posse de toda a informação;
i. Sobre a alegada preterição de formalidades prévias, em concreto, por não ter sido observado o prescrito no artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS, a AT socorre-se de entendimento jurisprudencial do STA, no sentido de afirmar fundamentalmente que, a “(…) notificação não é um elemento intrínseco do acto tributário e, portanto, não é um requisito da sua validade, mas simples condição da sua eficácia, aliás, suprível por outras formas de conhecimento (…)”;
j. No que concerne ao direito de audição prévia, não existe qualquer preterição do mesmo, salientando-se o previsto no artigo 60.º, n.º 2, da LGT, que estabelece que o direito de audição prévio à liquidação é dispensado quando a liquidação é efetuada oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito, como foi a situação dos presentes autos;
k. Relativamente ao hiato de tempo entre a data do último e-mail e a liquidação, salienta que, a primeira notificação foi remetida para o domicílio fiscal por si identificado; o facto de haver sido devolvida e reenviada não releva para efeitos do prazo;
l. Sobre a alegada falta de fundamentação, a informação recebida das autoridades fiscais dos EAU, no âmbito datroca de informação, é válida, uma vez que se identificou a entidade pagadora dos rendimentos, o ano, o sujeito passivo e os montantes de rendimento;
m. A informação recebida e respetivo valor probatório são idóneos, tendo os rendimentos apurados sido reportados nos termos da DAC1;
n. A informação que as autoridades fiscais dos EAU possuem assenta na informação que o Requerente comunica às mesmas, à sua entidade patronal e às entidades bancárias;
o. Nenhum dos documentos evidencia quaisquer diligências que o Requerente haja efetuado, no sentido de obter prova de que aqueles rendimentos não correspondem à realidade;
p. Demonstrada a validade da informação que a AT dispõe, o ónus da prova inverte-se, conforme dispõe o artigo76.º, n.º 4, da LGT;
q. Sem prejuízo do que antecede, entende a Requerida que, atentos aos elementos rececionados – a declaraçãooficiosa de IRS emitida, bem como a liquidação de IRS e a demonstração de juros – não resultariam diferentes das que se verificaram, sendo certo que sempre seria de aplicar o princípio do aproveitamento do ato administrativo, ínsito no artigo 163.º, do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”);
r. A Requerida destaca ainda que, face ao agora alegado pelo Requerente, e tendo em vista assegurar o princípio da busca da verdade material, sem que não se questione a verdade da informação recebida, desencadeou o mecanismo previsto no artigo 26.º, da Convenção entre a República Portuguesa e os EAU para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2012 (“CDT”), para se clarificar, com urgência, se o Requerente foi considerado residente fiscal naquele país no ano de 2020, nos termos da respetiva CDT, quais os rendimentos que auferiu em 2020 naquele país, nomeadamente os respetivos montantes e sua natureza;
s. Sobre a residência fiscal do Requerente no Dubai, no período entre 2003 e 2020, a Requerida fundamenta que, nos termos da CDT, apenas se considera como válida a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido ou certificado pela autoridade fiscal daquele país para comprovar o domicílio fiscal;
t. Atendendo à informação de que a AT dispunha e à prova que o Requerente junta, verifica-se que não inclui qualquer certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais dos EAU, e tão pouco que cumpra o requisito de nacionalidade ou cidadania estabelecido na CDT para que, como é sua pretensão, possa ser considerado residente naquele Estado;
u. Conclui, pois, pela total improcedência do pedido, devendo decidir-se a final pela legalidade dos atos impugnados.
II.3. PRONÚNCIA DO REQUERENTE SOBRE A RESPOSTA DA AT E ALEGAÇÕES FINAIS
14. O Requerente veio pronunciar-se sobre a Resposta da AT e posteriormente em sede de alegações finais, expondo fundamentalmente o seguinte:
a. A AT apenas junta como processo administrativo uma “Declaração” da Direção de Serviços das Relações Internacionais, datada de 22.05.2025, a qual deverá conter o resumo da informação proveniente dos EAU, transmitida à AT, em 12.10.2021, e proveniente da Lituânia, transmitida em 16.12.2021, ao abrigo dos protocolos internacionais vigentes sobre a troca automática de informações fiscais;
b. A AT alega que «foi o Requerente notificado, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º, para proceder à sua entrega no prazo de 30 dias, sob pena de aplicação do preconizado na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, conforme se afere do processo administrativo», mas no processo administrativo junto não há qualquer documento correspondente;
c. Relativamente à “Declaração”, entende que, ao não serem juntas as declarações originais reportadas pelas autoridades competentes daqueles países, é impossível ao Requerente aferir se a informação que consta das declarações foram assim reportadas pelos EAU – e assim, perceber se o erro que deu origem ao valor de rendimento coletável de 2020, quantificado em € 1.023.996,37, e que esteve na génese da liquidação oficiosa sob contestação teve origem na informação reportada por aquele país, ou se os EAU reportaram a informação em moeda local (Dirhams), tendo existido um erro na conversão daquela moeda em euros;
d. Acresce que, não resulta claro se os montantes que terão sido reportados se referem a “rendimentos” do período, ou a saldos das contas;
e. De acordo com a Declaração junta, os montantes de € 591.269,60, € 419.289,84 e € 11.132,43, que a AT qualificou como sendo “rendimentos de capitais” – e que terão sido tributados à taxa de 35% – vêm identificados na Declaração junta a este processo como “Other-CRS”, sem que se detalhe a natureza dos montantes;
f. Sobre o pedido de informação dirigido às autoridades fiscais dos EAU, com carácter de urgência, ao qual ainda aguarda resposta, existindo dúvidas face ao reportado pelo Requerente, aos montantes e à natureza dos mesmos, a AT deveria ter instaurado, logo em 2021 ou depois, o procedimento que invoca ter agora iniciado, oficiosamente, antes de proceder à emissão da liquidação de IRS sob contestação;
g. Por último, e com respeito à (não) residência fiscal do Requerente em Portugal, em 2020, e à prova da sua residência fiscal nos EUA, entende que a AT defende aqui o oposto ao sentido de várias decisões proferidas em tribunais a funcionar no CAAD;
h. Conclui que deve ser relevada toda a prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral, a qual demonstra de forma inequívoca que, em 2020 (e nos anos anteriores, desde 2003), o Requerente não cumpria os requisitos legais previstos no artigo 16.º, do Código do IRS, para ser considerado residente fiscal em Portugal;
i. O Requerente reafirma nas respetivas alegações finais a argumentação de facto e de direito já exposta.
III. SANEAMENTO
15. O Tribunal foi regularmente constituído, é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1, e artigo 5.º, n.ºs 1 e 3, ambos do RJAT.
16. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.
17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
18. O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
IV. MATÉRIA DE FACTO
IV.1 FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
19. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
20. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
21. O Tribunal formou a sua convicção, quanto à factualidade dada como provada, com base nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral pelo Requerente e no documento que a AT juntou, com a Resposta, aos autos como fazendo parte do processo administrativo. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
22. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pelo Requerente, o documento integrante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
23. Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.
IV.2. FACTOS PROVADOS
24. Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, consideram-se os seguintes factos provados:
a. O Requerente é uma pessoa singular de nacionalidade portuguesa, com residência fiscal na Letónia desde 27.06.2022 – cf. cópia junta como “Documento n. 2”;
b. Em 21.01.2003, o Requerente celebrou um contrato de trabalho com a companhia aérea C..., sedeada nos EAU, com início a 13.02.2003 – cf. cópia junta como “Documento n. 4”;
c. Em resultado da celebração desse contrato de trabalho, o Requerente mudou a sua residência para o Dubai –facto não controvertido;
d. O Requerente nunca alterou a sua residência fiscal de Portugal para os EAU – facto não controvertido;
e. O Requerente não apresentou declarações de rendimento Modelo 3 de IRS nos anos de 2003 a 2020 – facto não controvertido;
f. Em 30.08.2015, o Requerente adquiriu um imóvel no Dubai, com empréstimo bancário, garantido por hipoteca a favor do ... (...) – cf. cópia junta como “Documento n. 12;
g. Em 08.07.2020, a C... emitiu uma carta a informar o Requerente do término da relação laboral, em resultado da pandemia do COVID-19, com efeitos a 12.07.2020 – cf. cópia junta como “Documento n. 6”;
h. Em 02.09.2020, a C... emitiu uma carta (com a referência HRSS...) a declarar que o Requerente foi seu colaborador no período compreendido entre 13.02.2003 e 10.09.2020 – cf. cópia junta como “Documento n. 7;
i. Com a cessação do contrato de trabalho que mantinha com a C..., esta pagou ao Requerente, através de cheque, o montante de 136.317,14 AED – cf. cópia junta como “Documento n.º 9”;
j. Este montante pago pela C... foi calculado tendo em conta a remuneração referente aos dias que o Requerente trabalhou em setembro de 2020 e a compensação determinada no seu contrato de trabalho e na carta de despedimento datada de 08.07.2020 – cf. cópias juntas como “Documento n.º 4”, “Documento n.º 6” e “Documento n.º 9”;
k. Enquanto trabalhador da C..., o Requerente tinha o direito a uma remuneração mensal base que, à data da cessação do contrato de trabalho, era de 8.505,00 AED, à qual acrescia subsídio de alojamento (“acomodation allowance”), no valor mensal de 6.150,00 AED, um subsídio de transporte (“transportation allowance”) um crédito de horas e um seguro médico – cf. cópia junta como “Documento n.º 8”;
l. No período compreendido entre fevereiro de 2019 e janeiro de 2020, o montante bruto pago pela C... ao Requerente ascendeu a 294.641,11 AED – cf. cópia junta como “Documento n.º 8”;
m. No período compreendido entre fevereiro de 2020 e agosto de 2020, o montante bruto pago pela C... ao Requerente ascendeu a 90.251,14 AED – cf. cópia junta como “Documento n.º 8”;
n. Em 07.10.2020, o Requerente realizou uma viagem de avião, com saída do Dubai e com destino a Lisboa, contendo no bilhete a indicação de “repatriamento” - cf. cópia junta como “Documento n. 5;
o. Em 13.10.2020, a Embaixada de Portugal em Abu Dhabi, nos EAU, emitiu um certificado de residência, confirmando que o Requerente “é portador de um título de residente emitido por Dubai, (…) válido desde 05/04/2003 até 26/11/2020, tendo requerido o seu cancelamento com efeitos a 27/09/2020” – cf. cópia junta como “Documento n.º 19”;
p. Em 13.10.2020, a Embaixada de Portugal em Abu Dhabi, nos EAU, emitiu um certificado de bagagem em benefício do Requerente – cf. cópia junta como “Documento n.º 20”;
q. Entre os bens pessoais para os quais o Requerente fez um pedido de importação para Portugal, consta o veículo automóvel, da propriedade do Requerente desde 23.05.2019, modelo KIA Sportage Station, de 2019 – cf. cópia junta como “Documento n.º 21”;
r. A Requerida deferiu o pedido de isenção do Imposto sobre Veículos em relação a este veículo do Requerente – cf. cópia junta como “Documento n.º 22”;
s. Enquanto residiu no Dubai, as autoridades competentes dos EAU emitiram as seguintes autorizações de residência, com o número.., e com o U.I.D. número..., necessárias para que o Requerente permanecesse legalmente no país:

cf. cópias junta como “Documento n.º 10”;
t. O Requerente foi titular do cartão de residente número..., válido até 26.11.2020 – cf. cópia junta como “Documento n.º 11”;
u. O ... Bank tem vindo a emitir comprovativos de débito ao Requerente, com o descritivo “loan repayment”, alusivo ao empréstimo bancário contraído por este – cf. cópia junta como “Documento n.º 13”;
v. O Requerente incorreu em gastos com consumos de eletricidade e água referentes à sua habitação própria e permanente no Dubai, no período de dezembro de 2019 a outubro de 2020 – cf. cópias juntas como “Documento n.º 14”;
w. Em 2020, o Requerente era titular das seguintes contas bancárias:
i. Conta bancária junto do ... Bank – cf. cópia junta como “Documento n.º 13”;
ii. Conta bancária junto do. .. – cf. cópia junta como “Documento n.º 15”, “Documento n.º 15A” e “Documento n.º 18”;
iii. Conta bancária junto do ... Bank – cf. cópia junta como “Documento n.º 16”;
iv. Conta bancária junto do ...– cf. cópia junta como “Documento n.º 17”;
x. Por ocasião do encerramento da conta junto do ..., o Requerente tinha um saldo que, a 30.09.2020, ascendia ao montante de 499.176,950 AED – cf. cópia junta como “Documento n.º 15”;
y. Em 2020, o Requerente não era sócio ou acionista de qualquer sociedade, ou entidade com natureza similar, tanto em Portugal como no estrangeiro – facto não controvertido;
z. Em 07.04.2021, o Requerente celebrou um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 12 meses, com a sociedade D..., Lda., com sede em Oeiras, Portugal, para exercer as funções de customer advisor num call center daquela entidade – cf. cópia junta como “Documento n.º 23”;
aa. Esse contrato de trabalho teve início em 04.07.2021 e termo em 04.06.2022 – cf. cópia junta como “Documento n.º 23”;
bb. Em 28.01.2021, o Requerente celebrou um contrato de trabalho com a B..., por tempo indeterminado, com início em 05.01.2022 – cf. cópia junta como “Documento n.º 3”;
cc. O Requerente, desde 05.02.2022 mantém um vínculo laboral com a B..., exercendo a atividade de comissário de bordo – cf. cópia junta como “Documento n.º 3”;
dd. Em 08.04.2022, o Requerente submeteu a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, com o n.º..., referente ao ano de 2021 – cf. cópia junta como “Documento n.º 24”;
ee. A Requerida, em resultado da submissão dessa declaração de rendimentos, emitiu a liquidação de IRS com o n.º 2022..., da qual resultava um montante a reembolsar ao Requerente de € 273,00 – cf. cópia junta como “Documento n.º 24”;
ff. Em 08.09.2024 e 24.10.2024, o Requerente recebeu duas comunicações por e-mail da AT, de igual teor, com o seguinte teor:
“Assunto: Declaração Modelo 3 do ano de 2020
Caro(a) contribuinte A..., NIF...,
A Autoridade Tributária e Aduaneira está a proceder ao controlo do cumprimento da obrigação de entrega da declaração de rendimentos Modelo 3, do ano de 2020. Na sequência desse procedimento foi detectado que a sua declaração de IRS relativa a esse ano não consta da nossa base de dados, pelo que brevemente lhe será remetida, via CTT, uma notificação dando-lhe conhecimento formal dessa situação.
Poderá proceder à entrega da declaração em falta por via eletrónica no Portal das Finanças em www.portaldasfinancas.gov.pt, selecionando a opção "Serviços - Entregar - Declarações - IRS". Se pretender prestar qualquer esclarecimento poderá fazê-lo através do mesmo site, selecionando a opção "Serviços - Consultar - Divergências".
Com os melhores cumprimentos,
A Diretora-Geral,” – facto não controvertido
gg. Em 08.10.2024, o Requerente dirigiu, por escrito, à Requerida o seguinte pedido: “Vinha por este meio solicitar se me podiam fornecer os valores a declarar no Irs 2020,pois recebi carta com falta de entrega do modelo 3 2020,mas não tenho qualquer informaçoa para poder dar cumprimento a esta obrigaçao fiscal” – cf. cópia junta como “Documento n.º 25”;
hh. Em 11.10.2024, o Requerida respondeu, por escrito, ao pedido do Requerente nos seguintes termos: “os rendimentos provêm de juros/dividendos oriundos do estrangeiro, pelo que deve entregar anexo J com os mesmos” – cf. cópia junta como “Documento n.º 25”;
ii. O Requerente não aderiu às notificações através do Via CTT, nem ao serviço de notificações através do Portal das Finanças – cf. cópia junta como “Documento n.º 26”;
jj. O Requerente foi notificado, no seu domicílio fiscal, na Letónia, da liquidação de IRS n.º 2024..., de 04.11.2024, no valor de € 358.398,73 a imposto relativo a tributações autónomas, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2024 ..., de 06-11-2024, no montante de € 47.917,41, num total a pagar de € 406.316,14 – cf. cópia junta como “Documento n.º 1”;
b. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 07.02.2025 e aceite em 10.02.2025.
IV.2 FACTOS NÃO PROVADOS
25. O Tribunal Arbitral considerou como não provados os seguintes factos:
a. O Requerente solicitou ao pai para que, em sua representação, solicitasse uma reunião presencial nos serviços da AT, para tentar obter esclarecimentos sobre os alegados rendimentos auferidos no estrangeiro e a declarar em 2020;
b. Foi agendada uma reunião presencial pela AT para o dia 31.10.2024, a qual foi remarcada para o dia 07.11.2024;
c. Em 07.11.2024, na reunião presencial tida na AT, o pai do Requerente foi informado que aquela não estava autorizada a dar informações sobre os rendimentos a declarar, e que tais esclarecimentos teriam de ser prestados pela Unidade dos Grandes Contribuintes;
d. A AT notificou o Requerente nos termos e para os efeitos do artigo 76.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código do IRS, para que este procedesse à entrega, no prazo de 30 dias, da declaração de rendimentos Modelo 3, referente ao ano de 2020;
e. A AT reenviou essa notificação ao Requerente, nos termos do artigo 39.º, n.º 5, do CPPT;
f. O Requerente, com referência ao ano de 2020, auferiu rendimentos de capital, no montante total de € 1.023.996,37;
g. Foi instaurado pela AT contra o Requerente um processo de execução fiscal a correr termos sob o n.º ...2025... .
V. DO DIREITO
26. Considerada a matéria controvertida no presente processo arbitral tributário, e as posições apresentadas pelas Partes, entende-se que foi sujeita à apreciação deste tribunal a análise das seguintes questões:
a. A preterição de formalidades prévias;
b. A falta de fundamentação; e
c. A prova dos rendimentos auferidos pelo Requerente no ano de 2020.
27. Determina o artigo 124.º, n.º 1, do CPPT, que, na sentença, o tribunal apreciará em primeiro lugar os vícios que conduzem à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado.
28. Nos presentes autos não são alegados vícios que conduzam à nulidade ou inexistência dos atos, pelo que se prossegue para o n.º 2 do mesmo preceito, sendo a ordem a observar na análise das questões formuladas aquela que foi estabelecida pelo Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral.
V.1 DA PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES PRÉVIAS
29. Em primeiro lugar, o Requerente presume que – apesar de a liquidação sob contestação não indicar o preceito legal ao abrigo do qual foi emitida – a mesma o tenha sido à luz do artigo 76.º, do Código do IRS.
30. Ora, prescreve este artigo, na parte que ora releva, o seguinte:
“1. A liquidação do IRS processa-se nos termos seguintes: (…)
b) Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha; (…)
3. Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas no n.º 3 do artigo 97.º”.
31. Em face desta presunção, o Requerente invoca a preterição de uma formalidade prévia, uma vez que, em momento prévio à notificação da liquidação de IRS e de juros compensatórios aqui controvertidas, não recebeu qualquer notificação da AT para apresentar a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2020, nos termos estatuídos na norma acima citada.
32. Por seu turno, decorre da resposta da Requerida que a liquidação ora posta em crise foi efectivamente emitida ao abrigo desta norma e que aquela terá agido em conformidade com este preceito, notificando o Requerente para proceder à entrega daquela declaração de rendimentos.
33. Ora, analisada a prova carreada para os autos pelas partes e conforme acima enunciado, este Tribunal entende que não ficou demonstrado que a Requerida tenha notificado o Requerente para, em conformidade com o normativo acima transcrito, cumprir com a sua eventual obrigação de apresentar a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, respeitante ao ano de 2020.
34. Com efeito, apesar de a Requerida ter sido notificada, através dos despachos datados de 23.04.2025 e 13.08.2025, para juntar aos autos uma cópia do processo administrativo, a verdade é que não o fez, limitando-se a juntar uma “Declaração” que em nada releva para efeitos da questão ora em análise.
35. Como tal e sem mais delongas, tendo presente o disposto no artigo 76.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código do IRS, julga este Tribunal que houve uma violação da formalidade prévia aí prevista, padecendo as liquidações de IRS e juros compensatórias de um vício de Lei que determinaria, por si só, a sua anulabilidade.
36. Numa outra perspetiva, o Requerente invoca igualmente que, em momento prévio à emissão das liquidações impugnadas, não recebeu qualquer notificação da parte da AT na qual (i) constatassem as razões de facto e de Direito que justificassem a emissão daquelas liquidações e (ii) lhe fosse conferido, em conformidade com o artigo 60.º, da LGT, um prazo para (querendo) exercer o seu direito de audição prévia sobre aquela pretensão da AT.
37. No que respeita ao direito de audição prévia previsto nesta norma da LGT (sob a epígrafe “Princípio da participação”) invocada pelo Requerente, a mesma determina o seguinte:
“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação;
(…)
2 - É dispensada a audição:(…)
b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.
(…)
4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.
5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação”.
38. Atenta à prova documental junta aos autos, não ficou evidenciado que a Requerida tenha validamente notificado o Requerente para que este, querendo, exercesse o seu direito de audição, e, dessa forma, garantir a participação do mesmo em momento prévio à emissão das liquidações de IRS e juros compensatórios, aqui controvertidas.
39. Em rigor, decorre da resposta da Requerida que a mesma não realizou uma notificação com essa finalidade dirigida ao Requerente, refugiando-se no disposto no artigo 60.º, n.º 2, da LGT, e na alegada realização da notificação consagrada no artigo 76.º, do Código do IRS, para arguir a inexistência da preterição do direito de audição prévia.
40. Ora, face ao acima exposto, não resultando provado que a Requerida tenha notificado o Requerente para apresentar a declaração de rendimentos eventualmente em falta ao abrigo do já mencionado artigo 76.º, do Código do IRS, não resta senão concluir (em face da própria admissão da Requerida) que o Requerente também não foi notificado, em momento prévio à emissão das liquidações impugnadas, para se pronunciar sobre as mesmas, não podendo, assim, participar na formação da decisão final que culminou com a emissão daquelas liquidações.
41. Perante a falta de audição prévia do Requerente e não se encontrando a mesma dispensada, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, alínea b), da LGT, não pôde aquele exercer devidamente o seu direito, o que consubstancia uma violação do princípio da participação vertido nesta norma, a qual determina – também por esta razão – a ilegalidade das liquidações postas em crise e a sua consequente anulação.
42. Em suma, dada a preterição de duas formalidades prévias impostas pelas normas legais acima enunciadas, está-se na presença de vícios de violação da Lei que afetam o procedimento tributário e que conduzem à anulação das liquidações de IRS e de juros compensatórios em apreciação nestes autos.
43. Acrescente-se que não é possível, ao contrário do pretendido pela Recorrida, recorrer-se ao princípio do aproveitamento do ato administrativo, previsto no artigo 163.º, n.º 5, do CPA, para – transformando as preterições verificadas em formalidades não essenciais ou em meras irregularidades – obviar ao efeito anulatório resultante dessas preterições.
44. Com efeito, nenhuma das situações elencadas nesta norma legal são passíveis de ser identificadas nestes autos. Não é possível a este Tribunal concluir (nem as partes arguiram e demonstraram em sentido distinto) que, dada a violação do disposto no artigo 76.º, do Código do IRS, e no artigo 60.º, da LGT, (i) o conteúdo das liquidações de IRS e juros ora impugnadas não poderia ser outro, por apenas haver uma solução legalmente admissível, (ii) os fins visados pelas formalidades prévias legalmente exigidas e preteridas pela Requerida foram alcançadas por outra via, ou que (iii) mesmo que não inexistissem aqueles vícios, os atos praticados pela Requerida teriam o mesmo conteúdo.
45. Ademais, e conforme enunciado na decisão arbitral de 19.12.2022, no processo n.º 162/2022-T, “O princípio do aproveitamento do ato administrativo surge justificado por razões de economia dos atos públicos e resulta da concordância prática entre o princípio da legalidade e o princípio da eficiência administrativa e a ideia que lhe está subjacente é a de evitar que sejam tomadas decisões judiciais sem alcance real para o impugnante”.
46. Uma vez que essa hipótese – a de ser tomada uma decisão “sem alcance para o impugnante” – não é aqui passível de ser colocada, nada obsta a que os atos de liquidação aqui contestados sejam julgados ilegais e efetivamente anulados.
V.2 VÍCIOS DE CONHECIMENTO PREJUDICADO
47. Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Requerente.
VI. DECISÃO
48. Termos em que se decide:
a. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente, e, consequentemente, declarar-se a ilegalidade e anulação dos atos de liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2020, no valor de € 358.398,73, e de liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., no valor de € 47.917,41, no valor total de € 406.316,14; e
b. Condenar a AT no pagamento das custas do processo.
VII. VALOR DA CAUSA
49. Fixa-se o valor do processo em € 406.316,14 (quatrocentos e seis mil, trezentos e dezasseis euros e catorze cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e artigo 306.º, do CPC.
VIII. CUSTAS
50. O valor das custas é fixado em € 6.732,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo do Requerida, de acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4 e 5 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de outubro de 2025
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente)
Ana Rita Chacim
(Árbitro-adjunto e relatora)
Júlio Tormenta
(Árbitro-adjunto)