Sumário
I. Quando um sujeito passivo atue em nome próprio por conta de outrem na prestação de serviços de reabilitação urbana, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do [mesmo] serviço, sendo aplicável o mesmo regime de IVA, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA.
II. Sendo os serviços de reabilitação urbana prestados às Requerentes pelas empresas de construção contratadas enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, aqueles beneficiam da taxa reduzida nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) desse compêndio fiscal, quer na faturação inicial dos empreiteiros aos sujeitos passivos, quer na faturação, por parte destes, aos investidores (mandantes/comitentes).
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 27 de maio de 2025, Alexandra Coelho Martins (presidente), Clotilde Celorico Palma, designada pela Requerente, e Fernando Marques Simões, indicado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, acordam no seguinte:
II. Relatório
A..., Lda., adiante “Requerente 1”, com o número de matrícula e de pessoa coletiva..., e sede na Rua ..., ..., ...-... Porto, e B..., Lda., adiante “Requerente 2”, com o número de matrícula e de pessoa coletiva..., e sede na mesma morada, em conjunto designadas por “Requerentes”, apresentaram em coligação pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3 e 10.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.
As Requerentes pretendem que seja declarada a ilegalidade, com a consequente anulação, dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e juros compensatórios correlativos, respeitantes aos anos 2018 e 2019 no caso da Requerente 1 e apenas ao ano 2019 em relação à Requerente 2, na importância global a pagar, incluindo juros, de € 1.125.105,43, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”). Peticionam também a restituição desta quantia acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde as datas dos pagamentos indevidos até integral reembolso.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em 14 de fevereiro de 2025 e, de seguida, notificado à AT.
A Requerente designou como árbitro a Prof. Doutora Clotilde Celorico Palma, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, tendo a Requerida indicado o Dr. Fernando Marques Simões.
Os árbitros designados comunicaram ao CAAD a designação, por acordo, da Dra. Alexandra Coelho Martins como árbitro presidente, conforme preveem os artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 6 do RJAT, tendo todos os árbitros comunicado a aceitação do encargo.
Em 8 de maio de 2025, o Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo sido manifestada oposição.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 27 de maio de 2025.
Em 2 de julho de 2025, a Requerida apresentou a sua Resposta. Não juntou o processo administrativo (“PA”).
Por despacho deste Tribunal Arbitral, de 1 de setembro de 2025, foi dispensada a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerida e a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, uma vez que a matéria de facto relevante para a decisão é a provar por documentos e que não foi suscitada matéria de exceção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT).
As Partes foram notificadas para apresentarem, de modo simultâneo, alegações escritas, tendo-o feito em 19 de setembro de 2025. O prazo para a decisão fixou-se até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
Posição das Requerentes
As Requerentes invocam vícios formais e procedimentais de omissão de pronúncia e de falta de fundamentação relativamente às decisões de indeferimento das reclamações graciosas que, em seu entender, não fizeram qualquer apreciação do quadro factual, meios probatórios e ilegalidades suscitadas, com violação do disposto nos artigos 56.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1, ambos da Lei Geral Tributária (“LGT”), e do artigo 73.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Ainda no âmbito dos vícios formais, suscitam deficiência da fundamentação dos atos tributários, nos termos do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição. Salientam que as correções e requalificação das operações para efeitos fiscais levadas a efeito pela Requerida não tomaram em devida conta a realidade económica e comercial das operações e que aquela não realizou as diligências necessárias à descoberta da verdade material (v. artigo 58.º da LGT), nem concretizou os factos pertinentes com referência aos meios e documentos probatórios, incumprindo as exigências do artigo 55.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e o disposto nos artigos 72.º da LGT e 50.º do CPPT. Daqui retira ainda que a falta de concretização da base factual e probatória em que assentam as correções implica, não só a referida deficiência da fundamentação, em violação do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, como “a violação do ónus da prova” imposto pelo artigo 74.º da LGT, com a consequente anulação à face do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).
Adicionalmente, e como objeto fulcral da ação, as Requerentes arguem erro sobre os pressupostos de facto e vício de violação de lei das liquidações de IVA e juros compensatórios impugnadas, por duas razões essenciais.
A primeira prende-se com a caducidade do direito à liquidação em relação ao IVA do ano 2018 da Requerente 1 (v. artigos 94.º, n.º 1 do Código do IVA e 45.º, n.ºs 1 e 4 da LGT), atento o facto de as notificações das liquidações terem sido efetuadas após 31 de dezembro de 2022, quando já estava esgotado o prazo legal de caducidade, de quatro anos. Assinalam que não se verificou a suspensão do prazo de caducidade associada à realização de procedimentos externos de inspeção, por não estar em causa uma inspeção externa, uma vez que não foram efetuados quaisquer atos de inspeção, total ou parcialmente, em instalações ou dependências da Requerente 1 ou de terceiros (v. artigo 13.º, alínea a) do RCPITA), sendo irrelevante a qualificação dada pela AT.
A segunda respeita à aplicabilidade à faturação de adiantamentos para obras de reabilitação urbana da taxa de 6%, prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, e não a taxa normal de 23% sustentada pela AT.
Salientam que a Requerida reconhece que se verificaram obras/operações de reabilitação urbana faturadas pelo empreiteiro geral a cada uma das Requerentes nos imóveis designados, com as características necessárias para serem enquadráveis na citada verba 2.23 e beneficiarem da taxa reduzida. Rejeitam que esse mesmo enquadramento seja desconsiderado pela AT na relação com os investidores apenas por não existir uma relação direta entre a construtora e os comproprietários dos imóveis, pessoas singulares não residentes (investidores em imóveis para reabilitação).
Na perspetiva das Requerentes, a circunstância de as referidas obras terem sido por si contratadas e adquiridas em nome próprio não implica, como pretende a Requerida, que a sua imputação aos investidores deixe de ter enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, uma vez que atuou por conta destes na celebração do contrato de empreitada e na promoção das obras de reabilitação, tendo-se vinculado a praticar atos jurídicos por conta e no interesse dos investidores, ou seja, agiu como mandatária sem representação (v. artigos 1157.º e seguintes do Código Civil e 231.º e 266.º do Código Comercial), situação subsumível ao regime consagrado no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA.
Defendem que as empreitadas de reabilitação urbana desenvolvidas para a reconstrução/reabilitação dos imóveis desencadeiam efeitos jurídico-negociais não apenas em relação às Requerentes, mas também quanto aos investidores, não exigindo a lei, como a própria AT já confirmou na Informação Vinculativa emitida no Processo 2015000315 - IVE n.º 8264, que a reabilitação tenha de ser materialmente efetuada pelo adquirente dos imóveis e que este tenha de desenvolver atividades relacionadas com a construção de edifícios.
Neste âmbito, alegam que as liquidações impugnadas derivam da compreensão errónea, por parte da Requerida, do contexto e relações estabelecidas entre os investidores (adquirentes de quotas-partes dos imóveis) e as Requerentes, entidades que, após a reabilitação dos imóveis (na titularidade daqueles investidores), os exploram como estabelecimentos turísticos, em conformidade com os contratos celebrados com aqueles.
A finalidade dos edifícios reabilitados é a sua exploração pelas Requerentes como empreendimentos hoteleiros. Aquelas possuem, desta forma, um interesse próprio nas operações de reabilitação urbana, essenciais ao desenvolvimento da sua atividade. Por outro lado, os investidores têm interesse próprio na aquisição (de quota-parte) dos imóveis, como meio para a obtenção da autorização de residência por atividade de investimento em reabilitação urbana (golden visa).
As Requerentes consideram ainda que não corresponde à realidade, nem é fundamentada a afirmação da AT de que o investidor estrangeiro não possui um interesse na reabilitação do imóvel, mas tão-só na obtenção de um documento comprovativo de obras de reabilitação com vista ao preenchimento dos requisitos necessários para obtenção de um visto de residência, a qual configura um juízo opinativo desprovido de base fáctica. Por outro lado, aduz que as motivações para contratar não são suscetíveis de alterar o âmbito de aplicação e o alcance das normas do Código do IVA, determinados em razão das operações económicas realizadas, na sua materialidade objetiva.
Acrescentam que o fundamento que motivou o indeferimento das reclamações graciosas apresentadas contra os atos de liquidação em crise, radica na configuração das operações em causa como “obtenção de financiamento por parte de investidores diretamente relacionado com a atribuição de um “Visto Gold”, temos que esta operação se pode qualificar, numa prestação de serviços segundo o conceito residual previsto no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA”, fundamento distinto do constante dos Relatórios de Inspeção. Existindo dois atos que têm por objeto definir a posição da AT sobre a mesma situação jurídica, não sendo o segundo confirmativo, é revogatório por substituição, pelo que, se a respetiva decisão mantém o ato impugnado, fá-lo com diferente fundamentação, entendendo-se que se opera revogação por substituição, passando a subsistir na ordem jurídica um novo ato que, apesar de manter o mesmo conteúdo decisório, tem a nova fundamentação. Admitindo, porém, que a remissão das decisões das reclamações graciosas para os relatórios inspetivos signifique estarmos perante fundamentação adicional, e sem prejuízo do seu cariz erróneo, a mesma deve ser julgada irrelevante, por ser a posteriori. De resto, se estivesse em causa a captação de um financiamento, este representaria uma operação passiva, sendo incompreensível a sua qualificação como prestação de serviços, que é uma operação ativa (v. artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA).
Concluem que as obras suportadas pelos investidores na quota-parte que lhes corresponde nos prédios adquiridos em compropriedade e que foram objeto de faturação pelas Requerentes, no montante individual de €100.000,00, com IVA incluído, mediante a aplicação da taxa reduzida de 6%, são enquadráveis no conceito de reabilitação urbana relevante, que consta do artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Regime Jurídico da Reabilitação[1] (“RJRU”), e no estatuído nos artigos 18.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 4 do Código do IVA, em conjugação com o disposto na verba 2.23 da Lista I anexa a esse Código.
Assim, a realização das operações de reabilitação urbana pelas Requerentes, em nome próprio, mas por conta dos investidores, no âmbito de um mandato sem representação, rege-se especificamente pelo disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, que transpõe o artigo 28.º da Diretiva IVA[2], segundo o qual quando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome, mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão.
As Requerentes apelam à jurisprudência do Tribunal de Justiça que explicita que, nestes casos, a atuação do mandatário sem representação é dividida em duas operações para efeitos de IVA, uma do fornecedor para o mandatário (ou comissário) e outra do mandatário para o mandante (ou comitente). Rege, aqui, o princípio da equiparação: as duas operações conservam a mesma natureza objetiva e idêntico tratamento tributário para efeitos de IVA, pelo que será de aplicar a mesma taxa de imposto.
No que se refere os juros compensatórios, as Requerentes pugnam pela sua ilegalidade, por não se verificarem os respetivos pressupostos constitutivos, i.e., a ocorrência de atraso nas liquidações, atendendo a que as liquidações de IVA de que derivam são ilegais.
Terminam com a pretensão de juros indemnizatórios, que fundam nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 43.º, n.º 1 e 100.º da LGT e na verificação de erro imputável aos serviços.
Posição da Requerida
A Requerida mantém a posição dos Serviços de Inspeção Tributária no sentido de que as operações tituladas pelas faturas emitidas pelas Requerentes a investidores, referentes a adiantamentos para obras de reabilitação urbana, não são enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA (e, em consequência, no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA), pelo que não beneficiam da taxa reduzida, de 6%, devendo ser tributadas à taxa normal.
Para a Requerida, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA abrange apenas as intervenções que se enquadrem em duas condições fundamentais: i) configurem operações de reabilitação urbana; e ii) sejam realizadas em imóveis localizados em área de reabilitação urbana. E somente é aplicável na relação jurídica estabelecida entre as Requerentes e o empreiteiro geral, pois só entre estes existe um contrato de empreitada enquadrado no regime previsto no Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, que aprova o RJRU. Ora, esta relação, não se constata nas operações vertentes. Refere ainda que as faturas contêm um descritivo genérico “Adiantamento para obras de reabilitação urbana”, sem qualquer discriminação, o que afasta a aplicação da taxa reduzida na faturação das obras aos investidores.
Acresce, na perspetiva da Requerida, estarmos perante operações que consistem na obtenção de financiamento pelas Requerentes junto de investidores, em correlação direta com a atribuição a estes últimos de um “visto gold”, e não com serviços de reabilitação urbana, pelo que devem ser tributadas à taxa normal (v. artigos 4.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA).
Sobre a insuficiência de fundamentação, opõem que os Relatórios de Inspeção Tributária contêm a descrição clara dos factos, da análise efetuada e dos procedimentos adotados, assim como explanam, de forma detalhada, a fundamentação jurídica das correções e os critérios e cálculos realizados, que reputa de suficientes para sustentar as liquidações. Deste modo, pugna pela improcedência dos vícios de falta de fundamentação e de violação do princípio do inquisitório.
No tocante à caducidade referente às liquidações de IVA do ano 2018 (da Requerente 1) explicita que, contrariamente ao alegado pelas Requerentes, os atos inspetivos não consistiram somente na análise da documentação que já estava na posse da Administração Tributária, no âmbito de informação constante da sua própria plataforma informática e das declarações de imposto apresentadas pela Requerente 1.
Pelo contrário, entende que as inspeções assumiram carácter investigatório, tendo sido solicitada documentação à Requerente 1, discutidas as matérias e solicitados os esclarecimentos julgados indispensáveis. Mais sustenta que a natureza interna ou externa da inspeção não pode cingir-se apenas ao local da realização dos atos inspetivos e prende-se em percecionar se se está no campo da mera análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento, ou se existe atividade da iniciativa da AT destinada à obtenção de elementos que não estavam na sua disponibilidade, realizada com fito investigatório, como considera ser a situação dos autos, sendo de manter a qualificação da inspeção como externa.
Assim, defende a aplicabilidade da suspensão do prazo de caducidade prevista no artigo 46.º n.º 1 da LGT, que perdurou por 140 dias, pelo que a emissão e notificação das liquidações de IVA reportadas a 2018 foram efetuadas dentro do prazo de caducidade.
Conclui pela improcedência total do pedido.
III. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, dirigido à anulação de atos tributários de liquidação adicional de IVA e juros inerentes (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
É admissível a cumulação de pedidos e a coligação de autores, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, por estarem em discussão correções de IVA relativas a circunstancialismo fáctico idêntico, respeitante à faturação por adiantamentos para obras de reabilitação urbana a investidores particulares não residentes que pretendem obter vistos gold, realizada no contexto do mesmo modelo de negócio e por empresas que pertencem ao mesmo grupo económico. Acresce a identidade dos fundamentos de direito, alicerçados na aplicação da taxa reduzida de 6% à faturação de trabalhos de reabilitação urbana realizados em área de reabitação urbana (“ARU”), ao abrigo do preceituado no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA e na verba 2.23 da Lista I anexa ao mesmo diploma.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento tácito dos recursos hierárquicos deduzidos contra os atos de liquidação vertentes (na sequência do indeferimento expresso das reclamações graciosas dos mesmos atos), ocorrida em 18 de novembro de 2024 (IVA de 2018 da Requerente 1), em 27 de dezembro de 2024 (IVA de 2019 da Requerente 1) e 13 de janeiro de 2025 (IVA de 2019 da Requerente 2), tendo a ação arbitral dado entrada em 12 de fevereiro de 2025.
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Questões a Apreciar
Considerando a tutela mais estável e eficaz dos interesses em presença, conforme contemplado no artigo 124.º do CPPT, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, importa apreciar, em primeiro lugar, as ilegalidades materiais invocadas, por erro nos pressupostos de facto e de direito, que se prendem com:
a) A caducidade do direito à liquidação do IVA do ano 2018 da Requerente 1; e
b) A aplicabilidade da taxa reduzida, de 6%, à faturação nos anos 2018 e 2019, por ambas as Requerentes, de adiantamentos para obras de reabilitação urbana da taxa de 6%, prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma.
Só depois o Tribunal analisará os alegados vícios formais praticados no procedimento, na medida em que não resultem prejudicados pela apreciação das questões anteriores, em concreto os respeitantes:
c) À violação do princípio do inquisitório, por omissão de diligências necessárias à descoberta da verdade material (v. artigos 58.º da LGT, 50.º do CPPT e 55.º do RCPITA); e
d) À falta de fundamentação dos atos tributários e das decisões de indeferimento das reclamações graciosas (v. artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT).
Por fim, caberá decidir sobre a legalidade das liquidações de juros compensatórios e o direito das Requerentes a juros indemnizatórios.
IV. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
A. A A..., Lda., aqui Requerente 1, encontrava-se à data dos factos, 2018 e 2019, inscrita como sujeito passivo de IVA com enquadramento no regime normal, com periodicidade trimestral e tipo de operações misto com dedução de imposto mediante o método de afetação real de todos os bens e serviços – cf. Relatórios de Inspeção Tributária (“RIT’s A...”) juntos como Documentos 2 [2018] e 8 [2019].
B. Nos anos 2018 e 2019, a Requerente 1 estava registada no cadastro da AT para o exercício da atividade de Promoção Imobiliária – CAE 41100 – e de Compra e Venda de Bens Imóveis – CAE 68100. Em dezembro de 2018, acrescentou a atividade de Arrendamento Bens Imobiliários – CAE 68200 – e, em outubro de 2019, Hotéis com restaurante – CAE 55111 – cf. RIT’s A... .
C. A Requerente 1 capta investidores fora da União Europeia, através de uma rede capilar de agentes e subagentes, para financiar a reabilitação urbana de ativos imobiliários que, concluída a reabilitação, explora diretamente como unidades hoteleiras – cf. RIT’s A... .
D. Neste âmbito, a Requerente 1 desenvolve e implementa soluções que permitem a sujeitos passivos não residentes na União Europeia a obtenção de autorização permanente de residência (“vistos gold”), na modalidade de investimento na reabilitação urbana, e também a obtenção de nacionalidade, tendo como instrumento de execução desse negócio a reabilitação de ativos imobiliários destinados a exploração hoteleira – cf. RIT’s A... .
E. No ano 2018, a Requerente 1 deu início a um projeto de reconstrução / remodelação / reabilitação de um acervo de cinco edifícios para serem adaptados à atividade hoteleira, situado na Rua ..., n.ºs ... a ..., Porto, tendo adquirido, para esta finalidade, os referidos imóveis contíguos e inseridos em área de reabilitação urbana (“ARU”) – cf. RIT’s A... .
F. Este projeto, denominado “...*, beneficiou da classificação de operação de reabilitação urbana (“ORU”) e consubstanciou-se num hotel de quatro estrelas, com 49 quartos ao longo de seis pisos. Ficou concluído em 2022, tendo sido inaugurado em 4 de maio desse ano. O hotel encontra-se aberto e é diretamente explorado pela Requerente 1 – cf. RIT’s A... .
G. Para a realização da reconstrução e reabilitação do referido acervo de 5 edifícios e respetiva adaptação a unidade hoteleira, a Requerente 1 celebrou, em 17 de setembro de 2018, com a construtora B..., S.A., Contrato de Empreitada, na qualidade de “Dono da Obra” e assumiu-se como “a entidade promotora e responsável pelo projeto turístico” – cf. RIT’s A... e Documento 19.
H. Entre o momento de aquisição dos imóveis e a realização dos trabalhos de construção civil, a Requerente 1 promoveu a venda, em regime de compropriedade, de quotas-partes (em avos) daqueles imóveis a particulares, investidores estrangeiros, interessados em obter o “visto gold”/autorização permanente de residência, proporcionando-lhes, por essa via, a candidatura à referida autorização permanente de residência, na modalidade de investimento imobiliário em reabilitação urbana, em conformidade com as condições e requisitos de prova previstos nos artigos 65.º-A e 65.º-D do Decreto-Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de novembro que regulamenta o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, constante da Lei n.º 23/2027, de 4 de julho – cf. RIT’s A... .
I. Com este modelo, a Requerente alcançava, em simultâneo, o objetivo de financiamento do projeto “...” e a sua ulterior exploração – cf. RIT’s A... .
J. Com cada investidor, no total de 40 comproprietários (2,5% cada = um quarenta avos) para este projeto, foi celebrado um “Investors Agreement”, ou apenas “Agreement”, que prevê, entre outras cláusulas, um acordo de recompra, e outorgada a correspondente escritura de compra e venda da parte do imóvel (em avos) alienada pela Requerente 1, por contrapartida do pagamento a esta da importância global de € 350 000,00, repartida entre – cf. RIT’s A... e Documento 20:
a) € 250 000,00, com isenção de IVA ao abrigo do artigo 9.º, n.º 30 do Código deste imposto, como contrapartida da venda (do direito de propriedade) da quota-parte no imóvel;
b) € 100 000,00, com IVA incluído à taxa de 6%, a título de “Adiantamentos para obras de reabilitação urbana” a realizar no imóvel adquirido pelo investidor em compropriedade, por aplicação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), conjugado com a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código. Esta última componente é objeto de faturação por parte da Requerente aos investidores.
K. O acordo de recompra a ser exercido no futuro entre a Requerente 1 e os investidores será concretizado, em regra, após decurso do período de seis anos, pelo mesmo valor – € 350 000,00. Se os investidores optarem pela venda antecipada o valor será inferior – cf. RIT’s A... .
L. As obras de construção civil realizadas ao abrigo do contrato de empreitada foram sendo faturadas pela C-..., S.A. – à Requerente 1 sem liquidação de IVA (regime de autoliquidação ou reverse charge), ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do Código do IVA. A Requerente 1 autoliquidou o IVA à taxa reduzida, de 6%, relativamente a estas faturas, por aplicação do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) e verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, procedimento que não foi contestado ou corrigido pelos serviços de inspeção tributária, que aceitaram este enquadramento – cf. RIT’s A... .
M. Os imóveis vendidos pela Requerente 1 com acordo de recompra foram contabilizados como objeto de um contrato de locação, i.e., como ativos fixos tangíveis, em aplicação da NCRF[3] 9 – Locações na Contabilização das Operações, baseado no facto de aquela ter o direito a recuperar o ativo por um preço inferior ao preço de venda, como dispõe a IAS[4] 17. Foi também aplicada ao negócio a IFRS[5] 15 – Rédito de Contratos com Clientes e NCRF 20 – Rédito, com fundamento na interpretação de que os investidores detêm a posse física do ativo, mas não o seu controlo ativo, porque estão limitados na sua capacidade para orientar o seu uso e para obter substancialmente todos os benefícios remanescentes desse ativo – cf. RIT’s A... .
N. Em 29 de setembro de 2022, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do Porto iniciaram um procedimento inspetivo ao IVA e IRC da Requerente 1, referente ao ano 2018, que qualificaram de externo, ao abrigo da ordem de serviço OI2022..., para análise do enquadramento das operações realizadas – cf. RIT A...[2018].
O. Os atos inspetivos relativos ao ano 2018 foram concluídos com a emissão da nota de diligência, em 15 de fevereiro de 2023. O Relatório (final) de Inspeção que pôs termo ao procedimento foi emitido em 24 de fevereiro de 2023 – cf. RIT ... [2018].
P. A ordem de serviço foi assinada por um representante (procurador) da Requerente 1 – cf. RIT A... [2018].
Q. A informação obtida acerca da Requerente 1, sua atividade e enquadramento legal e fiscal foi por esta disponibilizada aos serviços de inspeção enquanto entidade pertencente ao Grupo económico denominado por D... que, no decurso da ação inspetiva, se apresentou como tendo “por core business o aporte de soluções de investimento que permitam a sujeitos passivos não residentes a obtenção de autorização permanente de residência ou cidadania, na modalidade de investimento na reabilitação urbana, tendo como instrumento de execução desse core business a reabilitação de ativos destinados a exploração hoteleira.” – cf. RIT A... [2018].
R. Os serviços de inspeção tributária dirigiram pedidos de informação à Requerente 1 por via eletrónica, tendo esta respondido também por essa via. Adicionalmente, a Requerente 1 prestou esclarecimentos e discutiu as matérias controvertidas em reuniões realizadas presencialmente com os seus representantes e os funcionários da AT, nas instalações da Direção de Finanças do Porto – cf. RIT A... [2018] e provado por acordo (ppa artigo 132.º).
S. A Requerente 1 facultou à equipa de Inspeção Tributária diversos elementos documentais, nomeadamente – cf. RIT A... [2018]:
a) O Relatório e Contas do ano 2021 (ainda em versão draft à data), para complementar a descrição das etapas do seu modelo de negócio;
b) Os contratos de empreitada celebrados; e
c) A título de exemplo, o denominado “Agreement” celebrado com o cliente E..., NIF... .
T. A Requerente 1 prestou esclarecimentos à equipa de Inspeção Tributária sobre a venda dos avos dos imóveis, que justificou pela “necessidade de dar garantia ao investidor pelo dinheiro investido”, e sobre a emissão da fatura das obras de reabilitação, que visa “comprovar junto do SEF que o investimento se concretiza para reabilitação urbana” – cf. RIT A... [2018].
U. No âmbito deste procedimento inspetivo, os serviços da Requerida concluíram por irregularidades em IVA, relevando para a presente ação apenas a relativa à falta liquidação de imposto (IVA inferior ao devido), por ter sido aplicada a taxa reduzida (6%) à faturação aos investidores dos adiantamentos para obras de reabilitação urbana, ao invés da taxa normal de 23% – cf. RIT A... [2018].
V. A Requerente 1 foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“PRIT”), para efeitos do exercício do direito de audição, que foi apresentado em 7 de fevereiro de 2023 – cf. RIT A... [2018].
W. Posteriormente, a Requerente 1 foi notificada do Relatório Final (“RIT”), que manteve a proposta de correções de IVA, convertendo-a em definitiva. A Requerida rejeitou os argumentos esgrimidos no direito de audição, reiterou a posição expressa no PRIT e replicou que a Requerente 1 selecionou (sem contestar) e desconsiderou partes essenciais da fundamentação, em matéria de facto e de direito, omitindo argumentos apresentados pela inspeção tributária, além de descontextualizar transcrições do RIT e suprimir normas legais estruturantes da fundamentação, fragmentando de forma artificial as análises e conclusões da inspeção. Sustenta que os argumentos apresentados pela Requerente 1 foram devidamente valorados e enquadrados à luz das normas do IVA e que as correções constantes do RIT se encontram exaustivamente fundamentadas em matéria de facto e de direito – cf. A... [2018].
X. Como fundamento das correções de IVA em discussão nestes autos, refere o RIT A... [2018] o seguinte:
“[…]
Acresce - a esta situação - o facto de a A... vender “avos” de um imóvel que incorpora um vasto conjunto de inputs abrangidos pela taxa reduzida de IVA (6% na Empreitada) e pela taxa normal de imposto (23%) como sejam projetos, estudos, arquiteturas, engenharias, fiscalização, bens e serviços não contemplados na empreitada, gastos administrativos e de administração, etc.
Da interpretação do artigo 18.º, n.º 4, do CIVA resulta que, no caso das transmissões de bens constituídos pelo agrupamento de várias mercadorias, formando um produto comercial distinto, só se aplicam as taxas que correspondem a cada uma das mercadorias [e igualmente se aplica aos serviços] quando as mercadorias “que compõem a unidade de venda não sofram alterações da sua natureza nem percam a sua individualidade”; ou, se lhe couberem taxas diferentes, a taxa a aplicar será a taxa de IVA “mais elevada”, ou seja, a taxa normal de IVA de 23%.
Ora, no caso concreto, quando a A.... vende um “avo” a um investidor dos vistos gold, não pode olvidar que, para essa fração do imóvel que aliena por € 350.000,00 [€ 250.000,00 (CCV) por escritura pública de compra e venda e € 100.000,00 (FT) faturados a título de repartição das obras de reabilitação da empreitada] não contribuíram apenas e somente os inputs sujeitos à taxa reduzida, e que, o que na realidade o investidor dos vistos gold adquire, não é apenas um determinado “avo” da participação nas obras, mas sim, um “avo” de um imóvel onde foram consumidos gastos de várias naturezas sujeitos à taxa normal.
[…]
Aos factos descritos, que levaram à aplicação da taxa reduzida de IVA (6%) - por parte do SP - à componente da empreitada de reabilitação urbana repartida / imputada a cada um dos “avos” adquirido pelos investidores dos vistos gold, em vez da aplicação da taxa normal (23%), importa acrescentar o esclarecimento sobre o âmbito de aplicação ou alcance da norma prevista na verba 2.23 da Lista I, Anexa ao CIVA, que regula as condições de aplicação da taxa reduzida de IVA (6%) à reabilitação urbana: […]
De facto, a verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, prevê a possibilidade de aplicação da taxa reduzida (6%) a estas operações, mas mediante a imposição de condições restritas, de verificação cumulativa, a saber:
· A taxa reduzida só se aplica no âmbito de “Empreitadas de reabilitação urbana”;
· Nas condições definidas “em diploma específico”;
· Desde que “realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou,
· No âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.
No caso concreto, a A... fatura adiantamentos - a título de obras de reabilitação - aos investidores internacionais que pretendem obter os vistos gold. Na componente das mesmas aplicou IVA a 6% (taxa reduzida do Continente) por, na sua perspetiva, se tratar de obras sobre imóveis inseridos numa Área de Reabilitação Urbana (ARU).
Sobre este aspeto, como antes dito e devidamente justificado, revela-se indevida a aplicação da taxa reduzida. Pois, para além dos motivos já detalhadamente expostos, acresce o facto de ser pressuposto legal obrigatório estar perante um contrato de empreitada celebrado entre o empreiteiro geral e o dono da obra.
Ora, a A...- que fatura os trabalhos - não é um empreiteiro geral. Nem os investidores dos vistos gold são o dono da obra [segundo legislação especial que enquadra os contratos de empreitada]. Nem é ao investidor do visto gold que o município (respetivo) emite a declaração oficial para efeito da aplicação da taxa reduzida de IVA aplicável à reabilitação urbana.
O simples facto de o imóvel se encontrar sitiado numa ARU, também não constitui elemento bastante para, por si só, ser o único argumento invocado para efeito de aplicação da taxa reduzida de IVA.
Sobre este tema, existem várias Instruções Administrativas da AT, e esclarecimentos da Ordem dos contabilistas certificados (OCC) que são claros, ao estabelecerem que a aplicação da taxa reduzida de IVA à reabilitação urbana de imóveis situados numa ARU, depende da aplicação múltipla de vários critérios simultâneos, e da verificação de vários pressupostos que, no momento em que é faturado o adiantamento, e em que se verifica a exigibilidade do IVA (artigo 8.º e 18.º, n.º 9, ambos do CIVA), não se encontram verificados; e, nem mesmo após a realização das obras se encontram reunidos.
[…]
Em síntese
De todo o circunstanciado resulta claro estarmos perante condições que, de per si e conjuntamente, afastam a aplicação da taxa reduzida na faturação (FT) das obras aos investidores:
1. Não é suficiente que a certidão refira que o prédio objeto de intervenção se situa numa ARU (zona de reabilitação urbana) reconhecida pela Assembleia Municipal.
2. Apesar de o imóvel em causa se localizar numa Área de Reabilitação Urbana (ARU), em obediência ao disposto no DL. n.º 307/2009, de 23 de outubro, importa aferir se as intervenções efetuadas, são devidamente comunicadas e aprovadas pela respetiva Câmara Municipal, e, cumulativamente,
3. Os trabalhos devem encontrar-se previstos no(s) respetivo(s) contrato(s) de empreitada assinado(s) pelas partes: "Dono da obra" e "Empreiteiro geral".
4. A taxa reduzida de IVA aplica-se apenas na relação jurídico-tributária estabelecida entre a A... e o empreiteiro geral [porque é entre estes que existe um contrato de empreitada enquadrável em toda a sua plenitude no regime das empreitadas e subempreitadas previsto no DL. n.º 307/2009, de 23/10].
5. Entre a A... e os Investidores dos vistos gold não existe qualquer contrato de empreitada; pois nem a A... tem a qualificação, licenças, alvarás de empreiteiro geral, nem os investidores dos vistos gold possuem em seu nome a respetiva certificação da autarquia e nem sequer exercem uma atividade económica para efeitos de IVA, nem sendo sequer “donos da obra” segundo a definição de contrato de empreitada.
Conclusão
Face ao exposto, é devida correção ao IVA liquidado - resultante da aplicação incorreta da taxa reduzida prevista no artigo 18.º, n.º 1, al. a) do CIVA e da Verba 2.23 da Lista I, Anexa ao CIVA - relativamente aos trabalhos de reabilitação urbana faturados pela A... aos investidores dos vistos gold que o SP estava obrigado a liquidar à taxa normal (23%) prevista no artigo 18.º, n.º 1, al. c) do CIVA. […]”
Y. Em 17 de novembro de 2022, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do Porto iniciaram um procedimento inspetivo ao IVA e IRC da Requerente 1, referente ao ano 2019, que qualificaram de externo, ao abrigo da ordem de serviço OI2022..., para análise do enquadramento das operações praticadas pelo sujeito passivo – cf. RIT A... [2019].
Z. A ordem de serviço foi assinada por dois representantes (procuradores) da Requerente 1 – cf. RIT A... [2019].
AA. A Requerente 1 enviou documentos e prestou esclarecimentos à equipa de inspeção tributária, em moldes idênticos aos referidos relativamente ao ano 2018, nomeadamente sobre a venda dos avos dos imóveis, que justificou pela “necessidade de dar garantia ao investidor pelo dinheiro investido”, e sobre a emissão da fatura das obras de reabilitação, que visa “comprovar junto do SEF que o investimento se concretiza para reabilitação urbana” – cf. RIT A... 2019].
BB. À semelhança do ocorrido em relação ao ano 2018, os serviços de inspeção da Requerida concluíram por irregularidades em IVA, relevando para a presente ação apenas a relativa à falta liquidação de imposto (IVA inferior ao devido), por ter sido aplicada a taxa reduzida (6%) à faturação aos investidores dos adiantamentos para obras de reabilitação urbana, ao invés da taxa normal de 23% – cf. RIT A... [2019].
CC. A Requerente 1 foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“PRIT”), para efeitos do exercício do direito de audição, que foi apresentado em 18 de setembro de 2023 – cf. RIT A... [2019].
DD. Posteriormente, a Requerente 1 foi notificada do Relatório Final (“RIT”), que manteve a proposta de correções de IVA, convertendo-a em definitiva. A Requerida rejeitou os argumentos esgrimidos no direito de audição, nos mesmos termos acima descritos para o ano 2018 e acrescentou que:
a) Os investidores não exerceram, diretamente ou através de uma sociedade, qualquer atividade de investimento, tendo as obras de reabilitação sido promovidas pela Requerente 1;
b) Que os investidores não têm interesse direto ou indireto na reabilitação dos imóveis, pretendendo apenas aceder ao visto de residência e limitando-se a disponibilizar meios financeiros;
c) O valor faturado aos investidores é inferior ao orçamentado pelo empreiteiro à Requerente 1;
d) A Câmara Municipal do Porto emitiu as declarações relevantes para efeitos de IVA em relação à reabilitação urbana à Requerente 1, não tendo esta demonstrado que as mesmas tenham sido emitidas aos investidores. Foram emitidas outras declarações camarárias a estes para efeitos de outros impostos (IMT);
e) Não existe redébito aos investidores e o PRIT não o atesta – cf. ... [2019].
EE. Como fundamento das correções de IVA em discussão nestes autos, refere o RIT ...[2019], além dos argumentos acima reproduzidos do ano 2018:
“[…]
Na génese da contraprestação referida não está subjacente um verdadeiro adiantamento para obras de reabilitação do imóvel. O investidor estrangeiro “não possui” um interesse direto ou indireto na reabilitação do imóvel, mas sim a obtenção de documento comprovativo de obras de reabilitação com vista ao preenchimento dos requisitos legais indispensáveis à instrução de processo junto do SEF, para obtenção de um visto de residência. O fracionamento da quantia recebida entre escritura e fatura cumpre um formalismo. Quem executa, como Dono da Obra, as empreitadas é aA ..., logo, é esta a entidade que reúne os requisitos legais atrás expostos para beneficiar da taxa reduzida de 6%.
A A... fatura as obras de reabilitação, mas – efetivamente – não presta serviço de obras. A fatura constitui um formalismo. De facto e em substância, aquilo que é objeto de venda é o imóvel(eis) reabilitado e não algo fracionado em “casco” e obras.
Complementarmente, é pressuposto legal obrigatório – para a validação do RJRU e verba 2.23 da Lista I (anexa ao CIVA) - estarmos perante um contrato de empreitada celebrado entre o empreiteiro geral e o dono da obra.
Ora, a A... – na emissão de fatura a título de obras - não é um empreiteiro geral. Nem os investidores dos vistos gold são o dono da obra [segundo legislação especial que enquadra os contratos de empreitada]. Nem é ao investidor do visto gold que o município (respetivo) emite a declaração oficial para efeito da aplicação da taxa reduzida de IVA aplicável à reabilitação urbana.
[…]
Acresce que tem sido entendimento da AT que, em operações de redébito ou comparticipação, o enquadramento do respetivo débito deve seguir as seguintes orientações:
· Se a fatura for emitida de forma discriminada, identificando os componentes que constituem os bens ou serviços [igual à fatura do gasto que foi suportado], há lugar a tributação à taxa de IVA que corresponder a cada uma das componentes debitadas.
· Se emitida sem qualquer discriminação, a respetiva tributação é feita à taxa normal. Esta é também a situação visível nas faturas da A..., cujo descritivo apresentado se limita a “Adiantamento para obras de reabilitação urbana”. […]”
Em síntese
De todo o circunstanciado resulta claro estarmos perante condições que, de per si e conjuntamente, afastam a aplicação da taxa reduzida na faturação (FT) das obras aos investidores:
1. Não é suficiente que a certidão refira que o prédio objeto de intervenção se situa numa ARU (zona de reabilitação urbana) reconhecida pela Assembleia Municipal, e que a obra de reabilitação seja classificada de ORU (obra de reabilitação urbana);
2. Para além de que tal certidão se encontra emitida em nome da A... sendo esta a entidade que, de facto, promove a reabilitação urbana;
3. E, como já referido, o interesse dos investidores cinge-se, unicamente, à obtenção do designado visto gold;
4. Os trabalhos devem encontrar-se previstos no respetivo contrato de empreitada assinado pelas partes: “Dono da obra” e “Empreiteiro geral”, sendo sempre a A... a assumir a posição de Dono da Obra;
5. A taxa reduzida de IVA aplica-se apenas na relação jurídico-tributária estabelecida entre a A... e o empreiteiro geral [pois é entre estes que existe um contrato de empreitada enquadrável em toda a sua plenitude no regime das empreitadas e subempreitadas previsto no DL. n.º 307/2009, de 23/10];
6. Entre a A... e os Investidores dos vistos gold não existe qualquer contrato de empreitada; pois nem a A... tem a qualificação, licenças, alvarás de empreiteiro geral, nem os investidores dos vistos gold possuem em seu nome a respetiva certificação da autarquia; e, nem tampouco, exercem uma atividade económica para efeitos de IVA nem são “donos da obra” segundo a definição de contrato de empreitada. […]”
FF. Na sequência dos mencionados procedimentos inspetivos, foram emitidos à Requerente 1 os seguintes atos tributários de liquidação de IVA e juros compensatórios, reportados ao imposto dos anos de 2018 e 2019 – cf. Documentos 1 e 7:
a) Liquidação de IVA respeitante ao período 201809T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 50 244,12, com data de emissão de 3 de março de 2023 e data-limite de pagamento de 24 de abril de 2023 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
b) Liquidação de IVA respeitante ao período 201812T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 338 516,75, com data de emissão de 3 de março de 2023 e data-limite de pagamento de 24 de abril de 2023 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
c) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201809T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 8 556,64, com data de emissão de 3 de março de 2023 e data-limite de pagamento de 24 de abril de 2023 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
d) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201812T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 54 236,87, com data de emissão de 3 de março de 2023 e data-limite de pagamento de 24 de abril de 2023 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
e) Liquidação de IVA respeitante ao período 201903T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 117 349,29, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
f) Liquidação de IVA respeitante ao período 201906T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 52 155,24, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
g) Liquidação de IVA respeitante ao período 201909T com o n.º 2023...e o valor a pagar de € 39 116,43, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
h) Liquidação de IVA respeitante ao período 201912T com o n.º 2023...e o valor a pagar de € 12 756,32, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
i) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201903T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 20 962,11, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
j) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201906T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 8 784,94, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
k) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201909T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 6 177,18, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
l) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período 201912T com o n.º 2023 ... no valor de € 1 885,83,com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...).
GG. Os referidos atos tributários perfazem o valor de € 710 741,72, decomposto nos seguintes termos – cf. Documentos 1 e 7:
|
ANO
|
IMPOSTO
|
JUROS
|
TOTAL
|
|
2018
|
388 760,87
|
62 793,51
|
451 554,38
|
|
2019
|
221 377,28
|
37 810,06
|
259 187,34
|
|
|
610 138,15
|
100 603,57
|
710 741,72
|
HH. As liquidações de IVA e de juros compensatórios do ano 2018 foram disponibilizadas à Requerente 1 por transmissão eletrónica ViaCTT, em 7 de março de 2023, com a menção de que “A presente notificação considera-se efetuada no décimo quinto (15.º) dia útil seguinte ao registo da sua disponibilização”, ou seja, no dia 28 de março de 2023 – cf. Documento 1.
II. A Requerente 1 procedeu ao pagamento do valor de imposto e juros do ano 2018, no montante de € 451 554,38, em 13 de abril de 2023, e do ano 2019, na importância de € 259 187,34, em 9 de janeiro de 2024, perfazendo o total pago € 710 741,72 – cf. Documentos 3 e 9.
JJ. Inconformada com as mencionadas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, a Requerente 1 apresentou:
i. Em 11 de agosto de 2023, reclamação graciosa relativa ao ano 2018, à qual foi atribuído o n.º ...2023...– cf. Documento 4; e
ii. Em 10 de maio de 2024, reclamação graciosa relativa ao ano 2019, à qual foi atribuído o n.º ...2024... – cf. Documento 10.
KK. A reclamação da Requerente 1 relativa ao imposto e juros do ano 2018 foi parcialmente deferida por despacho de 17 de julho de 2024 da Diretora de Finanças Adjunta, tendo sido anuladas as correções referentes ao IVA deduzido. No entanto, mantiveram-se as liquidações de IVA e juros compensatórios correlativos, com fundamento na indevida aplicação da taxa reduzida de IVA prevista para as operações de reabilitação urbana, da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código, que fazem parte do objeto da presente impugnação arbitral – cf. Documento 5.
LL. A reclamação da Requerente 1 relativa ao imposto e juros do ano 2019 foi indeferida por despacho de 28 de agosto de 2024 da Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto, mantendo-se as liquidações adicionais de IVA e juros referentes a esse ano – cf. Documento 11.
MM. Dado o deferimento parcial da reclamação graciosa da Requerente 1 do ano 2018, o valor da liquidação de IVA e juros em causa nesse ano fica reduzido a € 348 325,41, sendo € 299 892,55 de IVA e € 48 432,86 de juros, perfazendo os dois anos [2018 e 2019] o valor de € 607.512,75, que está em causa nesta ação, por banda da Requerente 1, nos termos do quadro seguinte:
|
ANO
|
IMPOSTO
|
JUROS
|
TOTAL
|
|
2018
|
299 892,55
|
48 432,86
|
348 325,41
|
|
2019
|
221 377,28
|
37 810,06
|
259 187,34
|
|
|
521 269,83
|
86 242,92
|
607 512,75
|
NN. As duas reclamações graciosas, na parte relevante para o objeto destes autos (aplicação da taxa reduzida de IVA aos adiantamentos para obras de reabilitação urbana), foram indeferidas com os seguintes fundamentos– cf. Documentos 5 e 11:
(a) A falta de fundamentação dos atos tributários é infundada, constando dos RIT as razões de facto e de direito e a especificação das diligências efetuadas junto da Requerente 1 e da prova recolhida em resultados dessas diligências, bem como os raciocínios e conclusões retiradas dos factos;
(b) O ónus da prova cabe à Requerente 1, por invocar o direito a uma taxa reduzida, não tendo demonstrado os respetivos pressupostos – v. artigo 74.º da LGT;
(c) A simples delimitação da área de reabilitação urbana não determina, por si só, que todas as empreitadas que se realizem naquela área estão no âmbito do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana;
(d) É ainda necessário que a empreitada se enquadre numa operação de reabilitação urbana. A aprovação do pedido de licenciamento pela Câmara Municipal deve enquadrar-se na alínea j) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, nomeadamente, tratar-se de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, através de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios e a adjudicação da empreitada tenha por base a universalidade dos bens e serviços cuja disponibilização seja essencial à concretização da operação autorizada pelo município;
(e) No caso concreto, a operação em causa consiste na obtenção de financiamento por parte de investidores diretamente relacionado com a atribuição de um “Visto Gold”, pelo que se pode qualificar como prestação de serviços segundo o conceito residual previsto no artigo 4.º, n.º 1 do Código IVA, pelo que deverá ser tributada à taxa normal, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do mesmo diploma.
OO. A Requerente 1 deduziu recurso hierárquico:
i. A 2 de setembro de 2024, do despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa referente a IVA e juros de 2018, na parte que lhe foi desfavorável – cf. Documento 6 e provado por acordo;
ii. A 11 de outubro de 2024, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa referente a IVA e juros de 2019,
não tendo sido até hoje notificada de qualquer decisão proferida sobre os recursos apresentados – cf. Documento 12.
PP. Em 2019, a B..., Lda., aqui designada Requerente 2, encontrava-se inscrita como sujeito passivo de IVA, com enquadramento no regime normal trimestral e tipo de operações misto com dedução do imposto pelo método da afetação real de todos os bens e serviços – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT B...”) junto como Documento 14.
QQ. Nesse ano, a Requerente 2 estava registada no cadastro da AT para o exercício das atividades de Compra e Venda de Bens Imóveis – CAE 68100 –, Arrendamento de Bens Imobiliários – CAE 68200 –, Promoção Imobiliária – CAE 41100 – e, a partir de outubro de 2019, Hotéis com Restaurante – CAE 55111 – cf. RIT. B....
RR. A atividade da Requerente 2 era exercida nos mesmos moldes acima descritos para a Requerente 1 – cf. RIT B...versus RIT’s A... .
SS. Em 2018, a Requerente 2 deu início a um projeto de reconstrução/remodelação/reabilitação de um imóvel sito na ARU do centro histórico de Vila Nova de Gaia, na Rua ..., n.ºs ... a ..., com classificação de ORU, com vista à constituição da unidade hoteleira G..., de quatro estrelas, com 35 quartos ao longo de seis pisos – cf. RIT B... .
TT. A Requerente 2 celebrou em 14 de novembro de 2018 um contrato de empreitada com a C..., S.A., o qual veio a ser revogado e substituído pelo contrato celebrado com a sociedade H..., S.A. em 22 de janeiro de 2021, alterado em 4 de setembro de 2023 – cf. Documento 21 e RIT B... .
UU. A Requerente 2 promoveu a alienação de quotas-partes (avos) deste imóvel, que foram adquiridas no regime de compropriedade por 35 investidores, em termos similares aos acima descritos para o ... da Requerente 1, quer quanto às características e objetivos dos investidores (vistos gold), quer quanto ao valor investido por cada um, modelo de negócio do sujeito passivo, procedimentos adotados e contabilização das operações – cf. Documento 22 e RIT B... .
VV. Em 19 de setembro de 2023, os SIT da Direção de Finanças do Porto deram início a uma ação inspetiva abrangendo o IVA e o IRC da Requerente 2, relativos ao ano 2019, que qualificaram de externo, ao abrigo da ordem de serviço OI2023..., visando a análise do enquadramento legal das operações praticadas pelo sujeito passivo – cf. RIT B... .
WW. A ordem de serviço foi assinada por dois representantes (procuradores) da Requerente 2 – cf. RIT B... .
XX. No decurso da ação inspetiva, a Requerente 2 disponibilizou aos SIT informações e esclarecimentos sobre o modelo de negócio seguido – cf. RIT B... .
YY. Na sequência do procedimento inspetivo, a Requerente 2 foi notificada do PRIT com proposta de correções de IVA, relevando para a presente ação apenas as respeitantes à falta de liquidação deste imposto (IVA inferior ao devido), por ter sido aplicada a taxa reduzida (6%) à faturação dos adiantamentos para obras de reabilitação urbana aos investidores, ao invés da taxa normal de 23% – cf. RIT B... .
ZZ. Os fundamentos para as correções ao IVA de 2019 da Requerente 2 são os mesmos supra descritos que constam dos Relatórios de Inspeção dos anos 2018 e 2019 da Requerente 1 – cf. RIT B... versus RIT’s A... .
AAA. O direito de audição foi exercido pela Requerente 2 em 22 de novembro de 2023 – cf. RIT B... .
BBB. Subsequentemente a Requerente 2 foi notificada do RIT que manteve a proposta de correções de IVA, convertendo-a em definitiva – cf. RIT B... .
CCC. Nesta sequência foram emitidos à Requerente 2 os seguintes atos tributários de liquidação de IVA e juros compensatórios do ano 2019 – cf. Documento 13:
a) Liquidação de IVA respeitante ao período de 201903T com o n.º 2023 ... o valor a pagar de € 143 426,91, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
b) Liquidação de IVA respeitante ao período de 201906T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 104 310,48, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
c) Liquidação de IVA respeitante ao período de 201909T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 104 310,48, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023 ...);
d) Liquidação de IVA respeitante ao período de 201912T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 92 686,77, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023..., no valor a pagar de € 91 271,67);
e) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período de 201903T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 25 981,88, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
f) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período de 201906T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 17 832,80, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...);
g) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período de 201909T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 16 735,37, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023...); e
h) Liquidação de juros de IVA respeitante ao período de 201912T com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 13 934,77, com data-limite de pagamento de 25 de janeiro de 2024 (demonstração de acerto de contas n.º 2023..., no valor a pagar de € 13 723,25).
DDD. Os referidos atos tributários perfazem o valor a pagar de € 517 592,84, que constitui o valor da causa respeitante à Requerente 2, decomposto da seguinte forma – cf. Documento 13:
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ANO
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IMPOSTO
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JUROS
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TOTAL
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2019
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443 319,54
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74 273,30
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517 592,84
|
EEE. A Requerente 2 procedeu ao pagamento do valor do imposto e juros, na importância de € 517 592,84, em 24 de janeiro de 2024 – cf. Documento 15.
FFF. Inconformada com as liquidações adicionais de IVA e juros em apreço, a Requerente 2 apresentou reclamação graciosa das mesmas, com data de entrada no Serviço de Finanças do Porto 5 de 23 de maio de 2024 – cf. Documento 16.
GGG. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 26 de setembro de 2024 da Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto, mantendo-se as liquidações adicionais – cf. Documento 17.
HHH. Os fundamentos do indeferimento da reclamação graciosa da Requerente 2 são equivalentes aos que acima se descreveram para as decisões das reclamações graciosas da Requerente 1 – cf. Documento 17 versus Documentos 5 e 11.
III. A Requerente 2 deduziu recurso hierárquico do despacho de indeferimento da reclamação graciosa que deu entrada na AT em 28 de outubro de 2024, sem que, contudo, até ao momento tenha sido notificada de qualquer decisão proferida sobre o mesmo – cf. Documento 18.
JJJ. Em discordância das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios referentes reportadas às operações dos anos 2018 e 2019, as Requerentes 1 e 2 apresentaram em coligação junto do CAAD, em 12 de fevereiro de 2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.
2. Motivação da Decisão da Matéria de Facto e Factos não Provados
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes.
Importa notar que, ao contrário do que alegam as Requerentes, não se verifica divergência entre as Partes relativamente aos factos essenciais para a decisão de mérito, nem os factos adquiridos no procedimento são “insuficientes”. Com efeito, os factos essenciais que constam da fundamentação dos Relatórios inspetivos são precisamente aqueles que a Requerente invoca e articula no pedido de pronúncia arbitral. Esses factos, acima assentes, são descritos de forma idêntica nas peças processuais e nos Relatórios de Inspeção por ambas as Partes e estão comprovados por documentos.
Nestes termos, a dissenção verifica-se unicamente em relação às conclusões que se retiram desses factos e ao seu enquadramento jurídico-tributário, que se colocam num plano distinto, o das questões de direito a dirimir.
Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
V. Do Direito
1. Classificação da Inspeção – Caducidade do Direito à Liquidação
Relativamente às liquidações da Requerente 1 respeitantes ao ano 2018, esta argui a caducidade do direito à liquidação, por ter sido ultrapassado o prazo de quatro anos previsto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT[6], por remissão do artigo 94.º, n.º 1 do Código do IVA para a notificação desses atos tributários.
Para efeitos de IVA, o prazo de caducidade conta-se a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto (v. 45.º, n.º 4 da LGT), i.e., a partir de 1 de janeiro de 2019. Desta forma, segundo a Requerente 1, as liquidações tinham de lhe ser notificadas até 31 de dezembro de 2022, no entanto, foram-no posteriormente, no dia 28 de março de 2023.
Importa notar que as liquidações de 2018 não só foram notificadas após 31 de dezembro de 2022, como a sua emissão[7] também ocorreu depois dessa data, o que significa que, se fosse esse o termo do prazo de caducidade, estariam inquinadas de vício de violação de lei (v. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13 de julho de 2023, processo n.º 136/22.7BELRS).
Porém, o prazo de caducidade suspende-se quando o contribuinte seja notificado do início de uma ação de inspeção externa em relação ao ano em causa, até à conclusão do procedimento de inspeção, desde que não ultrapasse a duração de seis meses.
O ponto aqui reside, assim, em saber se em relação ao procedimento inspetivo realizado à Requerente 1 em 2018 operou o efeito suspensivo do prazo de caducidade, determinado pelo n.º 1 do artigo 46.º da LGT, que dispõe o seguinte:
“1 – O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.”
Esta suspensão, caso se verifique, afasta a caducidade e o seu poder extintivo, encontrando-se dependente da classificação do procedimento inspetivo como externo, o que nos remete para o critério consagrado no artigo 13.º do RCPITA, infra transcrito:
“Artigo 13.º
Lugar do procedimento de inspeção
Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”
Na perspetiva da Requerente 1, não foram efetuados quaisquer atos de inspeção em instalações ou dependências da Requerente ou de terceiros, não tendo ocorrido deslocação física dos inspetores (exceto para assinatura da ordem de serviço pelos representantes da Requerente), pelo que o procedimento deve ser classificado como interno, independentemente da qualificação que a AT lhe atribuiu no RIT A... 2018, com a consequente inaplicabilidade do n.º 1 do artigo 46.º da LGT e do efeito suspensivo nele prescrito, operando a caducidade do direito à liquidação nos termos gerais do artigo 45.º da LGT, sem qualquer extensão de prazo.
Do ponto de vista da Requerida, a inspeção é externa, tendo em conta que assumiu carácter investigatório com interações diversas entre o sujeito passivo e os serviços da AT, nomeadamente pedidos de informações e esclarecimentos por via eletrónica, reuniões de discussão das matérias com os respetivos representantes e envio de documentos que ultrapassam a “análise da documentação que já estava na posse da Administração Tributária, no âmbito de informação que constasse já da sua própria plataforma informática e das declarações de imposto apresentadas”. Preconiza que a natureza externa da inspeção é material e não pode apenas cingir-se ao local de realização dos atos inspetivos.
Efetivamente, entende este Tribunal que a classificação do procedimento atribuída pelos serviços de inspeção não é determinante, nem pode ser fixada de forma arbitrária, estando submetida aos parâmetros legais estabelecidos no artigo 13.º do RCPITA (neste sentido v. os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13 de novembro de 2014, processo n.º 01854/10.8BEBRG; do Tribunal Central Administrativo Sul, de 27 de janeiro de 2022, processo n.º 290/08.0BEFUN, e de 4 de maio de 2023, processo n.º 292/12.2BELRA; bem como a decisão arbitral do processo n.º 468/2022-T).
Por outro lado, a classificação da inspeção como interna ou externa não se atém apenas a critérios de localização e visa, na sua essência, a tutela dos direitos e garantias do sujeito passivo, cuja suscetibilidade de lesão é acrescida nas situações que impliquem ou comportem interações da Administração com o contribuinte.
Como refere Nuno de Oliveira Garcia et al. “a classificação dos procedimentos de inspeção como interno ou externo não se resume a uma mera distinção de ordem espacial ou de localização dos atos inspetivos, acarretando, na verdade, importantes consequências, na medida em que o procedimento de inspeção externa pode restringir os direitos e liberdades fundamentais dos sujeitos passivos, desde logo […] na matéria relativa à caducidade do direito à liquidação dos tributos.”[8]
Tradicionalmente, aquelas interações eram maioritariamente presenciais, o que justifica a epígrafe do artigo 13.º do RCPITA (“lugar do procedimento de inspeção”, que remonta à aprovação deste diploma, em 1998). Todavia, com a evolução tecnológica e as práticas de trabalho à distância exponenciadas pela pandemia Covid 19, é cada vez mais frequente a substituição das interações presenciais por contactos por via eletrónica (v.g. por e-mail) para a obtenção de documentos e informações ou esclarecimentos por parte da AT.
Independentemente do meio de atuação – presencial ou remoto – quando a Administração aborda e interage com o contribuinte, na prossecução da sua atividade de investigação, para obter elementos (informações, documentos, esclarecimentos), estamos perante manifestações de carácter externado e dotadas de bilateralidade, nas quais se suscitam precisamente as preocupações subjacentes ao regime das inspeções externas, que justificam garantias como o princípio da irrepetibilidade das inspeções, que vigora somente para os procedimentos externos, e a obrigatoriedade de notificação prévia destes (v. artigos 63.º, n.º 4 da LGT e 49.º do RCPITA e a decisão dos processos arbitrais n.ºs 111/2014-T, de 22 de dezembro de 2014, e 468/2022-T, de 28 de janeiro de 2023)[9].
Acresce ter ficado provado, na situação vertente, que além das múltiplas interações por meios eletrónicos entre os serviços de inspeção tributária e a Requerente 1, conforme acima referido, ocorreram reuniões presenciais entre os representantes daquela e os serviços, nas quais foram discutidas as matérias técnicas, prestadas informações e esclarecimentos pertinentes ao procedimento inspetivo de 2018 [A...]. Trata-se de verdadeiros atos materiais inspetivos (v. artigo 55.º do RCPITA) e é inequívoco que os elementos obtidos foram relevantes para a fundamentação das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios controvertidas.
O circunstancialismo descrito não é enquadrável na caracterização da inspeção interna recortada pela alínea b) do artigo 13.º do RCPITA, pois ultrapassa de forma evidente a “análise formal e de coerência dos documentos” detidos ou obtidos pela AT. Os elementos relevantes foram obtidos através de contactos estabelecidos pelos serviços de inspeção com a Requerente – quer por meios eletrónicos, quer por via presencial (reuniões) –, tendo esta última (entidade externa aos serviços de inspeção) fornecido os elementos solicitados à AT, pelo que é inegável a natureza externa dos contactos e comunicações encetados, incompatível com a qualificação meramente interna da ação inspetiva que, por razões óbvias, o legislador revestiu de menores exigências formais.
Em situação similar, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se no sentido de que “só é procedimento interno aquele cujos atos de inspeção se traduzam numa «análise formal e de coerência de documentos» - ver o citado artigo 13.º, alínea a), parte final.”, sublinhando ainda, a propósito do local dos atos de inspeção e do disposto no artigo 34.º do RCPITA, que o lugar em que o procedimento é efetivamente realizado já não interfere com a classificação do procedimento e, por conseguinte, com o funcionamento das garantias procedimentais instituídas para o mesmo (v. acórdão de 17 de dezembro de 2019, processo n.º 072/13.8BEMDL[10]).
Em moldes idênticos, veja-se a fundamentação do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4 de maio de 2023, processo n.º 292/12.2BELRA: “No fundo, do que aqui [na inspeção externa] se trata é da existência de alguma atividade da inspeção que revele um cariz investigatório que extravasa os tais dados de que a AT dispõe nas suas bases de dados”. Conclui esta jurisprudência que “São ações inspetivas externas aquelas em que existe alguma atividade da inspeção que revele um cariz investigatório que extravasa os tais dados de que a AT dispõe nas suas bases de dados.”
De referir ainda a decisão do processo arbitral n.º 694/2024, de 31 de janeiro de 2025 de que se transcreve o seguinte excerto ilustrativo: “Quer dizer que a AT, no decurso do procedimento, não se limitou a fazer uma «análise formal e de coerência dos documentos», que é o conteúdo material da inspecção dita “interna”. Como se escreveu no Sumário da Decisão do processo n.º 28/2023-T, “A qualificação dada ao procedimento de inspecção pela Autoridade Tributária não é vinculativa, devendo apurar-se, em função dos concretos actos praticados e independentemente do local em que ocorra a análise, se se trata de uma inspecção externa ou interna.”
À face do exposto, julga este Tribunal Arbitral nada haver a apontar à classificação do procedimento inspetivo como externo efetuada pela AT, pelo que improcede o alegado vício de caducidade do direito à liquidação do IVA. Sendo um procedimento externo de inspeção, aplica-se a suspensão do prazo de caducidade prevista no artigo 46.º, n.º 1 da LGT, pelo que ainda não se encontrava esgotado este prazo (de quatro anos), quer à data da emissão das liquidações em crise referentes a 2018 (3 de março de 2023), quer da notificação destas à Requerente 1 (28 de março de 2023).
Com efeito, atendendo a que os atos inspetivos se iniciaram com a assinatura da ordem de serviço pelo representante da Requerente em 29 de setembro de 2022 e que a emissão do relatório de inspeção (final) e a inerente conclusão do procedimento datam de 24 de fevereiro de 2023[11], decorreu um período de quatro meses e 26 dias, durante o qual se verificou a suspensão da contagem do prazo de caducidade. Assim, ao termo de 31 de dezembro de 2022 invocado pela Requerente, terão de acrescer-se quatro meses e 26 dias, pelo que em 28 de março de 2023 aquele prazo ainda não tinha expirado.
2. Adiantamentos para Obras de Reabilitação Urbana
2.1. Enquadramento preliminar
A segunda ilegalidade substantiva invocada pelas Requerentes em relação aos atos tributários objeto da ação arbitral, por erro nos pressupostos de facto e de direito, respeita à aplicação, pela AT, da taxa de 23% à faturação de obras de reabilitação urbana aos investidores, comproprietários dos edifícios destinados a exploração hoteleira da Requerente, que foram objeto de reconstrução, remodelação e reabilitação para esse fim, por violação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA e da verba 2.23 da correspondente Lista I, que, do ponto de vista das Requerentes, determinam a tributação dessas obras à taxa reduzida de 6%.
Em ambos os casos, da Requerente 1 e da Requerente 2, estão em causa prestações de serviços relativos a empreitadas de reabilitação urbana que aquelas adquiriram, tendo celebrado os correspondentes contratos de empreitada com sociedades de engenharia e construção civil. Bem como são iguais os modelos de negócio, os contratos celebrados com os investidores, procedimentos adotados e contabilização das operações. Dada a identidade das situações, a sua apreciação será efetuada conjuntamente.
Importa começar por sublinhar que ambas as Partes consideram que os serviços de reabilitação urbana prestados e faturados pelas sociedades construtoras (empreiteiros gerais) às Requerentes preenchem os requisitos legais para o respetivo enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, respeitando a empreitadas de reabilitação urbana, tal como definidas em diploma específico, realizadas em imóveis localizados em áreas de reabilitação urbana, e, portanto, passíveis de serem tributados em IVA à taxa reduzida de 6%.
Em qualquer dos relatórios inspetivos, a AT aceita, sem promover quaisquer correções, que as empresas construtoras tenham faturado as Requerentes sem IVA, ao abrigo do regime de autoliquidação aplicável aos serviços de construção civil, pelos serviços de empreitada realizados, e que estas tenham autoliquidado o IVA sobre essas faturas à taxa reduzida de 6%, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código deste imposto e da verba 2.23 da Lista I a ele anexa, por configurarem empreitadas de reabilitação urbana abrangidas pela dita verba.
O ponto de divergência está no regime de IVA aplicável à faturação pelas Requerentes, aos investidores/comproprietários dos adiantamentos para as obras de reabilitação objeto daquelas empreitadas que estes (pelo menos em parte) custearam.
Na perspetiva das Requerentes, as empreitadas de reabilitação urbana desencadearam os seus efeitos também em relação aos investidores que adquiriram em compropriedade os prédios urbanos e contribuíram financeiramente para as obras de reabilitação com vista ao cumprimento dos requisitos legais de obtenção de autorização de residência para a atividade de investimento.
A contratação dos serviços de empreitada de reabilitação urbana foi realizada por conta e no interesse dos investidores e comproprietários, pelas Requerentes como mandatárias, ao abrigo de um mandato sem representação (v. artigos 1157.º[12] e 1180.º[13] do Código Civil e artigos 231.º e 266.º do Código Comercial), aplicando-se o disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, segundo o qual, “quando a prestação de serviços for efetuada por intervenção de um mandatário agindo em nome próprio, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do serviço”[14]. Ficcionam-se, desta forma, duas operações sucessivas (entre os empreiteiros e as Requerentes, por um lado, e entre as Requerentes e os investidores, por outro lado), que conservam o mesmo regime de IVA. Isto sem prejuízo de as Requerentes terem igualmente interesse próprio na reabilitação urbana, para exploração hoteleira subsequente.
Assim, se na primeira relação jurídico-tributária é devido IVA à taxa de 6%, no que ambas as Partes concedem, na segunda relação, das Requerentes com os investidores, será, igualmente, aplicável tal taxa reduzida.
2.2. Regime de IVA em caso de mandato sem representação
O sistema comum do IVA contém uma disciplina específica para as operações realizadas pelos sujeitos passivos em nome próprio, por conta de outrem, regime que abrange, quer as transmissões de bens, quer as prestações de serviços.
No caso das transmissões de bens, rege o artigo 14.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA que considera como tais as transmissões efetuadas “nos termos de um contrato de comissão de compra ou de venda.” Esta regulação acompanha, de igual modo, as prestações de serviços, nos termos do artigo 28.º da Diretiva IVA: “[q]uando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão”, que o Código do IVA transpôs no seu artigo 4.º, n.º 4 (“[q]uando a prestação de serviços for efetuada por intervenção de um mandatário agindo em nome próprio, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do serviço”).
Ben Terra e Julie Kajus[15] explicam que sem estas normas um intermediário sem poderes de representação [undisclosed agent ou intermediário opaco] teria sempre de revelar o nome do mandante para a adoção de procedimentos de faturação conformes ao sistema comum do IVA. Para ultrapassar essa limitação, a Diretiva introduziu a “ficção” de uma operação para e a partir do undisclosed agent (mandatário ou comissário). É a este (na qualidade de destinatário) que as faturas têm de ser emitidas pelos fornecedores dos bens transmitidos ou prestadores dos serviços realizados[16] e é também o mandatário (comissário) que deve emitir as faturas (de “re”faturação) dos bens ou serviços em causa ao mandante (comitente), quando o primeiro, atuando em nome próprio, intervém numa operação relevante para efeitos de IVA.
Segundo Xavier de Basto, esta solução é imposta pela natureza técnica do IVA, cujo correto funcionamento exige a inexistência de cortes ou interrupções na cadeia de deduções[17]: “há que impedir, através de uma ficção, a interrupção da cadeia de deduções. A ficção será agora a de que o mandatário “recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão”, conseguindo-se assim que o mandatário possa deduzir o imposto que lhe foi debitado quando os adquiriu. De outra forma, apenas o imposto que onerasse as despesas do mandatário poderia ser por ele deduzido”[18].
A faturação das operações pelo intermediário ao mandante/comitente segue o mesmo regime de IVA da operação inicial, nomeadamente no tocante à sua qualificação e regime (v.g. incidência e taxa aplicável), devendo a fatura conter a discriminação das operações, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 5 do Código do imposto.
O Tribunal de Justiça também já se pronunciou sobre o tratamento em IVA das operações – sejam de bens ou de serviços – efetuadas em nome próprio por intermediários.
Para aquele Tribunal europeu, a atuação em nome próprio significa que o vínculo jurídico não nasce diretamente entre o prestador (ou adquirente, consoante os casos) e a entidade por conta de quem o intermediário age, mas entre esse prestador e o intermediário, por um lado, e entre o intermediário e o seu mandante, por outro – v. ponto 33 do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo C-464/10, Henfling, em 14 de julho de 2011.
Nestes termos, “o artigo 28.º da Diretiva IVA cria a ficção jurídica de duas prestações de serviços idênticas fornecidas consecutivamente, considerando‑se que o operador, que intervém na prestação de serviços e que é o comissário, recebeu, num primeiro momento, os serviços em causa de prestadores especializados antes de fornecer, num segundo momento, esses serviços ao operador por conta do qual atua (Acórdão de 4 de maio de 2017, Comissão/Luxemburgo, C‑274/15, EU:C:2017:333, n.º 86)” – ponto 37 do acórdão proferido no processo C-707/18, Amărăşti Land Investment, de 19 de dezembro de 2019.
Por outro lado, o Tribunal de Justiça refere expressamente que o artigo 6.º, n.º 4 da Sexta Diretiva[19](correspondente ao atual artigo 28.º da Diretiva IVA) está “redigido em termos gerais, sem conter restrições quanto ao seu âmbito de aplicação ou ao seu alcance” e que “a ficção criada por esta disposição diz também respeito à aplicação das isenções do IVA previstas na Sexta Directiva. Daí resulta que, se a prestação de serviços em que o comissário intervém está isenta de IVA, essa isenção também é aplicável à relação jurídica entre o comitente e o comissário” – ponto 36 do acórdão C-464/10, Henfling. Rematando que a tal conclusão não se opõe o princípio da neutralidade fiscal.
A argumentação do Tribunal de Justiça sobre a aplicação do regime de isenção de IVA em operações sucessivas com intervenção de comitente/comissário é totalmente transponível para as taxas de IVA. Uma vez que se verifica a equiparação do serviço prestado (ou bem transmitido)[20] ao serviço (re)faturado (e adquirido em última instância pelo mandante ou comitente) a ambos caberá a mesma taxa de IVA.
O Tribunal de Justiça considera, além do mais, que a aplicação do regime específico de tributação das operações efetuadas com intervenção de intermediários que agem em nome próprio, mas por conta de outrem, é independente do valor “(re)faturado” pelo intermediário. Neste âmbito declara que, “tendo em conta que a redação do artigo 28.º da Diretiva IVA não prevê nenhuma condição relativa ao caráter oneroso da participação na prestação de serviços, é irrelevante, para efeitos da aplicação deste artigo, o facto de os custos associados à primeira inscrição do imóvel em causa no Registo Predial não terem sido de novo faturados pelo adquirente ao vendedor, de modo que o contravalor das operações cadastrais não foi incluído no preço de venda desse imóvel” – ponto 42 do acórdão C-707/18, Amărăşti Land Investment.
Desta forma, o facto de a faturação do mandatário/comissário ser efetuada por um valor que não corresponda exatamente ao montante faturado pelo prestador de serviços (aqui o empreiteiro, na quota parte proporcional), refletindo uma margem positiva ou negativa, não constitui circunstância que, segundo o Tribunal de Justiça, e também a nosso ver[21], tenha qualquer relevância. Pelo que não se podem extrair consequências do valor do contributo dos investidores para as obras de reabilitação ter sido inferior ao custo das obras. A norma do artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA e a sua fonte, o artigo 28.º da Diretiva IVA, não contêm tal exigência, como o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão concluindo isso mesmo (ponto 42 do acórdão C-707/18, Amărăşti Land Investment), pelo que o argumento é, sem mais, improcedente.
Os requisitos legais de enquadramento no artigo 28.º da Diretiva IVA e no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA são apenas dois:
(a) A atuação pelo mandatário/comissário em seu próprio nome, por conta do comitente. Neste âmbito, a legislação do IVA não prevê sob que forma, escrita ou oral, o mandato em questão deve ter sido conferido. No entanto, o artigo 28.o da Diretiva IVA requer que o sujeito passivo tenha agido “por conta de outrem”, pelo que o Tribunal de Justiça conclui que deve existir, entre o comissário e o comitente, um acordo que tenha por objeto a atribuição do mandato em causa.
(b) A identidade das prestações de serviços fornecidas sucessivamente, ou seja, dos serviços adquiridos pelo comissário e das prestações de serviços vendidas ou cedidas ao comitente,
– v. pontos 51 e 52 do acórdão proferido no processo C-734/19, ITH Comercial, em 12 de novembro de 2020.
Sobre a questão de saber se o intermediário agiu em nome próprio, o Tribunal de Justiça remete o seu conhecimento e verificação concreta para o Tribunal nacional – pontos 40 e 42 do acórdão C-464/10, Henfling.
Recentemente o Tribunal de Justiça voltou a apreciar um caso de atuação de intermediários em nome próprio, relativo ao fornecimento de eletricidade, no qual reitera os princípios atrás enunciados e esclarece que “a tomada em consideração da realidade económica, que é, em princípio, refletida nos acordos contratuais, constitui um critério fundamental para a aplicação do sistema comum do IVA (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de fevereiro de 1997, DFDS, C 260/95, EU:C:1997:77, n.° 23, e de 28 de fevereiro de 2023, Fenix International, C 695/20, EU:C:2023:127, n.° 72 e jurisprudência referida)” – v. pontos 30 a 37 do acórdão C-60/23, Digital Charging Solutions, de 17 de outubro de 2024.
2.3. Análise concreta
Estabelecido o quadro jurídico-tributário aplicável às prestações de serviços realizadas por um mandatário em nome próprio por conta de outrem (v. artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA), interessa aferir se na situação dos autos estão preenchidos os respetivos pressupostos constitutivos, a saber: uma atuação ao abrigo de um mandato sem representação e a identidade dos serviços (de reabilitação urbana) adquiridos e prestados.
Resulta da factualidade provada nos autos que as Requerentes celebraram acordos com os investidores/comproprietários dos imóveis, no âmbito dos quais se prevê a realização de obras de reabilitação, restauro e reconfiguração para a criação de dois hotéis, tendo em vista a sua exploração [pelas Requerentes], o que implicou a celebração de contratos de empreitada, bem como a requisição e obtenção das indispensáveis licenças das autoridades.
Os contratos de empreitada de obras de reabilitação urbana foram celebrados entre as empresas de construção e as Requerentes em nome próprio, enquanto “entidade[s] promotora[s] e responsável[eis] pelo projeto turístico”. Assim, os direitos e obrigações derivados desses contratos de empreitada produziram os seus efeitos na esfera das Requerentes e não na dos investidores, que não são sujeitos das relação jurídicas deles emergentes, por não serem Contraentes ou Partes dos mesmos.
Nestes termos, atendendo à definição do contrato de mandato constante do artigo 1157.º do Código Civil e ao facto de as Requerentes agirem em seu próprio nome, há que concluir que estamos perante um mandato sem representação, nos moldes recortados no artigo 1180.º do Código Civil, o que não é prejudicado pelo facto de os terceiros (nomeadamente, as empresas de construção) terem conhecimento do mesmo (como tiveram): “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos atos ou sejam destinatários destes.”
Tais circunstâncias têm enquadramento no disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, uma vez que as Requerentes intervieram na contratação e realização das empreitadas de reabilitação de edifícios em nome próprio, com mandato de terceiros, os investidores/comproprietários dos edifícios. Encontra-se, assim, preenchida a primeira condição de aplicação deste regime, pois estamos perante uma prestação de serviços efetuada por intervenção de mandatários [as Requerentes] agindo em nome próprio.
A segunda e última condição prende-se com a necessidade de se tratar da mesma prestação de serviços, i.e., de se constatar a identidade dos serviços adquiridos pelo mandatário e daqueles por este prestados (dada a ficção) ao mandante. Também neste ponto é afirmativa a resposta: os serviços em causa nos autos – obras de reabilitação urbana em edifícios degradados adquiridos pelas Requerentes – são exatamente aqueles que as Requerentes faturaram aos investidores. Estão em causa as mesmas obras realizadas nos mesmos edifícios de que os investidores são comproprietários.
A circunstância de os investidores pagarem esses serviços de forma antecipada, no momento da escritura de aquisição da quota-parte do imóvel que passam a deter em compropriedade com os demais investidores, a título de “Adiantamento para Obras de Reabilitação Urbana”, não tem qualquer impacto na caracterização e natureza dos serviços, somente em relação à temporalidade do imposto. O momento do pagamento releva para efeitos de exigibilidade do IVA, quando efetuado em momento prévio ao da emissão da fatura e da realização das operações (v. artigo 8.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA), sem, contudo, ter influência sobre a qualificação das operações de que constituem a contraprestação.
A aplicabilidade do disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA à situação vertente implica a manutenção do tratamento em IVA conferido às prestações de serviços adquiridas e “vendidas” pelas Requerentes (na qualidade de mandatárias/comissárias), materializadas nas obras de reabilitação dos edifícios com vista à sua recuperação, modernização e utilização como unidades hoteleiras.
Como atrás assinalado, ambas as Partes consideram que os serviços de reabilitação urbana realizados nos imóveis pelas empresas de construção / empreiteiros-gerais no âmbito dos contratos celebrados com as Requerentes são enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, pelo que beneficiam da taxa reduzida, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea a)[22] do mesmo compêndio fiscal.
Partindo desta premissa, que é consensual, e uma vez demonstrados os requisitos legais mencionados de atuação em nome próprio por conta de outrem e de fornecimento dos mesmos serviços, tal como resulta da factualidade processual, a estatuição normativa revela que os mandatários – as aqui Requerentes – são sucessivamente adquirentes e prestadores do [mesmo] serviço, sendo, portanto, aplicável idêntico regime de IVA, quer na fase de aquisição a terceiros, quer na da sua transferência (faturação) para o mandante/comitente.
À face do exposto, conclui-se, em linha com as Requerentes, que as prestações de serviços de reabilitação de edifícios faturadas aos investidores/comproprietários é tributável à taxa reduzida de 6%, tal como esses serviços foram faturados às Requerentes pelos empreiteiros[23].
A Autoridade Tributária levanta diversas objeções a esta solução, contudo, sem razão.
Começa por afirmar que o enquadramento na taxa reduzida só se aplica à empreitadas de reabilitação urbana e que, para tanto, não basta que as operações sejam realizadas em ARU, sem especificar, contudo quais os requisitos objetivos em falta preenchidos na situação concreta. Sendo que a existir essa falta de pressupostos para a taxa reduzida, mal se compreenderia que não fosse corrigido, de igual modo, o IVA autoliquidado pelas Requerentes à taxa de 6% nas faturas que lhes foram emitidas pelos empreiteiros, pois referem-se às mesmas operações – obras de reabilitação nos edifícios identificados.
Outro motivo de discordância da Requerida refere-se a não ter sido celebrado um contrato de empreitada com os investidores/comproprietários, pois só concebe a aplicação da taxa reduzida na relação jurídica direta entre o empreiteiro geral e o dono da obra, e ao facto de as Requerentes não prestarem serviços de “obras”, o que tornaria inviável o enquadramento da operação na verba 2.23.
Todavia, analisando o teor da verba, não se desprende que tenha de existir um contrato de empreitada direto. Com efeito, o enunciado legal prevê de forma singela “empreitadas de reabilitação urbana”, sem sequer fazer referência a um contrato. Da mesma forma, o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, não prevê ou exige um contrato de empreitada, centrando-se na definição e delimitação das ações de reabilitação abrangidas, no âmbito das quais, sem dúvida, se inserem as obras de reabilitação efetuadas nos imóveis em causa nestes autos, pelo que a Requerida não tem razão.
Nem resulta do Código do IVA que a verba 2.23 reclame a existência de uma relação direta entre o prestador de serviços e os investidores, pelo que esta configura uma condição desprovida de suporte legal. Acresce que um tal entendimento corresponderia, sem mais, à derrogação do regime do mandato previsto na Diretiva IVA e no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA[24], disciplina que pressupõe, precisamente, que não exista relação direta entre o prestador original e o mandante.
Pela mesma razão, as licenças e as declarações camarárias não têm de ser passadas/emitidas em nome dos investidores, atendendo a que as Requerentes mandatárias agiram em nome próprio.
Não se alcança a relevância destes argumentos no âmbito da aplicação do regime do mandato sem representação previsto na citada norma [n.º 4 do artigo 4.º do Código do IVA], que postula precisamente que as operações sejam, em primeira linha e perante terceiros, realizadas em nome do mandatário (com ou sem “disclosure” dos mandantes/investidores), pelo que também nesta matéria não assiste razão à Requerida.
A Requerida afirma, por outro lado, que, do ponto de vista dos investidores, o objetivo das operações foi unicamente, o de realizarem um investimento transitório com a finalidade de acederem a uma autorização de residência para atividade de investimento (“ARI”), ou a residência permanente e/ou a nacionalidade portuguesa. De tal ordem que, findo o período de 6 anos[25], necessário para efeitos de cumprimento dos requisitos legais previstos na Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (na versão à data dos factos, reportados a 2019), deve ocorrer o desinvestimento, com a previsão de recompra pelas Requerentes das quotas-partes adquiridas pelos investidores e a consolidação, na esfera daquelas, da titularidade dos imóveis. Conclui daqui a AT que “o investidor estrangeiro ‘não possui’ um interesse direto ou indireto na reabilitação do imóvel, mas sim na obtenção de um documento comprovativo de obras de reabilitação”.
Conforme assumido pelas próprias Requerentes, os acordos celebrados com os investidores tinham por finalidade permitir-lhes aceder aos vistos gold, ou seja, o investimento realizado (concretizado na aquisição de quotas-partes de imóveis e na sua reabilitação) constituía um meio de alcançar a residência em Portugal. Porém, daqui não se retira que possam ser desconsideradas ou requalificadas, para efeitos de IVA, as operações realizadas, ou a conclusão de que os investidores não têm interesse direto na reabilitação da quota-parte adquirida do imóvel, operação [a de reabilitação] da qual resulta, desde logo, a valorização dos ativos adquiridos, de que são comproprietários.
Essas operações de compra e venda de quotas-partes de imóveis e de reabilitação dos mesmos tiveram lugar e são efetivas.
A circunstância de terem uma motivação específica e servirem determinados propósitos – para os investidores e, de igual modo, para as Requerentes que, assim, obtiveram ativos para exploração hoteleira – não permite que se proceda à sua requalificação, conquanto as operações sejam reais e se tenham concretizado, como sucede na situação em análise. Uma operação de reabilitação urbana de um edifício não deixa de o ser porque é financiada de determinada forma, ou porque tem por finalidade concretizar um investimento elegível para um dado benefício, ou porque é destinada à instalação de uma unidade hoteleira. Assim como os investidores não deixam de ser comproprietários dos imóveis adquiridos por contratos de compra e venda pelo simples facto de com esse investimento pretenderem um dado resultado, no caso a obtenção do visto gold.
A Requerida não tem suporte legal, nem o invocou, para requalificar as operações realizadas, nomeadamente como operações de financiamento. Porém, se essa requalificação fosse de admitir, que não é, o efeito da mesma não seria de modo algum a sua tributação à taxa de 23% aplicada pela AT, pois de acordo com o disposto no artigo 9.º, 27), alínea a) do Código do IVA, as operações de concessão de crédito são isentas de IVA. E, fosse esse o caso, o sentido das operações seria dos investidores para as Requerentes (quem seriam operações passivas) e não das Requerentes para os investidores.
Das motivações subjetivas dos investidores (que têm interesse em realizar o investimento em reabilitação urbana, por forma a tornar-lhes acessível a candidatura ao golden visa) não emanam consequências no recorte objetivo e regime fiscal das operações de reabilitação urbana efetivamente realizadas. A única exceção seria a da convocação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT que, contudo, a AT não suscitou, pelo que não será objeto de análise. Em qualquer caso, obiter dictum, importa notar que a aplicação da norma anti-abuso reclama pressupostos que na situação vertente não se verificam, pois é patente que o fim visado pelos investidores não foi sequer fiscal (com finalidade principal de obtenção de uma vantagem fiscal), pelo que a existir contorno ou fraude à lei, não foi à lei fiscal, mas ao regime de entrada, permanência e saída de estrangeiros.
Em síntese, o investimento nos imóveis e na reabilitação destes foi material e efetivo e a circunstância de servir determinados objetivos ou finalidades, não permite a sua desconsideração ou recaracterização.
De sublinhar que é comum a realização de operações diversas com o objetivo de obtenção de financiamento, como sejam a locação financeira e o sale and lease back, sem que isso signifique que deixem de ser tributadas como aquilo que são efetivamente – locação/aluguer ou venda com locação – apenas porque o seu objetivo final é a obtenção de meios financeiros.
O facto de os acordos celebrados entre as Requerentes e os investidores permitirem inferir que o objetivo destas era o de assegurar a exploração direta de empreendimentos hoteleiros nos prédios adquiridos pelos investidores e reabilitados não prejudica ou compromete a qualificação das operações intermédias que viabilizam esse resultado.
Nem a classificação contabilística das operações detalhadamente descrita nos relatórios inspetivos constitui critério do respetivo enquadramento em IVA. Novamente apelando ao caso da locação financeira, do ponto de vista contabilístico esta representa uma compra e venda com financiamento associado (o ativo – bem dado em locação – é reconhecido no balanço do locatário), sem que com isso deixe de ser tributada em IVA como uma locação que é (e não como uma compra e venda / transmissão de bens).
Aliás, esta questão da interpenetração da contabilidade e do IVA não é nova e tem sido abordada na jurisprudência do Tribunal de Justiça, sobre a assimilação da locação de bens a uma transmissão para efeitos deste imposto. No processo C-118/11, Eon Aset, com acórdão de 16 de fevereiro de 2012, o Tribunal europeu vem afirmar que uma locação financeira contabilisticamente enquadrada na norma internacional IAS 17[26] pode subsumir-se à noção de transmissão de bens. Porém, posteriormente, com o acórdão do processo C-164/16, Mercedes-Benz, de 4 de outubro de 2017, verificou-se uma inflexão, com retorno ao paradigma tradicional da locação como prestação de serviços[27].
Em linha com as conclusões do advogado-geral, a decisão do processo C-164/16, Mercedes-Benz assinala que a teleologia económica das normas de contabilidade difere da que subjaz às regras jurídicas. As normas contabilísticas visam espelhar o mais fielmente possível a situação económica e financeira de uma empresa, ainda que a mesma não corresponda à situação jurídica formal, uniformizando os critérios à escala global, por forma a permitir a comparabilidade da informação financeira relativa a empresas e grupos económicos que operem em diferentes e múltiplos mercados. Para este fim é dado tratamento contabilístico a diversas realidades que são desconhecidas do IVA como depreciações e imparidades.
No entanto, as regras jurídicas não se atêm unicamente ao resultado económico da transação em causa, devendo a sua apreciação por uma autoridade administrativa ou judiciária ser previsível e, se possível, partilhada por todos os operadores no tráfego jurídico. Os objetivos e razão de ser dos parâmetros contabilísticos não são partilhados pela estrutura e lógica de funcionamento deste imposto, diferentemente do que sucede com o imposto sobre o rendimento das entidades corporativas, que tem uma relação de dependência parcial da contabilidade. Esta dependência não ocorre no IVA que parte de conceitos e realidades totalmente autónomos da classificação contabilística.
Acresce que uma tal interpretação não se contém nos limites da letra da lei, faltando-lhe a correspondência textual nas normas de incidência, como se afigura ter sucedido com a jurisprudência Eon Asset, e o seu resultado é uma interpretação abrogante, solução metodologicamente incomportável à face dos princípios constitucionais da legalidade e da separação de poderes[28].
Sérgio Vasques refere-se ao acórdão Eon Asset como um “mero passo em falso ou antes uma viragem de fundo que nos obriga a rever a noção de transmissão de bens”[29] (sendo que à data ainda não tinha sido proferida a decisão do processo C-164/16, Mercedes-Benz[30]), e aponta diversos argumentos para a sua rejeição. O primeiro é que o tratamento sugerido pelo Tribunal de Justiça foi abertamente rejeitado quando da conceção da Sexta Diretiva (77/388/CEE). Um outro, é que o impacto sobre os operadores económicos não pode ser ignorado e a assimilação dos quadros conceituais contabilísticos no domínio do IVA “constitui uma opção cheia de consequências e que seguramente não representa a única opção metodológica na concretização dos elementos essenciais do imposto”[31].
Interessa notar que com a entrada em vigor da IFRS 16, quase todas as locações passam a ser tratadas contabilisticamente como financiamento, com o ativo a ser reconhecido no balanço do locatário. Ora, estas operações que são, inequivocamente, do ponto de vista do Código do IVA, prestações de serviços, face ao disposto nos artigos 3.º, n.º 3, alínea a), 16.º, n.º 2, alínea h) e 18.º, n.º 5, todos do Código do IVA, seriam, pela sua contabilização, transmissões de bens, pelo que é fácil de compreender que são questões distintas, não confundíveis.
A qualificação e regime resultantes do Código do IVA não pode ser afastada e substituída pelo enquadramento contabilístico como recorte e base de incidência do imposto, nem essa solução deriva do princípio da substância sobre a forma, que é manifestação da doutrina da interpretação económica, pois aquele constitui um critério interpretativo válido, porém, não é uma fonte normativa autónoma que permita a criação de normas tributárias ex novo, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Noutro plano, a Requerida justifica a aplicação da taxa normal de 23% com base no disposto no artigo 18.º, n.º 4 do Código do IVA, que preceitua o seguinte:
“Nas transmissões de bens constituídos pelo agrupamento de várias mercadorias, formando um produto comercial distinto, aplicam-se as seguintes taxas:
a) Quando as mercadorias que compõem a unidade de venda não sofram alterações da sua natureza nem percam a sua individualidade, a taxa aplicável ao valor global das mercadorias é a que lhes corresponder ou, se lhes couberem taxas diferentes, a mais elevada;
b) Quando as mercadorias que compõem a unidade de venda sofram alterações da sua natureza e qualidade ou percam a sua individualidade, a taxa aplicável ao conjunto é a que, como tal, lhe corresponder.”
No caso em exame inexistem as “transmissões de bens” mencionadas na previsão desta norma. As obras de reabilitação urbana configuram prestações de serviços, como a própria Requerida as classifica nos relatórios inspetivos (enquadrando-as na norma residual do artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA), pelo que a disciplina do agrupamento de várias mercadorias não qualquer tem aplicação in casu.
A Requerida aduz como argumento para a desaplicação da taxa reduzida o facto de a faturação das Requerentes aos investidores não ter sido efetuada de forma discriminada “identificando os componentes que constituem os bens ou serviços [igual à fatura do gasto que foi suportado]”. Conclui que não contendo as faturas “qualquer discriminação” a respetiva tributação é feita à taxa normal.
No entanto, não só o descritivo das faturas menciona de forma clara o serviço em questão “Adiantamento para Obras de Reabilitação Urbana”, que constitui a denominação usual dos serviços prestados, como preceituado no artigo 36.º, n.º 5, alínea b) do Código do IVA, como qualquer dúvida que se suscitasse poderia ser facilmente elucidada pela análise da documentação contratual (acordos pormenorizados com os investidores e contratos de empreitada) a que a Requerida teve acesso na fase do procedimento. Com efeito, esta documentação detalha as obras realizadas, a sua localização, os imóveis a que respeitam e demais detalhes pertinentes.
Logo, mesmo que se entendesse que o descritivo das faturas das Requerentes aos investidores não é suficientemente detalhado, o seu complemento pela prolixa documentação existente em relação a cada projeto permite dissipar quaisquer dúvidas quanto ao teor das operações, sua extensão, valor, destinatários e momento da sua realização.
De notar que a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça sobre os requisitos formais das faturas, nomeadamente em relação ao exercício do direito à dedução, é no sentido de que eventuais insuficiências podem ser superadas. Compulsa-se a este respeito o acórdão proferido no processo C-516/14, Barlis, de 15 de setembro de 2016, que sublinha que “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA – cf. n.ºs 26, 27 e 28 do acórdão Barlis.
Para o Tribunal Europeu, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” – cf. acórdão Barlis, n.º 42.
Se assim é a respeito de uma matéria tão sensível e importante para a cobrança do imposto como o direito à dedução, não se vislumbra razão para que não seja, de idêntica forma, aplicável às taxas de IVA, conquanto fiquem cabalmente demonstrados os requisitos factuais materiais de que depende o enquadramento da operação na taxa respetiva. Isto além de, como acima dito, as faturas mencionarem o requisito essencial que habilita a aplicação da taxa reduzida, i.e., tratar-se de uma obra de reabilitação urbana.
Em síntese, a faturação, a título de adiantamentos para obras de reabilitação urbana, pelas Requerentes aos investidores decorre da atividade económica daquelas e respeita a prestações de serviços. Neste âmbito, para efeitos de IVA, o atributo do desenvolvimento de “atividade económica” não tem de presidir aos investidores que, como adquirentes, podem (ou não) agir como consumidores finais.
Tendo as Requerentes atuado (nas sobreditas operações) em nome próprio, mas por conta dos investidores (os proprietários dos imóveis reabilitados), é aplicável o disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA. Acresce que, sendo as obras de reabilitação urbana realizadas pelos empreiteiros enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVAe, portanto, na taxa reduzida prevista no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, ponto no qual confluem as posições de ambas as Partes, a sua (“re”)faturação, mesmo que apenas parcial, pelas Requerentes aos investidores, beneficia de idêntico tratamento e, portanto, da taxa reduzida.
Nestes termos, as liquidações adicionais emitidas pela AT enfermam de erro nos pressupostos e são anuláveis ao abrigo do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do CPA, por violação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, conjugado com a verba 2.23 da Lista I a este anexa.
3. Juros compensatórios
Os juros compensatórios que constituem objeto da presente ação referem-se aos atos tributários de liquidação adicional de IVA que, nos moldes acima enunciados, se julgam inválidos, por vício material de erro nos pressupostos. Estes juros integram-se na dívida do impostos, com o qual são conjuntamente liquidados (v. artigo 35.º, n.º 8 da LGT).
A constituição da obrigação de juros compensatórios depende do retardamento, por facto imputável ao sujeito passivo, da liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, conforme preceituado no artigo 35.º, n.º 1 da LGT e 96.º, n.º 1 do Código do IVA.
Face à anulação das liquidações adicionais de imposto [IVA] controvertidas, conclui-se inexistir prestação tributária de IVA em dívida nos períodos de tributação de 2018 e 2019, ou cujo pagamento tenha sido retardado, não estão reunidas as condições legais para a liquidação de juros compensatórios.
A invalidade das liquidações adicionais de imposto repercute-se, assim, nas liquidações de juros com aquelas conexas, que, de igual modo, vão anuladas.
4. Juros Indemnizatórios
As Requerentes peticionam, em consequência da anulabilidade dos atos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios, a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.
A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.
O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.
O direito a juros indemnizatórios depende da ocorrência de “erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (v. artigo 43.º, n.º 1 da LGT).
Em relação aos atos de liquidação controvertidos, que se provou terem sido pagos pelas Requerentes 1 e 2, verificou-se erro nos pressupostos imputável à Requerida (violação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, conjugado com a verba 2.23 da Lista I anexa a este diploma, para o qual as Requerentes nada contribuíram, pelo que lhes é devida a restituição do montante pago a título de IVA e juros compensatórios, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, para restabelecimento da situação que existiria se os atos tributários não tivessem sido praticados.
A contagem dos juros é devida desde o momento da privação ilegal das quantias de IVA até à data de processamento da nota de crédito (v. artigo 61.º, n.º 5 do CPPT).
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil, nos termos do disposto nos artigos 608.º e 130.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, nomeadamente as relativas às alegadas deficiências instrutórias e falta de fundamentação dos atos tributários e das decisões de indeferimento das reclamações graciosas.
VI. Decisão
Atento o exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação arbitral procedente e, em consequência:
a) Anular as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios emitidas às Requerentes, supra identificadas (pontos FF, MM, CCC e DDD dos factos provados) com referência aos anos 2018 e 2019, no valor total de € 1 125 105,43, sendo € 607.512,75 para a Requerente 1 e € 517.592,84 para a Requerente 2;
b) Condenar a AT ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos supra expostos.
Tudo com as legais consequências.
VII. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 1 125 105,43 (um milhão cento e vinte e cinco mil cento e cinco euros e quarenta e três cêntimos), que corresponde à importância do IVA liquidado e juros compensatórios inerentes cuja anulação as Requerentes pretendem e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VIII. Taxa de Arbitragem
Dada a modalidade de designação de árbitro pelo sujeito passivo, a taxa de arbitragem, no montante de € 60 000,00 (sessenta mil euros), foi paga e constitui encargo da Requerente, nos termos do disposto no artigo 5.º do RCPAT e da Tabela de Custas a este anexa.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de outubro de 2025
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins, relatora
Clotilde Celorico Palma
Fernando Marques Simões
[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, com as alterações posteriores.
[2] Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006.
[3] Norma Contabilística e de Relato Financeiro.
[4] International Accounting Standards.
[5] International Financial Reporting Standards.
[6] Norma que dispõe o seguinte: “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”.
[7] As liquidações de IVA e juros de 2018 foram emitidas em 3 de março de 2023.
[8] “Inspecção Tributária Externa e a Relevância dos Actos Materiais de Inspecção”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano IV.03 (2011), pp. 249-268 (com Rita Carvalho Nunes). Já não se acompanha este autor quando afirma que as reuniões e recolha de elementos têm de ser praticadas fora das instalações da Administração fiscal para que o procedimento seja externo (p. 258). Do ponto de vista dos interesses tutelados, o que deve relevar é, a nosso ver, o estabelecimento de contactos com o contribuinte e a sua efetiva mobilização (e dos seus recursos) para responder às solicitações na atividade de investigação da AT. Se as reuniões entre as duas partes têm fisicamente lugar em salas da AT ou do contribuinte não constitui um fator diferenciador. Senão, bastaria mudar o lugar da reunião para configurar um procedimento como interno ou externo, deixando, aí sim, ao arbítrio da administração, a opção por qualquer das modalidades, sem critério substantivo de suporte.
[9] Neste sentido, vide Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4.ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 271, e António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2001, p. 293.
[10] Neste aresto estava em causa a utilização de elementos na posse da AT colhidos em diligências inspetivas de outros procedimentos. Em situação semelhante, com o mesmo entendimento, v. acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de novembro de 2024, processo n.º 268717.3BELRS.
[11] Os atos de inspeção referidos no artigo 61.º do RCPITA ficaram concluídos em 15 de fevereiro de 2023. Mesmo que se entendesse que o procedimento inspetivo terminava nesse momento e não com a emissão do RIT, atendendo à suspensão, o prazo de caducidade só terminaria em abril de 2023, pelo que é de manter, também segundo este entendimento, a conclusão acima expressa.
[12] Que dispõe o seguinte: “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.”
[13] Norma que rege o mandato sem representação: “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.”
[14] Em transposição do artigo 28.º da Diretiva IVA, que dispõe de forma idêntica: “Quando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão.”
[15] V. Ben Terra, Julie Kajus, Commentary – A Guide to the Recast VAT Directive, 2017, IBFD (comentário ao artigo 14(2)(c) da Diretiva IVA e também ao artigo 28 na versão eletrónica acedida a 14 de novembro de 2017) pp. 664-665 e 838-843.
[16] “Without these provisions an agent should always be required to reveal the name of his principal, which would have been necessary for correct invoicing procedures. The Directive therefore introduces the fiction of a supply to and by the undisclosed agent, to whom and by whom proper invoices must be issued, i.e. mentioning the full price of the goods or services supplied rather than a separate invoice for the commission.”
[17] V. Xavier de Basto, A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional, CTF 164, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 1991, p. 176.
[18] Sobre a aplicação do artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA pode ver-se também Patrícia Noiret Cunha, Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, Instituto Superior de Gestão, 2004, pp. 130-131; Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Coord., Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, 2015, p. 69.
[19] Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977.
[20] Uma laranja (re)vendida múltiplas vezes não deixa de ser uma laranja …
[21] No mesmo sentido, v. a decisão arbitral n.º 806/2022-T.
[22] Este preceito estabelece que para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da Lista I anexa ao Código do IVA é aplicável a taxa reduzida de imposto.
[23] De notar que a manutenção da taxa reduzida ao abrigo da citada verba 2.23 nem sequer depende de condições subjetivas especiais, sendo os respetivos pressupostos totalmente objetivos: os serviços têm de respeitar a empreitadas de reabilitação urbana realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana delimitadas nos termos legais.
[24] Na prática, a derrogação de uma norma legal por via administrativa.
[25] De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, alínea d), subalínea iv) da Lei n.º 23/2007, a atividade de investimento tinha de ser exercida pelo período mínimo de 5 anos.
[26] As normas internacionais de contabilidade foram acolhidas pelo direito europeu através do Regulamento (CE) n.º 1126/2008, da Comissão, de 3 de novembro de 2008.
[27] V. Alexandra Coelho Martins, Locação, Cedências, IVA e Contabilidade, Cadernos IVA 2018, Almedina, pp. 41-69.
[28] Princípios acolhidos nos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) (princípio da legalidade) e nos artigos 2.º e 111.º (princípio da separação de poderes), todos da Constituição.
[29] Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 200-202 (citação p. 201).
[30] O acórdão proferido no processo C-164/16, Mercedes-Benz parece indicar que o Eon Asset foi um “passo em falso”.
[31] Sérgio Vasques, op. cit. p. 202.