Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1342/2024-T
Data da decisão: 2025-10-17  IRC  
Valor do pedido: € 104.686,80
Tema: IRC sobre dividendos pagos a OIC não residentes; inadmissibilidade do PPA.
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SUMÁRIO: 

I – A apresentação de um PPA – como de um prévio pedido de revisão oficiosa – por parte de um Organismo de Investimento Colectivo sob a forma contratual, sem menção à sua entidade gestora, não invalida o PPA se os poderes de representação tiverem sido regularmente concedidos por esta e for rectificado o lapso;

II – A admissibilidade do PPA depende, porém, do preenchimento dos requisitos da tramitação procedimental a montante. Tais requisitos não estão preenchidos onde não tenha havido reclamação graciosa – como exigido, a contrario, pela alínea  a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 –, ou, em fundamentação alternativa, onde não seja juridicamente possível imputar qualquer erro aos serviços da AT para beneficiar do prazo alargado previsto na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (como acontece sempre que o vício não seja imputado à liquidação mas sim à desconformidade da norma aplicada pela AT com o Direito da União ou com a Constituição – caso em que o erro só pode ser imputável ao legislador).

 

DECISÃO ARBITRAL

I.       RELATÓRIO

1.     A..., Organismo de Investimento Colectivo constituído de acordo com o direito espanhol, com o número de contribuinte português ..., com sede em Espanha (Requerente), veio, nos termos a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), deduzir pedido de pronúncia arbitral para apreciação da legalidade dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2020 a 2023, bem como da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa previamente apresentada contra os mesmos actos de autoliquidação.

2.     É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (Requerida ou AT).

3.     O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo aqui signatários, que comunicaram no prazo legalmente estipulado a aceitação dos respectivos encargos.

4.     O Tribunal Arbitral ficou constituído em 24 de Fevereiro de 2025. 

5.     Seguindo-se os normais trâmites, em 31 de Março a AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo (PA). 

6.     Em 7 de Abril, foi proferido despacho a, entre o mais, dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a fixar prazo para que o requerente apresentasse resposta às excepções. 

7.     Em 15 de Maio, o Requerente apresentou a sua pronúncia sobre as excepções suscitadas pela AT.

8.     Em 30 de Maio, foi proferido o seguinte despacho:

“Tendo em conta:

 

1. Que, como se admite logo no primeiro artigo do Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA), o A... é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal em Espanha, constituído sob a forma contratual e não societária.

 

2. Que tal corresponde a uma das possibilidades que o artigo 1.º da Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009 admite:

“3. Os organismos a que se refere o n.º 2 podem, por força da respectiva lei nacional, assumir a forma contratual (fundos comuns de investimento geridos por uma sociedade gestora) ou de trust (unit trust) ou a forma estatutária (sociedade de investimento).”.

 

3.     Que no Considerando 6 da Directiva 2009/65/CE se escreve o seguinte:

“Caso uma disposição da presente directiva preveja que um OICVM [Organismo de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários] pratique um determinado acto, essa obrigação deverá ser entendida como aplicando-se à sociedade gestora se o OICVM  tiver sido constituído como fundo comum por uma sociedade gestora e se esse fundo não tiver personalidade jurídica e não puder, consequentemente, agir por sua própria iniciativa.”,

e que essa previsão tem expressão no n.º 3 do artigo 6.º do nosso Regime da Gestão de Ativos:

“3 - Salvo se outro sentido resultar da disposição em causa, quando no presente regime sejam constituídos deveres ou imputadas atuações a:

a) Organismo de investimento coletivo, deve entender-se como sujeito do dever ou objeto de imputação a sociedade gestora (…)”.

 

4. Que, em Portugal, o artigo 3.º do Regime da Gestão de Ativos, anexo ao Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de Abril, determina que

“Os organismos de investimento coletivo, consoante tenham ou não personalidade jurídica, assumem a forma:

a) Societária, de sociedade de investimento coletivo; ou

b) Contratual, de fundo de investimento.”.

 

5. Que, ainda que o A... tenha personalidade tributária na ordem jurídica nacional, resulta do regime jurídico europeu e nacional (e, eventualmente, também do espanhol) que o exercício de quaisquer direitos que os OICVM possam ter, bem como o cumprimento dos seus deveres, cabe às respectivas sociedades gestoras.

 

6. Que, certamente por isso, a procuração junta aos autos foi emitida pelo B..., que, por sua vez, tinha sido mandatada pelo C...;

 

7. Que, porém, no pedido de revisão oficiosa apresentado pelo A..., não se fez qualquer referência à sua entidade gestora, nem esta teve qualquer intervenção no processo;

 

8. Que no pedido de pronúncia arbitral o A... não faz qualquer referência à sua entidade gestora, nem esta teve qualquer intervenção no processo;

 

Devem Requerente e Requerida pronunciar-se, no prazo de 15 dias, sobre a questão da legitimidade e regularidade do presente PPA.”.

 

9.     Em 24 de Junho, Requerente e Requerida apresentaram pronúncias.

10.  O Requerente invocou que

(i)             A procuração junta aos autos, conferida pela entidade gestora (C...) em representação do fundo, foi assinada pelo representante da entidade gestora; 

(ii)            A entidade gestora não foi referida no PPA por mero lapso de escrita (pedindo a respectiva correcção e juntando cópia das duas primeiras páginas do pedido de constituição de Tribunal Arbitral rectificadas;

(iii)          Em todo o caso, refere, “os conceitos específicos aplicáveis ao contencioso tributário, relevantes para a verificação dos pressupostos processuais são os conceitos de personalidade judiciária tributária e a capacidade judiciária tributária, não sendo relevante para este efeito aferir se o fundo tem ou não personalidade jurídica”;

(iv)           Assim, “Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do CPPT, “[a] personalidade judiciária tributária resulta da personalidade tributária”.”;

(v)            Por sua vez, “A personalidade tributária consiste, nos termos do artigo 15.º da LGT, na “suscetibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias”.”;

(vi)           E, “Por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da LGT, “tem capacidade tributária quem tiver personalidade tributária”.”;

(vii)         Invocou também o acórdão do STA no processo n.º 02587/18.2BEBRG, de 4 de Maio de 2022 – que considerou, designadamente, que “uma entidade tem personalidade tributária “[d]esde que possa ser considerada um centro de imputação de actividades económicas para efeitos tributários e os factos económicos respectivos sejam tributáveis.” – e múltipla jurisprudência arbitral (designadamente as decisões “proferidas nos processos n.ºs 463/2024-T, 708/2024-T, 736/2024-T, 735/2024-T, 551/2024-T, 425/2024-T, 725/2024-T, 476/2024-T, 448/2024-T, 795/2024-T, 838/2024-T, 734/2024-T, 550/2024-T, 445/2024-T, 464/2024-T, 828/2024-T, 475/2024-T e 727/2024-T”);

11.  Por seu turno, a Requerida 

a.     constatou que “a entidade legitima, ou seja, a eventual sociedade gestora, não [foi] parte nem mencionada no procedimento gracioso de pedido de revisão oficiosa, bem como no presente PPA.”, 

b.     Daí retirando as seguintes ilações: “Situação esta que gera falta, insuficiência ou irregularidade do mandato, podendo a falta da sua regularização ter como consequência ficar sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respetivas e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa, cf. artigo 48.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT”.

12.  Em 19 de Agosto, o Tribunal determinou a prorrogação por dois meses do prazo previsto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2.

 

II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente.

Requerida e Requerente (tal como configurado após a correcção do PPA) gozam de personalidade judiciária.

Quanto à questão da capacidade e regularidade na representação do Requerente suscitada pelo Tribunal, entende este o seguinte:

Quer o PPA, quer o pedido de revisão oficiosa que o antecedeu, foram formalmente apresentados pelo Organismo de Investimento Coletivo, uma vez que não se referia, nos respectivos cabeçalhos, o que, após a pronúncia do Requerente, foi por este solicitado que passasse a constar no PPA: “… neste ato representado pela sua entidade gestora C... …” . Em todo o caso, em ambas as situações foi apresentada uma procuração, a favor dos mandatários que assinaram os pedidos, outorgada pela representante legal do fundo – ou seja, foi a entidade gestora do fundo que, para todos os efeitos, outorgou a procuração, constituindo, assim, como mandatários, os advogados que apresentaram o pedido de revisão oficiosa e o PPA. 

É entendimento do Tribunal que, portanto, não há “falta de constituição de advogado ou de representante legal por parte do autor”, como entendeu a AT, e que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 146.º do Código de Processo Civil[1], aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, é de aceitar o pedido de rectificação, ficando a irregularidade sanada.

Por outro lado, a questão de saber se a impossibilidade[2] de sanar a mesma falha ocorrida a montante, aquando do pedido de revisão oficiosa, interfere na regularidade do PPA – uma vez que, tratando-se de retenção na fonte, dar seguimento a esse pedido seria a única ocasião que a AT teria para se pronunciar sobre as questões que são agora suscitadas perante este Tribunal (como é exigido pela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março - “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa[3]) – acaba por se diluir em outros.

Numa decisão recente[4] (em que estava em causa uma prévia reclamação graciosa, que foi considerada tacitamente indeferida), considerou-se o seguinte:  

trata-se, também em sede graciosa, de uma irregularidade do cabeçalho da reclamação, já que, também nessa sede, a procuração que acompanhou a reclamação graciosa foi outorgada a favor dos advogados que subscrevem a peça, pelos representantes da entidade gestora do OIC. 

É certo que essa irregularidade não foi sanada, no âmbito do processo administrativo, como o foi, agora, em sede de PPA. Contudo, no âmbito do procedimento tributário, vigoram princípios de proporcionalidade e simplicidade (cf. artigos 55.º da LGT e 46.º do CPPT) que devem, no entender deste Tribunal, ditar que a consequência a extrair dessa irregularidade seja condizente com a sua gravidade e com a real afetação do procedimento tributário em causa.

Por outro lado, atendendo ao disposto no artigo 56.º da LGT, a AT estava obrigada a pronunciar-se sobre a reclamação graciosa em causa uma vez que se trata de (i) um assunto da sua competência; (ii) apresentado por meio de reclamação; (iii) pelo sujeito passivo; (iv) não se verificando nenhuma das exceções ao dever legal de decisão previstas no n.º 2 do mesmo dispositivo legal.[5].

 

É verdade que ao não se pronunciar, a AT deixa em aberto a razão pela qual o não fez – sendo uma das possibilidades ter entendido que o pedido que lhe foi dirigido o foi por quem não tinha capacidade para o fazer sem a representação da sua entidade gestora. Porém, a mais das razões invocadas na decisão arbitral anteriormente citada, pode ainda invocar-se que tal dúvida sobre os hipotéticos fundamentos da não-decisão não poderia deixar os peticionantes em pior situação para intentar um recurso jurisdicional ou arbitral (como ficariam se essas instâncias pudessem admitir um fundamento para a inadmissão do pedido que os serviços não tivessem efectivamente equacionado). A ser assim, criar-se-ia um incentivo para a não decisão dos procedimentos graciosos.

 

Dissemos que o problema da representação do fundo Requerente se diluía em outros. De facto:

Recentemente, as decisões nos processos n.os 840/2021-T, 778/2023-T e 1000/2023-T vieram restabelecer a necessidade de se compatibilizar o regime dos pedidos de revisão oficiosa com os da reclamação graciosa. No último dos referidos arestos, escreveu-se o seguinte:

Não se põe em dúvida, e constitui jurisprudência pacífica do STA, que a revisão dos atos tributários por iniciativa da Administração Tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação, pode ser suscitada pelo contribuinte, com base em erro imputável aos serviços (cfr. acórdãos de 20 de março de 2002, Processo n.º 026580, de 12 de julho de 2006, Processo n.º 0402/06, e de 29 de maio de 2013, Processo n.º 0140/13). No entanto, numa interpretação conforme a unidade do sistema jurídico, uma tal possibilidade não pode inutilizar a exigência legal de impugnação administrativa necessária que consta do artigo 132.º, n.º 3, do CPTT, dentro do prazo aí previsto, e que constitui um requisito de impugnabilidade dos atos de retenção na fonte.

Nesse sentido aponta o acórdão do STA de 9 de novembro de 2022 (Processo n.º 087/22), onde se consigna, na situação abrangida pelo artigo 132.º do CPPT, que a formulação de pedido de revisão oficiosa do ato tributário pode ter lugar relativamente a atos de retenção na fonte, independentemente de o contribuinte ter deduzido reclamação graciosa nos termos do artigo 132.º do CPPT, mas esta é necessária para efeitos de dedução de impugnação judicial.”.

 

Tal implicaria, portanto, a improcedência parcial do peticionado nos presentes autos. Porém, numa decisão ainda mais recente – a do processo n.º 997/2024-T – restabeleceu-se o que, na verdade, resulta directamente das normas que estabelecem o recurso à jurisdição arbitral, mas que sucessivos desvios pretorianos metamorfosearam num regime quase consensual – mas sem suporte legal. No seu Sumário, resumindo a argumentação, escreveu-se o seguinte:

O conhecimento do mérito de qualquer processo tributário arbitral supõe a não verificação de exceções que impeçam essa intervenção, exceção que se considera existir quando o contribuinte solicita aquela tutela a entidade judicial arbitral sem competência – que se pode considerar material – com vista à anulação de atos de retenção na fonte não tendo tido antes o cuidado de fazer a impugnação graciosa prévia que é especialmente imposta como instrumento próprio previsto no art. 132.º do CPPT, a qual não pode ser entendida como idêntica ao regime geral do pedido de revisão oficiosa do art. 78.º da LGT em vista dos seus fins particulares, por aplicação do princípio da tipicidade dos meios graciosos de impugnação tributária; nem sequer o assunto tem que ver com a passagem ou não do prazo de dois anos que ali se estabelece, sendo certo que o preceito do art. 2.º, al. a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, faz essa exigência, aplicando-a à justiça arbitral, e daí derivando a absolvição da instância, com o consequente prejuízo da apreciação de outras questões de natureza de exceção processual ou concernentes ao mérito da causa arbitral.”.

 

À mesma solução se chega por outra via: a do não preenchimento dos requisitos para que o Requerente (e, como se disse, nessa altura só ele) pudesse ter invocado, perante a AT, erro desta para poder desencadear um pedido de revisão oficiosa com efeitos retroactivos aos últimos 4 anos. Sobre este entendimento, escreveu-se na Resposta da AT:

Sempre que o contribuinte opte pelo pedido de revisão, não tem quatro anos para o fazer, mas o prazo da reclamação graciosa.

(…)

E quando, como é manifestamente o caso dos autos, não tenha havido erro imputável aos serviços na liquidação, preclude, com o decurso do prazo de reclamação, o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do acto de liquidação ( tal como é defendido por A. Lima Guerreiro, LGT anotada, em anotação ao art° 78°).

 

Como, aliás, também já foi decidido (nomeadamente no processo n.º 629/2023-T, de que se respiga parte do Sumário): 

III – Muito embora haja fundamento legal para excluir a legitimidade do sujeito passivo da relação tributária solicitar a revisão oficiosa quando não seja “contribuinte”, não há nenhum para excluir que possa pôr em causa, de outra forma, essa relação tributária. 

IV – Quando um tribunal tem tantas dúvidas sobre a solução conforme ao Direito da União que suscita uma questão de reenvio prejudicial (ou suspende a instância na sua pendência, ou pondera fazê-lo), é contraditório concluir que a AT (que não tem ao seu dispor essas faculdades) cometeu um erro que lhe é imputável se a solução que deu antes não corresponde à que o TJUE fixou depois. 

V – Nem por alegado desrespeito do Direito da União, nem por alegado desrespeito da Constituição, pode a AT estar investida na possibilidade de recusar a aplicação de normas legais. O Direito que cabe à AT aplicar é diferente (tanto para mais como para menos) do Direito que cabe aos Tribunais aplicar.”.

 

Em declarações de voto apostas pelo presente Relator às decisões dos processos n.os 812/2023-T e 935/2023-T condensaram-se as razões que aí tinham sido expostas. Na primeira declaração escreveu-se:

Votei vencido quanto ao conhecimento das questões que foram objecto de pedido de revisão oficiosa porque, como tenho entendido (em outros processos e em M. Porto/V. Calvete, “Sobre a revisão oficiosa dos actos tributários”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria da Glória Garcia, UCP Ed., Lisboa, 2023, pp. 1635 e ss.) nem a Requerente estava em condições de recorrer ao mecanismo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (por não ser “contribuinte” e não estar em tempo), nem a desconformidade da legislação interna com o Direito da União – sendo, como é, um “erro do legislador” susceptível de gerar responsabilidade civil extra-contratual –, se pode reconduzir a um “erro imputável aos serviços” da AT. Demais, entendo que do indeferimento tácito de um oximórico “pedido de revisão oficiosa” não se pode retirar o que da sua decisão expressa nunca poderia resultar: o afastamento de lei interna vigente por invocação de uma suposta desconformidade com a Constituição ou com o Direito Europeu (a apurar necessariamente à margem do due process: sem contraditório, sem imparcialidade e sem possível controlo do Ministério Público ou recurso ao reenvio prejudicial). Quer dizer que importaria fazer um distinguo no âmbito da jurisprudência que se tem ocupado das ficções de indeferimento de “pedido de revisão oficiosa”: nos casos em que não está em causa uma errada determinação dos factos ou uma equivocada interpretação da lei – ie, nos casos em que a lei não é o parâmetro mas sim a própria origem da desconformidade invocada, como acontece nas situações em que se invocam inconstitucionalidades ou desconformidades com o Direito da União – julgo que tais decisões da AT nunca poderiam comportar a apreciação da legalidade dos actos de liquidação (e, portanto, fossem elas expressas ou tácitas, nunca poderiam fundamentar a dispensa da reclamação graciosa para efeitos de credenciar a sua impugnação arbitral).”.

 

Sublinhe-se que o suposto “erro imputável aos serviços” que fundamentaria o pedido de revisão oficiosa do Requerente não existiu antes de o Tribunal de Justiça da União Europeia – contra a opinião da Advogada-Geral Kokott[6] – ter decretado que sim, na decisão proferida em 17 de Março de 2022 no processo n.º C-545/19.

 

E na segunda declaração de voto, acrescentou-se o seguinte:

entendo – por identidade, se não por maioria, de razão com o decidido no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 30 de Janeiro 2019 (Proc. 0564/18.2BALSB) – que “não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daqueleque decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT)”. Ora, não podendo a AT deixar de cumprir a lei (nem com fundamento em qualquer inconstitucionalidade nem em qualquer desconformidade com o Direito da União – que, aliás, teria sempre de diagnosticar sem due process, sem imparcialidade, sem contraditório e sem possibilidade de recurso ao reenvio prejudicial/sujeição a recurso obrigatório de constitucionalidade por parte do Ministério Público), não pode evidentemente errar na sua aplicação estrita. E não podendo a AT errar não se pode preencher o requisito de que o n.º 1 depender do artigo 78.º da LGT faz a possibilidade de recorrer ao “pedido de revisão oficiosa” para lá do prazo de reclamação graciosa (que, de resto, sendo sustentada, como é, em argumento feito derivar do n.º 7 do mesmo artigo, se deveria cingir aos “contribuintes”).

Por outro lado, entendo que a presunção de indeferimento desse “pedido” de revisão oficiosa não pode gerar nada diferente do que seria a resposta expressa que a AT poderia dar a esse pedido. Ora, não podendo a AT afastar a aplicação da lei vigente (ainda que com base em decisões do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Justiça da União Europeia – que serão feitas cumprir, se for o caso, quando os sujeitos passivos recorrerem aos Tribunais), o indeferimento tácito não “comporta em si mesmo uma tomada de posição sobre a ilegalidade invocada no pedido de revisão”, pela razão simples de que a AT não tem competência para se pronunciar sobre a eventual desconformidade das leis – nem com a Constituição, nem com o Direito da União.

Assim, porque o que o Requerente pedia com o seu “pedido de revisão oficiosa” era triplamente impossível (porque não estava perante um erro imputável aos serviços, porque não era “contribuinte” e porque a AT não tem competência para se poder pronunciar sobre a desconformidade das leis com parâmetros superiores), devia essa parte do pedido ter sido julgada inadmissível.”.

 

Uma vez que na decisão do STA de 15 de Janeiro deste ano, proferida no Proc 0980/12.3BEAVR e publicada no Diário da Repúblicaem https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/0980-2025-929429275 , se decidiu que

 

Não existe erro imputável aos serviços quando a Administração Tributária não desaplica norma legal alegadamente inconstitucional, por a mesma inconstitucionalidade não ter sido sancionada pelos tribunais (artigos 204.º e 281.º da CRP), nem estar estabilizada na ordem jurídica.”,

 

é convicção do presente Tribunal que não pode ser dada ao Direito da União um tratamento mais vantajoso do que o que é dado à Constituição. Daí que se tenha de concluir, mutatis mutandis, como no referido acórdão arbitral proferido no processo n.º 114/2019-T: “a intempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IUC em crise terá repercussões no mecanismos de reação subsequentes, ou seja, em matéria do próprio pedido de pronúncia arbitral” (destaques aditados). Isto é: não sendo admissível um pedido de revisão oficiosa fundado em “erro imputável aos serviços” – porque, no caso, mesmo que os serviços tivessem tramitado e decidido tal pedido, teriam de o ter feito em estrita obediência à lei aplicável, com isso não incorrendo em erro algum (que, e só supervenientemente à decisão do TJUE de 17 de Março de 2022, podia ser imputável ao legislador) – não podia um tal pedido ter o horizonte de 4 anos, razão pela qual falece o pressuposto necessário para que o presente pedido de pronúncia arbitral seja admissível.

Assim, seja por via do estrito cumprimento da norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, seja pela impossível verificação, no caso, do requisito de existência de um “erro imputável aos serviços” que seria necessário para que o pedido de revisão oficiosa formulado pelo Requerente fosse admissível, sempre se conclui, sem mais delongas, pela inadmissibilidade jurídica do PPA.

Ficam naturalmente prejudicados a fixação dos factos e o tratamento de todas as demais questões suscitadas.

 

III.          DECISÃO 

Termos em que se decide:

a)   Julgar inadmissível o pedido arbitral;

b)   Condenar o Requerente no pagamento das custas do processo.

 

IV.           VALOR DO PROCESSO

O Requerente indicou como valor da causa o montante de € 104.686,80 (cento e quatro mil, seiscentos e oitenta e seis euros e oitenta cêntimos) que a AT não questionou e que corresponde ao valor da liquidação de imposto que pretendia recuperar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa. 

 

V.     CUSTAS

Custas a cargo da Requerida, no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), nos termos dos artigos 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento.

 

Notifique.

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2025

 

O árbitro presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

A Árbitro vogal

 

Maria Antónia Torres

                                            

O Árbitro vogal 

 

 

 

Tomás Cantista Tavares (vota vencido)

Voto de vencido (proc. 1342/2024-T):

Apesar de considerar o tema complexo e discutível – exato conteúdo e âmbito da expressão “erro imputável aos serviços” do art. 78.º, n.º 1, da LGT – até porque as causas das situações factuais e legais são díspares e diversas, com dificuldade de subsunção a essa cláusula geral, entendo, na esteira do Acórdão do STA de 9/2/2022, proc. 087822.5BEAVR, pelo menos na interpretação que dele faço, que existe um erro imputável aos serviços, e, portanto, a revisão oficiosa é tempestiva, porquanto, e como o sumário: “VII – Assim, nos casos […] em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo […] o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é suscetível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária”.

Para mim, os casos são totalmente similares: a) ocorre retenção na fonte a título definitivo (não é diferença relevante ser de imposto de selo [situação do Acórdão] ou dividendos pagos a não residentes [caso dos autos]; b) os factos tributários de ambas as situações ocorrem após a revogação do art. 78.º, n.º 2 da LGT; c) em ambos os casos, por imposição legal, a retenção na fonte e pagamento do imposto ao Estado é efetuada pelo substituto – estando  o substituído (os autores em cada uma das ações judiciais) completamente fora dessa relação tributária, sendo eles, porém, que sofrem a ablação económica do imposto (e têm por isso interesse em agir judicialmente); d) os erros (de facto e/ou de direito) do substituto, ao reter e entregar quantias nos cofres do Estado, quando a lei, qualquer que seja a sua fonte (ainda que da União Europeia), impunha uma isenção de tributação e retenção constitui um erro que não é imputável ao requerente, porque se encontra, por lei, fora da relação tributária; e) nada há nos processos que indicie ou prove que o substituto atuou sob erro, induzido ou provocado pelo substituído ou requerente; f) perante isso, a jurisprudência entende, na interpretação que faço do referido Acórdão, que o erro tem de ser imputado à autoridade tributaria, no dever de vigilância e controlo geral das declarações de terceiros em matéria fiscal, em caso de substituição total. 

Em citação do Acórdão: “Neste conspecto, propendemos a considerar que em tal situação se justifica que os erros praticados no ato de retenção sejam imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no nº1 do artigo 78º da LGT, pois se afigura inviável responsabilizar o contribuinte pela atuação do substituto, sob pena de violação dos seus direitos garantísticos”.

Duas ideias finais:

a) por um lado, está para mim claro que no caso se pode efetuar uma revisão oficiosa em 4 anos (e depois uma impugnação judicial ou ação arbitral, com base no indeferimento expresso ou tácito), ainda que não se tenha intentado uma reclamação graciosa em 2 anos, nos termos e com os argumentos ínsitos no Ac. STA de 12/07/2006, recurso nº 402/06.

b) por outro lado, decidiria a questão material no sentido da anulação dos atos impugnados, em sintonia e obediência da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia. no proc. 545/19, de 17/3/2022.

Porto, 17 de outubro de 2024

Tomás Cantista Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.”.

 

[2] Porque tal nunca lhe poderia competir, tendo tal pedido sido apresentado à AT.

 

[3] Que delimita a competência dos Tribunais Arbitrais constituídos no CAAD a “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

 

[4] Proferida no processo n.º 83/2025-T, ainda não publicada, mas conhecida pela Requerida e pelos mandatários do Requerente. 

 

[5] O artigo 56.º da Lei Geral Tributária (LGT) tem a seguinte redacção:

1 - A administração tributária está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, recursos, representações, exposições, queixas ou quaisquer outros meios previstos na lei pelos sujeitos passivos ou quem tiver interesse legítimo.

2 - Não existe dever de decisão quando:

a) A administração tributária se tiver pronunciado há menos de dois anos sobre pedido do mesmo autor com idênticos objecto e fundamentos;

b) Tiver sido ultrapassado o prazo legal de revisão do acto tributário.”.

[6] Entre o mais, escreveu-se nessa sua opinião de 6 de Maio de 2021, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=7F5CAA3ADDA54F8362BC013F6E3BC547?text=&docid=240845&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=30114927 :

 

111. Assim, após ponderação de todos estes elementos, as justificações baseadas na preservação da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros, na aplicação efetiva dos direitos de tributação e na preservação da coerência do sistema fiscal português prevalecem sobre o interesse do requerente em ficar isento do IRC tal como os OIC residentes, ficando, simultaneamente, ao contrário dos OIC residentes, isento de imposto do selo.

e)      Resultado da análise da justificação

112. Por conseguinte, a restrição à livre circulação de capitais que eventualmente decorra das disposições do direito português na sua articulação (sujeição dos OIC não residentes ao IRC em caso de não tributação no estrangeiro nos termos do artigo 14.°, n.° 3, do Código do IRC, isenção de IRC para os OIC residentes de acordo com o artigo 22.° do Estatuto dos Benefícios Fiscais e tributação simultânea em sede de Código do Imposto do Selo) é, em qualquer caso, justificada.

VI.    Conclusão

113. Por conseguinte, proponho se responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal):

O artigo 63.° TFUE não se opõe à legislação nacional que impõe a aplicação de retenção na fonte aos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, quando esses dividendos são distribuídos a um organismo de investimento coletivo não residente que não está sujeito ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no seu Estado de residência. O mesmo é aplicável quando esses dividendos, se distribuídos a um organismo de investimento coletivo residente, não estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, mas são objeto de outra técnica de tributação destinada a assegurar que só em caso de redistribuição ao investidor haja lugar à tributação do rendimento correspondente, e, até esse momento, é aplicada uma tributação trimestral sobre a totalidade do património líquido do organismo de investimento coletivo residente.