Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 484/2025-T
Data da decisão: 2025-10-17  IRS  
Valor do pedido: € 5.276,41
Tema: IRS – Requisitos do artigo 12.º-A do Código do IRS
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SUMÁRIO: 

I. O artigo. 12.º-A do Código do IRS apela a um conceito jurídico de residência fiscal e não a um conceito físico de residência.

II. O requisito que consta da alínea a) do n.º 1 do artigo. 12.º-A do Código do IRS não dispensa a consideração do conceito de residência do artigo 16.º do Código do IRS.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1. Relatório

A..., contribuinte n.º..., residente na Rua..., ..., ..., ...-... Samora Correia, (de ora em diante designado “Requerente”), apresentou no dia 19 de Maio de 2025 um pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, que foi aceite, visando, a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS 2024... respeitante ao ano de 2023, no montante de € 5.276,41, bem como da decisão que indeferiu o recurso hierárquico deduzido em relação à mesma, pedindo a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida”) a devolver-lhe a quantia de € 5.276,41 (cinco mil duzentos e setenta e seis euros e quarenta e um cêntimos) e a pagar-lhe os correspondentes juros indemnizatórios, como adiante melhor se verá.

 

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (seguidamente “CAAD”) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído a 29 de Julho de 2025.

 

No mesmo dia foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

A Requerida, no dia 26 de Setembro de 2025, remeteu a sua resposta e juntou aos autos o respetivo processo administrativo.

 

Por despacho notificado no dia 2 de Outubro de 2025, entendeu o Tribunal Arbitral dispensar a reunião do artigo 18.º do RJAT, convidando as Partes a, querendo, apresentar alegações escritas simultâneas, no prazo de 10 dias.

 

Em 14 de Outubro de 2025, o Requerente apresentou alegações escritas reiterando aquilo que oportunamente explanou e fundamentou no pedido de pronúncia arbitral. A Requerida apresentou alegações escritas em 15 de Outubro de 2025, reiterando o já expendido nos autos.

 

 

Posição do Requerente

O Requerente foi residente em Portugal antes de 31 de Dezembro de 2019, passando em 2020, 2021 e 2022 a ser residente no Qatar por motivos profissionais, tendo regressado a Portugal em Janeiro de 2023, motivo por que considera reunir as condições previstas no artigo 12.º-A do Código do IRS para beneficiar do regime de tributação nele instituído.

 

Ao entregar a sua declaração de rendimentos relativa ao ano de 2023, pretendia beneficiar do “regime fiscal dos ex-residentes” previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS e identificar os seus rendimentos da categoria A e B no quadro 4 do anexo A e no quadro 4 do anexo D da declaração Modelo 3 de IRS.

 

Mas tal não lhe foi permitido pelo sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, dado que, constava do cadastro de contribuintes como tendo sido residente em Portugal até 10 de Janeiro de 2020.

 

Por essa razão, foi impedido pelo sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira de submeter a declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2023 com invocação ou ao abrigo do regime fiscal dos ex-residentes, vindo a ser emitida a liquidação de IRS acima identificada e que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, que o Requerente pagou dentro do respetivo prazo.

 

Não se conformando com esta liquidação e com a situação que lhe deu origem, deduziu reclamação graciosa, que veio a ser indeferida com o fundamento, resumidamente, de que o artigo 12.º-A do Código do IRS exige que a pessoa não tenha sido considerada residente, para efeitos de cadastro, desde o dia 1 de Janeiro de um determinado ano até 31 de Dezembro do segundo ano seguinte, sem prejuízo das restantes condições previstas naquele normativo.

 

Em sede de recurso hierárquico desta decisão foi defendida a mesma tese, explicitando a Direção de Finanças de Santarém que «Quando a letra da lei refere “Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores”, isso significa que nos três anos civis anteriores ao regresso a Portugal, de 01 de janeiro a 31 de dezembro, o domicílio fiscal do sujeito passivo se manteve em país diferente…o que não se verifica neste caso, por 10 dias – a alteração de morada para o Catar aconteceu com efeitos a 2020-01-10 e não antes de 2019-12-31 (inclusive).», conforme consta do respetivo projeto de decisão, convertido em decisão final.

 

Contudo, este entendimento não tem acolhimento no Código do IRS – designadamente, nos artigos 12.º-A e 16.º deste diploma – nem respeita a unidade do sistema jurídico que se impõe seja observada no âmbito do conceito de residência fiscal que decorre das normas do Código do IRS, tal como vem sendo assinalado nas diversas decisões arbitrais que sobre esta matéria vêm sendo proferidas.

 

O próprio Governo da República Portuguesa, na divulgação da Medida de Apoio Fiscal para ex-residentes constante do artigo 12.º-A do Código do IRS, em folheto e no portal do Programa Regressar, indica como destinatários deste benefício fiscal quem, cumulativamente com as restantes condições, se torne residente fiscal em Portugal em 2019, 2020, 2021, 2022 ou 2023 nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS.

 

Ou seja, remete expressamente para o conceito de residência que consta e decorre do artigo 16.º do Código do IRS.

 

Deste modo, quer o critério constante da alínea a) do nº 1 do artigo 16.º, quer o constante da alínea a) do n.º 14 do Código do IRS, exigem a presença física em território nacional por um período superior a 183 dias, no ano em questão, para que se verifique a qualidade de residente em território nacional.

 

Pelo que, o artigo 12.º-A do Código do IRS não pode afastar-se deste critério e do conceito de residência constante do artigo 16.º do Código do IRS, em obediência à sua teleologia, à unidade do sistema jurídico e às circunstâncias em que a norma foi elaborada, enquanto fatores decisivos na interpretação e aplicação da lei (imposta no artigo 9.º do Código Civil) e imposta pela própria “coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica”, como salienta a doutrina e a jurisprudência.

 

Tendo o Requerente alterado a sua residência para o Qatar em 2 de Janeiro de 2020, onde iniciou a prestação de trabalho no dia 5 de Janeiro de 2020, e tendo nomeado representante fiscal perante a Autoridade Tributária e Aduaneira em 10 de Janeiro de 2020 – data que a Autoridade Tributária e Aduaneira considera relevante para o efeito – é manifesto que não pode ser considerado residente em território português em 2020, por nele ter permanecido muito menos do que 183 dias.

 

Por este motivo, carece de fundamento legal a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico aqui em causa, na medida em que fundamenta a inaplicabilidade do regime constante do artigo 12.º-A do Código do IRS, na exigência de que o Requerente “(…) se tivesse ausentado do país até ao termo do ano de 2019, o que não sucedeu, por dez dias.”.

 

Não havendo qualquer dissídio, por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativamente ao facto de o Requerente apenas ter regressado a Portugal em 2023, nem quanto ao facto de ter a sua situação tributária regularizada, ter sido residente em território nacional antes de 31 de Dezembro de 2019 e não se encontrar inscrito como residente não habitual, é forçoso concluir que o Requerente reúne as condições impostas no artigo 12.º-A do Código do IRS para poder beneficiar do regime fiscal nele instituído.

 

Pelo que deve ser anulada a liquidação IRS em apreço por padecer de erro sobre os pressupostos de direito ao não ter sido aplicado o regime instituído no artigo 12.º-A do Código do IRS, violando o disposto naquele normativo e no artigo 16.º do Código do IRS, o mesmo acontecendo com a decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico deduzido em relação à mesma.

 

 

Posição da Requerida

No pedido de pronúncia arbitral, como, aliás, na reclamação graciosa e no recurso hierárquico, o Requerente, em síntese, vem sustentar que, tendo regressado a Portugal em 2023, é-lhe aplicável o benefício fiscal previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS, porquanto, alegadamente, (i) tornou-se fiscalmente residente em Portugal em 2023, (ii) não foi residente em território nacional nos anos de 2020, 2021 e 2022 e (iii) tem a sua situação tributária regularizada.

No que para aqui releva, e entre outras condições de aplicação cumulativa, a disciplina transcrita estipula que os sujeitos passivos que se tornem fiscalmente residentes em 2023 – como é o caso do Requerente – tinham de ter sido residentes em território português antes de 31 de Dezembro de 2019, ou seja, tinham de ter sido residentes em território português até 31 de Dezembro de 2019.

 

Ora, no caso dos autos, o Requerente foi residente em território português depois de 31 de Dezembro de 2019, até 10 de Janeiro de 2020.

 

Trata-se de um benefício de carácter automático, resultando a sua aplicação diretamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições de aplicação que acontece pelo cruzamento informático dos dados declarados na declaração Modelo 3 de IRS com o cadastro de contribuintes.

 

E, por isso, porque não reunia as condições para beneficiar do regime fiscal previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS, é que o Requerente não conseguir preencher a declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2023, ao abrigo do regime fiscal dos ex-residentes.

 

É certo que o Requerente não solicitou a sua inscrição como residente não habitual e é também certo que, à data de 31 de Dezembro de 2023, tinha a situação fiscal regularizada, bem como, em 31 de Dezembro de 2023, reunia as condições previstas no artigo 16.º do Código do IRS para ser considerado fiscalmente residente em Portugal – tudo pressupostos / condições previstas no artigo 12.º-A e que o Requerente preenche.

 

Porém, o Requerente não preenche o pressuposto especificamente previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A que é o de ter sido residente no território fiscal até 31 de Dezembro de 2019.

 

Para que o sujeito passivo possa auferir do regime previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS, deve, aquando do seu regresso ser considerado fiscalmente residente em Portugal, de acordo com as estipulações do artigo 16.º do Código do IRS.

E, atenta a situação de facto, e o disposto no artigo 16.º do Código do IRS, o Requerente é fiscalmente residente em Portugal, em 2023.

 

Contudo, o Requerente, ainda que na situação de fiscalmente residente em Portugal em 2023, não reúne todos os demais pressupostos de aplicação do benefício fiscal do artigo 12.º-A do Código do IRS, especificamente, não se verifica o pressuposto de ter sido residente em Portugal até 31 de Dezembro de 2019.

 

O legislador recorre expressamente ao artigo 16.º do Código do IRS para definir o estatuto de residente em Portugal, aquando do regresso do sujeito passivo ao nosso país, condição primeira para poder beneficiar do regime fiscal do artigo 12.º-A do Código do IRS.

 

Mas apenas para esse efeito, porque para os demais pressupostos de aplicação do regime, o legislador define-os nos seus próprios termos, conforme as alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do IRS, indicando, até, datas precisas a cumprir, como é o que acontece quanto ao estatuído na alínea b) do nº 1 do artigo 12.º-A do Código do IRS.

 

A decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico (e também sobre a reclamação graciosa) e, consequentemente, a liquidação controvertida fizeram a correta aplicação do direito dos factos.

 

E não merecendo essa decisão censura, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

2. Saneamento

O Tribunal Arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos do artigo 4.º e do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, estão regularmente representadas, não padecendo o processo de qualquer nulidade.

3. Matéria de facto

3.1.    Factos provados

Com interesse para a prolação da presente decisão arbitral, mostram-se provados os seguintes factos:

 

3.1.1. O Requerente foi residente em Portugal até 10 de Janeiro de 2020, passando a partir de 10 de Janeiro de 2020 a ser residente no Qatar por motivos profissionais, tendo regressado a Portugal em Janeiro de 2023 – cfr. processo administrativo.

 

3.1.2. No cadastro de contribuintes, o Requerente consta como residente em Portugal até 10 de Janeiro de 2020, data a partir da qual e até 16 de Janeiro de 2023 passa a constar como residente no Qatar. A partir de 16 de Janeiro de 2023 passa novamente a constar como residente em Portugal – cfr. processo administrativo e Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.3. O Requerente não tem o estatuto de residente não habitual reconhecido – cfr. processo administrativo.

 

3.1.4. O Requerente não tinha dívidas fiscais ativas à data de 31 de Dezembro de 2023 – cfr. processo administrativo.

 

3.1.5. Em 2 de Janeiro de 2020, o Requerente renovou o cartão de cidadão português tendo declarando a nova morada em Doha, no Qatar (cfr. Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral), onde passou a residir por força de contrato de trabalho celebrado com a B... LLC, ali sediada.

 

3.1.6. O contrato de trabalho foi celebrado com a  B...em 5 de Novembro de 2019, com início em 5 de Janeiro de 2020 – cfr. Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.7. A Autoridade Tributária e Aduaneira trocou correspondência com o Requerente na nova morada em Doha, no Qatar, tendo-o informado da obrigação de nomear um representante fiscal perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que se encontrava a residir no estrangeiro – cfr. Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.8. Em 10 de Janeiro de 2020, o Requerente procedeu à nomeação de representante fiscal em Portugal – cfr. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.9. Em 16 de Janeiro de 2023, o Requerente procedeu à alteração da sua residência para Portugal junto da Autoridade Tributária e Aduaneira – cfr. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.10. Em 29 de Maio de 2024, o Requerente apresentou a declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2023, pretendendo beneficiar do “regime fiscal dos ex-residentes” previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS, mas tal não lhe foi permitido pelo sistema informático, uma vez que constava do cadastro de contribuintes como tendo sido residente em Portugal até 10 de Janeiro de 2020 – cfr. processo administrativo.

 

3.1.11. Foi emitida a liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2023, da qual resultou imposto a pagar de € 5.276,41, a qual foi paga pelo Requerente em 19 de Agosto de 2024 – cfr. Documentos n.º 7 e n.º 8 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

 

3.1.12. Em 22 de Julho de 2024, foi apresentada reclamação graciosa contra a liquidação de IRS n.º 2024..., com fundamento no facto de não ter sido considerado o regime fiscal aplicável aos ex-residentes – cfr. processo administrativo. 

 

3.1.13. Em 26 de Agosto de 2024, o Requerente exerceu audição prévia relativamente ao projeto de indeferimento da reclamação graciosa – cfr. processo administrativo.

 

3.1.14. Em 21 de Outubro de 2024, o Requerente apresentou nova declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2023.

 

3.1.15. A reclamação graciosa foi indeferida a coberto do Ofício n.º ..., de 9 de Dezembro de 2024 – cfr. processo administrativo. 

 

3.1.16. Em 9 de Janeiro de 2025, o Requerente apresentou recurso hierárquico contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa – cfr. processo administrativo.

 

3.1.17. O recurso hierárquico foi indeferido a coberto do Ofício n.º.../2025, de 26 de Fevereiro de 2025 – cfr. processo administrativo. 

 

3.1.18. Em 19 de Maio de 2025, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral tem como objeto a decisão de indeferimento do recurso hierárquico.

 

 

3.2.    Factos não provados

Não há mais factos relevantes para a prolação da decisão que tenham sido dados como não provados.

 

 

 

3.3.    Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de pronunciar-se sobre tudo quanto é alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de selecionar os factos que se mostrem relevantes para a prolação da decisão, identificando os factos que se consideram provados e os que, por seu turno, não se acham demonstrados (artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

 

Assim, os factos que importam para a decisão são apurados em função do objeto do litígio, delimitado em função do pedido e da causa de pedir (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições que assumiram nos articulados por si apresentados.

 

 

4. Matéria de direito

4.1. Questões a decidir

Resulta do que acima se deixou dito, que o pedido e a respetiva causa de pedir impõem que se apreciem as seguintes questões:

 

a)     A de saber se, para efeitos do disposto no artigo 12.º-A do Código do IRS, se deve considerar que o Requerente foi residente em território português no ano de 2020; e

 

b)    A de dilucidar se o Requerente tem direito a juros indemnizatórios caso seja julgado ser ilegal a liquidação ora em crise.

 

 

4.2. O regime aplicável a ex-residentes previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS

O artigo 12.º-A do Código do IRS consagra o regime aplicável a ex-residentes, introduzido na ordem jurídica pela Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2019).

 

Na versão em vigor à data a que se reportam os factos, a redação do preceito era a seguinte:

 

Artigo 12.º - A

Regime fiscal aplicável a ex-residentes

 

1 - São excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º em 2019, 2020, 2021, 2022 ou 2023:

 

a) Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores;

 

b) Tenham sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015, no caso dos sujeitos passivos que se tornem fiscalmente residentes em 2019 ou 2020, e antes de 31 de dezembro de 2017, 2018 e 2019, no caso dos sujeitos passivos que se tornem fiscalmente residentes em 2021, 2022 ou 2023, respetivamente;​

 

c) Tenham a sua situação tributária regularizada.

 

2 - Não podem beneficiar do disposto no presente artigo os sujeitos passivos que tenham solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

O artigo 12.º-A do Código do IRS, que exclui de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e empresariais e profissionais, obtidos por ex-residentes, estabelece uma medida excecional de carácter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Os requisitos cumulativos que têm de observar-se para que se possa aplicar este regime, ou seja, para que possam ser excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais do sujeito passivo, são os seguintes:

 

·      Tornar-se fiscalmente residente nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS em 2019, 2020, 2021, 2022 ou 2023;

·      Não ter sido considerado residente em território português em qualquer dos três anos anteriores;

·      Ter sido residente em território português antes de 31 de Dezembro de 2015, no caso dos sujeitos passivos que se tornem fiscalmente residentes em 2019 ou 2020, e antes de 31 de Dezembro de 2017, 2018 e 2019, no caso dos sujeitos passivos que se tornem fiscalmente residentes em 2021, 2022 ou 2023, respetivamente;

·      Ter a sua situação tributária regularizada; e

·      Não ter solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

No caso em apreço, estão indisputavelmente verificados alguns dos requisitos para a aplicação do deste regime ao Requerente, a saber:

 

·      Tornou-se fiscalmente residente, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS, em 2023;

·      Era residente em território português antes de 31 de Dezembro de 2019 – a própria Autoridade Tributária e Aduaneira reconhece que, no cadastro de contribuintes, verifica-se que o Requerente constou como residente em Portugal até 10 de Janeiro de 2020 (cfr. processo administrativo);

·      Tinha a sua situação tributária regularizada; e

·      Não solicitou a sua inscrição como residente não habitual.

 

Ou seja, o litígio circunscreve-se à questão de saber se o Requerente deve, ou não, ser considerado residente em território português em qualquer dos três anos anteriores (2020, 2021 e 2022).

 

Quanto aos anos de 2021 e 2022 estão as Partes de acordo: o Requerente não deve ser considerado residente em território português. Assim, o dissídio diz apenas respeito ao ano de 2020, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que o Requerente residiu em território português nos primeiros 10 dias do ano (data de produção de efeitos da nomeação de representante fiscal em Portugal), razão por que não pode dizer-se que não residiu nesse ano em território português.

 

Importa, assim, saber se esses 10 dias de residência em território português em 2020 bastam para que se frustre o acesso do Requerente ao regime aplicável aos ex-residentes para os seus rendimentos de 2023.

 

Esta questão já foi submetida à apreciação de Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, havendo decisões contraditórias. As decisões arbitrais relativas aos processos n.º 202/2022-T e n.º 740/2022-T vão no sentido de entender que obsta à aplicação do regime consagrado no artigo 12.º-A do Código do IRS o facto de o sujeito passivo ter residido em território português, um dia que seja, em qualquer dos três anos anteriores ao do ano em que se torna residente em Portugal (ano de regresso).

 

Diga-se, desde já, que este Tribunal Arbitral não pode acompanhar aquele entendimento.

 

A alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do IRS exige que os sujeitos passivos que pretendam beneficiar do regime fiscal aplicável a ex-residentes “não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores”. É bom notar que o legislador faz uso da expressão “não tenham sido considerados residentes em território português” o que sugere a residência, para estes efeitos, não é meramente física, mas uma consideração jurídica. Convenhamos que a residência meramente física não exige qualquer consideração. É apenas fáctica. Claro está que a residência, para efeitos fiscais, em regra, se baseia na presença física no território, mas essa presença tem de ser sopesada em função dos critérios que o legislador elegeu para que ela possa, ou deva, operar. Assim, é preciso examinar detidamente, refletir, a presença física no território para avaliar sobre o preenchimento da previsão normativa do artigo 16.º do Código do IRS, máxime o seu n.º 1, cuja epígrafe é, justamente, “residência”. A regra para se considerar alguém como residente em território acha-
-se no n.º 1 do dito artigo 16.º do Código do IRS. E, pelos elementos de que dispõe o Tribunal Arbitral, o Requerente não preenche nenhum desses critérios objetivos.

Vale a pena recuperar a declaração de voto de vencido da decisão prolatada no processo n.º 202/2022-T, com a qual se concorda:

 

“Concordo com o fundamento da decisão arbitral de que, no que respeita ao acesso ao regime fiscal dos ex-residentes, a redacção do artigo 12.º-A, alínea a), do Código do IRS, é clara quando refere a exclusão parcial de tributação dos sujeitos passivos que «não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores» e não, nos 36 meses anteriores. Contudo, parece-me que para chegar à conclusão a que chegou, a decisão arbitral deveria ter abordado e determinado a residência fiscal do Requerente de acordo com um critério estritamente normativo. Com efeito e no que se refere à determinação da residência fiscal, penso que a expressão «considerados residentes», constante da redacção do artigo 12.º-A, alínea a), do Código do IRS, remete decisivamente para um conceito jurídico de residência fiscal e não para um conceito físico de residência. Deste modo, a residência fiscal do Requerente, em 2017, haveria de ter sido determinada por um critério normativo e - isto independentemente de este ter residido fisicamente durante parte do ano de 2017 em território português.”.      

 

 Parece-nos ter sido bem ajuizada esta mesma questão na decisão arbitral referente ao processo n.º 766/2022-T, cuja fundamentação acolhemos por inteiro. Nela pode ler-se:

 

“No presente caso, o que importa analisar é se os acima referidos 30 dias de comprovada permanência do ora Requerente em Portugal em 2018 (de 1/1/2018 a 30/1/2018) inviabilizam a aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes no artigo 12.º-A do CIRS – i.e., se o requisito que consta da al. a) do n.º 1 desse artigo 12.º-A do CIRS (relativo à não residência em território português nos três anos anteriores) pode dispensar a consideração do conceito de residência constante do artigo 16.º do CIRS e, nomeadamente, do que consta na parte final do n.º 4, bem como na alínea a) do n.º 14, desse artigo (alínea segundo a qual um sujeito passivo só poderá considerar-se residente em território nacional durante a totalidade do ano no qual perca a qualidade de residente quando se verifique que esse sujeito passivo “a) Permane[ceu] em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, nesse ano”).

Considerando ser matéria de facto incontroversa que o ora Requerente não permaneceu em território português mais de 30 dias no ano de 2018 (…), resulta evidente que não se pode considerar que o mesmo teve residência em Portugal nesse ano, dado o disposto nos já referidos n.º 4 (parte final), e alínea a) do n.º 14, do artigo 16.º do CIRS. Este artigo 16.º deve ser tido em consideração para efeitos de interpretação do artigo 12.º-A do CIRS visto que é a própria al. a) do n.º 1 desse art. 12.º-A que utiliza a expressão “não tenham sido considerados residentes” – não se exigindo, assim, para efeitos de aplicação deste regime fiscal, a ausência do território português em todos os 365 dias de cada um dos três anos anteriores (no presente caso, anos de 2018, 2019 e 2020).”.

 

Vai no mesmo sentido a decisão arbitral proferida no processo n.º 609/2023-T e também a do processo n.º 603/2023-T, onde se lê:

 

“Verificamos que o Requerente face aos factos provados não pode ser considerado residente em Portugal para efeitos de tributação em IRS no ano de 2017, na verdade não preenche os requisitos do artigo 16º do CIRS. Em 01 de janeiro de 2017 iniciou o cumprimento de um contrato de trabalho no Reino Unido, deu cumprimento ao disposto no nº.5 do artigo 19º da LGT, procedendo à alteração da sua morada no cartão de cidadão com o procedimento concluído a 11 de fevereiro de 2017, ao mesmo tempo que, nem o Requerente apresentou qualquer declaração de rendimentos, nem a Requerida lhe exigiu tal procedimento, relativamente a 2017.

Por outro lado, considera o Tribunal que a expressão “Não tenham sido considerados residentes em território português…” utilizada no artigo 12º-A do CIRS (regime previsto para os ex-residentes), tem que ser interpretada de acordo com o conceito jurídico fiscal de residente estabelecido no citado artigo 16º do CIRS para efeitos de tributação em IRS que, de todo, afasta o conceito físico de residência na totalidade do ano, o que nos permite afirmar ser desnecessária a ausência em todos os 365 dias de cada um dos anos em causa, basta que não reúna os requisitos previstos no citado artigo 16º para não poder ser considerado residente em território português para efeitos de tributação em IRS.

No caso concreto, como já se viu, o dissidio estava apenas no ano de 2017 e nesse ano o Requerente, para efeitos de tributação em IRS não reuniu condições para ser considerado residente em território português.”.

 

Assim, entende o Tribunal Arbitral que o Requerente, no que respeita ao ano de 2020, não pode ser considerado residente em território português, por força do disposto no artigo 16.º do Código do IRS. Parece-nos, pois, que se acham verificados os requisitos de que depende a aplicação ao Requerente, em 2023, do regime fiscal aplicável a ex-residentes, previsto no artigo 12.º-A do Código do IRS. A liquidação em causa, por não ter contemplado a exclusão de tributação de metade dos rendimentos do Requerente em 2023, padece do vício de violação de lei que este lhe aponta, não podendo subsistir na ordem jurídica.

 

 

4.3. Da restituição da quantia indevidamente paga e dos juros indemnizatórios

Quanto ao pedido de restituição da prestação tributária indevidamente paga, acrescido de juros indemnizatórios, formulado pelo Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

No caso, o erro que afeta a liquidação adicional anulada é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois promoveu-a por sua iniciativa, com errada aplicação do direito.

 

Tem, pois, direito o Requerente a ser reembolsado da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do ato anulado e, ainda, a ser indemnizado do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando ilegal o indeferimento do recurso hierárquico com a consequente anulação da liquidação de IRS 2024 ... respeitante ao ano de 2023;

b)    Condenar a Requerida a reembolsar ao Requerente a quantia por ele indevidamente suportada e a pagar-lhe juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sobre o montante a restituir ao Requerente em virtude da anulação da liquidação impugnadas;

c)     Condenar a Requerida nas custas.

 

 

6. Valor do processo

De harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 299.º e no n.º 2 do artigo 306.º, ambos do CPC, no artigo 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.276,41 (cinco mil duzentos e setenta e seis euros e quarenta e um cêntimos).

 

 

7. Custas

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 12 e no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e do n.º 5 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

 

 

 

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2025 

 

O Árbitro,

 

Hélder Faustino