SUMÁRIO
A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide é causa de extinção da instância, ocorrendo quando, na sua pendência, a resolução do litígio deixe de interessar, nomeadamente em consequência de o Requerente conseguir obter a satisfação dos mesmos valores fora do âmbito da instância. É o que sucede quando, por força de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, as normas em que os atos de liquidação impugnados se basearam desaparecem do ordenamento jurídico, com efeitos ex tunc, retroagindo os efeitos de invalidação da norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral ao momento da respetiva entrada em vigor.
A árbitra Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral singular no presente processo, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO:
A... S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, número de identificação fiscal e de pessoa coletiva..., com morada na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, doravante simplesmente designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 a) e 10.º, n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando (i) a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de autoliquidação do ASSB referente ao sujeito passivo, apurado no ano de 2023, pago pelo Requerente em junho de 2024 e, mediatamente, a anulação deste ato tributário e (ii) o reembolso do imposto pago, no valor de € 1.956,06, acrescido de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as demais consequências legais.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
Em 05.02.2025, foram as Partes devidamente notificados da designação da signatária como árbitra, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Desta forma, o Tribunal Arbitral ficou regularmente constituído em 25.02.2025, tendo, a 03.03.2025, sido notificada a Requerida para apresentar Resposta e solicitar a produção de prova adicional, o que veio a fazer a 04.04.2025.
A 15.04.2025, veio o Requerente prescindir da inquirição de testemunhas e, a 28.07.2025, veio requerer que o Tribunal julgasse extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, condenando a Requerida nas custas do processo. Para sustentar o pedido, invoca o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 478/2025, de 3 de junho de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 899/2024, que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, alínea a), todos constantes do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que estabelecia o regime jurídico do ASSB.
Notificada a AT para se pronunciar sobre o pedido de declaração de inutilidade superveniente da lide, veio a Requerida dizer que “(...) a simples junção aos autos de um acórdão com força obrigatória geral não constitui qualquer facto suscetível de se subsumir no conceito de inutilidade superveniente da lide. 7. Perante um acórdão com força obrigatória geral, aquilo que cabe ao Tribunal Arbitral (como, aliás, a qualquer tribunal, seja ele qual for), é extrair as consequências jurídicas que dele possam extrair-se. 8. Designadamente, a eventual necessidade de acatamento da decisão. 9. O que, naturalmente, depende de uma prévia análise sobre a identidade entre o caso sub judice e o caso julgado constitucional.”
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, sendo competente para se pronunciar sobre o mérito da questão suscitada.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
I. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
(i) Factos provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se dão como assentes e provados:
a. O Requerente é a sucursal em Portugal do B..., S.A., instituição de crédito de direito luxemburguês, com sede e efetiva administração no Luxemburgo.
b. Enquanto sucursal portuguesa da referida instituição de crédito, o Requerente viu-se sujeito ao pagamento do ASSB, referente ao ano de 2023.
c. O Requerente procedeu à respetiva autoliquidação do ASSB em 2024, através da entrega de modelo oficial, em que efetuou uma autoliquidação no valor de € 1.956,06.
d. Por discordar da autoliquidação efetuada, o Requerente apresentou reclamação graciosa da mesma.
e. Perante o seu indeferimento, o Requerente deduziu a presente ação arbitral, solicitando a anulação da liquidação do ASSB e do ato de indeferimento da reclamação graciosa.
f. Foi publicado, no Diário da República n.º 131/2025, Série I, no dia 10 de julho de 2025, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 478/2025, de 3 de junho de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 899/2024, cujo sumário tem o seguinte teor: “Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, alínea a), do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no anexo VI da Lei n.º 27- A/2020, de 24 de julho.”
(ii) Factos não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
(iii) Fundamentação da matéria de facto
A matéria considerada provada foi determinada tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos.
II. MATÉRIA DE DIREITO
Face ao requerimento, apresentado pelo Requerente a 28.07.2025, no sentido de que o Tribunal julgue extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, essa é a primeira questão a apreciar nesta sede.
Nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide é uma causa de extinção da instância, verificando-se quando, “por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”[1]. Também a doutrina atribui ao conceito conteúdo idêntico, nomeadamente Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha, em cujas palavras “(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”[2].
O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 478/2025, de 3 de junho de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 899/2024, declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, alínea a), do Regime que cria o ASSB, contido no anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho. Na sequência da publicação deste acórdão, o Requerente veio requerer ao Tribunal a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, concluindo o pedido que “de modo a garantir uma mais célere resolução do litígio que se encontra ainda pendente, requer-se que este douto Tribunal julgue extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e condene a Fazenda Pública em custas.”
Ora, o pedido do Requerente indica que a instância arbitral, em que pedia a declaração de ilegalidade do ato de liquidação, bem como do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra aquele, ambos com fundamento na inconstitucionalidade do regime jurídico do ASSB, deixou de lhe interessar, por já ter atingido o resultado visado de outra forma (da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral resulta a nulidade dos atos praticados com base na norma declarada inconstitucional, logo, também aqueles que estavam a ser impugnados no âmbito da presente instância). Considerando também a natureza voluntária da jurisdição arbitral, tendo o Requerente, que lhe deu azo, pedido a extinção da instância por inutilidade superveniente, é de deferir este pedido[3].
Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões elencadas.
Quanto à responsabilidade pelas custas, o artigo 536.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT), prevê o seguinte:
“536.º
Repartição das custas
1 - Quando a demanda do autor ou requerente ou a oposição do réu ou requerido eram fundadas no momento em que foram intentadas ou deduzidas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis, as custas são repartidas entre aqueles em partes iguais.
2 - Considera-se que ocorreu uma alteração das circunstâncias não imputável às partes quando:
a) A pretensão do autor ou requerido ou oposição do réu ou requerente se houverem fundado em disposição legal entretanto alterada ou revogada;
b) Quando ocorra uma reversão de jurisprudência constante em que se haja fundado a pretensão do autor ou requerente ou oposição do réu ou requerido;
c) Quando ocorra, no decurso do processo, prescrição ou amnistia;
d) Quando, em processo de execução, o património que serviria de garantia aos credores se tiver dissipado por facto não imputável ao executado;
e) Quando se trate de ação tendente à satisfação de obrigações pecuniárias e venha a ocorrer a declaração de insolvência do réu ou executado, desde que, à data da propositura da ação, não fosse previsível para o autor a referida insolvência.
3 - Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.
4 - Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas.”
Esta disposição legal contempla três grupos de situações distintas:
(i) Casos em que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide não é imputável a nenhuma das partes (a pretensão ou oposição eram fundadas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes e não imputáveis a nenhuma das partes) e em que a consequência é a repartição das custas em partes iguais;
(ii) Casos em que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide é imputável ao requerido ou réu, caso em que será essa parte a suportar a totalidade das custas;
(iii) Restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, em que a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente.
Parece-nos que estamos perante um caso que se insere na primeira categoria de situações, ou seja, em que a inutilidade superveniente da lide não é imputável a nenhuma das partes. O n.º 2 da disposição legal transcrita ajuda a perceber em que casos é que deve considerar-se que a alteração das circunstâncias não é imputável a nenhuma das partes:
a) [quando] A pretensão do autor ou requerido ou oposição do réu ou requerente se houverem fundado em disposição legal entretanto alterada ou revogada;
b) Quando ocorra uma reversão de jurisprudência constante em que se haja fundado a pretensão do autor ou requerente ou oposição do réu ou requerido;
c) Quando ocorra, no decurso do processo, prescrição ou amnistia;
d) Quando, em processo de execução, o património que serviria de garantia aos credores se tiver dissipado por facto não imputável ao executado;
e) Quando se trate de ação tendente à satisfação de obrigações pecuniárias e venha a ocorrer a declaração de insolvência do réu ou executado, desde que, à data da propositura da ação, não fosse previsível para o autor a referida insolvência.
Embora a situação do caso concreto não se inscreva diretamente em nenhuma das alíneas, parece-nos que será de a considerar, para este efeito, como situação análoga à revogação prevista na alínea a). Embora a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não seja uma revogação, antes implicando, com muito superior amplitude, a nulidade ipso jure da mesma norma, produzindo efeitos ex tunc, e retroagindo os efeitos de invalidação da norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral ao momento da respetiva entrada em vigor (cf. o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição), os efeitos práticos de o ato tributário e de o ato de indeferimento da reclamação graciosa deixarem de existir, devendo o imposto ser devolvido ao sujeito passivo, são os mesmos que resultariam de uma revogação, a qual, simplesmente, deixa de ter que ocorrer em função daquela declaração de inconstitucionalidade. Se assim entendermos, então concluiremos que essa “circunstância equivalente à revogação e que determina a inutilidade superveniente da lide” não é imputável nem ao Requerente, nem à Requerida. É claro que poderíamos sempre considerar que o Requerente pediu a declaração de inutilidade superveniente, mas não nos parece que suscitar a questão seja o mesmo que dar-lhe azo, sendo que nos parece que “ser imputável a” significa que essa entidade deu azo à situação e não apenas que a suscitou. Isto é, o mero facto de o Requerente ter pedido a declaração de inutilidade superveniente da lide não deve, aqui, ser interpretado como ser imputável ao Requerente essa mesma inutilidade. Esta decorre da declaração do Tribunal Constitucional e não do pedido do Requerente.
Por outro lado, não nos parece, apesar de a AT ser parte da pessoa coletiva Estado, a quem é imputável a aprovação de norma declarada inconstitucional, a aplicação dessa norma e consequente liquidação de impostos, a organização de um processo com vista à declaração de inconstitucionalidade da mesma norma e a subsequente declaração de inconstitucionalidade da mesma norma, que se deva considerar, no âmbito deste processo, que lhe é imputável, enquanto entidade Requerida, a inutilidade superveniente da lide.
Em suma, entendemos ser de aplicar a norma prevista no n.º 1 do artigo 536.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT), com a consequente repartição de custas em partes iguais entre Requerente e Requerida.
III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar verificada a inutilidade superveniente da lide, determinando-se, em consequência, a extinção da instância arbitral, nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, com custas repartidas em partes iguais pelas Partes.
Fixa-se o valor do processo em € 1.956,06, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar em partes iguais pelo Requerente e pela Requerida
Lisboa, 1 de outubro de 2025
A Árbitra,
(Raquel Franco)
[1] Cf. o acórdão do STA de 30 de julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 0875/14.
[2] Cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 555.
[3] Neste sentido, veja-se o acórdão anterior de um tribunal coletivo constituído junto do CAAD, processo 1399/2024-T, em, que se decidiu justamente nesse sentido.