Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 122/2025-T
Data da decisão: 2025-10-15  IRS  
Valor do pedido: € 6.852,98
Tema: IRS. Liquidação oficiosa. Correcção em caso de apresentação da declaração modelo 3 antes do decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação. Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, quanto aos pedidos de anulação do processo de execução fiscal e de aceitação de declarações fiscais pela AT.
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SUMÁRIO:

 

1. No caso de liquidação oficiosa de IRS relativa ao ano de 2021, por falta de apresentação atempada da declaração modelo 3, a apresentação extemporânea de declaração de rendimentos dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação impõe à AT o dever de corrigir a liquidação oficiosa, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, do Código do IRS, conjugado com os artigos 45.º, 55.º e 78.º da LGT, sob pena de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito e por erro na quantificação.

 

2. Em tais circunstâncias, o indeferimento do pedido de revisão oficiosa é ilegal, implicando a anulação da decisão respectiva e da liquidação oficiosa de IRS de 2021 na medida do ganho excluído da tributação.

 

3. Verificados os requisitos do artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, a mais-valia imobiliária obtida em 2021 com a alienação de imóvel destinado a habitação própria e permanente, reinvestida na aquisição de novo imóvel com idêntico destino, está excluída da tributação em IRS na medida do reinvestimento do valor de realização.

 

4. O tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer dos pedidos de anulação do processo de execução fiscal e de aceitação de declarações modelo 3 de IRS, nos termos do artigo 2.º do RJAMT. 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Martins Alfaro, árbitro designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído em 11-04-2025, profere a seguinte Decisão Arbitral:

 

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT):  A..., casada, titular do título de residência n.º ..., válido até 10-08-2026, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Carvalhal.

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral

 

A decisão proferida pela AT em 29-10-2024 que decidiu o indeferimento do pedido de revisão oficiosa e a dispensa do exercício do direito de audição prévia da Requerente, bem como o acto de liquidação oficiosa com o n.º 2023..., de IRS, relativa ao ano de 2021, no valor de € 6.852, 98.

 

 

 

A.4 - Pedido: A Requerente formulou o seguinte pedido: 

 

Ser julgado totalmente procedente pedido de pronúncia arbitral, e, em consequência:

a) Ser anulado o despacho de rejeição do pedido de revisão oficiosa proferido pela Autoridade Tributária e Aduaneira a 29.10.2024;

b) Ser anulado o ato de liquidação de IRS n.º 2023... relativo ao ano de 2021;

c) Ser anulado o processo de execução fiscal n.º ...2023...;

d) Proceder à aceitação da declaração 2021-...e a aceitação da declaração de 2023 apresentada no dia 18.06.2024.

 

A.5 - Posição da Requerente:

 

Em Março de 2019, a Requerente e o seu marido adquiriram um imóvel em Corroios (Seixal) por 320.000 euros (quota-parte de 160.000 euros), destinado a habitação própria e permanente, comprovado por documentos como título de residência, facturas de serviços e registos prediais.

 

Em Agosto de 2021, venderam esse imóvel por 425.000 euros (quota-parte de 212.500 euros), gerando uma mais-valia.

 

Em Maio de 2023, reinvestiram o valor na aquisição de um novo imóvel em Azeitão (Setúbal) por 410.000 euros, também destinado a habitação própria e permanente.

 

A Requerente não entregou a declaração de IRS relativa ao ano de 2021, levando a AT a proceder a uma liquidação oficiosa em 2023, tributando a mais-valia sem considerar o reinvestimento.

 

Em Junho de 2024, a Requerente apresentou a primeira declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2021.

 

Na sequência, a Requerente apresentou, assim, um pedido de revisão oficiosa dirigido à AT, identificando como objecto mediato a liquidação oficiosa de IRS de 2021 e juntando a declaração de rendimentos submetida em 18-06-2024. Pretendia a Requerente a anulação ou correcção dessa liquidação com base nos factos constantes da nova declaração, em particular a exclusão de tributação da mais-valia imobiliária nos termos do artigo 10.º, n.º 5 do CIRS, por terem sido cumpridas as condições legais de reinvestimento.

 

A AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa em Outubro de 2024, com o fundamento de que a residência fiscal só foi registada no final de 2023 e que a declaração modelo 3, por ser extemporânea, não goza de presunção de veracidade.

 

Inconformada, a Requerente instaurou a presente acção arbitral, pedindo a declaração de ilegalidade e a consequente anulação do despacho de indeferimento da revisão oficiosa e da liquidação oficiosa de IRS de 2021.

 

A.6 - Posição da Requerida:

 

A Requerida não apresentou Resposta, tendo apenas junto aos autos o processo administrativo.

 

Já em sede de alegações, a Requerida escreveu que «da consulta do sistema de registo de contribuintes da Requerida verifica-se que a Requerente em 2018, inscreveu ser não residente em Portugal, tendo alterado a sua situação pessoal para residente apenas em 17.12.2023, declarando então a sua morada sita em ... (rua ...) e, desde Junho 2024,

passou a estar situada no Bombarral (Rua ...)»,

 

Pelo que «em face de tal factualidade resulta de forma clara e inequívoca que à data de aquisição bem como da alienação do imóvel gerador do ganho de mais valia, Agosto de 2021, a Requerente detinha o estatuto de não residente», facto impeditivo do benefício previsto no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS.

 

Concluiu no sentido de que pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.


As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 11-04-2025.

 

A Requerida não apresentou Resposta.

 

Apesar de ter requerido a produção de prova testemunhal, a Requerente veio, já após a marcação da respectiva inquirição, desistir de tal prova.

 

Ambas as Partes alegaram, pugnando a Requerente pela procedência do pedido de pronúncia arbitral e a Requerida pela respectiva improcedência.

 

O prazo para prolatar a decisão arbitral foi prorrogado por dois meses, ao abrigo ao abrigo do disposto no artigo 21.º, do RJAMT, por despacho de 08-10-2025.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

O pedido de constituição do Tribunal arbitral é tempestivo e o processo não enferma de nulidades.

 

 

C - FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Matéria de facto - Factos provados: 

 

Com base na prova documental constante do processo e na posição assumida pelas Partes, consideram-se provados os seguintes factos relevantes:

 

A Requerente não apresentou dentro do prazo legal (30 de Junho de 2022) a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021.

 

Em face da falta de entrega da declaração, a AT notificou a Requerente para cumprir a obrigação em falta, sem que, contudo, tivesse sido apresentada qualquer declaração dentro do prazo suplementar concedido.

 

Em consequência, a AT emitiu, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS, uma liquidação oficiosa de IRS relativa ao ano de 2021, identificada pelo n.º 2023 ..., com data de emissão de 31-01-2023, no valor total de € 6.852,98, de imposto e juros compensatórios.

 

Nessa liquidação oficiosa, a matéria colectável da Requerente foi determinada tomando por base os elementos disponíveis (designadamente o montante de rendimentos comunicados por terceiros, como entidades pagadoras e registos de transmissões patrimoniais) e não considerando quaisquer abatimentos ou benefícios não automaticamente aplicáveis sem declaração; nomeadamente não foi contemplada qualquer exclusão de mais-valias por reinvestimento.

 

Em 20-03-2019, o cônjuge da Requerente adquiriu, por documento particular autenticado, o imóvel sito na Rua ..., n.º ..., ..., ..., freguesia de ..., concelho do Seixal, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... .

 

No referido documento autenticado consta que «o Imóvel objeto do presente título destina-se a Habitação própria permanente do SEGUNDO OUTORGANTE [o cônjuge da Requerente]».

 

E consta ainda como residência da Requerente «Rua ..., ... ..., São Paulo, Brasil».

 

Dos documentos juntos pela Requerente aos autos, constam diversos documentos bancários emitidos em Abril e Maio de 2019, nos quais consta a morada sita na Rua ..., n.º ...,  ..., ... . 

 

Dos documentos juntos pela Requerente aos autos, constam os documentos nrs. 3, 11, 15, 18 e 19, emitidos em nome da Requerente, referentes a 2019, nos quais consta a morada sita na Rua ..., n.º ..., ...-... Corroios.

 

Em 09-08-2021, a Requerente e o seu cônjuge alienaram onerosamente o imóvel que haviam adquirido em 2019, pelo valor de € 425.000,00.

 

Em 11-03-2023, a Requerente e o seu cônjuge adquiriram onerosamente novo imóvel que haviam adquirido em 2019, pelo valor de € 410.000,00, declarando no título aquisitivo destiná-lo a habitação própria e permanente.

 

Em 18-06-2024, a Requerente procedeu à entrega, via Portal das Finanças, de uma declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2021 (declaração de substituição, embora sendo a primeira declaração efectivamente apresentada para esse ano, dada a ausência de entrega anterior).

 

Nessa declaração, a Requerente declarou os rendimentos obtidos em 2021, incluindo os referentes à alienação onerosa do imóvel mencionado.

 

No anexo G dessa declaração, a Requerente fez constar o valor de realização da venda do imóvel habitacional e informou da intenção de reinvestimento, declarando o montante efectivamente reinvestido na aquisição de outro imóvel para habitação própria e permanente, bem como a data dessa aquisição.

 

Em cumprimento do artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, a Requerente assinalou o campo próprio relativo à exclusão de tributação da mais-valia por reinvestimento do valor de realização na aquisição de nova habitação.

 

A consideração dos elementos constantes da declaração modelo 3 de IRS, apresentada em 18-06-2024, originaria uma matéria colectável corrigida.

 

Após a apresentação da referida declaração, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa da liquidação oficiosa de IRS de 2021, nos termos do artigo 78.º da LGT, invocando erro nos pressupostos da liquidação oficiosa por não ter sido considerada a situação tributária real da Requerente, em particular o reinvestimento efectuado e a consequente inaplicabilidade (total ou parcial) da tributação dos ganhos obtidos.

 

O pedido de revisão oficiosa foi dirigido à Direção de Finanças competente e foi instaurado com o n.º ...2024... .

 

Subsequentemente, a AT proferiu decisão final no procedimento de revisão oficiosa, com os seguintes fundamentos:

 

Verifica-se desde logo que, na base da liquidação em causa, está o incumprimento, da requerente, das obrigações declarativas que pendiam sobre ele, ou seja, a origem da liquidação é precisamente o comportamento negligente da requerente, pelo que não se encontram reunidos os pressupostos legais que permitam a revisão da liquidação nos termos do n.º 4 do art. 78º da LGT.

 

Finalmente não podemos deixar de salientar que a requerente nunca teve o seu domicilio fiscal no prédio urbano alienado em 2021, dado que apenas passou a residir em Portugal em 17-12-2023, pelo que, mesmo que a situação tivesse enquadramento no artigo 78º da LGT, não poderia beneficiar da exclusão de tributação prevista na alínea a) do n.º 5 do art. 10º do CIRS.

 

A decisão final proferida no procedimento de revisão oficiosa considera-se notificada à Requerente em 04-11-2024.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 03-02-2025 - Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:

 

Não se provou que a Requerente não fosse residente em Portugal em 2019, em face do teor dos documentos nrs 3, 11, 15, 18 e 19 juntos pela Requerente, nos quais consta como residência da Requerente na Rua ..., n.º ..., ...-... Corroios.

 

Não se provou igualmente que a Requerente não fosse residente em Portugal em 2021, em face do teor do documento n.º 4 junto pela Requerente - título de residência emitido em 02-08-2020 e válido até 02-08-2023 -, no qual consta como residência da Requerente na Rua ..., n.º ..., ...-... Corroios.

 

Acresce que a Requerida, apesar de alegar a não residência da Requerente em território português, não fez qualquer prova dessa alegação, não sendo evidentemente suficiente a mera afirmação, constante das alegações escritas da Requerida, de que tal facto resultaria da «consulta do sistema de registo de contribuintes da Requerida», desacompanhada de qualquer prova documental que podia e devia ter sido junta aos autos.

 

Mesmo na informação que constitui o fundamento da decisão final do procedimento de revisão oficiosa consta que a Requerente «apenas passou a residir em Portugal em 17-12-2023» (processo administrativo), mas, uma vez mais, inexiste qualquer prova, designadamente documental, que sustente tal afirmação.

 

Ao invés - e apesar de a prova apresentada pela Requerente não ser a ideal -, a verdade é que a Requerente apresentou elementos probatórios que apontam para que a sua residência, quer em 2019, quer em 2021, se situava em Portugal.

 

A motivação do Tribunal assentou igualmente na aplicação dos princípios relativos ao ónus da prova, nos termos do artigo 74.º da LGT.

 

De acordo com o n.º 1 desta norma, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

 

No caso dos autos, foi a Requerida quem invocou o facto de a Requerente deter o estatuto de não-residente à data da alienação do imóvel em Agosto de 2021, com o intuito de obstar à aplicação do benefício de exclusão de tributação previsto no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS.

 

Inexistindo presunção legal de não-residência, cabia à Requerida - e não à Requerente - trazer aos autos elementos probatórios idóneos para sustentar tal alegação, em especial que fossem susceptíveis de contrariar os documentos juntos pela Requerente, como o título de residência válido de 02-08-2020 a 02-08-2023 e os comprovativos de morada em Corroios (documentos nrs. 3, 4, 11, 15, 18 e 19).

 

Este ónus probatório é, de resto, reforçado pelo facto de a Requerida deter acesso privilegiado ao sistema de registo de contribuintes, não tendo apresentado qualquer prova constante do referido registo, fosse em sede de procedimento administrativo de revisão oficiosa, fosse em sede de processo arbitral.

 

No confronto entre a prova documental apresentada pela Requerente, que aponta para a efectiva residência em Portugal nos períodos relevantes, e a total ausência de contraprova pela Requerida, o Tribunal conclui pela improcedência da alegação de não-residência, segundo princípios de racionalidade, lógica e experiência comum, conjugados com as regras probatórias da LGT. 

 

Por estes motivos, o Tribunal não considera provada a alegação da Requerida, nas suas alegações escritas, de que « que à data de aquisição bem como da alienação do imóvel gerador do ganho de mais valia, Agosto de 2021, a Requerente detinha o estatuto de não residente.».

 

Não existem outros factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente, e ainda no teor do processo administrativo e da Resposta da Requerida.

 

A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não se entende posta em causa, e no acervo probatório carreado para os autos, o qual foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.

 

Adicionalmente, a convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados assentou também nos efeitos da ausência de Resposta pela Requerida.

 

Com efeito, no presente caso, a Requerida limitou-se a juntar o processo administrativo sem contestar substancialmente os factos invocados, e sem trazer aos autos elementos probatórios que infirmassem a prova documental apresentada pela Requerente.

 

Esta omissão reforçou a presunção de veracidade, contribuindo para a formação da convicção do Tribunal em conformidade com os princípios processuais aplicáveis.[1]

 

 

D - MATÉRIA DE DIREITO:

 

A questão central a dirimir consiste em saber se a AT agiu ilegalmente ao recusar a correcção da liquidação oficiosa de IRS de 2021, não considerando os elementos constantes da declaração de rendimentos apresentada pela Requerente em 18-06-2024 ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 do Código do IRS.

 

Importa determinar se essa recusa - expressa no indeferimento da revisão oficiosa - viola o disposto na lei, designadamente os artigos 76.º, n.º 4 do Código do IRS e 78.º da LGT.

Subsidiariamente, cumprirá analisar se, atentos os factos provados, a Requerente preencheu as condições da exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias por reinvestimento, nos termos do artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.

 

Em suma, a análise de direito desenvolver-se-á em duas vertentes a saber:

 

(i)            a legalidade procedimental/material da manutenção da liquidação oficiosa face à apresentação tardia da declaração e pedido de revisão (dever de correcção da liquidação oficiosa); e 

 

(ii)           a verificação dos requisitos substanciais do benefício de exclusão de tributação por reinvestimento da mais-valia obtida em 2021.

 

 

D.1 - Legalidade procedimental/material da manutenção da liquidação oficiosa face à apresentação tardia da declaração e pedido de revisão (dever de correcção da liquidação oficiosa):

 

O Código do IRS prevê, no seu artigo 76.º, as formas e procedimentos de liquidação do imposto. 

 

Em particular, no n.º 1 desta norma estabelece-se que, não sendo apresentada declaração de rendimentos pelo contribuinte, a AT procede a uma liquidação com base nos elementos de que disponha (liquidação oficiosa).

 

A liquidação oficiosa, pela sua natureza, é uma solução subsidiária e provisória, visando evitar a perda de receita por caducidade do direito à liquidação.

 

Justamente por revestir um carácter provisório, a lei abre a possibilidade da sua correcção posterior, caso venha a conhecer-se a realidade da situação tributária do sujeito passivo.

 

Tal entendimento decorre expressamente do artigo 76.º, n.º 4 do Código do IRS, o qual dispõe: 

 

Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da Lei Geral Tributária.

 

Este segmento legal significa que, mesmo após a emissão de uma liquidação oficiosa (prevista no n.º 1 do artigo 76.º do Código do IRS), permanece a possibilidade de alterar essa liquidação, desde que dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação (artigo 45.º da LGT).

 

O prazo de caducidade do direito à liquidação de IRS, à luz do artigo 45.º, n.º 1 da LGT, é em regra de 4 anos contados do termo do ano em que ocorreu o facto tributário (no caso, a obtenção dos rendimentos de 2021). Assim, até 31-12-2025 a AT poderia, por sua iniciativa ou a requerimento do contribuinte, proceder a correcções à liquidação relativa ao ano de 2021.

 

No caso dos presentes autos, a declaração de rendimentos foi apresentada em 18-06-2024, portanto dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação.

 

Consequentemente, quer a AT quer o contribuinte estavam ainda em tempo útil para promover a correcção do acto tributário, em conformidade com a situação tributária real.

 

Cumpre analisar se a AT tinha o dever jurídico de aproveitar os elementos dessa declaração para corrigir a liquidação oficiosa.

 

A AT argumentou, na decisão de indeferimento do procedimento de revisão oficiosa, que a declaração foi entregue fora de prazo e que, por isso, não beneficiaria da “presunção de veracidade” das declarações apresentadas dentro do prazo legal, nem seria susceptível de anular a liquidação oficiosa.

 

Efectivamente, nos termos do artigo 75.º da LGT, apenas as declarações apresentadas nos termos da lei gozam da presunção de veracidade.

Uma declaração entregue muito para além do prazo legal já não goza dessa presunção, cabendo ao contribuinte demonstrar os eventuais erros praticados na liquidação oficiosa.

 

No entanto, isso não equivale a dizer que a AT possa sem mais ignorar os elementos trazidos pelo contribuinte.

 

Bem pelo contrário, a jurisprudência dos tribunais judiciais superiores tem afirmado de forma clara que, uma vez apresentada uma declaração de rendimentos após a liquidação oficiosa, constitui poder-dever da AT apreciá-la e, se for caso disso, corrigir a liquidação oficiosa em conformidade com a situação tributária efectiva do contribuinte.

 

O STA, em recente aresto de 2025,[2] formulou expressamente e entendimento de que, tendo o sujeito passivo apresentado declaração de rendimentos - ainda que extemporânea e após a liquidação oficiosa - «constituiria uma obrigação legal da AT proceder às diligências necessárias para promover a correção do ato de liquidação oficiosa, fazendo-o corresponder à concreta situação tributária do sujeito passivo».

 

Nesta mesma linha, o TCA - Sul também já havia sumariado que a liquidação oficiosa, por ser uma medida provisória, deve ser revista pela AT se o contribuinte suprir a falta da declaração dentro do prazo de caducidade, devendo a AT apurar a matéria colectável real e proceder à liquidação adicional ou anular a liquidação oficiosa, conforme couber.[3]

 

E em sede arbitral tributária, adoptou-se igual entendimento:

 

 “Perante a apresentação da declaração de rendimentos em falta no decurso do prazo de caducidade e em tempo útil, a Administração Tributária fica vinculada a [...] proceder às correções que se mostrem necessárias, isto é, à consequente liquidação adicional ou à anulação da liquidação oficiosa”.[4]

 

No presente caso, está demonstrado que a Requerente apresentou a declaração de rendimentos relativa a 2021 dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, contendo todos os elementos necessários para o correcto apuramento do imposto, incluindo os elementos que infirmam a quantificação realizada na liquidação oficiosa, designadamente, dados pessoais e familiares, rendimentos efectivos e informações relativas à mais-valia realizada e reinvestimento do valor de realização).

 

Perante isto, competia à AT, no mínimo, ter desencadeado as diligências instrutórias adequadas para verificar a veracidade desses elementos e, uma vez verificados, proceder à correcção da liquidação oficiosa, substituindo-a por uma liquidação baseada nos elementos reais declarados. 

 

O que a AT não podia era abster-se de considerar os elementos declarados e de apreciar o pedido do particular, sob pena de violar os seus deveres legalmente impostos.

 

Como salientado num caso análogo, a AT não pode ignorar a declaração tardia nem indeferir o pedido de revisão oficiosa sem averiguar o seu conteúdo, antes se impõe à AT o dever de investigar e corrigir a liquidação oficiosa face a novos elementos, sendo que, não procedendo desta forma, aquela entidade pública incorre em erro sobre os pressupostos de facto da liquidação, por não adequar esta à realidade apurada.[5]

 

Acresce que a Requerente formalizou um pedido de revisão oficiosa ao abrigo do artigo 78.º da LGT.

 

Nos termos do n.º 1 do referido artigo, a Administração tributária tem a faculdade de rever os actos tributários, oficiosamente ou a pedido do contribuinte, dentro do prazo de 4 anos, quando se verifique erro imputável aos serviços ou circunstâncias de injustiça grave ou notória.

 

Ora, no caso destes autos, a situação alegada pela Requerente - a liquidação ter tributado indevidamente uma mais-valia que por lei não deveria ser tributada - consubstancia um erro nos pressupostos de facto e de direito que, não sendo directamente imputável a um erro da AT (que não dispunha da declaração modelo 3 de IRS à data da liquidação oficiosa), passou a ser imputável aos serviços a partir do momento em que estes tomaram conhecimento dos novos elementos e recusaram tomá-los em consideração.

 

A partir da apresentação da declaração modelo 3 de IRS e do pedido de abertura do procedimento de revisão oficiosa, havia um dever vinculado da AT de reconsiderar o acto tributário resultante da liquidação oficiosa - provisória por natureza -, à luz da nova informação disponível. 

 

A revisão da liquidação não é, nestes casos, um acto discricionário, mas sim uma consequência necessária dos princípios da verdade material e da legalidade tributária - artigo 55.º da LGT -, os quais impõem à AT o dever jurídico de praticar o acto devido em conformidade com a lei e com a realidade tributária.

 

Esta interpretação, que confere à revisão oficiosa o carácter de poder-dever vinculado da AT, é corroborada pela jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, a qual rejeita consistentemente a visão de uma discricionariedade absoluta na aplicação do artigo 78.º da LGT, especialmente em contextos de liquidações oficiosas de IRS e de correcções baseadas em declarações extemporâneas.

 

 

 

Em Acórdão de 21-04-2022, processo nº 792/17.8BEBRG, o STA sumariou que:

 

I - Por referência ao exercício de 2011 e perante a omissão declarativa do contribuinte, em sede de IRS, era lícito à AT proceder à declaração oficiosa.

 

II – Mas, se após a declaração oficiosa o(a) contribuinte fez uso atempado da possibilidade que lhe conferia o artº 76º nº 4 do CIRS e apresentou a declaração modelo 3 de IRS, esta declaração, ainda que não gozasse da presunção de veracidade, não podia ser totalmente ignorada na sua substância.

 

III - A correcção de um acto tributário pode ser obtida, nos termos do art.º 79, n.º 1, da L.G.T., através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou rectificação. Igualmente se deve levar em consideração o prazo e condições de revisão do acto tributário previstos no art.º 78.º da L.G.T, pelo que, a norma constante do art.º 76, n.º 4, do C.I.R.S., deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, por iniciativa do contribuinte, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artºs 78º e 79º da LGT.

 

IV - O artº. 78° da LGT prevê a revisão do ato tributário «por iniciativa do sujeito passivo» ou «da administração tributária», aquela «no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade», e esta «no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».

 

V - Tendo a administração tributária o dever geral de actuar com observância do princípio da legalidade (artºs 266 nº 2 da CRP e 55º da LGT) não se pode considerar admissível que pratique actos em dissonância com a realidade (ilegais por enfermarem de erro sobre os pressupostos de facto mesmo que a declaração tenha sido apresentada intempestivamente).

 

[…]
 

VII - O princípio da tributação do rendimento real impunha que a AT procedesse à apreciação dos documentos que foram apresentados, determinando a eventual reforma/correcção da liquidação oficiosa. Não o tendo feito, resultou a ocorrência de evidente excesso de quantificação de rendimentos que influenciou a liquidação oficiosa agora questionada.

 

E em igual sentido pode ver-se o acórdão do mesmo STA, de 05-12-2018, processo n.º 0220/11.2BEVIS 0286/18:[6]

 

I - Por referência ao exercício de 2009 e perante a omissão declarativa do contribuinte, em sede de IRS, era lícito à AT, depois de efectuar a notificação prevista no artº 76º nº 3 do CIRS, como efectuou, proceder à declaração oficiosa com recurso ao regime simplificado de tributação ainda que o sujeito passivo tenha optado na declaração de início de actividade pelo regime da contabilidade organizada.


II - Mas se após a declaração oficiosa o(a) contribuinte fez uso atempado da possibilidade que lhe conferia o artº 76º nº 4 do CIRS e apresentou a declaração modelo 3 de IRS, esta declaração ainda que não gozasse da presunção de veracidade não podia ser totalmente ignorada na sua substância.


III - O princípio da tributação do rendimento real impunha a sua apreciação e aconselhava a realização de inspecção perante os elementos supervenientes que foram apresentados e que por não gozarem já da presunção de veracidade, estavam sujeitos a livre apreciação e confirmação pela AT.

IV - Não o tendo feito, resultou a ocorrência de evidente excesso de quantificação de rendimentos que influenciou a liquidação oficiosa agora questionada a qual não se pode manter.

 

Deste modo, ao recusar-se a corrigir a liquidação oficiosa de 2021 - não atendendo aos elementos constantes da declaração modelo 3 de IRS, apresentada em 18-06-2024 - a AT violou o disposto no artigo 76.º, n.º 4 do Código do IRS, bem como os princípios e as normas da LGT que dele decorrem (artigos 55.º, 58.º e 78.º da LGT, relativos aos deveres de actuação conforme a lei e de correcção dos erros).

 

Em particular, a AT falhou ao não exercer o seu poder-dever de correcção dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, apesar de a isso ter sido instada pelo particular e de estarem preenchidos os pressupostos para tal.

 

Esta omissão ilegal resulta em vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e por desvio aos fins legalmente prescritos, bem como em erro de quantificação.

 

Com efeito, a AT manteve na ordem jurídica uma liquidação baseada numa realidade presumida - rendimento padronizado - quando já dispunha de informação concreta e fidedigna sobre a realidade efectiva, assim frustrando a finalidade do mecanismo correctivo previsto no artigo 76.º, n.º 4 do Código do IRS - que é justamente a de evitar que prevaleça uma tributação fictícia em detrimento da situação real do contribuinte.

 

A jurisprudência mais recente reforça que não basta à AT alegar que a declaração tardia não goza de presunção de veracidade.

 

Com efeito, cabe-lhe ainda assim investigar e decidir com fundamento.

 

No caso em apreço, se a AT duvidasse da exactidão dos valores declarados, poderia ter promovido diligências de inspecção ou solicitado esclarecimentos.

Mas o que não podia, legitimamente, era simplesmente negar-se a apreciar a pretensão com base num argumento formal de extemporaneidade.

 

Este comportamento da AT infringiu também o princípio da boa-fé na relação jurídica tributária e o dever de colaboração com o contribuinte, plasmados nos artigos 59.º e 59.º da LGT.

 

Conclui-se, portanto, que o despacho de indeferimento da revisão oficiosa está ferido de ilegalidade, por violação directa do artigo 76.º, n.º 4 do Código do IRS, interpretado nos termos expostos.

 

A AT tinha a obrigação legal de analisar a declaração apresentada e de corrigir a liquidação oficiosa, caso se confirmasse - como efectivamente se confirmou - que desta última resultara imposto em excesso relativamente ao devido.

 

A falta desse exame e da consequente correcção torna ilegal o despacho de indeferimento no procedimento de revisão oficiosa, tornando-o anulável por vício de violação de lei.

 

Resta apreciar se este fundamento é por si só suficiente para dar provimento ao pedido arbitral. 

 

O Tribunal entende que sim.

 

Com efeito, uma vez reconhecido que o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa enferma de vício invalidante, a sua anulação implica necessariamente a anulação da liquidação oficiosa impugnada (objecto mediato do pedido), dado que essa liquidação apenas subsistiu inalterada em virtude do indeferimento agora julgado ilegal.

 

Assim, bastaria este fundamento para acolher a pretensão da Requerente: a procedência do pedido de pronúncia arbitral assentaria na ilegalidade formal e substantiva da manutenção da liquidação oficiosa, por desconsideração indevida dos elementos tempestivamente apresentados dentro do prazo de revisão.

Acrescente-se que a decisão de indeferimento no procedimento de revisão oficiosa invoca, como fundamento subsidiário, a alegada não-residência fiscal da Requerente em território português até 17-12-2023, o que impediria o enquadramento no benefício de exclusão da tributação previsto no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS.

 

Contudo, tal alegação carece de suporte probatório nos autos, conforme resulta dos factos não provados: os elementos documentais apresentados pela Requerente - incluindo o título de residência válido desde 02-08-2020 e comprovativos de morada em Corroios em 2019 e 2021 - apontam para a residência efectiva em Portugal à data da alienação e do reinvestimento.

 

A Requerida, apesar de deter acesso ao registo de contribuintes, não carreou qualquer prova documental que sustente a sua afirmação, limitando-se a uma declaração genérica sem elementos concretos.

 

Assim, ao indeferir a revisão oficiosa com base em mera alegação, a AT incorreu em erro sobre os pressupostos de facto, violando o dever de investigação e o princípio da verdade material (artigo 55.º da LGT), o que reforça a obrigatoriedade de corrigir a liquidação oficiosa à luz dos elementos disponíveis.[7]

 

D.2 - Verificação dos requisitos substanciais do benefício de exclusão de tributação por reinvestimento da mais-valia obtida em 2021:

 

Para o caso de entendimento diverso quanto à suficiência do fundamento anterior, abordará o Tribunal de seguida a legitimidade da pretensão de exclusão de tributação da mais-valia por reinvestimento, isto é, se a Requerente tinha direito à não tributação do ganho obtido em 2021 face ao disposto no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, na medida do respectivo reinvestimento.

 

O artigo 10.º do Código do IRS, sistematicamente inserido na determinação dos incrementos patrimoniais (categoria G de rendimentos), estatui quais os ganhos sujeitos a IRS aquando da alienação onerosa de direitos patrimoniais, designadamente imóveis.

 

No n.º 5 desse preceito, o legislador consagrou um importante benefício: a exclusão de tributação das mais-valias imobiliárias obtidas com a venda de imóveis destinados a habitação própria e permanente, sempre que o valor de realização seja reinvestido na aquisição de outro imóvel com o mesmo destino, nos prazos e condições fixados.

 

Em termos simplificados, pretende-se fomentar e facilitar a mobilidade habitacional, permitindo que um contribuinte que venda a sua casa e aplique o dinheiro numa nova casa de habitação própria e permanente não seja penalizado fiscalmente pelo ganho dessa venda.

 

No que ao caso dos autos interessa, o artigo 10.º, nrs. 5 e 6, do Código do IRS,[8] exclui da tributação em mais-valias os ganhos resultantes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que, no prazo de 36 meses contados da data da realização, o produto da alienação seja reinvestido, e na medida em que o seja, na aquisição de outro imóvel, exclusivamente com o mesmo destino, e desde que o adquirente o afecte à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos doze meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efectuado.

 

No presente caso concreto, encontramo-nos perante reinvestimento na aquisição de um imóvel pronto para habitação, pelo que os requisitos relevantes resumem-se aos já mencionados: prazo de 36 meses para reinvestir o valor da venda na aquisição de novo imóvel para habitação permanente e obrigação de, até 12 meses após o reinvestimento, afectar o novo imóvel a residência permanente.

 

Analisando os factos provados à luz destes requisitos, verifica-se o seguinte:

 

Em 20-03-2019, o cônjuge da Requerente adquiriu, por documento particular autenticado, o imóvel sito na Rua ..., n.º ...,  ...,  ..., freguesia de ..., concelho do Seixal, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., no qual declarou que «o Imóvel objeto do presente título destina-se a Habitação própria permanente do SEGUNDO OUTORGANTE [o cônjuge da Requerente]».

 

 

Em 09-08-2021, a Requerente e o seu cônjuge alienaram onerosamente o imóvel que haviam adquirido em 2019, pelo valor de € 425.000,00.

 

Em 11-03-2023, a Requerente e o seu cônjuge adquiriram onerosamente novo imóvel que haviam adquirido em 2019, pelo valor de € 410.000,00, declarando no título aquisitivo destiná-lo a habitação própria e permanente.

 

Dos factos provados decorre que, quer em 2019, quer em 2021, a Requerente manteve o seu centro de interesses no imóvel em causa, fazendo deste sua habitação permanente.

 

A Requerida não contestou que o imóvel adquirido pela Requerente em 11-03-2023 tenha sido afecto a habitação permanente desta e do seu agregado familiar.

 

Em face do exposto, constata-se que todos os pressupostos legais para a exclusão de tributação da mais-valia estão preenchidos pela Requerente.

 

Assim, nos termos do artigo 10.º, nrs. 5 e 6, do Código do IRS, o ganho obtido com a alienação onerosa do imóvel em 2021 não se encontra sujeito a tributação em IRS, na medida do valor reinvestido.

Consequentemente, a Requerente não devia ter suportado imposto relativo a esse ganho patrimonial, na medida do valor reinvestido.

 

A interpretação teleológica da norma mencionada reforça a solução a que o Tribunal chegou: o objectivo é permitir a renovação da habitação principal sem custos fiscais injustificados, promovendo a mobilidade habitacional.

 

Ou seja, os motivos subjacentes à exclusão da tributação em IRS das mais-valias cujos valores de realização sejam reinvestidos em habitação própria e permanente assentam na intenção do legislador de favorecer a aquisição de habitação própria e facilitar a mudança de casa.

 

Por outras palavras, o objectivo geral do regime de exclusão da incidência consiste em não embaraçar a aquisição, imediata ou mediata, de habitação própria e permanente financiada com o produto da alienação de um outro imóvel a que fora dado o mesmo destino.[9]

 

A jurisprudência e a doutrina têm destacado esta finalidade, sublinhando que a lei quis evitar tributar ganhos que não representem uma capacidade contributiva efectiva disponível, por terem sido aplicados na compra de outra casa para habitação do sujeito passivo.

 

No caso sub judice, a Requerente agiu precisamente conforme ao fim visado pela lei: alienou a sua casa de habitação e adquiriu outra para habitação, preenchendo os requisitos legais - prazo, reinvestimento em habitação, afectação a habitação permanente.

 

E, diga-se ainda, inexiste no processo qualquer indício de que a Requerente pretendesse usar o imóvel adquirido para fim diferente de sua morada permanente, ou qualquer outro abuso do regime.

 

Deste modo, a impugnada liquidação oficiosa de IRS de 2021 padece de erro de direito, por ter incluído na matéria colectável ganhos que, nos termos do artigo 10.º, nrs. 5 e 6, do Código do IRS, se encontravam excluídos da tributação.

 

Reitera-se que este erro só não foi corrigido administrativamente porque a AT, indevidamente, não acolheu os elementos apresentados pela Requerente, não tendo sequer tentado apreciá-los. 

 

Daí que a liquidação impugnada é ilegal não apenas por vício formal mas também por violação directa do regime substantivo de exclusão de tributação de mais-valias.

 

Se a AT tivesse cumprido o seu dever de correcção, teria necessariamente concluído pela anulação da liquidação oficiosa inicial, na medida do valor reinvestido, e eventualmente emitido uma nova liquidação de IRS.

 

Esta nova liquidação teria considerado os rendimentos declarados e excluiria na justa medida os ganhos reinvestidos.

 

A não emissão dessa liquidação corrigida implica que a Requerente foi indevidamente tributada, tendo suportado um imposto que não era devido, situação que não pode prevalecer.

 

Assim, seja pela ilicitude procedimental (vício no indeferimento da revisão oficiosa), seja pela ilicitude material (erro na liquidação, face ao artigo 10.º, nrs. 5 e 6 do Código do IRS), a pretensão arbitral merece provimento.

 

Tudo razões pelas quais o Tribunal irá, a final, dar provimento aos pedidos da Requerente, de anulação da decisão final do procedimento de revisão oficiosa e de anulação da liquidação impugnada.

 

 

 

D.3 - Incompetência material do Tribunal quanto aos pedidos subsidiários:

 

Importa ainda analisar a competência material deste Tribunal Arbitral para apreciar os pedidos subsidiários formulados pela Requerente, a saber: (i) a anulação do processo de execução fiscal n.º ...2023...; e (ii) a aceitação da declaração n.º 2021-..., relativa ao ano de 2021, bem como da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS apresentada em 18-06-2024, referente ao ano de 2023, ou, em alternativa, a condenação da Requerida a proceder a tal aceitação.

 

Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RJAMT, a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária é limitada à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, bem como de actos de fixação de valores ou tributos patrimoniais, quando o valor da causa não exceda os € 10.000.000,00.

 

Esta limitação reflecte a natureza especializada e voluntária da arbitragem tributária, instituída pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, como mecanismo alternativo de resolução de litígios fiscais, sem prejuízo da competência residual dos tribunais judiciais tributários para outras pretensões processuais.

 

A incompetência material constitui uma excepção dilatória absoluta, nos termos do artigo 89.º, nrs. 2 e 4, alínea a), do CPTA, implicando a absolvição da instância quanto aos pedidos que extravasem o âmbito arbitral legalmente definido.

No que concerne ao pedido de anulação do processo de execução fiscal, este Tribunal carece manifestamente de competência material.

 

Os actos praticados no âmbito de processos de execução fiscal, regulados pelo CPPT, integram a fase coerciva de cobrança de dívidas tributárias e não se subsumem aos actos tributários impugnáveis, previstos no artigo 2.º do RJAMT.

 

A jurisprudência arbitral do CAAD - que o Tribunal expressamente acolhe - tem consistentemente reconhecido esta limitação, considerando que a apreciação de pretensões relativas a execuções fiscais - incluindo oposições, reversões ou anulações de actos na execução fiscal - compete exclusivamente aos tribunais judiciais tributários.[10]

 

Quanto ao pedido de aceitação das declarações modelo 3 de IRS, ou de condenação da Requerida a tal efeito, este Tribunal é igualmente incompetente em razão da matéria.

 

A aceitação de declarações de rendimentos extemporâneas não constitui um acto tributário autónomo impugnável ao abrigo do artigo 2.º do RJAMT, mas sim uma diligência administrativa decorrente do dever de colaboração da Administração Tributária (artigo 59.º da LGT).

 

Com efeito, pretensões desta natureza, que visam compelir a AT a reconhecer ou a processar declarações fiscais, escapam ao âmbito da arbitragem tributária, competindo aos tribunais administrativos a respectiva apreciação.

 

Em síntese, declara-se a incompetência material deste Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos subsidiários, nos termos do artigo 2.º do RJAMT, com a absolvição da instância quanto a estes, sem prejuízo da possibilidade de a Requerente os formular perante a jurisdição competente, se assim o entender.

 

 

E - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral:

a)     Julga procedente o pedido de anulação da liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2021, na exacta medida que resultar da exclusão da tributação do valor de realização reinvestido pela Requerente.

b)    Decide anular a decisão final de indeferimento proferida no procedimento de revisão oficiosa n.º ...2024... .

c)     Declara-se materialmente incompetente para julgar os pedidos subsidiários, de anulação do processo de execução fiscal n.º ...2023... e para aceitar - ou condenar a Requerida a aceitar - as declarações modelo 3 de IRS.

 

F - VALOR DA CAUSA:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 6.852, 98, o qual não foi impugnado pela Requerida.

 

Considera o Tribunal não existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 6.852, 98.

 

G - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00, indo a Requerida condenada nas custas do processo.

 

Notifique.

Lisboa, em 15 de Outubro de 2025.

O Árbitro,

 

 

( Martins Alfaro )

Assinado digitalmente

 



[1] Não se está aqui a atribuir efeitos de confissão dos factos à omissão da Resposta por parte da Requerida - artigo 110.º, n.º 6, do CPPT. Porém, a verdade é que por via omissiva, seja aquando da Resposta, seja aquando das alegações escritas, a Requerida não produziu qualquer prova - incluindo a resultante do processo administrativo - que permitisse ao Tribunal infirmar os factos alegados pela Requerente e respectiva prova.

[2] Acórdão de 02-07-2025, processo nº 01990/11.3BELRS.

Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/01990-2025-929344475

[4] Decisão Arbitral do CAAD, de 02-03-2021, processo nº 9/2020-T. Disponível em:
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&listPage=2&id=5303

[5] Acórdão do TCA - Sul, de 10-11-2016, processo n.º 06790/13.

Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/695B4B2482EAF3628025806B00377572 .

[7] Refira-se a este propósito que no procedimento de revisão oficiosa a AT deve fazer prova das suas alegações perante o particular, em especial quando estas são essenciais para a decisão final. Quando assim não ocorra - como foi o caso -, o Tribunal apreciará tais alegações como meras afirmações desprovidas de suporte fáctico, visto inexistir qualquer elemento probatório que possa ser objecto de controle e validação. 

É que, como no caso da revisão oficiosa aqui em causa, não basta à AT escrever que o sujeito passivo «apenas passou a residir em Portugal em 17-12-2023». Há que dizer porquê e com que fundamento probatório, para que seja possível ao particular - e, nesta sede, ao Tribunal - apreciar e validar tal fundamento. Sem isto, em sede arbitral tal afirmação vale apenas pelo que está escrito.

[8] Na redacção em vigor à data dos factos.

[10] Ver, a título meramente exemplificativo, a Decisão Arbitral do CAAD, de 18-12-2020, processo n.º 240/2020-T. Disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/view.php?l=MjAyMTAyMDIyMjI2MTAwLlAyNDBfMjAyMC1UIC0gMjAyMC0xMi0xOCAtIEpVUklTUFJVREVOQ0lBLnBkZg%253D%253D