SUMÁRIO
I. No Acórdão proferido no Caso C‑685/23, em 05-06-2025, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) veio clarificar o seguinte:
“O artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, devem ser interpretados no sentido de que:
não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações”.
II. Constituindo os penhores de ações “privilégios”, na aceção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE -porquanto conferem ao credor o direito de ser pago com prioridade face a todos os outros credores através do produto da venda do bem empenhado (cf. artigo 666.º, n.º 1, do Código Civil) - conclui-se que a Diretiva não afasta a tributação, em sede de Imposto do Selo, das garantias em causa no caso sub judice, e que o legislador português permanece competente para tributar as mesmas em derrogação ao disposto no artigo 5.º da Diretiva.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dra. Alexandra Iglésias e Dr. José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
RELATÓRIO
A..., SGPS, S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, titular do número único de identificação de pessoa coletiva e de identificação fiscal ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ... (adiante designada como “A...”), e B..., S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, titular do número único de identificação de pessoa coletiva e de identificação fiscal..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ... (adiante designada como “B...”) (conjuntamente designadas como “Requerentes”), vieram, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro de 2011 (“RJAT”), a requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro, e peticionando a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo (“IS”), no montante de € 505.400,83, bem como do despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes em 15 de setembro de 2023 que indeferiu a reclamação graciosa n.º ...2023... e manteve aquele ato tributário de liquidação de imposto na ordem jurídica.
Mais peticionam as Requerentes que lhe seja reembolsada a quantia entregue a título de IS, no montante de € 505.400,83, acrescida de juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data de indeferimento da reclamação graciosa (15 de setembro de 2023) até à data de processamento da nota de crédito, em que serão incluídos.
O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 27-12-2023 e automaticamente notificado à AT. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das partes.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 05-03-2024.
Notificada para o efeito, a Requerida veio apresentar resposta ao PPA e juntar processo administrativo em 17-04-2024.
Em 06-06-2024, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:
“(1) Determina-se a suspensão da instância, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 2, do NCPC, até que seja proferido Acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no processo C-685/23, com origem no processo arbitral n.º 130/2023-T, com os fundamentos expostos nos parágrafos seguintes.
(2) Uma das questões centrais no caso sub judice é a de saber se a exclusão de tributação prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008 (“Diretiva de Reunião de Capitais”), preclude a tributação, em sede de Imposto do Selo (Verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo), dos penhores financeiros sobre ações em apreço.
(3) A Diretiva de Reunião de Capitais tem por objeto definir parâmetros para a aplicação pelos Estados-Membros da UE de impostos indiretos – incluindo o Imposto do Selo – sobre (i) entradas de capital em sociedades de capitais, (ii) operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais e (iii) emissão de determinados títulos e obrigações (cfr. respetivo artigo 1.º). A alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º estabelece que “[o]s EstadosMembros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto: (…) [o]s empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”.
(4) No processo arbitral n.º 130/2023-T, em que também se discute a legalidade da tributação, em sede de Imposto do Selo, de penhores financeiros sobre ações, o Tribunal Arbitral procedeu ao reenvio prejudicial por, após analisar a jurisprudência do TJUE, ter concluído o seguinte:
“29. Ao não terem aqueles acórdãos versado sobre a proibição de tributação indirecta relativamente à prestação de garantias por efeito da realização de operações de reunião de capitais e sobre a respectiva acessoriedade face à operação globalmente considerada, considera este Tribunal Arbitral que não pode ser feita uma transposição tout court da jurisprudência do TJUE para o presente processo.
30. Acresce que naqueles processos também não se discutiu a aplicabilidade da derrogação prevista no artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva de Reunião de Capitais, designadamente no que se deve entender por “privilégios”, atentas as aparentes divergências de sentido que resultam das diferentes redacções/versões da Directiva.
31. As divergências e entendimentos contraditórios no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia são evidentes nas posições assumidas pelas partes nos articulados que apresentaram, sendo que quer a Requerente quer a Requerida suscitaram a formulação de questões prejudiciais ao TJUE.”
(5) Não se encontrando reunidos os pressupostos de aplicação da teoria do ato claro, e impondo-se a formulação de questões prejudiciais de forma a suscitar a intervenção do TJUE no que respeita à interpretação e compatibilidade das normas de direito interno com normas de Direito da União Europeia, cumpre ao Tribunal Arbitral determinar a suspensão da instância, por a decisão arbitral a proferir no caso sub judice estar dependente do Acórdão a proferir pelo TJUE no processo C-685/23, existindo entre ambos uma relação de prejudicialidade.
(6) A cessação da suspensão da instância será notificada pelo Tribunal Arbitral às partes, que terão oportunidade de se pronunciarem sobre o Acórdão a proferir pelo TJUE”.
Em 26-07-2024, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:
“1. Notifique-se as partes de que a suspensão da presente instância cessou em 15 de julho de 2025, data em que o presente Tribunal Arbitral teve conhecimento da Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida no caso C-685/23 (5 de junho de 2025).
2. Ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), e considerando a inexistência de prova testemunhal por produzir, o Tribunal Arbitral dispensa a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT.
3. Notifique-se as partes para, querendo, no prazo de 10 dias, apresentarem alegações finais escritas (simultâneas), podendo, se assim o entenderem, pronunciar-se sobre a referida Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia juntamente com as mesmas.
4. Notifique-se a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até 10 de setembro de 2025.
5. Notifique-se as partes para, no mesmo prazo (10 de setembro de 2025), juntarem a versão Word dos respetivos articulados.
6. Considerando que o Tribunal Arbitral foi constituído em 05-03-2024, que a suspensão da instância foi determinada por despacho arbitral de 06-06-2024 (ou seja, 3 meses após a constituição do Tribunal Arbitral), que a mesma suspensão cessou em 15 de julho de 2025, notifique-se as partes de que a decisão arbitral será proferida até 15 de outubro de 2025 (i.e. até ao final do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT)”.
A Requerente e a Requerida apresentaram alegações escritas em 11-09-2025 2 02-09-2025, respetivamente.
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de nulidades nem de outros vícios que o invalidem. As partes não suscitaram exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
QUESTÃO DECIDENDA E POSIÇÃO DAS PARTES
Em face da posição das partes vertida nos respetivos articulados, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar a questão de saber se o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.o, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (“Diretiva 2008/7/CE”), devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação, a título de Imposto do Selo (“IS”), das garantias prestadas por sociedades a instituições bancárias com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um contrato de emissão de papel comercial, sobre o qual foi liquidado IS à taxa de 0,6% prevista na verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”).
Posição da Requerida
Na decisão de indeferimento da reclamação graciosa e na resposta ao PPA, a AT veio, em suma, argumentar o seguinte:
- Não é possível retirar da Diretiva 2008/7/CE, mormente o disposto no art.º 5 n.º 2, alínea b), a não sujeição de imposto de selo das garantias pela verba 10.3 da TGIS, desde logo porque o artigo 6.º, n.º 1, da Diretiva permite aos Estados-Membros que cobrem determinados impostos e direitos;
- Caso o legislador comunitário quisesse de facto não sujeitar, a tributação em sede de IS das garantias decorrentes dos contratos de colocação de obrigações e papel comercial exigidas pelas instituições de crédito, enquanto intermediários financeiros, bastaria que tivesse feito essa menção na al. b) do n.º 2 do art.º 5.º da Diretiva 2008/7/CE, e não o fez;
- As garantias prestadas no caso concreto não consubstanciam “formalidades conexas” à emissão de papel comercial na medida em que poderão ou não ser obrigatórias, e as instituições bancárias poderão ou não exigir garantias, razão pela qual não constituem procedimentos intrinsecamente associados às operações financeiras de emissão de papel comercial, mas antes a segurança e garantia das instituições bancárias e de que as mesmas poderiam ter prescindido, no sentido de poder existir sem esta obrigação;
- Tratam-se, portanto, de garantias de salvaguarda, extrínsecas às exigências dos mercados visados pela isenção, constituídas no interesse das Requerentes;
- Não há qualquer paralelismo entre a tributação de entradas de capital numa sociedade de capitais, operações de reestruturação ou a emissão de determinados títulos e obrigações, que é aquilo que é vedado pela Diretiva, e a tributação da apresentação de garantias, que é a realidade aqui sob apreço, realidade essa completamente distinta das operações abrangidas pela Diretiva, que diz respeito aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.
Posição dos Requerentes
No PPA, as Requerentes defendem o seguinte quanto à questão decidenda:
- O ato de liquidação de IS em referência e o despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da UGC datado de 15 de setembro de 2023 que o manteve na ordem jurídica são ilegais porque desconformes com o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE, o qual dirige aos Estados-Membros um comando claro, preciso e incondicional no sentido de que “não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto (…) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas (…)”;
- A prestação das garantias em apreço está diretamente relacionada da emissão de papel comercial em causa, sendo abrangida pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva enquanto “formalidade conexa” - termo que não pode ser lido de forma restritiva para abranger somente os meros formalismos ou atos acessórios como a celebração de escrituras, a prática de atos notariais, os registos e as publicações obrigatórias;
- Aliás, dificilmente as emitentes (Requerentes) conseguiriam colocar papel comercial no mercado nas condições estipuladas no contrato se não oferecessem, em simultâneo, aquelas garantias ao banco agente;
- Nada no elemento literal e nos objetivos visados pela Diretiva permite apontar para a obrigatoriedade ou indispensabilidade legal de constituição das garantias para que se configurem como “formalidade conexa” à emissão dos títulos ou, mesmo que assim não seja, deva ser excluída de tributação enquanto parte de uma operação global de reunião de capitais;
- Acresce que não está em causa nenhuma das derrogações à proibição da tributação indireta da emissão de obrigações, em especial as que estão consagradas nas alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 6.º da Diretiva 2008/7/CE.
MATÉRIA DE FACTO
§1. Factos provados
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após o exame crítico da prova documental junta aos autos, fixa-se como segue:
1. A A... é uma sociedade de direito português que reveste a forma de Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”), nos termos previstos e regulados no Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro, que atua como sub-holding do Grupo C... (o “Grupo”) e é detida na totalidade pela Grupo D..., SGPS, S.A. (“Grupo D...”) (cf. alegado no artigo 7.º do PPA, não contestado pela Requerida).
2. A B... é uma sociedade anónima de direito português cujo capital social é detido na totalidade pela A... e que é um operador de televisão licenciado dedicado à exploração de serviços de programas televisivos (cf. alegado no artigo 8.º do PPA, não contestado pela Requerida).
3. Em 31-05-2021, a A... e a B... celebraram com o Banco BPI, S.A. (o organizador, agente, instituição registradora e garante de colocação, doravante “banco agente” ou “BPI”), o Banco Santander Totta, S.A. e o Banco BIC Português, S.A. (conjuntamente designados como “Bancos”), um contrato de organização, registo, colocação e garantia de colocação de papel comercial (adiante simplesmente “Contrato”) (cf. cópia do contrato junto ao PPA como Documento 1).
4. Este Contrato previa, entre o mais, o seguinte:
- A emissão de papel comercial, no montante máximo de € 83.000.000,00 (oitenta e três milhões de euros) e na modalidade de colocação direta, até 31 de dezembro de 2027, com uma taxa de juro anual correspondente à Euribor a 12 meses acrescida de um spread de 2,5%;
- Como garantia do cumprimento pontual, tempestivo e integral de todas as obrigações que do Contrato poderiam emergir para as Requerentes (responsáveis solidárias), foram prestadas as seguintes garantias (que subsistiriam até integral liquidação das obrigações que visam garantir): (a) Cada Requerente subscreveu e entregou ao banco agente uma livrança em branco avalizada pela (à data denominada) E..., S.A. (“E...”), contribuinte fiscal n.º ..., e pela F..., S.A. (“F...”), contribuinte fiscal n.º ...; (b) a A... constituiu penhores financeiros de primeiro grau sobre as ações, de que é dona e legítima possuidora, representativas da totalidade do capital social e direitos de voto da B... e da G..., S.A., contribuinte fiscal n.º ...; (c) a (à data denominada) E... constituiu penhores financeiros de primeiro grau sobre as ações, de que era dona e legítima possuidora, representativas da totalidade do capital social e direitos de voto da (à data denominada) H..., S.A., contribuinte fiscal n.º ..., e da (à data denominada) I..., S.A., contribuinte fiscal n.º...; (d) a F... constituiu penhor financeiro de primeiro grau sobre as ações, de que é dona e legítima possuidora, representativas da totalidade do capital social e direitos de voto da J..., S.A. (“J...”), contribuinte fiscal n.º...; (e) a J..., por sua vez, constituiu primeiro penhor sobre as quotas, livres de quaisquer ónus ou encargos, de que é dona e legítima possuidora, representativas da totalidade do capital social e direitos de voto da K..., Lda., contribuinte fiscal n.º ..., e da L..., Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal n.º... (cf. artigo 24.º do do contrato junto ao PPA como Documento 1).
5. Aquando da prestação das garantias em referência, foi debitado pelo Cartório Notarial de M..., contribuinte fiscal n.º ... (adiante o “notário”), através da fatura n.º FR 0/31974 emitida em 31-05-2021, IS à taxa de 0,6% prevista na verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”) para “Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos” sobre o montante máximo garantido de € 84.233.472,22, a que se refere a cláusula 24.ª, n.º 16, do contrato, o qual corresponde ao total da emissão de papel comercial (€ 83.000.000,00) acrescido de juros (€ 1.233.472,22) (cf. cópia da fatura emitida pelo notário junta ao PPA como Documento n.º 2).
6. O IS assim liquidado, que ascendeu a € 505.400,83, foi pago pela Requerente A... através de cheque do BPI emitido à ordem do Cartório Notarial de M... com o n.º ... e data de 30-05-2021 (cf. cópia do cheque junta ao PPA como Documento n.º 3).
7. Em 2022, foram introduzidas alterações ao Contrato, tendo, no entanto, sido mantidas todas as garantias e o montante máximo garantido (cf. artigos 20.º a 22.º do PPA, não contestado pela Requerida).
8. Em 30-05-2023, as Requerentes, na qualidade de titulares do encargo correspondente ao imposto, contribuintes de facto ou simplesmente repercutidas em relação ao IS no montante de € 505.400,83 que foi liquidado pelo notário, apresentaram reclamação graciosa a solicitar a anulação daquele ato de liquidação e a restituição do IS pago com referência ao disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, na parte em que veda a sujeição a “qualquer forma de imposto indireto” dos “empréstimos (…) contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas” (cf. Documento 6 junto ao PPA).
9. Em 15-09-2023, esta reclamação graciosa foi indeferida (cf. Documento 6 junto ao PPA).
10. Em 22-12-2023, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.
§2. Factos não provados
Não há factos relevantes que se considerem como não provados.
§3. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados e como não provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.
MATÉRIA DE DIREITO
Direito da União Europeia relevante
Os considerandos 2, 3 e 9 da Diretiva 2008/7/CE têm a seguinte redação:
“(2) Os impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, designadamente o imposto sobre as entradas de capital (imposto que incide sobre as entradas de capital nas sociedades), o imposto de selo sobre os títulos, e o imposto sobre as operações de reestruturação, independentemente de essas operações envolverem ou não um aumento de capital, dão origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais. O mesmo se aplica a outros impostos indiretos com características idênticas às do imposto sobre as entradas de capital e do imposto de selo sobre os títulos.
(3) Consequentemente, é do interesse do mercado interno harmonizar a legislação relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais para eliminar, tanto quanto possível, fatores suscetíveis de distorcer as condições de concorrência ou entravar a livre circulação de capitais.
(...)
(9) Não deverão ser aplicados impostos indiretos às reuniões de capitais, exceto o imposto sobre as entradas de capital. Em especial, não deve ser aplicado imposto de selo sobre os títulos, quer estes sejam representativos de capitais próprios das sociedades quer de capitais de empréstimo, e qualquer que seja a sua proveniência.”
O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe “Sociedade de capitais”, dispõe, no n.º 1, alínea a):
“Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por sociedade de capitais:
a) Qualquer sociedade que assuma uma das formas enunciadas no anexo I”
O artigo 3.º da mesma Diretiva, sob a epígrafe “Entradas de capital”, dispõe o seguinte:
“Para efeitos da presente diretiva, e sem prejuízo do disposto no artigo 4.o, são consideradas “entradas de capital” as seguintes operações:
(...)
i) O empréstimo contraído por uma sociedade de capitais, se o credor tiver direito a uma quota‑parte dos lucros da sociedade;
j) O empréstimo contraído por uma sociedade de capitais junto de um sócio, do cônjuge ou de um filho de um sócio, bem como o empréstimo contraído junto de um terceiro, quando seja garantido por um sócio, desde que os referidos empréstimos tenham a mesma função que o aumento de capital social”.
O artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, sob a epígrafe “Operações não sujeitas a impostos indiretos”, tem a seguinte redação:
“1. Os Estados‑Membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto indireto sobre:
a) Entradas de capital;
(...)
2. Os Estados‑Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto:
a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;
b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”.
Nos termos do artigo 6.o desta diretiva, sob a epígrafe “Impostos e direitos”:
“1. Em derrogação ao disposto no artigo 5.o, os Estados‑Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos:
(...)
d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;”
O artigo 7.º, n.º 1, da referida diretiva dispõe:
“Não obstante o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.o, um Estado‑Membro que, em 1 de janeiro de 2006, cobrasse um imposto sobre as entradas de capital nas sociedades de capitais, a seguir denominado “imposto sobre as entradas de capital”, pode continuar a fazê‑lo desde que cumpra o disposto nos artigos 8.° a 14.°”
Direito nacional
O artigo 1.º, ponto 1, do Código do Imposto do Selo (Portugal) prevê:
“O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.”
A Tabela Geral do Imposto do Selo inclui uma verba 10, relativa às garantias das obrigações, que tem a seguinte redação:
“Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro‑caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente — sobre o respetivo valor, em função do prazo, considerando‑se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:
(...)
10.3. Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos 0,6 %”.
Interpretação do TJUE
Com referência à questão decidenda, interessa atentar ao decidido pelo TJUE no Acórdão proferido no Caso C‑685/23, em 05-06-2025, relativamente à interpretação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE, designadamente quanto às questões prejudiciais colocadas pelo Tribunal Arbitral:
“1. O artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Diretiva [2008/7] deve ser interpretado no sentido de que se opõe à tributação em Imposto do Selo de garantias consubstanciadas em penhores financeiros de ações, de saldos de contas bancárias, de créditos acionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas em relação a uma operação de emissão de obrigações?
2. A resposta à primeira questão difere consoante a prestação das garantias seja legalmente exigida ou facultativa e voluntariamente acordada?
3. A resposta à primeira questão difere no caso de as garantias terem sido prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações sujeita a subscrição particular por um Banco, cuja posição de subscritor pode ser transmitida por vontade da entidade emitente, ainda que condicionada e sujeita a penalidades/comissões?
4. O artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Diretiva [2008/7] deve ser interpretado no sentido de que abrange as garantias consubstanciadas em penhores financeiros de ações, de saldos de contas bancárias, de créditos acionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações abrangida pela alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do mesmo diploma?”
O TJUE decidiu o seguinte:
“26 Como indicado no seu considerando 9, a referida diretiva tem por objeto excluir impostos indiretos às reuniões de capitais, com exceção do imposto sobre as entradas de capital nas sociedades de capitais, entradas de capital essas que podem ser oneradas com um imposto quando reunidos os requisitos previstos no artigo 7.º, n.º 1, da mesma diretiva. Em especial, resulta do mesmo considerando que não deve ser aplicado imposto do selo sobre os títulos, quer estes sejam representativos de capitais próprios das sociedades quer de capitais de empréstimo, e qualquer que seja a sua proveniência.
27 Neste contexto, o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7 proíbe que fiquem sujeitos a qualquer forma de imposto indireto os empréstimos contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e de todas as formalidades conexas, bem como a criação, a emissão, a admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.
28 A este respeito, no que se refere, primeiro, ao conceito de «formalidades» conexas a um empréstimo sob a forma de emissão de obrigações, que devem estar isentas de impostos indiretos, há que salientar que este conceito visa as eventuais atuações que uma sociedade de capitais é, por força da legislação nacional, obrigada a levar a cabo para proceder à constituição desse empréstimo, bem como à criação, à emissão, à admissão à cotação em bolsa, à colocação em circulação ou à negociação dos títulos negociáveis em causa [v., neste sentido, Despacho de 19 de julho de 2023, EDP (Imposto que incide sobre a comercialização de títulos), C‑416/22, EU:C:2023:604, n.o 28 e jurisprudência referida].
29 No que respeita, em especial, às garantias como as que estão em causa no processo principal, há que observar, por um lado, que, de acordo com as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o direito português não sujeita a celebração de um empréstimo obrigacionista à prestação dessas garantias e, por outro, que estas estão relacionadas com a substância das operações de reunião de capitais. Daqui resulta que, mesmo quando o mutuante faz da prestação de garantias uma condição para subscrever o empréstimo obrigacionista, situação referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, esta prestação não está abrangida pelas «formalidades» referidas no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7.
30 No que se refere, segundo, à proibição de tributar as operações de reunião de capitais enquanto tais, há que salientar que, tendo em conta o objetivo prosseguido pela Diretiva 2008/7, o artigo 5.º desta última deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que essa proibição fique privada de efeito útil. Assim, a proibição de uma tributação destas operações também se aplica às operações que não estejam expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa tributação equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.o 28 e jurisprudência referida).
31 Também resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, uma vez que uma emissão de títulos negociáveis só tem sentido a partir do momento em que esses títulos são adquiridos, um imposto que incida sobre a primeira aquisição de títulos de uma nova emissão tributaria na realidade a própria emissão dos títulos, na medida em que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais. O objetivo de preservar o efeito útil do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7 implica, deste modo, que a «emissão», na aceção desta disposição, inclua a primeira aquisição de títulos efetuada no âmbito da sua emissão (Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.o 29 e jurisprudência referida).
32 Do mesmo modo, uma vez que as garantias são prestadas com vista ao cumprimento adequado das obrigações resultantes de um empréstimo obrigacionista, estas garantias apresentam, por esse facto, uma ligação estreita com a emissão do referido empréstimo, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7, pelo que se deve considerar que fazem parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, independentemente da questão de saber se são prestadas em execução de uma obrigação legal ou voluntariamente (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.ºs 31 e 35). Neste contexto, a possibilidade que o mutuário pode ter de, posteriormente, substituir outro mutuante na posição do mutuante inicial, situação referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, não afeta a ligação entre estas garantias e o empréstimo obrigacionista e, por conseguinte, não é pertinente.
33 Daqui resulta que, em princípio, a prestação das referidas garantias deveria estar sujeita à proibição de sujeitar a imposto indireto as reuniões de capitais na aceção do artigo 5.º da Diretiva 2008/7.
34 No entanto, o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7 dispõe que, não obstante as proibições de tributação previstas no artigo 5.º desta diretiva, os Estados‑Membros podem cobrar direitos que onerem «a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas».
35 Uma vez que a Diretiva 2008/7 não define o termo «privilégios» nem remete para o direito dos Estados‑Membros para este efeito, decorre das exigências da aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade que o sentido e o alcance dos termos de uma disposição do direito da União devem em princípio ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta a redação desta disposição, o contexto em que se insere e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 20 de março de 2025, Lindenbaumer,C‑61/24, EU:C:2025:197, n.º 38 e jurisprudência referida).
36 A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7 utiliza, na grande maioria das versões linguísticas, a expressão «privilégios e hipotecas». Ora, uma vez que o legislador utilizou termos distintos para designar instrumentos que criam direitos preferenciais constituídos sobre o património de uma pessoa, não há que considerar a priori que estes termos dizem unicamente respeito a um tipo destes direitos, a saber, os de natureza imobiliária.
37 Em segundo lugar, há que recordar que o artigo 6.º, n.º 1, da Diretiva 2008/7 determina os impostos e direitos que os Estados‑Membros podem cobrar «[e]m derrogação ao disposto no artigo 5.o» da diretiva. Assim, para determinar, no que respeita em especial à celebração de um empréstimo obrigacionista, o sentido e o alcance do conceito de «privilégios» previsto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), desta diretiva, há que ter em conta, enquanto elementos contextuais, as características da proibição consagrada no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da mesma diretiva.
38 Em especial, esta última disposição não proíbe os Estados‑Membros de sujeitarem a impostos indiretos um empréstimo contraído por uma sociedade de capitais, antes proibindo apenas os que forem «contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis», a saber, como enunciado no considerando 9 desta diretiva, sob a forma de títulos representativos de capitais de empréstimo.
39 Ora, à semelhança das operações de reuniões de capitais que dão lugar à emissão de títulos representativos de capitais próprios de uma sociedade, que estão abrangidas pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, as operações de reunião de capitais sob a forma de empréstimos obrigacionistas, isentas de impostos indiretos em conformidade com o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), desta diretiva, são suscetíveis de incitar o mutuante a privilegiar, para apreciar a fiabilidade da promessa de uma determinada rentabilidade do seu investimento, o desempenho futuro da entidade emitente em vez de privilegiar o património desta entidade enquanto garantia de reembolso.
40 Esta análise é confirmada pelo artigo 3.º, alíneas i) e j), da Diretiva 2008/7, lido em conjugação com o artigo 5.º, n.º 1, alínea a), desta diretiva. Destas disposições resulta que as entradas de capital sob a forma de empréstimo só estão isentas de qualquer forma de imposto indireto se o credor tiver direito a uma quota‑parte dos lucros da sociedade ou se estes empréstimos desempenharem a mesma função que o aumento do capital social.
41 Estas condições refletem, além disso, em terceiro lugar, o objetivo da Diretiva 2008/7, que, como resulta dos seus considerandos 2 e 3, consiste em eliminar, tanto quanto possível, as discriminações, as duplas tributações e as disparidades suscetíveis de falsear as condições de concorrência ou de dificultar a livre circulação de capitais, que podem resultar de impostos indiretos que incidam especificamente sobre as reuniões de capitais e não os impostos indiretos que incidam sobre qualquer forma de empréstimo concedido a uma sociedade de capitais.
42 Embora seja certo que, quando adotou a Diretiva 2008/7, o legislador da União em nada afetou a possibilidade de as partes contratantes constituírem direitos preferenciais sobre bens móveis ou imóveis para garantir o reembolso de um empréstimo abrangido pelas disposições da mesma, não é menos certo que o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), desta diretiva manteve a competência fiscal dos Estados‑Membros no que respeita aos instrumentos contratuais constituídos pelos privilégios e hipotecas previstos no âmbito de uma operação de reunião de capitais de empréstimo.
43 Com efeito, como foi recordado no n.º 37 do presente acórdão, o âmbito de aplicação do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7, que se aplica «[e]m derrogação» das proibições de tributação previstas no artigo 5.º da mesma, está em estreita correlação com o âmbito de aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), desta diretiva e comprova que o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados‑Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista. Nestas condições, como, em substância, o advogado‑geral considerou no n.º 50 das suas conclusões, a expressão «privilégios e hipotecas», referida neste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), engloba todos os instrumentos contratuais que façam parte integrante de uma operação de reunião de capitais de empréstimo que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.
44 Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar, à luz das considerações expostas no n.o 43 do presente acórdão, se os penhores, as promessas de penhor e a cessão de créditos em causa no processo principal, uma vez que não constituem hipotecas, podem ser qualificadas de «privilégios» na aceção do referido artigo 6.º, n.º 1, alínea d).
45 Resulta de todas as considerações precedentes que o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações”. (negrito nosso)
O caso sub judice
In casu, tal como referido supra, as partes contendem quanto à tributação em sede de IS das garantias conexas com a emissão de papel comercial por força do direito da União Europeia, mas especificamente: se o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.o, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação, a título de IS, das garantias prestadas (sob a forma de penhores de ações e livrança avalizada) por sociedades a instituições bancárias com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um contrato de emissão de papel comercial, sobre o qual foi liquidado IS à taxa de 0,6% prevista na verba 10.3 da TGIS.
A este propósito, interessa notar que, tal como referem as Requerentes, a Diretiva 2008/7/CE abrange o papel comercial enquanto valores mobiliários de natureza monetária representativos de dívida de sociedades comerciais, um instrumento de financiamento de empresas alternativo ao crédito bancário, (cf. Decreto-Lei n.º 69/2004, de 25 de março). Conforme se pode ler no considerando 9 da Diretiva, “não deve ser aplicado imposto de selo sobre os títulos, quer estes sejam representativos de capitais próprios das sociedades quer de capitais de empréstimo, e qualquer que seja a sua proveniência”. Acresce que as Requerentes (entidade emitentes de papel comercial) são sociedades estão abrangidas pelo âmbito de aplicação desta diretiva - as sociedades anónimas incluem-se na lista contida no Anexo I da Diretiva.
Quanto à questão decidenda, no Acórdão proferido no Caso C‑685/23, em 05-06-2025, o TJUE veio clarificar que:
“O artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, devem ser interpretados no sentido de que:
não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações”.
Neste contexto, interessa sublinhar que as garantias prestadas para o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de emissão de papel comercial em causa (designadamente penhores de ações) constituem “privilégios”, na aceção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE, uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.
Nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do Código Civil: “O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”. Não há assim dúvida de que o penhor de ações confere ao credor o direito de ser pago com prioridade face a todos os outros credores através do produto da venda do bem empenhado (ações).
Ora, constituindo as garantias em apreço “privilégios”, na aceção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE, conclui-se que a Diretiva 2008/7/CE não afasta a tributação, em sede de IS, das mesmas, e que o legislador português permanece competente para tributar as mesmas em derrogação ao disposto no artigo 5.º da Diretiva.
No mesmo sentido, veja-se a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 1203/2024-T, onde se conclui:
“é manifesto que as garantias aqui prestadas (penhores de ações, penhores de créditos, penhores de quotas e hipotecas) estão sujeitas a tributação, em sede de IS, ao abrigo da citada norma – alínea d), do n.º 1, do artigo 6.º, da aludida Diretiva –,
Sendo esta a interpretação a retirar das aludidas conclusões do Advogado-Geral apresentadas no âmbito do processo n.º C685/23 e da respetiva decisão final, e não a apresentada pela Requerente, que está em clara contradição com a posição preconizada por aquele”.
Pelo exposto, improcede o pedido de pronúncia arbitral.
DECISÃO
Com base nos fundamentos enunciados supra, decide-se julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, absolver a AT do pedido.
***
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 505.400,83, indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 7.956,00, a cargo das Requerentes, em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 14 de outubro de 2025
O Tribunal Arbitral,
Professora Doutora Rita Correia da Cunha
Dra. Alexandra Iglésias
Votei vencido, conforme declaração de voto que anexo
Dr. José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora
VOTO DE VENCIDO
Entendo desde já que mais relevante que partir da interpretação do artº. 5º. da Directiva 2008/7 do Conselho da Europa que permite a tributação das garantias que acompanham qualquer junção de capitais, é importante considerar se existe alguma isenção que lhe seja aplicável, nomeadamente as consignadas no artº. 7º. do Código do Imposto de Selo (CIS).
Relativamente à aplicação desta isenção, refiro que no acórdão do processo 833 entendi que a palavra “inerentes”, constante do artº. 7º., nº.1, al. d) do CIS devia ser interpretada formalmente como sendo garantias que a lei entende que devem acompanhar a reunião de capitais ou as operações a ela conducentes.
Por isso, podendo o Estado tributar estas garantias, as mesmas estavam sujeitas a imposto de selo, em aplicação do artº. 5º., dada a possibilidade conferida ao Estado-Membro de tributar essas garantias em impostos indirectos.
Parti do pressuposto que, se as garantias podem ser tributadas em imposto de selo, pois o benefício fiscal da respectiva isenção é uma excepção, tal só devia acontecer em casos restritos e impostos por lei, o que o acórdão do TJUE veio confirmar.
Revisitando o tema, impressionou-me a argumentação do TJUE no ponto 31, onde refere que a questão tem de ser entendida no sentido de que as garantias fazem “parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”, ou seja, a mesma não ocorre, nem vai ocorrer se não forem prestadas as aludidas garantias e sendo essas garantias um privilégio, no sentido definido pelo nº. 35 do acórdão, na perspectiva de que a interpretação desta palavra “deve ser procurada tendo em conta a redacção desta disposição, o contexto em que se insere e os objectivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte”, então terão de ser as garantias mesmo não obrigatórias por imposição da lei, mas absolutamente necessárias para a efectivação da reunião de capitais também abrangidas pela referida isenção, como sucede no caso dos presentes autos.
E o acórdão do TJUE junto aos autos reafirmou esta orientação no ponto 32, conforme transcrito no presente acórdão "32 Do mesmo modo, uma vez que as garantias são prestadas com vista ao cumprimento adequado das obrigações resultantes de um empréstimo obrigacionista, estas garantias apresentam, por esse facto, uma ligação estreita com a emissão do referido empréstimo, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7, pelo que se deve considerar que fazem parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, independentemente da questão de saber se são prestadas em execução de uma obrigação legal ou voluntariamente (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.ºs 31 e 35)."
Isto para dizer o seguinte: o objectivo último da operação prosseguida nos presentes autos é uma reunião de capitais através da emissão de papel comercial, facto de que não há dúvida. E esta operação está isenta de imposto de selo por assim o determinar o artº. 5º., nº. 2, al. b) da Directiva 2008/7/CE de 12 de Fevereiro de 2008 do Conselho da União Europeia, sem que haja norma correspondente a nível nacional.
O valor em causa - cerca de 83 000 000€ -, por ser avultado, tem de ser rodeado de especiais garantias, em especial o seu financiamento, que, porém, não são exigidas por lei, mas que a prática aconselha que se tenham e obtenham.
Não havendo dúvidas de que as garantias prestadas visam a obtenção desse financiamento pela emissão de papel comercial para essa reunião de capitais, é evidente que uma interpretação restritiva da palavra “inerentes”, implicaria que seria sempre exigido imposto de selo.
Mas se se entender que as garantias prestadas visam garantir – passe a repetição – a emissão de papel comercial, conferindo aos respectivos credores meios privilegiados para, em caso de incumprimento, obterem de volta o que emprestaram, dúvidas também não existem de que essas garantias são inerentes àquela emissão de papel comercial, pois sem elas o mais certo é não se conseguir que alguém as adquira.
Portanto, a perspectiva formal que anteriormente adoptei não é a que favorece a actividade económica e apesar de a isenção ser um benefício, logo uma excepção à regra geral da tributação, tem de entender-se que essa inerência deve ser procurada na “operação global do ponto de vista da reunião de capitais”, como refere o acórdão do TJUE.
Deste modo, essa inerência tem de ser interpretada de outra forma diversa da que adoptei anteriormente, ou seja, essa inerência tem de ser entendida como condição sine qua non, para que de um ponto de vista prático, a operação de reunião de capitais se efective e seja um sucesso, a bem da actividade económica.
Daí eu entender hoje e de forma mais ligada à materialidade da situação, que se consideram garantias inerentes à operação realizada de reunião de capitais aquelas que de um ponto de vista económico a permitem, apesar de não exigidas legalmente.
É que a lei não distingue entre as garantias legalmente obrigatórias e aquelas que as partes voluntariamente entenderam ser prestadas, interpretando a palavra inerentes como significando apenas que essas garantias tenham uma ligação, uma conexão com o acto garantido, independentemente de serem ou não legalmente exigidas. Face a esta falta de distinção legal e dentro do princípio de interpretação das leis de que o intérprete não deve distinguir onde o legislador não distinguiu, entendo que deve proceder a o PPA, com os fundamentos que deixo expostos e porque entendo que a isenção prevista no artigo 5º., nº. 2. al. b) da diretiva 2008/7 deve ser interpretada de forma lata, assim se evitando estarmos a discriminar para efeitos de tributação actos da mesma espécie e que visam satisfazer os mesmos interesses em relação clara, assim se cumprindo o princípio da igualdade
Por isso, entendo que o presente PPA devia proceder.
Lisboa, 14 de Outubro de 2025
(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)