Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 622/2025-T
Data da decisão: 2025-10-12  IRS  
Valor do pedido: € 296.084,90
Tema: IRS. Regime de transparência fiscal. Benefício fiscal por dedução à colecta do IRC
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e Dr. Jesuíno Alcântara Martins, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 02-09-2025, acordam no seguinte:

 

              1. Relatório

 

1.1 A..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Estoril (adiante "Primeiro Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") n.º 2024 ... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 1);

1.2 B..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Segundo Requerente"), tendo apresentado no dia 4 de fevereiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 2),

1.3 C..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Terceiro Requerente"), tendo apresentado no dia 3 de fevereiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 3);

1.4 D..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (adiante "Quarto Requerente"), tendo apresentado no dia 7 de março de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 4);

1.5 E..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... Porto (adiante "Quinto Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças do Porto, contra a liquidação de IRS n.º 2024 ... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 5);

1.6 F..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º..., ...-... Lisboa (adiante "Sexto Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 6),

1.7 G..., com o número de identificação fiscal..., residente na ..., n.º ..., ... ...-... Lisboa (adiante "Sétimo Requerente"), tendo apresentado no dia 22 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 7);

1.8 H..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º..., ...-... Lisboa (adiante "Oitavo Requerente"), tendo apresentado no dia 13 de dezembro de 2024 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024 ... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 8):

1.9 I..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Porto (adiante "Nono Requerente"), tendo apresentado no dia 14 de novembro de 2024 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2024..., que correu termos na Direção de Finanças do Porto, contra a liquidação de IRS n. º 2024 ... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 9);

1.10 J..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ...- ..., ...-... Cascais (adiante "Décimo Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Unidade dos Grandes Contribuintes, contra a liquidação de IRS n.º 2024 ... relativa ao ano de 2022 (documento n. º 10);

1.11 K..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Décimo Primeiro Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 11);

1.12 L..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º...-..., ...-... Matosinhos (adiante "Décimo Segundo Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Serviço de Finanças de Matosinhos ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024 ..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 12);

1.13 M..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (adiante "Décimo Terceiro Requerente"), tendo apresentado no dia 4 de fevereiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024... relativa ao ano de 2022 (documento n.º 13);

1.14 N..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Vila Nova de Gaia (adiante "Décimo Quarto Requerente"), tendo apresentado no dia 15 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 14)

1.15 O..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Décimo Quinto Requerente"), tendo apresentado no dia 22 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 15);

1.16 P..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Décimo Sexto Requerente"), tendo apresentado no dia 20 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 16);

1.17 Q..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ... Esquerdo, ...-... Lisboa (adiante "Décimo Sétimo Requerente"), tendo apresentado no dia 21 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 17);

1.18 R...., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Décimo Oitavo Requerente"), tendo apresentado no dia 16 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 18);

1.19 S..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Avenida ..., n." ...°, ...-... Lisboa (adiante "Décimo Nono Requerente"), tendo apresentado no dia 3 de fevereiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 19);

1.20 T..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 20);

1.21 U..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º ..., ..., ...-... ... (adiante "Vigésimo Primeiro Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 21);

1.22 V..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ... ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Segundo Requerente"), tendo apresentado no dia 22 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 22)

1.23 W..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ... - ..., ...-... (adiante "Vigésimo Terceiro Requerente"), tendo apresentado no dia 17 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças de Alenquer, contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 23);

1.24 X..., com o número de identificação fiscal..., residente na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Quarto Requerente"), tendo apresentado no dia 26 de dezembro de 2024 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2024..., que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024 ..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 24)

1.25 Y..., com o número de identificação fiscal ..., residente na ..., n.º ..., ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Quinto Requerente"), tendo apresentado no dia 20 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 25)

1.26 Z..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., moradia A, ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Sexto Requerente"), tendo apresentado no dia 23 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos no Serviço de Finanças Lisboa ..., contra a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 26);

1.27 AA..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ... n." ..., ...-... Lisboa (adiante "Vigésimo Sétimo Requerente"), tendo apresentado no dia 27 de janeiro de 2025 a reclamação graciosa a que foi atribuído o n.º ...2025..., que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa, a liquidação de IRS n.º 2024..., relativa ao ano de 2022 (documento n.º 27);

adiante conjuntamente designados por “Requerentes”, apresentaram pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) atrás indicadas, relativas ao ano de 2022.

 Os Requerentes pedem ainda a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2022..., que teve por objecto aqueles actos de liquidação, bem como reembolso dos impostos e juros indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

  É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27-06-2025.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 12-08-2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 02-09-2025.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 07-10-2025, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

          

 

2. Matéria de facto 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)    Os Requerentes são sócios da BB... Sociedade de Advogados e Consultores, SP, RL (doravante "Sociedade"), que, em 2022, se denominava C...- Sociedade de Advogados, SP, RL) (documento n.º 28 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)

B)    Em 2022, a Sociedade era uma sociedade de profissionais constituída para o exercício da Advocacia, atividade essa prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("CIRS"), exercendo todos os requerentes a atividade na sociedade. 

C)     Nesse mesmo ano de 2022 a Sociedade efetuou investimentos elegíveis para efeitos do Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial ("SIFIDE IP), tendo submetido a respetiva candidatura nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do Código Fiscal do Investimento ("CFI);

D)    Posteriormente, em 2024, a Sociedade foi notificada da decisão final emitida pela Agência Nacional de Inovação ("ANP) de deferimento integral da candidatura ao SIFIDE II, tendo sido atribuído um crédito fiscal no montante de EUR 479.025,24 (certidão de concessão do benefício do SIFIDE II, que consta dos «documentos n.ºs 21 a 30»);

E)     Na sequência do deferimento integral da candidatura, os Requerentes apresentaram uma Declaração Modelo 3 de IRS de substituição, incluindo o montante a que têm direito em função da proporção das suas participações a título de benefícios fiscais decorrentes do SIFIDE, nos seguintes termos:

 

 

F)     Na sequência da apresentação das Declaração Modelo 3 de IRS de substituição, os Requerentes foram subsequentemente notificados das correspondentes liquidações de IRS, em que não foram reconhecidos os direitos aos respetivos créditos fiscais do SIFIDE II que os Requerentes pretendiam;

G)    Os Requerentes apresentaram junto dos Serviços de Finanças competentes, pedido de passagem de certidão de fundamentação, nos termos do artigo 37.º, do CPPT;

H)    A Administração Tributária e Aduaneira emitiu certidões nos termos que constam do documento n.º 30 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que, em suma, entendeu que era aplicável o limite indicado na alínea c) do n.º 7 do artigo 78.º do CIRS;  

I)      Os Requerentes apresentaram reclamações graciosas das liquidações de acordo com o quadro que segue:

J)     Nessas reclamações graciosas, os Requerentes defenderam, em suma, que, em virtude de o benefício dos Requerentes decorrer da aplicação do comando legal previsto no artigo 90.º, n.º 5 do CIRC (sujeição dos sócios ao regime das sociedades transparentes), eram inaplicáveis os limites de dedução à coleta previstos no artigo 78.º, n.º 7 do CIRS às deduções tal como resultava da matéria coletável que lhes era imputada e demais deduções à coleta;

K)    As reclamações graciosas apresentadas pelos Primeiros ao Décimo Quarto Requerentes foram objeto de indeferimento expresso, tendo sido integralmente mantidas as liquidações de IRS impugnada;

L)     As reclamações apresentadas pelos Décimo Quinto ao Vigésimo Sétimo Requerentes não foram objeto de decisão expressa, tendo-se formado os correspondentes atos de indeferimento tácito para efeitos de impugnação;

M)   Em 26-06-2025, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto 

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não contesta a matéria de facto alegada pelos Requerentes, pelo que não há controvérsia sobre ela.

 

 

3. Matéria de direito

 

A questão essencial que é objecto do presente processo é a de saber se a dedução à colecta de SIFIDE, prevista no artigo 38.º do CFI, é aplicada à colecta de IRS, nos casos de sociedades transparentes, com os limites previstos no artigo 78.º, n.º 7, alínea c), do CIRS, na redacção da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (vigente em 2020).

Os Requerentes defendem que o limite previsto no n.º 7 do artigo 78.º do Código do IRS não é aplicável às deduções imputadas aos sócios por efeito do disposto no artigo 90.º, n.º 5, do Código do IRC, alegando, em suma:

–  o SIFIDE II constitui um benefício fiscal excecional, reconhecido exclusivamente por razões de interesse público, visando responder à necessidade do país de promover a competitividade e o investimento empresarial;

– ao consagrar o referido benefício, o próprio Estado reconheceu, através de uma ponderação de interesses, que o aumento da competitividade constitui, em concreto, um interesse público superior ao da arrecadação tributária, que é limitado pela concessão do benefício;

– ou seja, o Estado concedeu este benefício às entidades que promovessem o desenvolvimento económico e social do país;

– nos termos conjugados da alínea c) do n.º 2 e do n.º 5, ambos do artigo 90.º do CIRC, quando estejam em causa entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal, as deduções à coleta de benefícios fiscais são imputadas aos respetivos sócios;

–  o legislador detetou que não podendo o benefício refletir-se na sociedade de profissionais, por a mesma estar sujeita ao regime da transparência fiscal, teria de ser cumprido pelos seus sócios, todos eles sujeitos a IRS;

– de outra forma, gerar-se-ia um efeito discriminatório intolerável no acesso ao benefício fiscal em causa, em violação do princípio da igualdade vis-a-vis outros sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços, não abrangidos pelo regime de transparência fiscal;

– a correção efetuada pela Autoridade Tributária, que violou expressamente o disposto na alínea c) do n.º 2 e do n.º 5 do artigo 90.º do CIRC e que eliminou o efeito útil do benefício fiscal associado ao investimento realizado pela sociedade/sócios ao abrigo do SIFIDE.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, em suma:

– apesar do n.º 1 do artigo 38.º do CFI circunscrever as deduções do SIFIDE a coleta de IRC, por força do disposto nas disposições conjugadas do n.º 5 do artigo 90.º do CIRC e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º do CIRS, os sócios das sociedades transparentes podem deduzir os benefícios fiscais SIFIDE na coleta de IRS (após a imputação aos sócios da matéria coletável, efetuada no âmbito do CIRC);

–  o apuramento da coleta é efetuado de acordo com o procedimento de liquidação de IRS, englobando-se os rendimentos líquidos categoria B com os restantes rendimentos do agregado familiar para determinação da taxa geral de IRS a aplicar;

– o montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo, a que alude o n.º 5 do artigo 90º do CIRC, tem de assentar – e assentou no caso em apreço - no procedimento de liquidação de IRS, previsto no CIRS e, designadamente, no que para aqui releva, no regime das deduções à coleta previstos neste Código;

–  não obstante o n.º 1 do artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento (CFI) remeter para a alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, a AT, no caso concreto, não põe em causa que o SIFIDE é um benefício fiscal que se repercute na esfera dos Requerentes, (na qualidade de sócios de uma sociedade transparente e em função da imputação que lhes cabe), em sede de IRS;

– o que está em causa, e fundamentou as decisões impugnadas e, consequentemente as respetivas liquidações, é que essa dedutibilidade incide sobre a coleta apurada em IRS e, portanto, de acordo com a disciplina regulada no CIRS e, em particular, com o disposto no seu artigo 78.º “Deduções à colecta”;

– veja-se que o EBF, nos seus artigos 17.º e 21.º, prevê especificas deduções à coleta de IRS, também elas sujeitas a limites aí definidos;

– se o legislador quisesse que as deduções do SIFIDE, em sede de IRS, tivessem um tratamento específico, teria autonomizado e regulado essas dedutibilidades, como, aliás, o fez para o Programa Semente, no artigo 43.º-A do EBF, estabelecendo parâmetros que escapam ao disposto no artigo 78.º do CIRS;

– as deduções do SIFIDE efetuadas em sede de IRS, decorrentes dos sujeitos passivos serem sócios de uma sociedade transparente, têm de ser enquadradas no CIRS ou nas normas do EBF quando dirigidas à coleta de IRS;

– o legislador, nem no CIRS, nem no do EBF, regulou os benefícios fiscais SIFIDE, atribuindo-lhes um tratamento específico (como aconteceu com o Programa Semente);

– ~e não resulta da letra da lei (CIRS) a menor evidência que legislador pretendeu incluir, num regime específico e autónomo, a dedutibilidade dos benefícios SIFIDE;

– assim, no caso concreto, os Requerentes têm um rendimento coletável superior ao valor do último escalão previsto no n.º 1 do artigo 68.º do CIRS, o limite das deduções à coleta previstas nas alíneas c) a h) e k) do n.º 1 do artigo 78.º do CIRS, acrescido de uma majoração de 5% por cada dependente;

– a interpretação do Requerente é claramente ab-rogante da lei, transvertida de impulso legiferante, bem como inconstitucional, pois pressupõe que as normas constantes do artigo 78.º do Código IRS, em concreto os seus números 1 e 7 não são aplicáveis, isto é, que a si não lhe são aplicáveis os limites ali estabelecidos às deduções à coleta de IRS;

–o regime de transparência fiscal (RTF) foi implementado tendo como um dos objetivos a neutralidade fiscal, o que implica que na tributação não seja tida em conta a forma jurídica adotada pelos sujeitos passivos, sendo tributados os respetivos sócios ou membros como se exercessem diretamente a atividade prosseguida pela sociedade, atendendo-se assim à capacidade contributiva daqueles sócios ou membros, se abrisse a porta a que o rendimento liquido destes profissionais com o exercício de atividade através de uma sociedade, fosse anulado, via aplicação de poupanças/capitais em fundos de investimentos, enquanto os profissionais em prática individual veriam vedado este benefício;

–  a comparação de capacidades contributivas em ordem a determinar a observância do princípio da igualdade tributária pressupõe apelar, no caso em discussão, à tributação fiscal no ordenamento legal português de pessoas singulares;

– o que implica que na tributação seja tida em conta a forma jurídica adotada pelos sujeitos passivos, sendo tributados os respetivos sócios ou membros como se exercessem diretamente a atividade prosseguida pela sociedade, atendendo-se assim à capacidade contributiva daqueles sócios ou membros;

–  procura-se obviar a que sejam constituídas sociedades apenas com a finalidade de fuga aos impostos, aparecendo a forma societária como um mero subterfúgio que se interpõe entre eles e a Administração Tributária, para assim se alcançar uma diminuição ou dilação da carga tributária;

– a vingar a tese do Requerente, estar-se-ia a abrir a porta a que o rendimento líquido destes profissionais com o exercício de atividade através de uma sociedade, fosse anulado, via aplicação de poupanças/capitais em fundos de investimentos, enquanto os profissionais em prática individual veriam vedado este benefício, e aí, sim, estaríamos a violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade;

– efetivamente, ao aplicar somente as regras previstas no artigo 90.º do CIRC, nos casos em que o sócio da sociedade transparente opte pelo englobamento com o seu cônjuge/unido de facto, a dedução à coleta consumirá, na esmagadora maioria dos casos, a totalidade da coleta de IRS;

– significando isto que a tributação que deveria recair sobre o cônjuge/unido de facto (ou qualquer outro membro do agregado, desde que o rendimento seja englobado) será anulada pela dedução à coleta proveniente do SIFIDE II;

– não se verifica motivo para que seja feita tal discriminação, entre membros do agregado familiar de sócios de sociedades transparentes e todos os outros sujeitos passivos, contemplando notória violação do princípio da igualdade, incluindo na sua vertente do princípio da capacidade contributiva, bem como, violação do princípio da proporcionalidade;

– semelhante cenário se verificará no que respeita a outros rendimentos auferidos pelo sócio da sociedade transparente, aos quais seja dada a opção pelo englobamento, como por exemplo, rendimentos prediais e mais-valias mobiliárias;

– parece evidente que o objetivo do regime do SIFIDE II, seria sempre beneficiar fiscalmente uma sociedade pelo seu investimento em poupanças/capitais em fundos de investimentos, isto é, a beneficiar o rendimento gerado no âmbito da atividade societária e já não em outras categorias de rendimentos auferidos pelos seus sócios, que nada têm que ver com a sua atividade profissional;

– considerando que a dedução em causa se aplica à coleta, tem a mesma a possibilidade de anular também a tributação de rendimentos provenientes de outras fontes, completamente estranhos à atividade da sociedade transparente, se considerarmos que se aplica o artigo 90.º do CIRC em detrimento dos limites previstos no artigo 78.º, n.ºs 1, 7 e 8;

–  consubstanciando, mais uma vez, violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, por não se avistar motivo que justifique tratamento diferenciado entre a tributação de mais-valias ou rendimentos prediais auferidos por um sujeito passivo que nãos seja sócio de uma sociedade transparente e um que seja;

–  entende-se que é inconstitucional a interpretação, segundo a qual nas regras de dedução à coleta aplicáveis aos sócios, pessoas singulares, de sociedades transparentes, referentes a despesas com investigação e desenvolvimento incorridas por essas sociedades sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime da transparência fiscal, apenas são aplicáveis as regras previstas no Código do IRC [cf. artigos 6.º, n.º 1, b), 90.º, n.º 1 e 2, c) e n.º 5], não aplicando os limites previstos no artigo 78.º, n.º 1, 7 e 8 do Código do IRS;

– pois viola o princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cf. artigos 202.º e 203.º da CRP), por se proceder à criação de uma regra jurídica nova, bem como do princípio constitucional da igualdade e proporcionalidade (cf. artigo 13.º da CRP), mormente face à disparidade do tratamento fiscal para com os profissionais que não se achem em prática associada.

 

3.1. Legislação aplicável

 

O benefício fiscal do SIFIDE está previsto no CFI, em cujo artigo 38.º do CFI se estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 38.º

Âmbito da dedução

 

1 - Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante da coleta do IRC apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objeto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação com início entre 1 de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2025, numa dupla percentagem: a) Taxa de base - 32,5 % das despesas realizadas naquele período; 

b) Taxa incremental - 50 % do acréscimo das despesas realizadas naquele período em relação à média aritmética simples dos dois exercícios anteriores, até ao limite de (euro) 1 500 000,00. 

2 - Para os sujeitos passivos de IRC que se enquadrem na categoria das micro, pequenas ou médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, que ainda não completaram dois exercícios e que não beneficiaram da taxa incremental fixada na alínea b) do número anterior, aplica-se uma majoração de 15 % à taxa base fixada na alínea a) do número anterior. 

3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior. 

(...)

 

 

              O artigo 90.º do CIRC, para que remete o n.º 3 daquele artigo 38.º, estabelece o seguinte, na redacção vigente em 2022, e no que aqui interessa:

 

Artigo 90.º

 

Procedimento e forma de liquidação

 

1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:

 

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;

 

(...)

 

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

 

a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;

b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;

c) A relativa a benefícios fiscais;

d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º; (revogada pela Lei n.º 12/2022 de 27 de Junho).

 

(...)

5 - As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respetivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo.

 

              O artigo 78.º do CIRS, estabelece o seguinte, na redacção vigente em 2022 e no que aqui interessa:

 

Artigo 78.º

Deduções à coleta

    1 - À coleta são efetuadas, nos termos dos artigos subsequentes, as seguintes deduções relativas:

              (...)

              k) Aos benefícios fiscais.

 

              (...)

 

7 - A soma das deduções à coleta previstas nas alíneas c) a h) e k) do n.º 1 não pode exceder, por agregado familiar, e, no caso de tributação conjunta, após aplicação do divisor previsto no artigo 69.º, os limites constantes das seguintes alíneas:

a) Para contribuintes que tenham um rendimento coletável igual ou inferior ao valor do 1.º escalão do n.º 1 artigo 68.º, sem limite; 

b) Para contribuintes que tenham um rendimento coletável superior ao valor do 1.º escalão e igual ou inferior ao valor do último escalão do n.º 1 do artigo 68.º, o limite resultante da aplicação da seguinte fórmula:  

(euro) 1 000 + [(euro) 2 500 - (euro) 1 000) x [valor do último escalão - Rendimento Coletável]] valor do último escalão - valor do primeiro escalão;

c) Para contribuintes que tenham um rendimento coletável superior ao valor do último escalão do n.º 1 do artigo 68.º, o montante de (euro) 1 000.

(...)

 

 

3.2. Apreciação da questão 

 

              O artigo 38.º do CFI estabelece a dedução do benefício fiscal do SIFIDE à colecta de IRC, com remissões para o artigo 90.º do CIRC.

              O n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, que indica as deduções em sede de IRC, inclui a dedução «relativa a benefícios fiscais».

              Embora as deduções relativas a benefícios fiscais, em sede de IRC e IRS, possam ter por objecto a matéria colectável ou a colecta (artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), aquele artigo 90.º, n.º 2, reporta-se aos benefícios fiscais que operam por dedução à colecta, como se infere dos factos de a relevância dos benefícios fiscais que operam por dedução ao lucro tributável estar prevista no artigo 15.º, n.º 1, do CIRC e de todas as outras deduções previstas naqueles n.º 2 (dupla tributação jurídica internacional, dupla tributação económica internacional, pagamentos por conta e retenções na fonte), serem manifestamente deduções à colecta.

              Sendo assim, o n.º 5 do artigo 90.º do CIRC, ao estabelecer  que as deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal  são imputadas aos respetivos sócios ou membros e deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo, está inequivocamente a determinar a aplicação em sede de IRS das deduções à colecta resultantes de benefícios fiscais que deveriam ser aplicadas em sede de IRC.

              Embora inserido no CIRC, este n.º 5 contém uma norma sobre a aplicação de deduções à colecta em sede de IRS e não em IRC.

              Para além disso, este n.º 5 esclarece também a forma como é feita a aplicação do benefício fiscal em sede de IRS: as deduções são «deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo». Isto é, as deduções previstas em sede de IRC são deduzidas à colecta de IRS (o «montante apurado com base na matéria colectável»), que é determinada tendo em conta os rendimentos provenientes da sociedade transparente que são imputados aos sócios, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do CIRC.

              Não se estabelece neste n.º 5 do artigo 90.º qualquer limitação à dedução dos benefícios fiscais em sede de IRS, resultando, antes, do teor literal desta norma que «as deduções referidas no n.º 2» (as que devem ser determinadas em sede de IRC) são imputadas aos sócios para efeitos de IRS, tal como foram determinadas.

              Isto é, essencialmente, está-se perante transferência para os sócios de benefício fiscal em IRC, tal como ele existe para as sociedades opacas no âmbito do IRC, o que afasta a sujeição destas deduções à colecta de IRC às limitações de benefícios fiscais que operam por dedução à colecta previstas no CIRS, que são aquelas a que, naturalmente, se refere o art. 78.º, n.º 7, do CIRS.

              O SIFIDE não é um benefício fiscal em sede de IRS, mas que opera no âmbito do IRC, que é determinado tendo em consideração a colecta de IRC e não de IRS e é transferido para os sócios das sociedades transparentes, por força do disposto no n.º 5 do artigo 90.º do CIRC, tal como foi determinado em sede de IRC.

              O artigo 38.º, n.º 1, do CFI e este n.º 5 do artigo 90.º do CIRC estabelecem um regime especial de dedução do SIFIDE à colecta de IRS, que, no seu específico domínio de aplicação, prevalece sobre o regime geral de deduções à colecta previsto no artigo 87.º do CIRS.

              Trata-se de um regime «completo, no que respeita às regras de apuramento e imputação dos rendimentos auferidos por sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal. Abrangendo o momento inicial de obtenção desse rendimento e a fase final de dedução à colecta previamente determinada». «Aceitar uma limitação posterior fundada nas regras próprias de apuramento e liquidação do IRS, implicaria a distorção do regime de transparência fiscal. Na medida em que removeria a neutralidade que lhe é inerente e que constitui seu edifício teleológico». «Em sede de IRS uma tal limitação não deixaria de se caracterizar como uma inadmissível intromissão nas regras próprias e específicas do regime de transparência fiscal, o qual é regulado num bloco normativo autónomo. Ao normativo do IRS cabe apenas a recepção dos valores (matéria colectável e dedução à colecta) imputáveis nos termos do Código do IRC». (decisão arbitral proferida no processo n.º 336/2020-T).

              Assim, tratando-se de transpor para os sócios das sociedades transparentes os benefícios fiscais que usufruiriam se se fossem sócios de sociedades opacas, a determinação do montante das deduções terá as limitações previstas para as sociedades opacas, designadamente os limites máximos previstos nas várias normas que prevêem benefícios fiscais que operam por dedução à colecta de IRS, que no caso do SIFIDE é o artigo 38.º, n.º 1, do CFI. 

              A adequada ponderação relativa dos conflituantes interesse público na obtenção de receitas fiscais da tributação e interesse extrafiscal que justifica o benefício fiscal está feita nas normas que limitam o benefício fiscal em sede de IRC, neste caso do SIFIDE no artigo 38.º, n.º 1, do CFI.

              O n.º 5 do artigo 90.º do CIRC pressupõe que a colecta de IRC seja calculada virtualmente, para poder ser determinado o montante que é imputado aos sócios.

              Como se diz na decisão arbitral proferida no processo n.º 336/2020-T «o facto de a dedução à colecta ser “virtual” ou “técnica”, por decorrer da “isenção técnica” de IRC e ser imputável aos sócios, não obsta à sua transferibilidade para estes. Não apenas, porque o normativo do n.º 5 do artigo 90.º assim o determina, mas fundamentalmente pelo facto de tal corresponder a todo o edifício em que se encontra estruturado o regime da transparência fiscal. Com efeito, a matéria colectável, a colecta e a dedução à colecta são produto da regra de “isenção técnica” que enforma o regime da transparência fiscal. Sendo sujeitas a uma fórmula uniforme de imputação aos sócios, pessoas singulares ou colectivas, nos mesmos termos e condições em que o seria na ausência do regime de transparência. Apenas assim se assegura a neutralidade fiscal ínsita a esse regime».

              Aliás, foi este o entendimento que de cálculo virtual da colecta de IRC que a própria AT veio a adoptar não só na Circular 8/90 cuja cópia foi junta aos autos, mas também no mais recente despacho da substituta do Director Geral de 2013.12.04, processo 2013 003058 (quanto ao Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento) ( [1] ) e informação vinculativa n.º 15282, processo 2019 001072 (quanto ao benefício fiscal da Dedução por Lucros Retidos e Reinvestidos) ( [2] ).

              Conclui-se, assim, como decidiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 07-06-2023, processo n.º 1301/21.0BEBRG, que «a dedução à colecta de despesas de investigação e de desenvolvimento elegíveis no âmbito do sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial (SIFIDE II), quando haja lugar à imputação da matéria colectável aos sócios (pessoas físicas) de sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal, rege-se pelo disposto nos artigos 90.º e 92.º do Código do IRC e 35.º a 38.º do CFI, não lhes sendo aplicável, assim, o limite estabelecido no artigo 78.º, n.º 7, do Código do IRS».

              No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 04-06-2025, processo n.º 1300/21.1BEBRG.

              Pelo exposto, as liquidações de IRS impugnadas enfermam de ilegalidade ao não ter considerado a dedução do SIFIDE nos termos referidos, o que justifica a sua anulação parcial, nas partes em que não foi considerada aquela dedução, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.3. Questões de inconstitucionalidade suscitadas pela AT

 

              A Administração Aduaneira defende que 

– «a interpretação da Requerente é claramente ab-rogante da lei, transvertida de impulso legiferante, bem como inconstitucional»;

– «é inconstitucional a interpretação, segundo a qual nas regras de dedução à coleta aplicáveis aos sócios, pessoas singulares, de sociedades transparentes, referentes a despesas com investigação e desenvolvimento incorridas por essas sociedades sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime da transparência fiscal, apenas são aplicáveis as regras previstas no Código do IRC [cf. artigos 6.º, n.º 1, b), 90.º, n.º 1 e 2, c) e n.º 5], não aplicando os limites previstos no artigo 78.º, n.º 1, 7 e 8 do Código do IRS»;

– «viola o princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cf. artigos 202.º e 203.º da CRP), por se proceder à criação de uma regra jurídica nova, bem como do princípio constitucional da igualdade e proporcionalidade (cf. artigo 13.º da CRP), mormente face à disparidade do tratamento fiscal para com os profissionais que não se achem em prática associada».

              A alegação da Autoridade Tributária e Aduaneira é manifestamente destituída de fundamento, pois a interpretação da Requerente é, pelo menos, uma das interpretações possíveis da lei, com apoio no teor expresso do artigo 90.º, n.º 5 do CIRC, que é uma norma especial sobre a deduções à colecta de IRS dos sócios das sociedades transparentes, sendo mesmo a interpretação maioritária na jurisprudência arbitral e no Supremo Tribunal Administrativo.

              No que concerne ao princípio de igualdade, o regime em causa justifica-se precisamente, para o assegurar aos sócios das sociedades transparentes a usufruição do benefício fiscal do SIFIDE II de que, em última análise, gozam os sócios das sociedades opacas, através da dedução à colecta de IRC destas que proporciona.

              Por isso, improcede a alegação de inconstitucionalidade.

 

 

              3.4. Conclusão

              Pelo exposto, as liquidações de IRS impugnadas e as decisões de indeferimento das reclamações graciosas que as mantiveram enfermam de vícios de violação de lei por erro de interpretação dos artigos 90.º, n.º 5, do CIRC e 78.º, n.º 7, do CIRS, que justificam a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT. 

 

              4. Restituição das importâncias indevidamente pagas e juros indemnizatórios 

 

              Na sequência da anulação das liquidações, cada a dos Requerentes tem direito a ser reembolsado da quantia que pagou a mais, o que deverá ser determinado0 em execução do presente acórdão.

              O artigo 43.º da LGT estabelece o seguinte, sobre juros indemnizatórios, no que aqui interessa:

Artigo 43.º 

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

              O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito a juros indemnizatórios quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.

              No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter considerado as deduções à colecta do SIFIDE II nas liquidações impugnadas, pelo que o erro que afecta estas é imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira.

              Por isso, cada um dos Requerentes tem direito a juros indemnizatórios contados desde a data da respectiva liquidação até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

                  5. Decisão            

 

                  De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)    Anular parcialmente as seguintes liquidações de IRS, nas partes em que nelas não foi imputada a dedução do benefício fiscal do SIFIDE II , a que o respectivo Sujeito Passivo tem direito:

– n.º 2024 ... (1.º Requerente);

– n.º 2024 ... (2.º Requerente);

– n.º 2024 ... (3.º Requerente);

– n.º 2024 ... (4.º Requerente);

– n.º 2024 ... (5.º Requerente);

– n.º 2024 ... (6.º Requerente);

– n.º 2024 ... (7.º Requerente);

– n. º 2024 ... (8.º Requerente);

– n. º 2024 ... (9.º Requerente);

– n.º 2024 ... (10.º Requerente);

– n.º 2024 ... (11.º Requerente);

– n.º 2024 ...  (12.º Requerente);

– n.º 2024 ... (13.º Requerente);

– n.º 2024 ... (14.º Requerente);

– n.º 2024 ... (15.º Requerente);

– n.º 2024 ... (16.º Requerente);

– n.º 2024 ... (17.º Requerente);

–  n.º 2024 ... (18.º Requerente);

– n.º 2024 ... (19.º Requerente);

– n.º 2024 ... (20.º Requerente);

– n.º 2024 ... (21.º Requerente);

– n.º 2024 ... (22.º Requerente);

– n.º 2024 ... (23.º Requerente);

– n.º 2024 ... (24.º Requerente);

– n.º 2024  ... (25.º Requerente);

– n.º 2024 ... (26.º Requerente);

– n.º 2024 ... (27.º Requerente),

c)     Julgar procedente o pedido de reembolso das quantias pagas e condenar a Administração Tributária à Requerente o que for liquidado em execução do presente acórdão em relação a cada um dos Requerentes;

d)    Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos do ponto 4 deste acórdão.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 296.084,90, indicado pelos Requerentes e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.202,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 12-10-2025

 

 

Os Árbitros

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Relator)

 

(Manuel Lopes da Silva Faustino)

 

 

(Jesuíno Alcântara Martins)

 



[1] Publicitado em https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/rendimento/circ/Documents/Ficha_doutrinaria_2013_3058.pdf, em que se refere, além do mais:

«Contudo, o disposto no n.º 5 do artigo 90.º do Código do IRC pressupõe a existência de deduções à coleta destas entidades a quem seja aplicável o regime de transparência fiscal. 

A referida disposição vem, aliás, determinar como se procede à imputação aos sócios das deduções à coleta apuradas no seio da sociedade transparente, recorrendo ao estabelecido no n.º 3 do artigo 6.º do Código do IRC, o qual estabelece que a imputação da matéria coletável aos sócios é feita nos termos que resultarem do ato constitutivo ou, na falta de elementos, em partes iguais. 

Ora, o CFEI, sendo um benefício por dedução à coleta, integra-se precisamente na norma prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC e, portanto, é-lhe aplicável o n.º 5 do mesmo artigo, ou seja, a dedução que caberia à sociedade transparente é imputada aos seus sócios. 

Na aplicação do CFEI às entidades a que seja aplicável o regime da transparência fiscal regista-se, ainda, a particularidade de, por força do n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 49/2013, de 16 de julho, ser necessário apurar a coleta que seria devida pela entidade transparente caso não fosse aplicável o referido regime da transparência. 

Com efeito, havendo uma limitação no regime do CFEI segundo a qual, a dedução prevista não pode exceder 70% da coleta do IRC, esta limitação terá que ser aferida em relação à potencial/virtual coleta da entidade transparente e só depois imputada aos sócios ou membros de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 90.º do Código do IRC.»

[2] Publicitada em 

https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/rendimento/circ/Documents/FD_PIV_15282.pdf, em que se refere, além do mais:

«As entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, como é o caso da requerente, que cumpram os requisitos previstos no art.º 28.º do CFI, podem beneficiar da DLRR relativamente aos lucros retidos que sejam reinvestidos em aplicações relevantes nos termos do art.º 30.º do CFI. 

Contudo, para efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 29.º do CFI, o qual prevê que a dedução não pode exceder 25% da coleta do IRC (ou 50%, no caso de micro e pequenas empresas), será necessário o apuramento da coleta que seria devida pela entidade caso não fosse aplicável o regime de transparência fiscal. Esta limitação terá assim que ser aferida em relação à potencial/virtual coleta da entidade transparente e só depois operará a imputação aos sócios ou membros de acordo com o disposto no n.º 5 do art.º 90.º do CIRC. 

Também o limite previsto no n.º 2 do art.º 29.º do CFI, correspondente ao montante máximo dos lucros retidos e reinvestidos em cada período de tributação, terá de ser aferido em relação à entidade transparente, sendo também só depois imputados aos sócios ou membros de acordo com o disposto no n.º 5 do art.º 90.º do CIRC».