Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 307/2025-T
Data da decisão: 2025-10-13  IVA  
Valor do pedido: € 354.957,95
Tema: IVA - Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF); Redução do Valor Tributável
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SUMÁRIO:

 

 1. A prestação efetuada, ao abrigo do acordo APIFARMA, não tem natureza tributária, não constituindo meio de pagamento diverso da CEIF.

2.  A redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável determina a redução do valor tributável, dando direito na constância do princípio da neutralidade à regularização de IVA.

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente), Dra. Catarina Belim e Dr. António Cipriano da Silva (adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte: 

 

I. Relatório

1. Em 28 de março de 2025, A..., LDA, contribuinte fiscal nº...,  com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Carnaxide (doravante “Requerente”) ao abrigo do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral apresentando pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”) com vista à declaração da ilegalidade dos atos de liquidação adicional de IVA n.os 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025 ... e 2025..., no montante total de 320.002,24 EUR, e respetivas liquidações de juros compensatórios n.os 2025..., 2025..., 2025..., 2025 ..., 2025..., 2025..., 2025..., no montante total de 354.957,95 EUR.

2. No dia 31de março de 2025 foi aceite o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

3. No dia 11 de junho de 2025 foi constituído o Tribunal Arbitral.

4. Em 12 de junho de 2025, foi a Requerida notificada nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo.

5. Em 1 de setembro de 2025 a Requerida juntou aos autos o processo administrativo e a sua resposta, defendendo-se por impugnação e mais requerendo a suspensão dos autos e o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE.

6. Em 3 de setembro o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18º RJAT, indeferiu o pedido de produção de prova pericial da Requerente, dando oportunidade para as partes, querendo, apresentarem alegações simultâneas.

II. Posição das partes

II.1. Posição da Requerente

a)     Requerente alega, em síntese, que é uma empresa da indústria farmacêutica enquadrada no regime normal mensal de tributação de IVA, associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (“APIFARMA”), que comercializa os seus produtos farmacêuticos maioritariamente junto de hospitais que integram o Sistema Nacional de Saúde (“SNS”).

 

b)     No âmbito da sua atividade, a Requerente aderiu ao Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA, em representação das empresas da Indústria Farmacêutica.

c)     Ao abrigo da cláusula 5.ª do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA e da declaração de adesão, a Requerente concretiza a sua Contribuição trimestralmente na proporção da quota de mercado do ano anterior, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS que compensam ou liquidam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades.

d)     Por referência aos períodos de tributação de fevereiro, setembro, novembro e dezembro de 2021 e março, outubro e novembro de 2022, ao abrigo do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA, a Requerente emitiu notas de crédito. 

e)     As notas de crédito concretizando a contrapartida assumida no âmbito de tal Acordo, refletiram a redução do valor tributável das operações de transmissão de bens a favor de entidades que integram o SNS.

f)      Face à redução do preço inicialmente praticado nas referidas operações, e consequente alteração do respetivo valor tributável, a Requerente considerou as notas de crédito emitidas no campo 40 das correspondentes declarações periódicas de IVA, regularizando a seu favor o imposto contido em tais notas de crédito.

g)     Entende a Requerente ter direito à regularização do IVA por si liquidado em excesso nas operações de transmissão de bens a favor das entidades que integram o SNS, em consequência da redução do valor tributável de tais operações, refletida nas notas de crédito emitidas em 2021 e 2022, ao abrigo do Acordo celebrado entre a APIFARMA e o Estado português, nos termos do artigo 78.º, n.º 2, do CIVA.

h)     Defende a Requerente que a contrapartida assumida pelas entidades que aderiram voluntariamente ao Acordo celebrado entre a APIFARMA e o Estado português, designada nessa sede de contribuição, concretizada através da emissão das referidas notas de crédito, não pode ser qualificada como uma prestação tributária, na forma de contribuição financeira, à luz do artigo 4.º, n.º 3, da LGT.

i)      Assim entende ao contrário da AT, que a Contribuição e a CEIF são realidades totalmente distintas.

j)      A Contribuição enquadra-se num objetivo de regularização das dívidas vencidas por parte das entidades que integram o SNS e de promoção das condições para o acesso dos doentes aos medicamentos que se mostrem inovadores, compromissos que não se encontram subjacentes à CEIF.

k)     A posição da AT colide com a reserva de função legislativa na criação de contribuições financeiras: à luz dos artigos 103.º e 165.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), por as contribuições financeiras a favor de entidades públicas apenas poderem ser criadas por lei ou decreto-lei, não podendo resultar de uma mera relação contratual.

l)      Alega a Requerente que ainda que não se configure como uma contrapartida de um valor individualizável devido pela Administração Central do Sistema de Saúde por intermédio das entidades que integram o SNS aos sujeitos passivos de IVA do setor farmacêutico, tal pagamento tem na sua génese uma transmissão de bens a favor das entidades do SNS e encontra-se intrinsecamente conexo com tais transmissões.

m)   Para defesa da sua posição a Requerente chama à colação jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia: Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6 de outubro de 2021, proferido no processo C-717/19 (“Boehringer II”); Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 12 de setembro de 2024, proferido no processo C-248/23 (“Novo Nordisk A/S”).

n)     Alegando que o Tribunal de Justiça da União Europeia afirma que o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA, transposto para o ordenamento jurídico interno através do artigo 78.º, n.º 2, do CIVA, deve ser interpretado no sentido de se opor a uma norma nacional que impossibilite a redução a posteriori do valor tributável de operações quando tenha havido, de facto, uma redução do preço depois de efetuada a operação, na aceção do artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA, em consequência da execução de contrato de comparticipação celebrado com um organismo estadual.

o)     Concluindo que os atos tributários controvertidos nos presentes autos são ilegais e, consequentemente, anuláveis, nos termos do artigo 163.º do CPA, com fundamento na violação do direito à regularização do IVA, previsto no artigo 78.º, n.º 2, do CIVA, em consequência da redução do valor tributável das operações de transmissão de bens da Requerente a favor das entidades que integram o SNS.

p)     Requerendo por dever de patrocínio, caso existam dúvidas quanto à incompatibilidade da interpretação extraída pela Administração Tributária dos artigos 16.º e 78.º, n.º 2, do CIVA, com o regime decorrente dos artigos 73.º e 90.º da Diretiva IVA, a suspensão dos presentes autos e o respetivo reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE.

 

II.2. Posição da Requerida

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

a)     Refere a Requerida que a Requerente está sujeita ao regime da CEIF - Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, aprovado pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (OE-2015), a qual, como resulta do seu regime jurídico, constitui  uma contribuição financeira a favor de entidade pública, a que se refere artigo 3.º, n.º 2 da LGT.

b)     Alega a Requerida que ainda que a Requerente atue no âmbito do Acordo celebrado entre a APIFARMA e o Estado português estamos perante uma contribuição financeira (tal como vem qualificada na cláusula 3.ª do mesmo Acordo), a qual se encontra fora do âmbito de aplicação do IVA [cf. artigo 1.º, n.º 1, alínea a) “a contrario” do Código do IVA].

c)     Entende a Requerida que no presente caso, se está perante uma atividade difusa, que aproveita a todo um sector da indústria farmacêutica, sendo impossível imputar ao produtor individual as vantagens que dela resultam. Tratando-se, assim de operações não sujeitas a IVA, pelo que não colhe a tese que vem defendida pela Requerente.

d)     No caso concreto, a faturação é inicialmente efetuada aos hospitais sem qualquer desconto ou abatimento, não se vinculando as empresas aderentes ao Acordo a qualquer anulação ou redução de preços. 

e)     As notas de crédito posteriormente emitidas e que aqui estão em causa referem-se à contribuição financeira, que é contratualmente estabelecida com a indústria farmacêutica, calculada segundo regras que remetem e que vêm previstas no regime da CEIF. Evidenciando que as empresas do sector em causa (indústria farmacêutica) ficam sujeitas à CEIF ou, caso adiram ao referido Acordo, nos termos aí estabelecidos, à dita contribuição financeira.

f)      No que respeita ao Acordo, entende a Requerida que não estamos em presença de uma comparticipação no preço dos medicamentos, mas sim de uma verdadeira contribuição financeira genérica por um determinado setor de atividade, que tem por objetivo diminuir a despesa do Estado com medicamentos e, por essa via, permite-lhe assegurar a continuação da prestação dos serviços de saúde de que é responsável.

g)     Concluindo que a transferência bancária a favor da ACSS, assim como as notas de crédito, são meios alternativos de pagamento da contribuição do ACORDO, sendo determinante para o efeito, a existência ou não de dívidas vencidas e não pagas aos fornecedores de medicamentos. Considerando que fica demonstrado que as notas de crédito cujo IVA é objeto de correção não se consubstanciam num desconto no preço dos medicamentos anteriormente faturados, mas sim no cumprimento de uma obrigação a que o contribuinte está sujeito.

h)     A Requerida considera que as notas de crédito emitidas não são mais do que um recibo de quitação face aos montantes em dívida e por essa via objeto de pagamento, operando-se no fundo um “encontro de contas”, e não, como refere a Requerente, uma redução do valor tributável das operações ativas, por via dum abatimento ou desconto sobre o montante da faturação anteriormente emitida sobre o qual liquidou IVA.

i)      Para a Requerida o que está aqui em causa é uma contribuição financeira que incide sobre todo o sector farmacêutico, contribuição essa que não se limita à redução da despesa com medicamento, conferindo também vantagens às empresas que se encontram obrigadas ao seu pagamento (vide Cláusulas 9.ª e 10.ª do referido Acordo, intituladas “Redução de custos administrativos e sustentabilidade da cadeia do medicamento” e “Estabilidade legislativa e administrativa”).

j)      Defendendo que a contribuição efetuada pela Requerente ao Estado não possui qualquer nexo de causalidade com o preço dos medicamentos anteriormente vendidos.

k)     Concluindo que o presente pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente por não provado, com todas as consequências legais, nomeadamente, a absolvição da Requerida do pedido.

l)      Requerendo ainda a Requerida por dever de cautela a suspensão dos presentes autos  para reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE.

 

III. Saneamento

O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regulamente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O PPA é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, contado a partir do termo do prazo para pagamento voluntário dos atos de liquidação impugnados (petição apresentada em 28 de março de 2025, sendo a data-limite de pagamento das liquidações 25 de fevereiro de 2025), conforme remissão da citada norma para o disposto no artigo 102.º do CPPT.O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas exceções, pelo que não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

IV. Matéria de Facto

IV.1. Factos Dados com Provados

Com interesse para a decisão deram-se por provados os seguintes factos:

a)      A Requerente é um sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal mensal de tributação, que desenvolve a sua atividade económica no setor farmacêutico, comercializando produtos farmacêuticos, químicos e farmacêuticos e produtos fitossanitários, integrando o Grupo Multinacional B... com sede em ... Alemanha (Cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA).

b)      A Requerente comercializa os seus produtos farmacêuticos maioritariamente junto de hospitais que integram o Sistema Nacional de Saúde (SNS) (Cfr. docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA).

c)     A Requerente é uma empresa associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica  - APIFARMA (Cfr. docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA).

d)     No âmbito da sua atividade, a Requerente aderiu ao Acordo celebrado em 2016 entre o Estado Português e a APIFARMA  – (Cfr. doc n.º 2 junto ao PPA).

e)     A Requerente renovou a sua adesão ao Acordo celebrado entre o Estado Português e a APIFARMA  nos anos de 2021 e 2022 - (Cfr. Docs. nº.s 3 e 4 juntos ao PPA).

f)      Ao abrigo da cláusula 5.ª do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA e da declaração de adesão, a Requerente concretizou a sua Contribuição trimestralmente na proporção da quota de mercado do ano anterior, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS que compensam ou liquidam as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades (Cfr. docs. nºs 2, 5 e 6 juntos ao PPA).

g)     Por referência aos períodos de tributação de fevereiro, setembro, novembro e dezembro de 2021 e março, outubro e novembro de 2022, ao abrigo do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA, a Requerente emitiu notas de crédito que identificam os medicamentos anteriormente vendidos e respetivo valor que é creditado/abatido (Cfr. docs. nº.s 5 e 6 juntos ao PPA).

h)     A Requerente emitiu em fevereiro, setembro, novembro e dezembro de 2021 notas de crédito nos montantes, respetivamente, de respetivamente, de € 507.056,03, € 1.192.930,92, € 658.247,35 e € 1.709.073,54 (com IVA incluído) e regularizou a seu favor o imposto que mencionou nas mesmas, no montante total de € 230.631,45 (cfr. RIT ano de 2021 – doc. nº. 5 junto ao PPA):

i)      A Requerente emitiu em março, outubro e novembro de 2022, notas de crédito nos montantes, respetivamente, de € 326.521,89, € 28.866,93, e € 1.222.226,27 (com IVA incluído) e regularizou a seu favor o imposto que mencionou nas mesmas, no montante total de € 89.369,97 (cfr. RIT ano de 2022 – doc. nº. 6 junto ao PPA).

j)      Ao abrigo das Ordens de Serviço nºs OI2024... e OI2024..., a Requerente foi alvo de duas inspeções tributárias de âmbito parcial e natureza interna, incidentes sobre os anos de 2021 e 2022, das quais resultaram, correções em sede de IVA nos montantes de € 230.631,45 e € 89.369,97 respetivamente para cada um daqueles anos, referentes a imposto alegadamente indevidamente regularizado a favor da Requerente, relevado no campo 40 das 4 declarações periódicas de fevereiro, setembro, novembro e dezembro de 2021 e de março, outubro e novembro de 2022 (Cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA).

k)     Nas inspeções tributárias foram elaborados Relatórios de Inspeção Tributários (RIT) (doc. nº5 e 6 junto ao PPA), cujo teor se dá como reproduzido em que se refere além do mais:

Correção ao Imposto – IVA

(...)

4.1 Caracterização jurídica da CEIF

A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2015, criou no seu artigo 168.º, o regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), com o objetivo de garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, na vertente dos gastos com medicamentos. São sujeitos passivos desta contribuição, as entidades que procedem à primeira alienação em território nacional de medicamentos (titulares de autorização ou registo, de introdução no mercado, ou seus representantes ,intermediários, distribuidores por grosso ou apenas comercializadores de medicamentos) - artigo 2.º do regime. A base tributável da contribuição é obtida a partir do total das vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre (n.º 1 do artigo 3.º do regime), abatida das despesas de investigação e desenvolvimento (n.º 4 do mesmo artigo) desde que realizadas em território nacional e devidas e pagas a contribuintes portugueses. Contudo, nos termos do art.º 5.º deste regime (“Acordo para sustentabilidade do SNS”), ficam isentas da CEIF as entidades que aderiram ao Acordo celebrado entre o Estado e a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA). De facto, pode ler-se no n.º 2 deste artigo que: “Ficam isentas de contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP”. Finalmente, e não menos importante para a sua caracterização, o diploma da CEIF prevê que “a receita obtida com a contribuição é consignada ao Serviço Nacional de Saúde, gerido pela ACSS. I.P. constituindo sua receita própria.” (ver artigo 10.º da CEIF). Para qualificar a natureza jurídica da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica vejamos os enquadramentos jurídicos mais consolidados ao nível da nossa jurisprudência, produzidos para as outras contribuições criadas para outros setores de atividade, como sejam a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) e a Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB). A CSB foi criada pelo Orçamento do Estado para 2011 e teve como propósito fazer contribuir o setor financeiro de uma forma mais intensa para o esforço de consolidação das contas públicas e de prevenir riscos sistémicos, protegendo também, assim, os trabalhadores do setor. A circunstância de as receitas provenientes da CSB serem consignadas ao Fundo de Resolução, o qual tem por objetivo prestar apoio financeiro ao setor e prevenir os riscos sistémicos associados, reforça a ideia de que a contribuição visou atenuar as consequências resultantes da intervenção pública no setor financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo setor, não se destinando a mesma a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado. Tratando-se de um tributo que, interessando a um grupo homogêneo de destinatários e visando prevenir riscos associados a este grupo, pretende compensar uma eventual intervenção pública na resolução de dificuldades financeiras das entidades desse setor, conclui-se que o mesmo reveste a natureza de uma contribuição financeira. Paralelamente, a contribuição para o setor energético (CESE), criada pelo orçamento do Estado de 2014, é igualmente tida como uma contribuição que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético”. regime jurídico da CESE consignou a sua receita a um fundo, o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) que tem a natureza de um património autónomo, significando isso que tal receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais.

Assim, ainda que não estejamos em presença de uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético. A existência destas presumidas contraprestações, que a criação do fundo garante, assegura também o carácter bilateral da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto. Por todas estas razões, considerou o Tribunal Constitucional2, que a CESE não pode ela também deixar de assumir as características de uma contribuição financeira. Da mesma forma e no respetivo contexto a que se destina, o regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), teve como objetivo principal, garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, na vertente dos gastos com medicamentos. Os sujeitos passivos desta contribuição são um grupo específico de produtores e comercializadores da indústria farmacêutica, sendo o seu valor obtido mediante a aplicação de uma determinada taxa sobre o volume de vendas medicamentos para o SNS abatida das despesas de investigação e desenvolvimento. Está também previsto no regime da CEIF que a sua receita seja consignada, não a um fundo autónomo, mas ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) por intermédio da ACSS IP SA (artigo 10.º da CEIF), significando isso que essa receita não pode ser desviada para o financiamento de outras despesas públicas gerais que não sejam as despesas com medicamentos utilizados no SNS. Face às características deste tributo podemos afirmar, por um lado, que existe um benefício, embora indireto, ou seja uma eventual contraprestação (o que o afasta da qualificação de taxa), pelo facto de esta receita promover a sustentabilidade do SNS. Por outro lado, dado que a mesma se encontra consignada à satisfação de necessidades financeiras associadas ao SNS (e assim à liquidação das dívidas vencidas e não pagas aos fornecedores de medicamentos) e não a uma indiscriminada despesa pública (para a satisfação de outras necessidades públicas), este tributo afasta-se da noção de imposto. Da conjugação destes elementos que classificam este tributo que incide sobre a indústria farmacêutica, podemos aqui também concluir que a CEIF assume a natureza jurídica de uma contribuição financeira. À mesma conclusão chegou o Centro de Arbitragem Administrativa no processo n.º 706/2018T, quando afirma que “o que têm de comum estas contribuições” (CESE e CEIF) “por confronto com a contribuição sobre o setor financeiro, é que se trata de contribuições financeiras”.

(…)

Enquadramento jurídico-tributário da contribuição constante do Acordo

Encontra-se estipulado no Acordo assinado entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica (APIFARMA), assim como na declaração de adesão e comunicados efetuados pela APIFARMA aos seus associados (ver anexo 8) que o pagamento da contribuição se realiza de duas formas alternativas:

 Emissão de nota de crédito no montante da contribuição apurada (proporcionalmente ao valor faturado a cada entidade do SNS no período objeto de pagamento) contra a liquidação de faturas (emitidas ao SNS) não pagas e vencidas por critério de antiguidade;

 Pagamento por transferência bancária a favor da ACSS da contribuição apurada, no caso do valor das faturas não pagas e vencidas ser inferior ao valor da contribuição.

Assim, só no caso do valor das faturas emitidas ao SNS que se encontram em dívida para a empresa aderente ser inferior ao valor apurado para efeitos de contribuição, se verificará um fluxo financeiro de saída, da empresa aderente para a ACSS e consequentemente um recebimento efetivo por parte desta entidade a título de contribuição no âmbito do Acordo. Caso contrário, apenas se verifica uma diminuição da dívida do SNS para com a empresa aderente em valor equivalente ao da contribuição por via do efeito da emissão das notas de crédito.

Quer isto dizer que, com base no acordo, a A... em vez de entregar ao Estado o quantitativo a que está obrigada, vai receber menos esse montante por parte dos seus clientes (hospitais do SNS). Como está bem claro no Acordo a forma de pagamento não consubstancia qualquer desconto relativamente a vendas efetuadas anteriormente Os efeitos obtidos pelo Estado são equivalentes em termos de resultado final (quer sejam emitidas notas de crédito quer haja pagamentos efetivos): no primeiro caso, diminui o saldo da dívida do SNS em medicamentos; no segundo caso, o montante em dinheiro recebido permitirá fazer face aos compromissos financeiros do SNS, ou seja, com grande probabilidade, solver dívidas dos fornecedores de medicamentos. Em ambos os casos, o objetivo de melhorar a sustentabilidade financeira e orçamental do SNS é atingido, assim como se espera também que o impacto económico e financeiro nas empresas aderentes sejaequivalente. Se assim não fosse, ou seja, se o resultado económico não fosse igual para ambos os casos (menos recebimento = não pagamento), violar-se-iam os princípios da equivalência e da igualdade subjacentes ao pagamento da contribuição a favor do Estado, entre aderentes ao Acordo consoante esses tivessem créditos vencidos ou não ao SNS. Para que essa desigualdade não aconteça, a nota de crédito deve funcionar apenas e tão só como um documento de quitação dos créditos não pagos e vencidos, e não como um documento de desconto do valor da faturação anteriormente emitida. Em concreto, o que se verifica é uma liquidação das faturas mais antigas em dívida e não uma retificação do valor tributável das mesmas, ou seja, o pagamento da contribuição por parte da A... concretiza-se através do não recebimento dos valores faturados mais antigos, vencidos e não pagos. Como já se referiu, a forma de cálculo da contribuição de cada aderente baseia-se no volume de vendas de medicamentos que esse realizou no período (trimestre) correspondente ao período de pagamento da contribuição. Refira-se novamente que, através da emissão das notas de crédito, a A... apenas liquida uma parte dos créditos em dívida por parte do SNS em montante igual ao valor da contribuição que teria de entregar ao Estado (caso não estivesse no Acordo). Ora esta situação não se enquadra nas situações previstas no n.º 7 do artigo 29.º do CIVA em conjugação com o nº2 do artigo 78.º do mesmo diploma, pois, em termos práticos, a operação de pagamento da contribuição não se consubstancia num abatimento ou desconto sobre o valor das suas vendas uma vez que não se verifica uma diminuição do valor tributável das operações ativas anteriormente realizadas conforme previsto no artigo 16.º do CIVA. O valor da faturação anteriormente realizada ao SNS e sobre a qual o sujeito passivo liquidou o respetivo IVA, não sofreu qualquer diminuição, apenas foi objeto de liquidação financeira por  parte do SNS através do mecanismo da emissão de um crédito em seu favor, a título de contribuição financeira (leia-se a título de substituição da CEIF – contribuição a que a A...  está sujeita, face à atividade exercida). A emissão destas notas de crédito traduz o pagamento da contribuição financeira a que a A... está obrigada e como tal nunca poderão dar lugar à regularização de IVA, por parte do fornecedor, pois não tem enquadramento nas situações previstas no artigo 78.º ou em qualquer outro artigo do Código do IVA. A situação em que o credor prescinde do recebimento da contraprestação, em substituição de um não pagamento, não é uma situação em que tenha havido uma alteração do valor tributável da operação que ocorreu anteriormente, tal como se verificaria se estivéssemos perante um desconto ou devolução dos produtos anteriormente faturados. Também não se trata de um caso de incobrabilidade do valor faturado por um dos processos referidos no artigo 78.º n.º 7 ou no n.º 4 do artigo 78.º-A, ambos do CIVA. É a própria forma de apuramento da contribuição financeira em favor do SNS que, como já foi referido, segue a metodologia preconizada na CEIF, a qual determina que a sua base tributável incide sobre o total das vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre, sendo que esse valor de venda “corresponde à parte do preço de venda ao público, deduzido do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).” (alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do regime da CEIF). Ora, se a contribuição financeira a liquidar ao ACSS se materializa em meios monetários, sendo por isso uma operação excluída da sujeição a IVA, então, forçosamente a nota de crédito que a concretiza não tem enquadramento em sede deste imposto. A emissão de nota de crédito aqui em crise é equivalente, em termos de produção de efeitos, a uma entrega em dinheiro por parte da A... ao Estado, tal como o faria se pagasse a CEIF. A acontecer a sua emissão, não pode a mesma ser objeto de liquidação de IVA dada a natureza da operação que lhe está subjacente: “Contribuição a realizar no âmbito do acordo Governo-APIFARMA 2021” (leia-se contribuição financeira devida pelo acordo de 2021”) (ver anexos 9 a 11) e “Fecho de Contas” – acordo Governo-APIFARMA 2019” (ver anexo 12). Tal acontece porque a contribuição em questão não tem enquadramento nesse imposto por se encontrar fora do âmbito da sua aplicação. O Código do IVA, no seu artigo 1.º, n.º 1, sujeita a imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal. Para aferir da sujeição a imposto das operações, importa verificar se estão reunidas as condições objetivas e subjetivas da incidência do imposto sobre o valor acrescentado. No caso em apreço, a operação de pagamento da contribuição teria de se qualificar como prestação de serviços ou de uma entrega de bens a título oneroso e ser efetuada por um sujeito passivo agindo como tal. Dado que a contribuição financeira prevista pelo Acordo não configura a contrapartida de um valor individualizável prestado pela ACSS por intermédio das entidades do SNS às empresas da indústria farmacêutica em relação às quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, está obviamente ausente o elemento objetivo que compõe o âmbito de incidência do IVA4. Neste sentido tem-se pronunciado o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), delimitando perante prestações de serviços para efeitos de IVA, que os montantes entregues constituam uma contrapartida efetiva de um serviço individualizável, fornecido no âmbito de uma relação jurídica em que sejam trocadas prestações recíprocas.

É o caso do acórdão Apple & Pear (processo n.º 102/86 do TJUE) onde estava em causa um organismo de direito público, o Apple & Pear Development Concil, que tinha por missão promover a produção de pêra e maçã de Inglaterra e País de Gales e cuja atividade era financiada por contribuições obrigatórias, devidas pelos produtores em função da área de cultivo. O TJUE entendeu não ser tributável a atividade levada a cabo pelo Apple & Pear Development Concil e isto por duas razões 

mostra-se impossível identificar o beneficiário concreto do serviço prestado pela entidade pública por ter uma atividade difusa que aproveita a todo o setor.

falta uma relação clara entre as contribuições devidas pelos produtores e as vantagens que aqueles serviços de promoção lhes possam trazer.

Sérgio Vasques de entre toda a jurisprudência comunitária existente sobre esta matéria, dá uma ênfase especial a este acórdão. Sobre esta temática, no processo C-13/93, caso Tolsma, o TJUE só considera que uma prestação de serviço é efetuada a título oneroso, e assim sujeita a IVA, “se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são transacionadas prestações recíprocas constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo fornecido ao beneficiário.” Uma mera transferência financeira entre uma pessoa coletiva de direito público e uma entidade de direito privado, por conta de um protocolo que pretende garantir a sustentabilidade financeira do SNS, constitui uma atividade fora do campo de incidência do imposto, pois não configura uma contraprestação de uma prestação de serviço ou de uma entrega de bens. Assim, sendo a contribuição financeira/entrega de meio monetários pelos aderentes ao Acordo à entidade pública que centraliza as operações financeiras do SNS, a ACSS, não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, tratando-se, por conseguinte, de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto. Os movimentos contabilísticos, já referidos no ponto anterior, efetuados pela A..., permitiram que esta empresa efetuasse sob a forma de IVA, a recuperação do valor a que está obrigada a entregar ao Estado em termos de CEIF (leia-se no caso em concreto: contribuição estipulada no Acordo).

6. Conclusão

Em 2015 entrou em vigor a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), cujo principal objetivo é o de garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, na vertente dos gastos com medicamentos. A CEIF resulta da aplicação de uma determinada taxa sobre o volume de vendas de medicamentos para o SNS  e incide sobre um grupo específico de produtores e comercializadores da indústria farmacêutica. Paralelamente à existência da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), em 2016 (à semelhança do que se verificou em anos anteriores desde 2012), foi assinado um Acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde e a Indústria Farmacêutica que visa contribuir para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). As empresas que aderiram a esse Acordo, através da APIFARMA, comprometem-se a colaborar para atingir os objetivos orçamentais anuais de despesa pública com medicamentos em ambulatório e hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, com vista a garantir a sustentabilidade do SNS. À semelhança da CEIF, esta contribuição tem a natureza jurídica de contribuição financeira, uma vez que existe um benefício na sua aplicação - a receita vai permitir a sustentabilidade do SNS. Além disso, permite que as necessidades financeiras associadas ao SNS sejam satisfeitas junto dos produtores e comercializadores da indústria farmacêutica (liquidação das dívidas vencidas e não pagas a estes fornecedores de medicamentos). Neste âmbito, a APIFARMA tem como função comunicar às empresas aderentes as respetivas contribuições a pagar trimestralmente, conforme estabelecido no Acordo e no Anexo de adesão, sendo essa contribuição calculada com base na classificação dos medicamentos e nos valores do SNS. Tanto a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica como os Acordos estabelecidos entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica têm como objetivo comum garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS), baixando a despesa pública em medicamentos. Deste modo, tanto as empresas que pagam Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica como as empresas que, em alternativa, aderirem aos Acordos devem contribuir de uma forma equitativa, face às vendas

que efetuaram, para a sustentabilidade orçamental e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na legislação que aprovou a CEIF existe uma norma que isenta do seu pagamento as empresas aderentes aos Acordos, mas os Acordos fazem remissão para o Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, relativamente à repartição e apuramento da contribuição pelos aderentes. Isto é, nenhuma empresa que reúna as condições de obrigatoriedade de contribuir para o SNS pode deixar de o fazer. As empresas que efetuam a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica e as empresas aderentes aos Acordos e contratos de Adesão, apuram de forma idêntica a contribuição que têm de efetuar, sendo que a liquidação e pagamento se processam de forma diferente. Como está em causa o pagamento de um tributo, não se verifica, a redução de preço prevista no artigo. 90º, nº 1, da Diretiva IVA e no artigo 78º, nº 2, do CIVA. Assim o pagamento em causa consubstancia o cumprimento duma obrigação no âmbito de relação jurídico-tributária e não no âmbito de relação jurídica de direito privado sobre que incide o IVA.

(….)

Conclui-se assim que a empresa deduz / regulariza indevidamente IVA a seu favor, infringindo os artigos 19º e 20.º do Código do IVA, uma vez que a contribuição financeira devida pelos aderentes ao Acordo, não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, tratando-se de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto.

l)      Em concretização das referidas correções, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA n.os 2025 ..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025 ... e 2025..., respetivamente dos períodos de 2021/02, 2021/09, 2021/11, 2021/12, 2022/03, 2022/10 e 2022/11, no montante de 
€ 320.002,24  e respetivas liquidações de juros compensatórios n.os 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., no montante de € 34.955,71 (Cfr. Doc. 1 junto com o PPA).

m)    Dentro do respetivo prazo, a Requerente procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, no montante total de 
€ 354.957,95 (Cfr. Doc. 7 junto com o PPA).

 

IV.2. Factos que não se consideram provados

Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

IV.3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada

 

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo Requerente, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigos 596.º, n.º 1, e 607.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição, factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes alegaram (cf. artigos 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA, 5.º, n.º 2, e 411.º do CPC).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência de vida e conhecimento das pessoas (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial,  que só possam ser provados por documentos, e que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

V. Questão a Decidir

questão decidenda prende-se com aferir se o pagamento da contribuição financeira devida pela Requerente ao abrigo da Adesão ao Acordo APIFARMA, mediante a emissão de notas de crédito às entidades do SNS suas devedoras, constitui ou não uma redução do valor tributável em IVA permitindo a regularização a favor do sujeito passivo nos termos dos artigos 29º nº7, e 78º nºs1 e 2 do CIVA. 

 

VI. Do Direito

VI.1 Do Direito à Regularização do IVA

No caso sub Júdice a Requerente considera ter direito à regularização do IVA por entender que as notas de crédito emitidas à luz do Acordo APIFARMA consubstanciam uma redução do valor tributável das faturas emitidas na estrita observância do princípio da neutralidade, trazendo em suporte da sua posição o artigo 90º da Diretiva IVA e o artigo 78º do CIVA, bem como a jurisprudência dos acórdãos do TJUE  C-717/19 (“Boehringer II”); C-248/23 (“Novo Nordisk A/S”).

Em sentido oposto a Requerida entende que as notas de crédito emitidas à luz do Acordo APIFARMA consubstanciam uma forma de pagamento de uma contribuição financeira CEIF, a que o contribuinte está obrigado e não desconto no preço dos medicamentos anteriormente faturados, não tendo assim direito à regularização do IVA.

A Lei 82-B/2014, de 31 de dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2015, estabeleceu no artigo 168.º a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica o qual estabelece:

Artigo 2.º - Incidência subjetiva

Estão sujeitas à contribuição as entidades que procedam à primeira alienação a título oneroso, em território nacional, de medicamentos de uso humano, sejam elas titulares de autorização, ou registo, de introdução no mercado, ou seus representantes, intermediários, distribuidores por grosso ou apenas comercializadores de medicamentos ao abrigo de autorização de utilização excecional, ou de autorização excecional, de medicamentos.

Artigo 5.º - Acordo para sustentabilidade do SNS

1 - Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.

2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.

3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.

4 - O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P

Sob o enquadramento da norma supra citada o Estado português celebrou acordo com a APIFARMA, com vista à sustentabilidade do SNS, o qual em termos jurídicos reveste a natureza de contrato administrativo (vide acórdão do Supremo Tribunal Administrativo processo n.º 0819/19.9BESNT), tendo este sido sucessivamente renovado, em relação ao qual a Requerente é parte por adesão ao mesmo.

O Acordo APIFARMA estabelece:

Cláusula 1.ª - Objecto

1. O presente Acordo regula os termos e as condições em que o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde, por um lado, e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, por outro lado, mediante a adesão das empresas da Indústria Farmacêutica, nos termos previstos na cláusula 4ª, se comprometem a colaborar para atingir os objectivos orçamentais para o ano de 2016 de despesa pública com medicamentos em ambulatório, incluindo subsistemas, e hospitalar do Serviço Nacional de Saúde (doravante SNS) com vista a garantir a sustentabilidade do SNS.

Cláusula 3.ª - Contribuição financeira da Indústria Farmacêutica relativa ao ano de 2016

1. A Indústria Farmacêutica, num esforço de cooperação com o Estado Português, aceita colaborar numa contribuição para o controlo da despesa pública com medicamentos no ano de 2016 mediante uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros.

Cláusula 3.ª - Contribuição financeira da Indústria Farmacêutica relativa ao ano de 2016

1. A Indústria Farmacêutica, num esforço de cooperação com o Estado Português, aceita colaborar numa contribuição para o controlo da despesa pública com medicamentos no ano de 2016 mediante uma contribuição financeira no valor de 200 milhões de euros

Cláusula 5.ª

Prazos para regularização da contribuição da Indústria Farmacêutica relativa ao ano de 2016

1. As empresas aderentes ao presente Acordo comprometem-se, na proporção da respectiva quota de mercado em 2016, a proceder ao pagamento de:

a) 30% do valor que resulta da aplicação da Cláusula 3.ª, n.º 2, em notas de crédito aos hospitais e/ou em pagamento à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., (doravante ACSS, I.P.) até 15 de Abril de 2016. A contribuição a efectuar resulta dos valores da facturação de cada empresa aderente no âmbito do SNS no ano de 2015.

b) 20% do valor que resulta da aplicação da Cláusula 3.ª, n.º 2, em notas de crédito aos hospitais e/ou em pagamento à ACSS, I.P., até 30 de Junho de 2016. A contribuição a efectuar resulta da proporção da facturação de cada empresa aderente no âmbito do SNS de 1 de Janeiro a 31 de Março de 2016.

c) 30% do valor que resulta da aplicação da Cláusula 3.ª, n.º 2, em notas de crédito aos hospitais e/ou em pagamento à ACSS, I.P., até 30 de Setembro de 2016. A contribuição a efectuar resulta dos valores da facturação de cada empresa aderente no âmbito do SNS de 1 de Janeiro a 30 de Junho de 2016.

d) 20% do valor que resulta da aplicação da Cláusula 3.ª, n.º 2, em notas de crédito aos hospitais e/ou em pagamento à ACSS, I.P., até 31 de Dezembro de 2016. A contribuição a efectuar resulta dos valores da facturação de cada empresa aderente no âmbito do SNS de 1 de Janeiro a 30 de Setembro de 2016.

Por via do artigo 2º do Regime da Contribuição Extraordinária sob a Indústria Farmacêutica (RCEIF)  a Requerente está sujeita à CEIF.

Todavia, por força dos nºs 2 e 3º do RCEIF:

2 - Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.

3 - A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.

Decorre assim da referida norma que o ato jurídico de adesão ao contrato administrativo, como é o caso do Acordo APIFARMA, consubstancia o preenchimento jurídico tributário de uma isenção da CEIF. Como Refere Alberto Xavier “a isenção tem a natureza a natureza jurídica de um facto impeditivo autónomo e originário pelo que é certo que a isenção se configura como facto impeditivo quanto à constituição da obrigação tributária[1].

Assim sendo, por força da isenção dos nºs 2 e 3 do RCEIF, a Requerente ainda que legalmente sujeita à CIEF, não é tributada por esta, ficando ao invés obrigada ao cumprimento das obrigações e deveres estabelecidos no Acordo APIFARMA de que é parte, via adesão voluntária.

Nestes termos, ao contrário do defendido pela Requerida a prestação efetuada ao abrigo do Acordo APIFARMA, não tem natureza tributária, nem constitui um mecanismo alternativo de pagamento da CEIF na justa medida que a CEIF e o Acordo APIFARMA são juridicamente realidades distintas.

A CEIF é uma prestação tributária nos termos do nº 3 do artigo 4º da LGT, enquanto o Acordo APIFARMA é um contrato administrativo.

Vide nesse sentido decisão arbitral processo n.º 216/2023-T que refere:

“Ademais, a contribuição extraordinária criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 não incide sobre a despesa incorrida pelo SNS com a aquisição ou comparticipação dos medicamentos, mas sobre o valor total das vendas realizadas pelas empresas, abrangendo, portanto, todos os medicamentos colocados no canal de distribuição e não apenas aqueles que sejam adquiridos pelas entidades que fazem parte do SNS. Mais, no que concerne ao Acordo B... em vigor no biénio 2016-2018, ficou previsto que as empresas podem deduzir ao montante das contribuições voluntárias as suas despesas de investigação e desenvolvimento, bem como os investimentos associados aos procedimentos de combate aos medicamentos falsificados e os investimentos industriais de reforço da base produtiva, despesas estas que não são dedutíveis à Contribuição Extraordinária. Também as regras de liquidação e pagamento da Contribuição Extraordinária seguem um regime muito distinto das contribuições voluntárias: enquanto a primeira é autoliquidada pelos sujeitos passivos através da submissão da Declaração Modelo 28, devendo o pagamento fazer-se no mesmo período da entrega da declaração, através da referência de pagamento gerada após a submissão da mesma, o pagamento realizado ao abrigo do Acordo é feito mediante a emissão de notas de crédito ou por transferência bancária realizada a favor da ACSS, I.P., não existindo qualquer intervenção da Autoridade Tributária na sua liquidação. Para além do mais, enquanto no regime da CEIF se prevê a consignação da receita ao SNS, no regime do Acordo B..., há uma efetiva diminuição do valor tributável da operação e uma redução do montante em dívida pelas entidades do SNS adquirentes dos fármaco.

De onde se retira que os dois regimes são substantivamente distintos, não podendo o pagamento realizado ao abrigo dos Acordos B... ser equiparado ao pagamento de um tributo de natureza tributária.

Ademais, não se olvide que é o próprio regime da CEIF que expressamente prevê uma norma de isenção, no seu artigo 5.º, n.º 2, aplicável às entidades que adiram ao Acordo B... , individualmente e sem reservas. Efetivamente, é indiscutível que a letra do artigo 5.º, n.º 2 do Regime da CEIF afasta expressamente a aplicação do regime da CEIF – enquanto prestação de natureza tributária – às entidades que tenham aderido ao Acordo B... . De todo o exposto, resulta cristalinamente que não é irrelevante se o pagamento é feito ao abrigo do Regime da CEIF, ou nos termos dos Acordos B..., nem tão pouco é irrelevante qual o método de pagamento escolhido pelas entidades aderentes, ao abrigo deste último, uma vez que se trata de regimes substantivamente diferentes, com implicações distintas, não existindo quaisquer indícios de que o legislador pretendia que assim não fosse.

(…)

E, de acordo com o elemento literal, resulta que o legislador, ao criar a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não pretendeu que a mesma substituísse as disposições do Acordo B... em vigor. Contrariamente ao defendido pela Requerida, do teor literal dos regimes não se extrai que o custo para as entidades sujeitas à Contribuição Extraordinária tenha, ou deva, ser semelhante ao custo suportado pelas entidades aderentes ao Acordo B... . Pelo contrário, resulta notoriamente da letra de ambos os regimes que estes são distintos, prevendo métodos de apuramento do montante a pagar, e meios de pagamento, diferenciados.”

Bem como a decisão arbitral nº 644/2024-T que refere:

“1. O regime decorrente dos Acordos APIFARMA e o regime decorrente da CEIF constituem regimes distintos e não-equiparáveis, já que a Requerente, quando cumpre a contribuição financeira, fá-lo ao abrigo de um contrato administrativo ao qual aderiu e numa situação em que a obrigação tributária, advinda da CEIF, não chegou a constituir-se, por força de isenção.

2. A contribuição financeira prestada pela Requerente, ao abrigo do acordo APIFARMA, não tem natureza tributária e não constitui um mero modo diverso de pagamento da CEIF.”

Fixando assim este Tribunal a dessemelhança jurídica entre a CIEF e o Acordo APIFARMA, há que verificar se com a emissão das notas de crédito existe o direito à regularização de IVA, por força das normas vigentes e do princípio da neutralidade.

A Requerente concretiza a prestação a que está obrigada na cláusula 5.ª do Acordo APIFARMA na emissão de notas de crédito em benefício de entidades do SNS e que compensam ou liquidam as faturas mais antigas anteriormente emitidas.

Neste sentido há que apreciar se as notas de crédito emitidas pela Requerente podem ser qualificadas como uma redução de valor tributável em IVA, que de resulte o direito à dedução do imposto, no sentido do cumprimento do princípio da neutralidade.

Para o efeito devemos convocar os artigos 79º e 90º da Diretiva IVA e os artigos 16º, 29º e 78º CIVA, que estabelecem:

Artigo 79º da Diretiva IVA:

O valor tributável não inclui os seguintes elementos:

a) As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado;

 b) Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza; 

c) As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efetuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.

 

Artigo 90º da Diretiva IVA:

1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.

 

Artigo 16.º do CIVA - Valor tributável nas operações internas

1 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro. 

6 - Do valor tributável referido no número anterior são excluídos:

b) Os descontos, abatimentos e bónus concedidos;

Artigo 29.º do CIVA - Obrigações em geral

7 - Quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura.

Artigo 78.º do CIVA - Regularizações

2 - Se, depois de efetuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efetuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.

O mecanismo de regularização de IVA surge como uma peça crucial da arquitetura jurídica do método subtrativo indireto, garantindo um maior grau de exatidão do exercício da dedução de IVA na construção de um tributo que se pretende neutral. 

Sérgio Vasques refere: “Nos termos do artigo 79.º da Directiva IVA, o valor tributável exclui as reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado. Esta regra constitui mera projecção do princípio geral a que está subordinada no IVA a fixação do valor tributável: o IVA incide sobre o valor efectivo das operações tributáveis, pretendendo onerar o gasto real feito com a aquisição de bens e serviços, pelo que toda a redução de preço de que o adquirente beneficie deve ser expurgada do valor tributável, deva-se essa redução de preço à realização de pagamento antecipado ou a qualquer outro motivo. Em suma, o preço-alvo almejado pelo operador económico é irrelevante, só relevando o preço real.

É neste preciso sentido que o artigo 79° exclui do valor tributável os abatimentos e bónus que sejam concedidos ao adquirente no momento em que a se realize uma operação. 

Com esta norma, mais ampla, pretende-se abranger toda a redução de preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, qualquer que seja a sua forma ou designação. Intuitiva no que tem de mais importante, esta norma serve para distinguir entre as reduções do preço feitas até à realização da operação tributável e as reduções de preço que ocorram em momento posterior. Se a redução do preço é feita até ao momento em que se realiza a operação, expurga-se a redução do valor tributável nos termos do artigo 79%; já se a redução se produz em momento posterior, e qualquer que seja a razão para o efeito, manda o artigo 90 que se reduza o valor tributável da operação em conformidade mas agora nas condições fixadas pelos estados-membros.”[2] (o sublinhado é nosso).

 

Nestes termos qualquer redução de preço concedida por qualquer forma, mecanismo ou designação, deve ter reflexo no valor tributável. 

Na situação sub júdice entende o Tribunal Arbitral que a emissão de notas de crédito em resultado do cumprimento do Acordo APIFARMA, determina inequivocamente uma redução do valor tributável, diminuindo o montante da dívida das entidades do SNS. Ocorreu assim por via da emissão das notas de crédito uma redução de preço em momento posterior à operação, que determina no cumprimento do artigo 90º da Diretiva IVA e dos artigos 29º nº7 e 78º nº2 do CIVA a redução do valor tributável.

Vide nesse sentido Decisão Arbitral n.º 216/2023-T:

“Efetivamente, in casu, as associadas da B... aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do Acordo. 

Por obediência ao princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias, no artigo 11.º, n.º 3 da LGT, impõe-se que se dê primazia à verdade material e à substância económica dos factos. 

Razão pela qual, é forçoso concluir pelo direito da Requerente à regularização do IVA contido nas notas de crédito emitidas.”

Entendimento acolhido igualmente nas decisões arbitrais n.ºs 644/2024-T e 1217/2024-T, que concordando perfilhamos.

Paralelamente entendemos ainda não ser de aceitar o argumento da Requerida de não existir uma contrapartida de uma prestação de serviços nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 1º do CIVA. Entende em sentido oposto o Tribunal Arbitral que no caso sub júdice a contrapartida real e final é efetivada posteriormente ao momento da transmissão de bens, por força do ato de adesão ao Acordo APIFARMA, em que se aceita a montante um abatimento potencial, que será concretizado e apurada quantitativamente em momento posterior. Sendo que este abatimento potencial modifica o valor tributável da operação, de que resulta o direito à regularização de IVA nos termos do nº 2 do artigo 78º do CIVA.

 

Em abono desta interpretação vide entre outros o Acórdão do Tribunal e Justiça da União processo  C-462/2016 (Boehringer Ingelheim Pharma GmbH):

32-Em seguida, deve igualmente recordar‑se que o artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, obriga os Estados‑Membros a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a Administração Fiscal não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao que o sujeito passivo recebeu (acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.o 22 e jurisprudência referida).

39.Em segundo lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA não pressupõe uma alteração posterior das relações contratuais, para esta disposição ser aplicável. Com efeito, esta obriga, em princípio, os Estados‑Membros a reduzir o valor tributável, sempre que, depois de efetuada uma operação, o sujeito passivo não receba uma parte ou a totalidade da contraprestação. Além disso, nada indica que, no acórdão de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs (C‑317/94, EU:C:1996:400), o Tribunal tenha querido limitar o âmbito de aplicação do artigo 11.o, C, n.o 1, da Sexta Diretiva, que corresponde ao artigo 90.o da Diretiva IVA. Em contrapartida, resulta dos factos que estão na origem do processo em que este acórdão foi proferido que não se verificou nenhuma alteração das relações contratuais. No entanto, o Tribunal declarou que o artigo 11.o, C, n.o 1, da Sexta Diretiva era aplicável (v., neste sentido, acórdão de 29 de maio de 2001, Freemans, C‑86/99, EU:C:2001:291, n.o 33).”

Bem como o acórdão mais recente, no processo C-719/2019 (Boehringer Ingelheim RCV GmbH):

39. Importa recordar, antes de mais, que o princípio de base do sistema do IVA assenta no facto de o IVA se destinar unicamente a onerar o consumidor final e a ser perfeitamente neutro em relação aos sujeitos passivos que intervêm no processo de produção e de distribuição anterior à fase de tributação final, independentemente do número de transações ocorridas (v., neste sentido, Acórdão de 3 de maio de 2012, Lebara, C‑520/10, EU:C:2012:264, n.o 25).

40. Em virtude do artigo 73.o da Diretiva IVA, o valor tributável compreende, nas entregas de bens e nas prestações de serviços, tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.

41.Resulta do artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, que os Estados‑Membros estão obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, segundo o qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu [Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução do valor tributável), C‑335/19, EU:C:2020:829, n.o 21 e jurisprudência referida]

(…) 65. Nessa hipótese, os princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade exigem que o Estado‑Membro em causa permita que o sujeito passivo demonstre, através de outros meios, perante as autoridades fiscais nacionais, que a operação que dá direito à redução do valor tributável foi efetivamente realizada (v., neste sentido, Acórdão de 26 de janeiro de 2012, Kraft Foods Polska, C‑588/10, EU:C:2012:40, n.o 40). Isto é tanto mais assim quando, como no caso em apreço, a transação em causa foi celebrada com uma entidade estatal.

 

E o Acórdão do Tribunal e Justiça da União processo C-248/23 (Novo Nordisk):

“30. Nos termos do artigo 90.o, n.o 1, da Diretiva IVA, em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, os Estados‑Membros são obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C‑717/19, EU:C:2021:818, n.o 41 e jurisprudência referida).”

Sob este enquadramento jurisprudencial do TJUE mas também das decisões arbitrais n.ºs 216/2023-T, 644/2024-T e 1217/2024-T deve entender-se que uma redução de preço ocorrida após a realização de uma operação tributável, tem como consequência direta a modificação do valor tributável em sentido negativo, dando origem ao direito à regularização do imposto.

Vide neste sentido a decisão do processo arbitral n.º 644/2024-T que refere:

“ Qualquer redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respectivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade e o princípio da igualdade de tratamento, consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre um preço superior ao que é efectivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efective - e seja esta de fonte legal ou contratual.

Assim, entende este Tribunal que o pagamento da contribuição financeira devida pela Requerente ao abrigo da Adesão ao Acordo APIFARMA, mediante a emissão de notas de crédito às entidades do SNS suas devedoras, consubstanciou uma redução do valor tributável em IVA e, em consequência, autoriza a Requerente a regularizar a seu favor o IVA mencionado naquelas notas, no ano a que se referem os actos tributários impugnados.”

Por conseguinte a Requerente, na sequência do pagamento da prestação devida por força do Acordo APIFARMA, sob fórmula de emissão de notas de crédito, reduziu o valor tributável em IVA que determina o direito à regularização do imposto.

Nestes termos, as correções efetuadas pela Requerida decorrentes dos RIT, que justificam as liquidações objeto de litígio enfermam de vicio de violação de lei por violação do artigo 78.º nº.s1 e 2 do CIVA.

Por fim,  em relação à alegada violação do princípio da igualdade e neutralidade, é precisamente a posição da Requerida que gera uma diferenciação arbitrária e não a da Requerente. Isto porque, mesmo no caso da CEIF, ocorrendo a redução da contraprestação a receber pelo sujeito passivo, assiste-lhe, de igual modo, a retificação do valor tributável e do IVA a seu favor relativamente às operações correspondentes.

Nas palavras de Sérgio Vasques: 

À luz da jurisprudência do TJUE, é certo que o princípio da igualdade não tolera uma interpretação do artigo 90º da Directiva IVA que distinga entre dois mecanismos de desconto que, possuindo fonte e conteúdo diferentes, tenham em comum produzir uma redução do preço que o sujeito passivo recebe em transacções idênticas. A esta intuição a AT não terá associado, julgamos, a conclusão mais acertada: o que o princípio da igualdade e a jurisprudência do TJUE nos mostram é que as razões que obrigam a admitir a recuperação do IVA quanto às contribuições voluntárias do Acordo APIFARMA, obrigam também a admiti-la quanto à contribuição extraordinária.”

É neste sentido que se pronuncia o Tribunal de Justiça no acórdão Novo Nordisk, que este Tribunal Arbitral acolhe, pelo que soçobra a alegada violação dos princípios da igualdade e da neutralidade invocados pela AT.

Assim,  o Tribunal Arbitral julga procedente o pedido de anulação das liquidações impugnadas (liquidações de imposto e de juros compensatórias).

A Requerida a título subsidiário apresentou pedido de reenvio a título prejudicial nos termos do artigo 267º do TFUE.

No caso em apreço não se justifica o reenvio a título prejudicial na justa medida que o Tribunal Arbitral não tem qualquer dúvida interpretativa sob as normas jurídicas em análise. Paralelamente também entende que já existe jurisprudência do TJUE (vide processos: C-462/2016; C-717/19 e C-248/23) que permite dar resposta segura à questão controvertida dos autos.

Termos em que se indefere o pedido de reenvio a título prejudicial.

 

VI.2 Dos Juros Indemnizatórios 

A Requerente pede o reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescidos do pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos do disposto nos artigos 43.º da LGT e do n.º 4 do artigo 61.º do CPPT, tudo com as demais consequências legais aplicáveis. 

O direito do sujeito passivo a juros indemnizatórios decorre do dever que recai sobre a AT de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º, n.º 1, da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante. 

Significa isto que, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável à AT de que resulte pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido. 

Ora, atento supra exposto, não pode deixar de se considerar ter havido erro imputável aos serviços por violação de lei - artigo 78º nºs 1 e 2 do CIVA.

Conclui-se, assim, pela procedência da pretensão da Requerente a ser ressarcida através do pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento integral das liquidações adicionais de IVA e juros até à data da emissão da nota de crédito, nos termos do artigo 43 nº1 LGT e do artigo 61.º, n.ºs 2 a 5, do CPPT.

 

VII. Decisão

Termos em que se decide julgar procedente o PPA e em consequência:

a)     Declarar ilegais e determinar a anulação dos atos de liquidação adicional de IVA n.os 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025... e 2025..., no montante de 320.002,24 EUR, e respetivas liquidações de juros compensatórios n.os 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., 2025..., no montante de 34.955,71 EUR, perfazendo o total de 354.957,95.

b)     Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante pago ilegalmente.

c)     Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados desde o pagamento do imposto pela Requerente, até ao seu integral reembolso pela Requerida à taxa legal em vigor.

d)     Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VIII. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 354.957,95 (trezentos e cinquenta e quatro euros e noventa e cinco cêntimos) nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

IX. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.120,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos processos de Arbitragem Tributária.

Dado que o PPA foi julgado procedente são as custas decorrentes do presente processo arbitral a cargo na totalidade à Requerida.

 

Lisboa, 13 de outubro de 2025

Os Árbitros

 

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(Alexandra Coelho Martins – Presidente)

 

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( Catarina Belim – Adjunto)

 

 

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(António Cipriano da Silva, Adjunto e Relator)

 



[1] Cfr. Alberto Xavier – “Manual de Direito Fiscal”, Faculdade de Direito de Lisboa, 1981, pp.282.

[2] Cfr. Sérgio Vasques – “Imposto Sobre o Valor tributável”. Almedina, 2023, pp.287.