Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1005/2024-T
Data da decisão: 2025-10-09  IRC IVA  
Valor do pedido: € 331.307,10
Tema: IVA e IRC. Art. 23.º do CIRC. Relações especiais entre empresas. Standard de prova.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

I –O preenchimento dos requisitos do art. 23.º do CIRC pode ser documentado para além da facturação, desde que fique comprovada a materialidade de gastos e perdas e a sua racionalidade económica, traduzida na sua funcionalização à obtenção de rendimentos sujeitos a IRC.

II Uma empresa que se encontre em relações especiais com outra deve organizar a documentação das suas operações de acordo com as regras de preços de transferência, ainda quando esteja dispensada de elaborar um dossier de preços de transferência.

III –O princípio do inquisitório tem limites de adequação e necessidade, e não vincula os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira a seguirem todas as sugestões probatórias que lhe sejam apresentadas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1.     A contribuinte A... Lda. NIPC..., doravante “a Requerente” (ou “A...”), apresentou, no dia 28 de Agosto de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), do art. 99.º do CPPT e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa (autuada com o n.º ...2023...) apresentada contra os actos de liquidação adicional de IVA e IRC referentes aos anos de 2019 e 2020 (com reflexo, em termos de IVA, nos períodos de tributação subsequentes), e, mediatamente, sobre a ilegalidade desses mesmos actos de correcção e liquidação de IVA e IRC, peticionando o reembolso do montante de imposto indevido, no montante total de € 331.307,10, acrescido de juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

6.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Novembro de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.

7.     Por Despacho de 7 de Novembro de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.

8.     A AT apresentou a sua Resposta em 11 de Dezembro de 2024, juntando o Processo Administrativo.

9.     Por Despacho de 23 de Dezembro de 2024, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção suscitada pela Requerida na sua resposta – o que a Requerente fez, por requerimento de 14 de Janeiro de 2025.

10.  Em Requerimentos de 17 de Fevereiro, de 17 de Março e de 1 de Abril de 2025, a Requerente sustentou que o Processo Administrativo junto pela Requerida se encontrava incompleto, com lacunas – nomeadamente relativas à documentação do procedimento inspectivo – que prejudicariam a própria inquirição de testemunhas.

11.  Por Despacho de 18 de Março de 2025, o Tribunal solicitou, da Requerida, a junção aos aos autos dos elementos alegadamente em falta no Processo Administrativo.

12.  Em Despacho de 1 de Abril de 2025, o Tribunal, entre outras disposições, comunicou o seguinte:

Cumpre esclarecer, desde logo, que a não-junção, aos autos, do Processo Administrativo, não tem as consequências que a Requerente pretende atribuir-lhe, visto que o art. 110.º, 6 e 7 do CPPT impede que ao silêncio da Administração Tributária seja conferido o efeito de uma confissão – e essa norma é “lei especial” face à solução geral do art. 574.º do CPC.

E é de lembrar também, no mesmo sentido, o disposto no art. 19.º do RJAT.

A Requerida não tem o ónus de contestar, nem de contestação especificada dos factos, não se tendo por confessados, ou admitidos por acordo, na ausência de contestação especificada, os factos alegados pela Requerente – cabendo, todavia, ao Tribunal apreciar livremente as consequências do silêncio da Requerida, mormente em matéria de prova – embora dentro dos limites impostos pelo art. 607.º, 5 do CPC, como é evidente.

Notifique-se a Requerida para, no prazo de 10 dias, exercer, querendo, o contraditório relativamente ao que é alegado no requerimento hoje apresentado; e para, no mesmo prazo, cumprir o disposto do Despacho de 18 de Março de 2025.

Devendo recordar-se o regime do art. 17.º do RJAT, e as obrigações decorrentes, para ambas as partes, do disposto no art. 16.º, f) do RJAT.

13.  Por Requerimento de 16 de Abril de 2025, a Requerida juntou aos autos mais alguma documentação constitutiva do Processo Administrativo.

14.  Em Requerimento de 6 de Maio de 2025 a Requerente manteve o seu entendimento de que o Processo Administrativo continuava incompleto, nomeadamente por ausência do processo de evidência de trabalho de cada um dos procedimentos inspectivos conducentes às liquidações adicionais impugnadas – concluindo a peticionar, de novo, a “junção completa do PA”.

15.  Em Despacho de 12 de Maio de 2025, o Tribunal, entre outras disposições, comunicou o seguinte:

Indefere-se o peticionado pela Requerente no seu requerimento de 6 de Maio de 2025, visto que o ónus da prova não se confunde com um dever de provar, porque o ónus da prova (arts. 342.º e seguintes do Código Civil) é uma regra de julgamento segundo a qual a parte que invoque em seu favor uma situação jurídica tem contra si o risco de não serem adquiridos no processo, como provas atendíveis (art. 413.º do CPC), os factos constitutivos que, segundo a lei, são aptos a fazer nascer aquela situação jurídica favorável – o risco, pois, de essa não-aquisição processual redundar em improcedência da sua pretensão.

Isso significa que as partes têm a liberdade de definir o seu próprio standard de prova – correndo, por cada uma delas, o risco de apresentarem prova insuficiente; o risco, em suma, de aproveitamento inadequado da liberdade de que dispõem na referida definição.

Tendo havido resposta, pela Requerida, às solicitações deste Tribunal veiculadas pelos Despachos de 18 de Março e de 1 de Abril de 2025, não pode o princípio do inquisitório (art. 411.º do CPC) converter-se numa subversão do ónus da prova, sendo esta uma regra que limita a extensão daquele princípio.

16.  No dia 22 de Maio de 2025 realizou-se a primeira parte da reunião prevista no art. 18º do RJAT, tendo sido ouvidas as testemunhas

¾   B...

¾   C...

¾   D... 

17.  No dia 23 de Junho de 2025 realizou-se a segunda parte da reunião prevista no art. 18º do RJAT, tendo sido ouvidas as testemunhas

¾   E... 

¾   F... 

¾   G...

¾   H... 

18.  Sendo, no final, as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.

19.  Só a Requerente apresentou alegações, em 8 de Julho de 2025.

20.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.

21.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

22.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     A Requerente é uma empresa que iniciou actividade em 2001, e que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de sistemas e equipamentos, sua importação e exportação, mormente para a indústria têxtil, de electrónica e outros mecanismos, prestando serviços relacionados com esses sistemas e equipamentos (CAE principal - 46430 – Comércio por grosso eletrodomésticos, aparelhos rádio e televisão; CAE secundário - 46250 –Comércio por grosso equip. eletrónicos, telecom. e suas partes).

2.     À data dos factos, tinha a seguinte estrutura de capital:

¾   Quota: 7.000,00 EUR – I... (sócio gerente).

¾   Quota: 1.000,00 EUR –J..., Unipessoal, Lda. (NIPC ...).

¾   Quota: 2.000,00 EUR – J..., Unipessoal, Lda. (NIPC...).

3.     Para além de a J... ser detentora de 30% do capital da Requerente, entre esta e aquela foi celebrado um contrato, em 31/12/2017, referente às relações comerciais existentes entre ambas.

4.     A Requerente e a J... são um projecto concebido para dar corpo a uma parceria entre o único sócio da Requerente,  I..., e o seu CO (Chief of Operations), K... .

5.     Nos termos do entendimento entre ambos, I... ficou como único sócio, tanto da Requerente como da J..., e K... entendeu ser preferível não integrar qualquer órgão social – passando ambos a desenvolver, assim, as respectivas actividades profissionais.

6.     Daí resulta que, não obstante I... ser o único sócio, e último beneficiário, da Requerente, é K... quem organiza, comanda e executa a actividade operacional da Requerente, sendo remunerado por isso.

7.     Do contrato celebrado em 31/12/2017 entre a Requerente (como PRIMEIRA CONTRAENTE) e a J... (como SEGUNDA CONTRAENTE), assinado em nome de ambas as partes por I..., constam, entre outros, os seguintes considerandos e cláusulas:

¾   “Ambas as contraentes mantêm relações comerciais estáveis, sendo que a maior parte da facturação da SEGUNDA CONTRAENTE é efectuada à PRIMEIRA CONTRAENTE” (considerando b))

¾   “A SEGUNDA CONTRAENTE cede o seu espaço comercial para o desenvolvimento da actividade da PRIMEIRA CONTRAENTE, bem como os seus membros do quadro de pessoal, suportando, para esse efeito, diversos custos fixos e variáveis” (considerando c))

¾   “Pelo presente contrato, a PRIMEIRA CONTRAENTE compromete-se a apoiar a tesouraria da SEGUNDA CONTRAENTE, designadamente nos custos em que a mesma incorre com instalações, funcionários, impostos, encargos sociais, ou outros que se prendam com o desenvolvimento da actividade da SEGUNDA CONTRAENTE” (cláusula primeira, 1)

¾   “Por outro lado, a SEGUNDA CONTRAENTE compromete-se a prestar serviços, com precedência em relação a qualquer seu cliente à PRIMEIRA CONTRAENTE bem como a ceder o seu espaço comercial e membros do seu quadro de pessoal para o desenvolvimento da actividade da PRIMEIRA CONTRAENTE, suportando, para esse efeito, diversos custos fixos e variáveis, os quais serão imputados a esta.” (cláusula primeira, 2)

¾   “Periodicamente, e de comum acordo, entre as ambas as CONTRAENTES será efectuado o apuramento dos débitos e créditos havidos entre as partes.” (cláusula segunda, 1)

¾   “Fica desde já convencionado a compensação de créditos recíprocos como forma de pagamento a qualquer das CONTRAENTES.” (cláusula segunda, 2)

¾   “Todas as despesas, taxas, impostos ou outras prestações que sejam devidas pela execução do presente contrato são da responsabilidade da SEGUNDA CONTRAENTE.” (cláusula terceira)

8.     Na actividade desenvolvida pela Requerente, os equipamentos fornecidos aos clientes não são passíveis de instalação e utilização sem que ocorra alguma costumização que os adapte às produções dos clientes, envolvendo alterações mecânicas e electromecânicas e alterações de software.

9.     Sendo ainda necessário dar formação aos funcionários dos clientes para que estes saibam operar os equipamentos com autonomia.

10.  Em procedimento administrativo, a Requerente reconheceu que a racionalidade empresarial aconselharia que fosse mantida apenas uma das empresas, e que isso não terá acontecido somente porque a J... é a detentora de algumas representações de máquinas, e também porque algumas responsabilidades bancárias estão tituladas em nome da J... – não excluindo a Requerente que, até à sua extinção, a J... seja transformada em simples trading da Requerente.

11.  Nos anos de 2019 e 2020, a actividade da Requerente foi desenvolvida nas instalações da J..., seja a dos funcionários técnicos, seja a dos funcionários com funções administrativas e de marketing e publicidade, tendo beneficiado das representações comerciais exclusivas da J... e dos equipamentos de que esta foi a criadora. A actividade foi desenvolvida em conjunto com os funcionários da J..., apresentando-se estes publicamente sob as insígnias da Requerente, do que resultou que os clientes da Requerente identificavam os funcionários da J... com fazendo parte da equipa da Requerente.

12.  Para lá dos serviços que presta, a J... fornece à Requerente equipamentos, nomeadamente equipamentos de marca de que é representante exclusiva em Portugal.

13.  A J... emitiu à Requerente, relativamente ao ano de 2019, a factura no valor de €215.000,00, com o n.º FT 20/9, e relativamente ao ano de 2020, a factura no valor de €370.000,00, com o n.º 20/16.

14.  Ambas as facturas pretendem integrar, no preço dos serviços prestados à Requerente pela J..., uma componente correspondente à remuneração daquela pela respectiva intervenção em cada um dos projectos da Requerente nesse período, um valor respeitante à comparticipação da Requerente nas despesas gerais da J..., e uma componente respeitante ao valor dos serviços de assistência prestados a clientes da Requerente pelos funcionários da J...

15.  Assim, a factura referente ao ano de 2019 subdividiu-se concretamente nas seguintes componentes:

¾    €201.975,51 de remuneração pela comparticipação em projectos;

¾    €13.066,08 de gastos partilhados.

16.  E a factura referente ao ano de 2020 subdividiu-se concretamente nas seguintes componentes:

¾   €333.023,23 de remuneração pela comparticipação em projectos;

¾   €15.351,76 de gastos partilhados;

¾   €21.626,00 de outros serviços de assistência técnica.

17.  Tendo a Requerente um volume de vendas anual inferior a €3.000.000,00 nos exercícios anteriores aos aqui em causa, e apesar desenvolver operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais (como a J..., cfr. art. 63.º, 4 do CIRC), ficou dispensada, pelo art. 13.º, 3 da Portaria n.º 1466-C/2001, de 21 de Dezembro, de manter organizada a documentação respeitante à política de preços adoptada em matéria de preços de transferência, para efeitos do art. 130.º do CIRC.

18.  A Requerente foi objecto de procedimento inspectivo, que incidiu sobre IVA e IRC quanto ao ano de 2020 (OS n.º OI2022..., notificada em 14/6/2022). Foi determinada a prorrogação do prazo inspectivo (Ofício n.º..., de 28/11/2022).

19.  A Requerente foi objecto de novo procedimento inspectivo, que incidiu sobre IRC quanto ao ano de 2019 (OS n.º OI2022...).

20.  O Projecto de Relatório de Inspecção Tributária relativo ao ano de 2020 (PRIT 2020), datado de 25/11/2022, foi notificado à Requerente, contendo a proposta de várias correcções – mormente quanto à efectiva prestação de serviços entre a Requerente e a J..., e preços praticados.

21.  Lá se afirma, entre outros, que

ficou evidente que a empresa A... transferiu os seus recursos financeiros para a empresa J..., em valores bastante superiores aos montantes faturados no ano 2019, sem evidências de qualquer tipo de remuneração pelo excesso transferido (…) Tendo ficado patente pela análise aos elementos contabilísticos do SP que este suportou encargos decorrentes da obtenção de financiamentos bancários no ano 2020 e que financiou uma entidade terceira no ano 2019, ainda que especialmente relacionada, nos termos do artigo 63.º do CIRC, incumpriu de modo inexorável a disciplina ínsita no seu artigo 23.º do CIRC (…) No caso em concreto, o interesse empresarial aferido não foi o da própria empresa que deduz fiscalmente o gasto, ou seja, da A...”.

22.  No que respeita ao IVA, o PRIT 2020 assinala muitas imprecisões na facturação e conclui:

tanto a A..., Lda., como a J..., Lda., são sujeitos passivos de imposto de IVA, nos termos do art.º 2º do CIVA, pelo que as operações tributáveis têm de ser analisadas na esfera individual das mesmas, e não podem ser analisadas como se ambas as sociedades constituíssem, apenas, uma única sociedade”. Aditando que “se as faturas do fornecedor J... não reúnem os requisitos formais para a dedutibilidade do IVA, também não reúnem as condições de aceitabilidade do respetivo gasto em IRC”.

23.  Especificamente no que respeita às duas principais facturas emitidas pela J... à Requerente:

A.   Relativamente ao ano de 2019, a factura de 31/12/2019, no valor de €215.000,00, com o n.º FT 20/9, os SIT assinalaram:

a) A inexistência de quantidades e correspondentes preços unitários subjacentes a cada gasto. Por outro lado, uma vez que a quantidade transacionada foi sempre de uma unidade, não foi possível controlar dessa forma a(s) prestação(ões) de serviços em causa e o que efetivamente estava a ser imputado. Consequentemente, desconhece-se a base de cálculo que permita chegar ao valor total da fatura, assim como o que está a ser debitado. 

b) Na fatura em causa está descrito «Os artigos descritos no documento foram entregues nesta data, Art.°36, n°5, alínea f) do CIVA». A fatura está datada de 2020-07-30 e os gastos foram imputados ao ano 2019. Ora, não se alcança nem se estabelece qualquer nexo entre a data mencionada no documento e os gastos e serviços imputados, ficando a dúvida sobre o que estava a ser efetivamente faturado e se o momento identificado nas faturas foi efetivamente o momento em que tiveram lugar os serviços. 

c) O valor contabilizado representa 42,37% da conta «fornecimentos e serviços externos». 

d) É de salientar, ainda, que a fatura não remete para documentos externos sejam estes contratos, acordos ou qualquer outro tipo de documento. Mas ainda assim, foi analisado o contrato apresentado e entregue no âmbito do procedimento de inspeção efetuado, referente às relações económicas/comerciais existentes entre ambas as empresas em relações especiais. Concluiu-se que o mesmo também não suprime as lacunas detetadas (o que decorre do "contrato" poderá ser consultado em anexo n.º 6).

B.    Relativamente ao ano de 2020, a factura de 30/12/2020, no valor de €370.000,00, com o n.º 20/16, os SIT assinalaram:

Não se quantificaram os serviços prestados ( cfr. alínea b) do nº 5 do artigo 36º do CIVA ). 

. Não foi identificado o tipo de gastos (custos) imputados; 

. Não se identificou o valor unitário de cada gasto (custos) imputado ; 

. Não foi identificada a quantidade nos gastos (custos) imputados. 

Consequentemente, desconhece-se a base de cálculo que permita chegar ao valor total da fatura, assim como o que está a ser debitado. 

Também se verifica que nas faturas em causa está descrito «Os artigos descritos no documento foram entregues nesta data, Art.°36, n°5, alínea f) do CIVA», mas consultadas as faturas emitidas pela A... nos dias da emissão e nos dias anteriores, os valores dos serviços e de assistência técnica não possuem valores significativos que permitam chegar aos valores antes demonstrados e faturados. Não se estabelecendo o nexo de causalidade inerente aos gastos e serviços imputados, ficou a dúvida sobre o que estava a ser efetivamente faturado e se o momento identificado nas faturas, foi efetivamente o momento em teve lugar cada um dos serviços.

24.  A Requerente exerceu em 21/12/2022 o direito de audição prévia relativamente ao PRIT 2020, juntando documentação adicional– a que se seguiu a solicitação de mais documentação por parte dos SIT, e uma reunião com a Directora de Finanças de Braga.

25.  Posteriormente, a Requerente foi notificada do Projecto de Relatório de Inspecção Tributária relativo ao ano de 2019 (PRIT 2019), datado de 11/05/2023, novamente propondo correcções, centradas na desconsideração, em IRC, nos gastos documentados nas facturas que titularam os serviços que lhe foram prestados pela J... .

26.  A Requerente também exerceu, em 30/05/2023, o direito de audição prévia relativamente ao PRIT 2019, recapitulando as explicações dadas e oferecendo novos elementos probatórios, incluindo prova testemunhal.

27.  A diligência de audição das testemunhas acabou por ter lugar, na própria Direcção de Finanças de Braga, no dia 15/06/2023.

28.  A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária relativo ao ano de 2020 (RIT 2020), elaborado em 31/05/2023, concretizando as correcções já projectadas no PRIT 2020, essencialmente:

¾   desconsideração de gastos em IRC com juros suportados pela Requerente (ponto V.1. do RIT 2020);

¾   desconsideração dos gastos em IRC e dedutibilidade do IVA, associados às facturas que titulam aos serviços prestados pela J... à Requerente, com fundamento em falta de forma legal (pontos V.2., V.2.1 e V.2.2. do RIT 2020);

¾   desconsideração do gasto em IRC e dedutibilidade do IVA respeitante às facturas que titulam os serviços prestados à Requerente pela L... (pontos V3. e V.4. do RIT 2020).

29.  A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária relativo ao ano de 2019 (RIT 2019), concretizando as correcções já projectadas no PRIT 2019, essencialmente:

¾   gastos não aceites em IRC, nomeadamente, artigos para oferta (ponto V.3.1. do RIT 2019);

¾   desconsideração da dedutibilidade de gastos em IRC associados aos serviços prestados pela J... à Requerente (ponto V.3.4., que deverá ser V.3.3., do RIT 2019);

¾   desconsideração de encargos financeiros suportados pela Requerente (ponto V.3.4. do RIT 2019).

30.  Consequentemente, a Requerente foi notificada dos seguintes actos de liquidação adicional:

A-   Correcções de 2019:

¾   IRC de 2019, valor de imposto e acrescido num total de € 59.413,22 – Doc. n.º 1 anexo ao PPA

¾   IVA de Dezembro de 2019, no valor de € 4.804,71 acrescido de juros compensatórios no valor de €639,74, num total de € 5.444,45 – Doc. n.º 2 anexo ao PPA

B-   Correcções de 2020:

¾   IRC de 2020, valor de imposto e acrescido num total de €103.213,76 – Doc. n.º 10 anexo ao PPA

¾   IVA de Julho de 2020, no valor de €56.350,00, acrescido de juros compensatórios no valor de €5.996,25, num total de € 62.346,25– Doc. n.º 3 anexo ao PPA

¾   IVA de Novembro de 2020, no valor de €3.804,09, acrescido de juros compensatórios no valor de €353,93, num total de €4.158,02 – Doc. n.º 4 anexo ao PPA

¾   IVA de Janeiro de 2021, no valor de €26.701,35, acrescido de juros compensatórios no valor de €2.886,50, num total de € 29.587,85 – Doc. n.º 5 anexo ao PPA

¾   IVA de Março de 2021, no valor de €7.316,97, acrescido de juros compensatórios no valor de €733,46, num total de € 8.050,43 – Doc. n.º 6 anexo ao PPA

¾   IVA de Abril de 2021, no valor de €36.418,43, acrescido de juros compensatórios no valor de €3.505,06, num total de € 39.923,49 – Doc. n.º 7 anexo ao PPA

¾   IVA de Maio de 2021, no valor de €7,602,85, acrescido de juros compensatórios no valor de €701,35, num total de € 8.304,20 – Doc. n.º 8 anexo ao PPA

¾   IVA de Junho de 2021, no valor de €9.994,31, acrescido de juros compensatórios no valor de €871,12, num total de € 10.865,43 – Doc. n.º 9 anexo ao PPA

31.  Entendendo que tais correcções são desprovidas de fundamento, essencialmente por desconsideração das provas de materialidade das operações (da forma como a Requerente desenvolve a sua actividade) que deveriam ter determinado a dedução de gastos em IRC e a dedutibilidade do IVA, e na convicção de que tinha colaborado amplamente com os SIT na comprovação de todos os elementos necessários e solicitados, a Requerente apresentou, em 28/11/2023, reclamação graciosa.

32.  Em 23/05/2024 a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, e relativamente a ela a Requerente optou por não exercer o direito de audição prévia.

33.  Em 13/06/2024 a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa.

34.  A Requerente pagou parcialmente as liquidações adicionais em IVA e IRC; e, relativamente àquelas que não pagou, celebrou acordos de pagamentos prestacionais acompanhados, de constituição de garantia por via de penhor mercantil, acompanhado da constituição de um seguro.

35.  Em 28/08/2024 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar adequadamente que as “comissões” facturadas pela “L...” à Requerente correspondessem a uma efectiva intermediação prestada pela primeira à segunda.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e no processo administrativo, e na prova testemunhal.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

5.     Quanto ao facto dado por não provado, o da substância económica dos negócios facturados com a “L...”, há prova de que todos os clientes identificados na facturação foram peremptórios em negar qualquer envolvimento do comissionista cuja intervenção teria sido apresentada como a base de tal facturação, reiterando, pelo contrário, que todas as negociações se teriam desenvolvido directamente com a Requerente – o que coloca em crise a materialidade que essa facturação deveria documentar.

6.     Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.

7.     A prova testemunhal foi conclusiva quanto ao modo simbiótico de funcionamento das duas entidades relacionadas, a Requerente e a J..., a ponto de se revelar existir uma indistinção no seu funcionamento quotidiano, prático, e na percepção de alguma da clientela de ambas as empresas.

8.     As testemunhas confirmaram o modo “customizado” de prestação de serviços à clientela, mormente na disponibilização de maquinaria, e na sua instalação e início de funcionamento, sublinhando o papel desempenhado pela J... e seus funcionários – mas não de forma tão detalhada que permitisse a segregação total dos custos de cada operação por cada uma das partes, previamente à sua agregação em valores totais de facturação, como aquela que ocorreu entre as duas entidades.

9.     Cabendo aqui lembrar-se que, nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal se deve cingir à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam, ou deveriam provar.

10.  Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente 

 

1.     A Requerente começa por abordar a questão da desconsideração dos encargos financeiros (juros) suportados por ela no ano de 2020 e de 2019 (pontos V.1. do RIT 2020 e V.3.4. do RIT 2019), procurando afastar a ideia de que houve uma componente de financiamento da Requerente à J..., ideia de que resulta das circunstâncias de, naqueles anos, a Requerente ter feito pagamentos à J... de valor superior aos serviços por esta fornecidos e facturados à Requerente, e de a J... ser sócia da Requerente.

2.     Teria havido assim incumprimento do art. 23.º do CIRC, na medida em que a Requerente obteve financiamentos, e pagou juros, que a Requerida presume terem sido destinado a financiar a J... .

3.     A Requerente admite o facto de ser credora da J..., tanto no final de 2019 como no final de 2020, mas entende que isso não põe em causa a dedutibilidade dos gastos financeiros suportados pela Requerente ao longo dos exercícios de 2019 e 2020 no âmbito dos financiamentos que estiveram em curso durante esses mesmos exercícios.

4.     Isto porque, embora efectivamente em 2019 a Requerente tenha apoiado a tesouraria da J... por via de adiantamentos por conta de fornecimentos futuros – o que levou a que, no final desse exercício, a Requerente tivesse perante aquela um saldo credor –, isso não representou qualquer financiamento no sentido de actividade bancária ou concessão de mútuo, tanto assim que no exercício de 2020 a Requerente entregou à J... valores inferiores aos serviços que adquiriu àquela durante nesse mesmo exercício.

5.     A Requerente entende que se trata de consequência normal das relações especiais que reconhece existirem entre ela e a J...– desde logo porque são ambas participadas pelo mesmo sócio.

6.     Mas ao mesmo tempo assinala que, não obstante a evidência de tais relações especiais, o RIT não envereda pela solução do regime dos preços de transferência, não procurando fazer a demonstração de que os preços praticados pela Requerente e J... nas suas relações contratuais e comerciais se afastam dos preços que seriam normalmente praticados entre entidades não relacionadas; e não recorre a qualquer alegação de abuso para efeitos do art. 38.º da LGT, nomeadamente com a afirmação directa de haver uma utilização indevida de relações contratuais para encobrir mútuos, ou actividades financeiras ou bancárias.

7.     Por outro lado, a Requerente reconhece que a J... se encontra, em termos comerciais, dependente da actividade que desenvolve para a Requerente: 90% do volume de negócios em 2019, 98% em 2020 – mas que isso resulta de serviços efectivamente prestados, e devidamente comprovados.

8.     Serviços que geraram proveitos à Requerente, além de que permitiram à Requerente dispor de instalações para o desenvolvimento da sua actividade, de um certo nível de equipamento e de mão de obra qualificada e experiente.

9.     Insiste a Requerente que não tem qualquer natureza de actividade financeira o facto de ter feito, à J..., adiantamentos por conta de fornecimentos futuros, maiores em 2019 do que em 2020 – por se tratar do financiamento ocasional, mas inevitável, que decorre do recebimento antecipado, por um fornecedor, de parte do preço dos bens ou dos serviços que prestará.

10.  Trata-se de uma prática particularmente segura, sublinha a Requerente, dadas as relações especiais entre as duas entidades, e dado o facto de a J... estar na dependência económica e financeira da Requerente. Assim, esses pagamentos permitem à J... manter a sua actividade, e, à Requerente, manter a sua própria actividade e obter rentabilidade – não se concebendo que, em alternativa, a Requerente tirasse maior proveito do facto de a J... ser mantida numa actividade deficitária.

11.  Mais, não só a Requerente não vê que decorra daí qualquer violação do art. 23.º do CIRC que leve à desconsideração de gastos, como ainda assinala que os RIT não analisam cada uma das operações de financiamento em que tiveram origem os gastos que os SIT desconsideraram – ao menos para estabelecer a relação-base de que dependeria a comprovação da existência de genuínos financiamentos, ou mútuos.

12.  Mesmo uma correlação entre valores transferidos pela Requerente para a J... e valores obtidos na Banca pela Requerente, como a que foi tentada no RIT de 2019, nada provam, segundo a Requerente, visto que não é comprovado um nexo causal entre uns e outros – necessário para que pudesse proceder-se legitimamente a uma correcção de tais gastos.

13.  Pelo que, no que respeita aos encargos financeiros (juros) suportados pela Requerente no ano de 2020 e de 2019 (pontos V.1. do RIT 2020 e V.3.4. do RIT 2019), entende a Requerente que ocorreu um duplo vício, de erro de aplicação da lei, e de falta, ou erro, de pressupostos factuais.

14.  Sustenta a Requerente que se tratou, aqui, da determinação do rendimento tributável da Requerente através de uma verdadeira avaliação indirecta da matéria tributável, tal a extensão das presunções construídas no decorrer da acção inspectiva e das convicções ali formadas, muito para lá do âmbito de meras correcções técnicas.

15.  Quanto à questão da desconsideração em IRC de 2019 e 2020, e IVA de 2020, dos serviços prestados pela J... à Requerente (pontos V.2. e V.2.1 do RIT 2020 e V.3.4. do RIT 2019), a Requerente discorda do fundamento em “falta de conformidade formal”, na alegada violação do disposto no art. 36.º, 5 do CIVA resultante da circunstância de as facturas associadas terem descritivos genéricos e vagos, e nomeadamente:

¾   no ano de 2019, a factura da J... à Requerente, de 31/12/2019, no valor de €215.000,00, com o n.º FT 20/9

¾   no ano de 2020, a factura da J... à Requerente, de 30/12/2020, no valor de €370.000,00, com o n.º 20/16.

16.  A Requerente lembra que a própria AT admite que aquelas facturas respeitam a serviços efectivamente prestados pela  J... (apenas com algumas reservas quanto a 2019), e que conhece a orientação jurisprudencial que admite qualquer prova documental para preencher os requisitos do n.º 4 do art. 23.º do CIRC, não obstante a referência a facturas no n.º 6 do mesmo artigo – pelo que a Requerente estranha o afastamento da dedutibilidade em IRC, e em IVA suportado, com a alegação de deficiente quantificação, e de concomitante impossibilidade de controle rigoroso da imputação a cada serviço prestado, o que teria tornado impossível a aferição da base de cálculo, e da correspondência precisa com os serviços a que a factura deve referir-se.

17.  E isto porque a Requerente insiste que forneceu aos SIT elementos que permitiam, nos casos em apreço, identificar quais foram os concretos serviços em causa e o preço respectivo, que compôs o valor que veio a constar em cada uma daquelas facturas.

18.  Admite a Requerente que subsistam dúvidas quanto a uma parte do valor total da factura de 2019, na parte que excede os €201.975,51, por ter perdido acidentalmente os relatórios técnicos que documentavam as intervenções facturadas (relatórios que foram integralmente disponibilizados para o exercício de 2020); mas que, na parte do exercício de 2019 facturado até àquele montante de €201.975,51, tudo se encontra adequadamente documentado, em termos de quantidades e de preços.

19.  Já quanto a 2020, a Requerente sustenta que estão integral e discriminadamente identificados os projectos facturados pelo total de €333.023,23, a que acrescem €15.351,76 de gastos partilhados e €21.626,00 de outros serviços efectuados (nomeadamente assistência técnica, identificada), perfazendo o total de €370.000,00 desse ano.

20.  Tudo isto no âmbito de uma complementaridade que, além de resultar das participações sociais, resulta também de um contrato entre a Requerente e a J..., que foi disponibilizado à AT.

21.  A Requerente sustenta que não houve empolamento, de parte a parte, quanto à margens partilhadas entre a Requerente e a J..., e que facultou aos SIT os meios para comprovarem a materialidade dos serviços prestados e as proporções da participação das duas entidades, inclusivamente junto dos clientes dos serviços prestados.

22.  Estranhando a Requerente que os SIT não informem, nos RIT, através de processos de evidências de trabalho, se fizeram esses contactos com os clientes da Requerente e da J..., e quais os resultados na comprovação, ou não, da documentação / facturação apresentada (especificamente no que respeita aos projectos 11 e 12 do ano de 2019).

23.  A Requerente adianta que, no desenvolvimento da relação contratual entre ambas, numa conjugação que explora a complementaridade entre elas (com partilha de espaço, instalações e meios pelos funcionários de cada uma), a J... costuma ter intervenção activa, com know how de alterações e “customizações”, no desenvolvimento das soluções propostas pela Requerente aos seus clientes, e não se limitar a fazer instalação dos equipamentos e prestar serviços de formação aos clientes da Requerente. Neste último caso, a margem cobrada pela J... à Requerente costuma corresponder a 10% sobre a margem bruta do negócio; mas em todos os outros a margem é superior, e depende do grau de participação da J... em cada projecto, fixando-se algures entre os 30% e os 80%, constituindo o remanescente a rentabilidade da Requerente.

24.  A Requerente insiste que, sem o apoio da J..., sem os serviços que aquela presta, a Requerente não poderia desenvolver a actividade que desenvolveu, nem obter os proveitos que obteve – e que, por isso, eram devidas contrapartidas à J..., o que explica a facturação dos serviços da J...:

¾   Quanto ao ano de 2019, o valor de 201.976,512 em €215.000,00;

¾   Quanto ao ano de 2020, o valor de €333.023,24 em €370.000,00.

25.  A Requerente esclarece ainda quais os trabalhadores da J... que colaboraram nos projectos da Requerente, e quais os que exerceram funções idênticas simultaneamente em ambas as entidades, discriminando o total de horas envolvido na prestação de serviços à Requerente.

26.  E esclarece ainda a discriminação de custos fixos partilhados, a 50%, entre a Requerente e a J... por utilização de instalações e meios desta última, de que resulta para a Requerente, em 2019, o custo de 13 066,08, e, em 2020, o custo de €15.351,76.

27.  E esclarece ainda as condições em que a J... prestou, nos termos do contrato entre ambas a entidades, serviços de assistência à Requerente (assistência técnica, extra projectos), de que resultou um total facturado, em 2020, de €21.625,00 (não se tendo registado nada de significativo no exercício de 2019).

28.  Concluindo que, mesmo que se desconsiderem os custos fixos partilhados e a prestação de serviços de assistência técnica, o valor de €201.976,51, dentre os €215.000,00 em causa na factura de 2019, está manifestamente comprovado, como está comprovada a respectiva quantificação.

29.  Concluindo ainda que ficou extensamente comprovada a legitimidade da dedução do IVA associado àquelas facturas, bem como o gasto respectivo em IRC – ou seja, que está apurada, com o detalhe necessário, a materialidade dos serviços e os inerentes custos para a Requerente, e a respectiva essencialidade para a obtenção dos proveitos alcançados pela Requerente nos anos em causa: preenchendo, em suma, os critérios do art. 23.º do CIRC.

30.  No que respeita ao IVA, a Requerente enfatiza que o imposto foi liquidado e entregue ao Estado, e lembra as consequências do princípio da neutralidade, que pretende que o IVA onere em última instância somente o acto final do consumo e não os intervenientes na cadeia de produção, tornando fulcrais o direito de deduzir o imposto suportado e o método subtractivo indirecto.

31.  Daí decorre, para a Requerente, a conclusão de que não se pode exigir à Requerente que pague novamente, por via de liquidações adicionais, o imposto que já lhe foi anteriormente liquidado nas facturas que lhe foram emitidas, e que já entregue pela Requerente ao fornecedor em causa – sob pena de se consumar uma duplicação do imposto, em violação ostensiva da neutralidade, da proporcionalidade e da justiça.

32.  Lembrando ainda a jurisprudência que tem sustentado que o eventual incumprimento de aspectos formais não pode fundamentar validamente o afastamento do direito à dedução do IVA.

33.  Decorrendo, de tudo isso, a invalidade as correcções determinadas em IRC e IVA quanto aos serviços facturados da J... à Requerente, no ano de 2019 e 2020, pela desconsideração da dedutibilidade do gasto em IRC e do imposto suportado em IVA.

34.  Quanto à questão das consequências em IVA e IRC de 2020 dos serviços prestados pela L... Unipessoal Lda à Requerente (pontos V.3. e V.4. do RIT 2020), a Requerente aventa a hipótese de os SIT terem retirado ilações de algum procedimento inspectivo anterior à L...– o que, a ser verdade, não lhe é oponível, também porque um RIT não serve, por si mesmo, de suporte probatório ou de base instrutória a um outro (pois a sua admissão violaria o contraditório neste segundo procedimento).

35.  A Requerente confirma que as facturas daquele seu fornecedor respeitam a comissões efectivamente pagas àquele, por conta da intervenção que efectivamente teve nos negócios identifi em cada uma das facturas, uma intervenção sem a qual os mesmos negócios não teriam sido possíveis (referindo que o próprio RIT 2020 reconhece que parte das facturas correspondem a serviços efectivamente prestados.

36.  E denuncia a falta de fundamentação para a desconsideração, proposta no RIT, de algumas dessas facturas, especificamente das facturas emitidas à Requerente.

37.  Também aqui, a Requerente sustenta fundamentalmente que as facturas titulam serviços prestados pela L..., sem os quais a Requerente não teria conseguido concluir as operações que lhe geraram proveito – sendo que algumas dúvidas suscitadas quanto à identificação dos envolvidos nalgumas operações não é de molde a desmentir a materialidade dos serviços prestados, nem o facto de o respectivo gasto ter sido suportado pela Requerente, nem o de o IVA liquidado nas mesmas facturas ter sido efectivamente pago pela Requerente, e entregue ao Estado.

38.  O que conduziria à conclusão de que, também aqui, não é legítima a desconsideração da dedução do IVA associado às facturas da L..., ou a desconsideração em IRC da dedução dos gastos respectivos.

39.  Quanto à não-aceitação de gastos com artigos para oferta (ponto V.3.1. do RIT 2019), a Requerente identifica as três facturas em questão:

¾   n.º A19/76, de 31/01/2019, da sociedade M... Unipessoal Lda., no valor de €2.106,00 + IVA, respeitante a toalhas – diz a Requerente que está em causa o gasto correspondente à aquisição de toalhas que foram preparadas pela Requerente, contendo os elementos identificativos desta, para oferta no âmbito da feira em que participou no ano em causa, concretamente ... 2019: ou seja, material promocional com directa conexão com a actividade da Requerente.

¾   n.º FA 2019/302, de 26/12/2019, da sociedade N... Lda., no valor de €1154,58 + IVA, referente a vinhos;

¾   n.º FA 2019/309, de 31/12/2019, da sociedade N... Lda., no valor de €1651,08 + IVA, referente a vinhos – diz a Requerente, quanto a estes dois últimos gastos, que eles se destinaram aos seus principais clientes, ou funcionários desses clientes, bem como a funcionários seus e da J...: novamente, segundo a Requerente, relacionados com a actividade dela.

40.  A Requerente estranha que a AT tenha invocado a falta de identificação dos beneficiários dessa oferta de vinhos, e tenha mantido esse entendimento depois de a Requerente ter procedido à identificação completa deles. E quanto às toalhas, fizeram o mesmo, apesar de nem sequer ser necessário, nesse caso, a identificação dos beneficiários.

41.  Concluindo que há contradição entre fundamentos e decisão, a implicar a anulação da correcção – e, mais amplamente, erro nos pressupostos de facto e erro na aplicação da lei, bem como por vício de fundamentação, além de constituir violação das regras quanto à distribuição do ónus de prova (art. 74.º da LGT).

42.  A Requerente argumenta ainda que as correcções relativas a 2019, e subsequentes liquidações adicionais, estão viciadas por falta de credenciação, e especificamente por falta de notificação da correspondente Ordem de Serviço.

43.  Especificamente, faz notar que o procedimento de inspecção foi anunciado como “interno”, quando na verdade se tratou de um procedimento de natureza “externa”.

44.  E sustenta que a ordem de serviço que determinou a abertura do procedimento de inspecção relativamente a 2019 nunca foi dada a conhecer à Requerente, como deveria suceder num procedimento externo, em violação do art. 51.º, 1 do RCPIT – com a consequência de não produzir efeitos quanto à Requerente, nos termos do art. 36.º, 1 do CPPT.

45.  Logo, as correcções seriam anuláveis, por preterição de uma formalidade essencial, redundando na violação dos arts. 46.º, 49.º e 51.º, 1 do RCPIT.

46.  E sustenta que uma notificação posterior (que, no RIT 2019, a Requerida alega ter ocorrido em 22/11/2022) não pode convalidar retroactivamente essa falha, pois nessa data já tinham sido praticados todos os actos inspectivos relevantes para a determinação da natureza externa do procedimento, não podendo admitir-se que a AT aproveite de actos praticados ilegalmente para depois, no âmbito de um procedimento diverso, com mera aparência formal de legitimidade, utilizar aquilo que obteve ilegalmente.

47.  Entende, por fim, que não são devidos juros compensatórios, visto não ser devido o imposto, não existindo, por isso, retardamento da liquidação desse imposto, bem como a censurabilidade de tal comportamento, a título de dolo ou negligência (art. 35.º da LGT).

48.  E também que, tendo a Requerente tido que prestar garantia idónea para suspensão do processo de execução fiscal, instaurado para cobrança coerciva das liquidações adicionais, acrescido da constituição de seguro sobre os bens dados em penhor mercantil, com os inerentes custos, tem direito a uma indemnização, nos termos do art. 171.º do CPPT.

49.  Em alegações, a Requerente retoma os argumentos já expendidos no seu pedido de pronúncia.

50.  A eles adita a sua convicção de que a falta de prova de factos, correspondente a lacunas do Processo Administrativo, conduz à inversão do ónus da prova, ou, em alternativa, ao não-afastamento da presunção de veracidade daquilo que foi declarado pela Requerente.

51.  E amplia o seu próprio elenco de factos que considera provados, socorrendo-se das versões mais completas do Processo Administrativo e da prova testemunhal.

 

III. B. Posição da Requerida

 

52.  Na sua resposta, a Requerida, passada a argumentação relativa à sua defesa por excepção, impugna os diversos pontos do pedido de pronúncia.

53.  Quanto à alegada falta de credenciação no procedimento que conduziu às correcções efectuadas ao exercício de 2019, a Requerida esclarece que a Requerente já foi informada, na análise à reclamação graciosa, que a acção inspectiva interna (credenciada pela OI 2022...) foi encerrada, sem correcções, em 9/12/2022.

54.  Sendo assinada em 22/11/2022, pelo gerente da Requerente, a ordem de serviço OI2022... que deu origem à acção inspectiva externa, foi esta que foi prorrogada duas vezes, como foi notificado à Requerente (cartas registadas RF...PT e RF...PT), e culminou no RIT notificado à Requerente em 5/06/2023.

55.  Quanto aos encargos financeiros (juros) suportados pela Requerente em 2019 (€ 10.288,28) e 2020 (€ 7.583,91), a Requerida assinala que a Requerente transferiu recursos financeiros para a empresa J... em valores bastante superiores aos montantes facturados no ano de 2019, sem evidência de qualquer tipo de remuneração pelo excesso transferido – e apenas a alegação, pela Requerente, adiantamentos por conta de fornecimentos futuros.

56.  Havendo esses financiamentos em montantes superiores aos fornecimentos – logo, um empréstimo de fundos – entre entidades que assumem ter entre elas relações especiais (dada a participação da J... no capital da Requerente), e não havendo evidência de qualquer tipo de remuneração (juros) pelo excesso transferido, deixa de justificar-se a dedução fiscal dos juros suportados pela Requerente com o crédito bancário, nomeadamente com os € 290.000,00 de novos empréstimos obtidos em 2019: porque não se afigura ser do interesse de uma sociedade participada, como o é a Requerente, de se endividar e suportar encargos bancários e ao mesmo tempo financiar gratuitamente outra sociedade, no caso a participante, J... .

57.  Não ficando a situação resolvida com a circunstância de a Requerente ter omitido a existência de operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais, desobrigando-se de cumprir o disposto no art. 63.º do CIRC (e também Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro).

58.  Quanto à alegação da Requerente, de que se teria tratado de “adiantamentos efectuados por conta de fornecimentos futuros”, a Requerida sublinha que no próprio RIT se apurou que não havia qualquer facturação relativa a tais adiantamentos, e que a documentação de suporte apenas comprova a existência de transferências bancárias.

59.  É que, insiste a Requerida, o registo contabilístico de adiantamentos a fornecedores é efectuado em contas especificas, como pode verificar-se pelo disposto nas notas de enquadramento às contas previstas na Portaria n.º 218/2015, de 23 de Julho, mormente nas notas de enquadramento às contas 228 – “Adiantamentos a fornecedores” e 39 – “Adiantamentos por conta de compras”, o que no caso não se verificou.

60.  Na ausência de tal facturação, os juros suportados pela Requerente, não contribuindo para obter ou garantir os seus rendimentos, não podem ser aceites como gastos para efeitos fiscais, por efeito do art. 23.º, 1 do CIRC.

61.  Quanto à não-aceitação de gastos com artigos para oferta (exercício de 2019, € 2.590,38), a Requerida esclarece que depois do exercício do direito de audição apenas subsiste a correcção correspondente à factura de montante total de € 2.590,38 (oferta de toalhas como material promocional, na feira designada por ... 2019), caindo as demais.

62.  Sobre esta, observa a Requerida que nem sequer foi feita prova da participação efectiva da Requerente nessa feira – não se tratando de identificar os destinatários dessas ofertas, o que não é exigido. E observa ainda que, dados os CAEs das duas sociedades, seria mais natural que as ofertas fossem da J..., e não da Requerente, até porque a feira era um certame da indústria têxtil e vestuário.

63.  Tendo ocorrido essa confusão antre as actividades exercidas pelas duas sociedades, conclui a Requerida que faltam elementos justificativos para aceitação do montante total de € 2.590,38 como custo fiscal de 2019.

64.  Quanto à questão da desconsideração em IRC de 2019 (montante de € 215.000,00) e 2020 (montante de € 370.000,00), e IVA de 2020, dos serviços prestados pela J...  à Requerente, a AT observa que há diversa facturação da J... à Requerente nos dois exercícios de 2019 e de 2020.

65.  E, dessa facturação, foram apenas desconsideradas as duas facturas emitidas em 30/07/2020 (€ 215.000,00 de gastos de 2019) e em 30/12/2020 (€ 370.000,00 de gastos de 2020), com descritivos que referem, de forma indeterminada, prestações de serviços genéricas: “Serviços e assistência técnica/participação nos custos fixos”.

66.  Desconsideradas pelos SIT por considerarem não estar provado que os serviços titulados por essas facturas tenham sido efectivamente prestados – e por não estarem reunidos os requisitos mencionados no art. 23.º, 4 do CIRC – não havendo sequer documentos complementares às facturas que comprovem a materialidade das operações.

67.  A AT reconhece que a Requerente apresentou aos SIT, em apoio dessa facturação, uma exposição na qual detalhava 16 projectos em que intervieram ela e a J... no ano de 2019, e 26 projectos em 2020; mas logo enfatiza que os SIT assinalaram a falta de “estudos técnicos de desenvolvimento do projeto/soluções propostas ao cliente; ações internas/prestação do trabalho desenvolvido e realizado por parte dos técnicos envolvidos; contratos/ acordos e outros atos jurídicos ou não, praticados com o cliente, assim como toda a documentação que permita visualizar evidências realizadas a nível externo”, além de se terem registado erros de cálculo.

68.  Dados os valores resultantes da aplicação das percentagens indicadas pela própria Requerente, os SIT concluíram que os valores recebidos pela Requerente e pela J... divergiam significativamente daqueles que foram facturados; e não viram fundamentadas documentalmente as alegações da Requerente, de que as diferenças se deveriam à partilha de custos fixos mensais, ou ao valor de assistência técnica prestada pela J... à Requerente (em parte pela razão apontada pela Requerente, de que uma inundação teria destruído os relatórios técnicos de 2019).

69.  A Requerida protesta que os SIT tudo fizeram para o apuramento da verdade material, seja recolhendo elementos junto da Requerente, seja juntos de clientes da Requerente, e que a conclusão que se impôs foi a de que a documentação apresentada, mormente a facturação, não representa, com o rigor exigido, aquilo que se passou – nomeadamente, empolando a participação da J... em projectos que terão sido dominantemente, ou mesmo exclusivamente, protagonizados pela Requerente.

70.  Com a emissão das facturas, a J... registaria um resultado líquido diminuto, de € 2.369,94 em 2019 e de € 1.732,57 em 2020; ao passo que a ora Requerente conseguiria contabilizar custos que reduziriam de forma muito significativa o imposto devido.

71.  Assim sendo, há indícios fundados de que tais elementos não reflectem a matéria tributável real do sujeito passivo, ou impedem o seu conhecimento, tornando aplicável o art. 75.º, 2, a) da LGT.

72.  Razão para, segundo a Requerida, os gastos nos montantes de € 215.000,00 e de € 370.000,00, não poderem ser aceites para efeitos da determinação da matéria coletável de IRC, ao abrigo do art. 23.º do CIRC.

73.  Quanto à questão da desconsideração dos custos com os serviços prestados em 2020 pela  L... Unipessoal Lda à Requerente, no valor total de € 59.300,00, a Requerida diz desconhecer em que se funda a Requerente para asseverar que as conclusões dos SIT foram impugnados, porque a Requerida não tem qualquer notícia de uma tal impugnação.

74.  A Requerida alega que há indícios fundados de que as oito facturas apresentadas pela Requerente não correspondem à materialidade das alegadas relações com a “L...”, fazendo cessar a presunção a favor do contribuinte – cabendo-lhe, pois, a demonstração da veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respectivos suportes, face àqueles fundados indícios.

75.  Pior, observa a AT que, contactados todos os clientes envolvidos nas transacções correspondentes às facturas objecto da comissão debitada, que foram identificados pela própria Requerente, esses clientes foram peremptórios em negar qualquer envolvimento do comissionista em causa, reiterando que todas as negociações foram feitas directamente com a Requerente.

76.  Pelo que, ao abrigo do art. 23.º do CIRC, tais facturas emitidas pela “L...” não podem ser aceites como custos.

77.  A Requerida menciona ainda a existência de facturas emitidas sem a forma legal, por não identificarem os serviços e gastos que estão a ser facturados, limitando-se a ser genéricos e vagos, não preenchendo os requisitos legais de forma prescritos no art. 36.º, 5 do CIVA: aquelas que possuem no seu descritivo “Serviços e assistência técnica / Participação nos custos fixos mensais”, porque não permitem a identificação de quantidades, e correspondentes preços unitários, subjacentes a cada gasto – desconhecendo-se, assim, a base de cálculo que permita chegar ao valor total da factura, assim como o que está a ser debitado, ficando a dúvida sobre o que estava a ser efectivamente facturado, e se o momento identificado nas facturas foi efectivamente o momento em teve lugar cada um dos serviços.

78.  Além disso, sendo tanto a Requerente como a J... sujeitos passivos de IVA, as operações tributáveis têm de ser analisadas na esfera individual de cada uma delas, e não podem ser analisadas como se ambas as sociedades constituíssem, apenas, uma única sociedade. Sendo de sublinhar que as duas facturas em causa nem sequer remetem para documentos externos, sejam estes contratos, acordos ou qualquer outro tipo de documento.

79.  Além disso, refere a Requerida que na demostração de resultados da J... (DA/IES – Declaração anual), se a imputação dos gastos das rúbricas / contas SNC - «Fornecimentos e serviços externos» e «Gastos com Pessoal», fosse a 100%, o total perfaria € 247.082,15 EUR, montante que ficaria muito aquém do valor debitado, de € 370.000,00; o que configura clara infracção das regras do art. 36.º do CIVA e dos pressupostos do art. 23.º, 4 e 6 do CIRC.

80.  Quanto aos juros compensatórios, entende a Requerida que eles são devidos porque foi retardada a liquidação do imposto por facto imputável à culpa do sujeito passivo, cuja conduta configurou uma infracção tributária – nos termos dos arts. 35.º da LGT e 102.º do CIRC, e ainda do art. 119.º do RGIT.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. Matéria de excepção

 

IV.A. 1. Na Resposta da Requerida

 

1.     A Requerida inicia a sua resposta apresentando uma defesa por excepção, relativa à incompetência material do tribunal arbitral para a anulação da decisão de indeferimento com fundamento em vícios próprios de um acto de segundo grau.

2.     A Requerida começa por sustentar que os vícios respeitantes ao procedimento de Reclamação Graciosa (nomeadamente, a alegada falta de fundamentação) são vícios “de segundo grau”, não respeitantes à liquidação de IRC e de IVA, nem referidos a esta – e, portanto, como vícios próprios desse segundo grau, inimpugnáveis nos termos do art. 2.º do RJAT, que exclui da jurisdição arbitral actos de segundo grau (como é o caso da Reclamação Graciosa) ou de terceiro grau (como o seria um Recurso Hierárquico).

3.     Não se trata, insiste a Requerida, de actos de segundo grau que comportem a apreciação da ilegalidade de actos de primeiro grau, como liquidações – tornando-se essencial, para a arbitrabilidade de actos de segundo grau, como um acto de indeferimento de uma reclamação graciosa, que se adopte uma interpretação teleológica, a qual só admitirá que se traga à jurisdição arbitral actos de segundo grau que tenham apreciado, eles próprios, a ilegalidade dos actos tributários que são indirectamente, mas efectivamente, aqueles que o sujeito passivo quer impugnar (invocando-se neste ponto a decisão dos Procs. n.º 272/2014-T e 446/2017-T).

4.     O que exclui, em suma, que um Tribunal Arbitral tenha competência material para se pronunciar sobre a alegada falta de fundamentação de um acto de indeferimento de reclamação graciosa.

5.     A incompetência material do Tribunal Arbitral Singular para a apreciação da questão dos pretensos vícios estritamente relacionados com a Reclamação Graciosa consubstanciaria, pois, uma excepção dilatória que obstaria ao prosseguimento do processo, e conduziria à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos arts. 576.º, 1 e 2 e 577.º, a), do CPC, ex vi arti. 29.º, 1, e) do RJAT.

 

IV.A. 2. Na Réplica da Requerente

 

6.      A Requerente, por leitura dos RITs, antecipara já, no próprio pedido inicial (arts. 90 a 103), uma possível defesa por excepção, relativa a uma eventual e suposta intempestividade da Reclamação Graciosa relativamente às correcções de IVA de 2020, a determinar a caducidade do direito de acção.

7.     E afasta desde logo esse argumento, fazendo notar que os RITs, e o Despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, não mencionam qualquer rejeição parcial assente em intempestividade. E fazendo notar ainda que das liquidações resultaram valores a pagar, pelo que o prazo de reclamação teria necessariamente de contar-se desse termo do prazo de pagamento voluntário.

8.     Sucede que, na sua Réplica à defesa por excepção (requerimento de 14 de Janeiro de 2025), a Requerente assinala que essa defesa omitiu qualquer alegação de extemporaneidade, não obstante – decerto por lapso – lhe ter feito alusão.

9.     A Requerente insiste que o objecto imediato do Processo Arbitral é o Despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, sendo objecto mediato cada uma das liquidações de imposto decorrentes das correcções determinadas na esfera da Requerente nos procedimentos inspectivos a ela efectuados – em termos de, sendo anuláveis as correcções e consequentes liquidações, se tornar igualmente anulável o Despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentado contra tais liquidações.

10.  Sendo que, por essa razão, não procederia a excepção de incompetência material do tribunal arbitral para a anulação da decisão de indeferimento com fundamento em vícios próprios de um acto de segundo grau.

 

IV.A. 3. Decisão sobre a matéria de excepção

 

O presente Tribunal entende que improcede a excepção apresentada pela Requerida na sua Resposta.

Com efeito, é hoje entendimento pacífico que a competência dos Tribunais Arbitrais se espraia – até por necessidade lógica – para actos ditos “de segundo grau”, como é, no caso, o indeferimento da Reclamação Graciosa.

E, ao contrário do que a Requerida alega, a reclamação Graciosa não se fundamentou exclusivamente, nem principalmente, numa alegada “falta de fundamentação” das correcções e subsequentes liquidações – assentou principalmente, antes, na ilegalidade dos próprios actos tributários em que tais liquidações consistiram, alegando que inquinaram de ilegalidade a decisão de indeferimento que, apreciando-os, os manteve na ordem jurídica.

Impõe-se reconhecer que a fórmula “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, utilizada no art. 2.º, 1, a) do RJAT, não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos.

Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais.

Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação.

A referência que no art. 10.º, 1, a) do RJAT se faz ao art. 102.º, 2 do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Resta acrescentar que abundante jurisprudência, tanto arbitral como dos tribunais superiores, tem confirmado que a alusão à “via administrativa” abarca, para estes efeitos de competência material dos Tribunais Arbitrais, tanto a Reclamação Graciosa como o Pedido de Revisão Oficiosa.

Sendo assim, verifica-se a improcedência desta defesa por excepção.

 

IV.B. O mérito da causa.

 

A questão jurídico-tributária que o Tribunal é chamado a apreciar espraia-se pela consideração dos seguintes tópicos:

1)    encargos financeiros (juros) suportados pela Requerente no ano de 2020 e de 2019

2)    custos com os serviços facturados pela J... à Requerente (incluindo “Serviços e assistência técnica” e “Participação nos custos fixos mensais”)

3)    custos com os serviços facturados pela L... Unipessoal à Requerente

4)    gastos com artigos para oferta

5)    a alegada falta de credenciação das Ordens de Serviço das Inspecções Tributárias

6)    a questão dos juros compensatórios

7)    a questão da constituição de seguro para garantia idónea para suspensão do processo de execução fiscal

 

IV.B.1 - Encargos financeiros (juros) suportados pela Requerente no ano de 2020 e de 2019

 

A primeira questão decidenda respeita à verificação, ou não, do preenchimento, por parte dos encargos suportados pela Requerente com os créditos obtidos, dos requisitos estabelecidos no art. 23.º, 1 do CIRC, para efeitos da respectiva dedução na determinação do lucro tributável: especificamente, na verificação da circunstância de esses gastos terem sido (ou não) suportados pela Requerente para obter ou garantir os seus rendimentos sujeitos a IRC – devendo desde logo notar-se que uma velha querela doutrinária e jurisprudencial emergente da eliminação, em 2014, da referência a “indispensabilidade” na redacção do art. 23.º, 1 do CIRC, subsistindo somente a referência a “todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, está hoje pacificada, havendo consenso sobre o princípio de que a relevância de um gasto para efeitos fiscais continua a depender da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou da produção de resultado, sendo que a falta dessas características poderá gerar a dúvida sobre se a causa é ou não empresarial, se é um gasto efectivamente incorrido no interesse da empresa, ou se respeita a um outro interesse, mormente interesses dos sócios ou de empresas participantes.

Hoje aceita-se que a dedutibilidade das “business expenses” deve abarcar gastos e perdas, e não apenas gastos, e reportar-se às despesas ordinárias, que são comumente realizadas e geralmente aceites como úteis, e apropriadas, pelos padrões de um sector de actividade, deixando somente de fora:

1)    aqueles gastos que, de acordo com padrões objectivos, sejam inapropriados, inúteis, inadequados para promoverem rendimentos do sujeito passivo que estejam sujeitos a tributação;

2)    aqueles gastos que, embora fossem abstractamente apropriados, úteis, adequados, não se demonstra que efectivamente o tenham sido – não havendo prova de que, nos períodos de tributação de referência, tenham sido “gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo”;

3)    aqueles gastos e perdas que são enumerados, ainda que de forma não-exaustiva (“nomeadamente”), pela própria lei, como sendo indedutíveis – não sendo indiferente, neste âmbito, que a mesma Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que republicou o CIRC e que alterou a redacção do art. 23.º, 1, tenha introduzido um novo art. 23.º-A (“Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais”) que amplia drasticamente o número desses gastos e perdas enumerados como expressamente indedutíveis (art. 23.º-A, 1: “Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação”)

Embora sem a ênfase da “indispensabilidade comprovada”, o regime mantém-se basicamente inalterado, no sentido de que continua a ter de existir uma relação entre os encargos financeiros suportados pelo sujeito passivo, por um lado, e a realização dos rendimentos ou ganhos sujeitos a imposto, por outro lado – significando isso, na prática, que, no respeito embora de uma latitude razoável na gestão das empresas, a AT não tem que aceitar como dedutíveis todos e quaisquer encargos suportados pelas empresas e por elas apresentados, mesmo aqueles que tenham sido efectivamente incorridos e estejam devidamente documentados.

E isto porque, em síntese:

1)    Nem todos os gastos ou perdas “incorridos ou suportados pelo sujeito passivo” o foram, ou o são, com o objectivo ou a idoneidade de “obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

2)    Mesmo alguns encargos, gastos e perdas que satisfazem o critério do nº 1 do art. 23.º são afastados pela própria lei, por não satisfazerem os requisitos dos n.os 2 e seguintes do art. 23º, ou por estarem abarcados na enumeração do art. 23º-A do CIRC.

A restrição que subsiste na aceitação de encargos dedutíveis, no art. 23º, reforçado pelo art. 23º-A do CIRC, faz todo o sentido como salvaguarda dos princípios constitucionais de “repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art. 103.º, 1 da CRP) e de tributação do rendimento real das empresas (art. 104.º, 2 da CRP): pois se trata de evitar que artifícios contabilísticos, jurídico-formais, interfiram no apuramento da realidade económica de que dependem a defesa e consagração efectivas daqueles princípios constitucionais, prevenindo a erosão da base tributável.

Devendo notar-se que, no novo art. 23.º-A do CIRC já se abrigam expressamente algumas “thin-capitalization rules”, regras de “safe haven” ou de “earnings stripping”, com as quais se busca contrariar o uso do “endividamento intra-grupo” como técnica de “planeamento fiscal”.

Quando se trata de ponderar os objectivos fiscais da informação contabilística, de imediato avultam os da obtenção de informação idónea à colecta equitativa de receita para o erário público, evitando perdas ou desigualdades que resultassem, ou resultem, de operações aptas a operar transferências de lucros, conversões contabilísticas de lucros em encargos, e outras formas de instrumentalização da substância económica em prejuízo tanto da receita como da igualdade tributária.

Novamente em síntese, as alterações, em 2014, à redacção do art. 23.º do CIRC não significam um enfraquecimento dos objectivos de fiscalização das condições e limites dentro dos quais os encargos de um sujeito passivo podem ser apresentados, considerados, aceites ou rejeitados:

1)    Seja porque, muito simplesmente, o art. 23.º não foi revogado, e continua a desempenhar a mesma função que anteriormente;

2)    Seja porque a sua posição, dentro do CIRC, passou a estar, a partir de 2014, reforçada com a adição do art. 23.º-A.

No caso em apreço, resulta claro que a Requerente e a J... são entidades relacionadas, que fazem “pooling” de recursos, tomam em conjunto decisões operacionais e de financiamento, adoptam uma estratégia comum – comportanto-se como um grupo, com uma lógica e dinâmica “intra-grupo”.

Entre outras implicações, esse desenho empresarial deixa em aberto a hipótese de a Requerente ter sido meramente instrumental numa estratégia desenhada para todo o perímetro do “grupo”, pelo sócio único de ambas as entidades que compõem esse “grupo”, com a finalidade de optimizar a totalidade da posição fiscal do “grupo”, e não apenas a da empresa ora Requerente. Trata-se de uma hipótese que cremos ser confirmada pela documentação junta aos autos, e até pelos depoimentos testemunhais.

Na verdade, uma situação dessas, resultante de “relações especiais”, tem necessariamente – por imperativo legal – de ser prevenida através do mecanismo dos preços de transferência, nos termos do art. 63.º do CIRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro (que vigorava à data dos factos, e entretanto foi substituída pela Portaria n.º 268/2021, de 26 de Novembro).

Que se trata de “relações especiais” fica abundantemente comprovado pelo preenchimento, pela Requerente e pela J..., de mais do que um dos requisitos do art. 63.º, 4 do CIRC.

E essa circunstância não é desmentida pelo facto de a Requerente se encontrar dispensada de elaborar um “dossier de preços de transferência”, nos termos do art. 13.º, 3 da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

Devendo ainda notar-se que o facto de a AT não ter invocado o regime do art. 63.º do CIRC para proceder às correcções ora impugnadas não afasta a relevância do regime dos preços de transferência – pois é esse regime que está vocacionado para prevenir, ou mitigar as consequências não prevenidas, dos equívocos económicos, financeiros, contabilísticos e fiscais que tendem a decorrer da existência de “relações especiais”.

E é essa a razão – ou uma das principais razões – pela qual a AT considerou insatisfatória a documentação apresentada pela Requerente, desde logo o contrato de 31 de Dezembro de 2017, celebrado entre a Requerente e a J...: contrato que, visando reger operações vinculadas realizadas entre entidades residentes em território português sujeitos passivos do IRC (art. 2.º, c) da Portaria n.º 1446-C/2001), deveria ter consagrado explicitamente regras de salvaguarda do princípio de plena concorrência, seja quantificando critérios de equivalência em acordos de partilha de custos (art. 11.º da Portaria n.º 1446-C/2001), seja enunciando uma fórmula de cálculo de preços e encargos em acordos de prestação de serviços intragrupo (art. 12.º da Portaria n.º 1446-C/2001), em ambos os casos com suporte em documentação própria, legalmente prevista (art. 16.º da Portaria n.º 1446-C/2001). E, mesmo tratando-se de entidade dispensada de organizar o “dossier de preços de transferência”, a Requerente era obrigada, no referido contrato celebrado com uma entidade relacionada, a J..., a dispor de elementos informativos, e a disponibilizá-los à AT, quanto a “1) Definição do âmbito de intervenção das partes envolvidas; 2) Condições de entrega dos produtos e actividades acessórias envolvidas, designadamente serviços pós-venda, assistência técnica e garantias; 3) Preço e, se necessário, respectiva forma de cálculo, e, ainda, se esta estiver associada a pressupostos, a indicação dos mesmos e das circunstâncias em que ficam sujeitos a revisão, bem como a discriminação das respectivas regras e a explicação detalhada dos ajustamentos plurianuais de preços, apontando, nomeadamente, os efeitos quantitativos decorrentes de factores ligados aos ciclos económicos; 4) Duração acordada ou prevista e modalidades de extinção admitidas; 5) Penalidades e o respectivo procedimento de cálculo para a mora no cumprimento ou o incumprimento, qualquer que seja a sua forma de manifestação, incluindo designadamente juros de mora” (art. 14.º, g) da Portaria n.º 1446-C/2001).

Não tendo isso sido feito, não ficaram devidamente acauteladas as dificuldades probatórias que dão origem ao presente litígio, o que por sua vez gera um problema de demarcação dos limites de licitude do planeamento fiscal – ou seja, de definição da fronteira para lá da qual a notória “simbiose” de gestão de activos e passivos entre a Requerente e a J... poderá ter resvalado para os domínios do “planeamento fiscal agressivo”, do “earnings stripping”, nalguma das várias modalidades sub-capitalizadoras que esse planeamento pode revestir.

São precisamente estas “lógicas de grupo” que o art. 23.º do CIRC visa enfrentar, como a jurisprudência nacional há muito notou: “os custos ali previstos não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades. A não ser desta forma, como que podia ser imputada a uma sociedade o exercício da actividade de outra com a qual ela tivesse alguma relação” (vd. acórdãos do STA de 07-02-07, proc. n.º 01046/05, de 20-05-2009, proc. n.º 1077/08 e de 30-5-2012, proc. n.º 0171/11). Em termos particularmente claros e significativos, veja-se o acórdão do TCA Sul de 16-10-2007, proc. n.º 01276/06: “É pressuposto desta norma [art. 23.º do CIRC] a consideração individualizada de cada empresa ou instituição pelo que não podem interferir aqui raciocínios do tipo daqueles em que se faz apelo a critérios de gestão do "grupo" ou mesmo dos financiamentos - ainda que gratuitos - dos seus sócios ou mesmo a vontade destes que nessa matéria é irrelevante, visto que se trata de um critério legal, sendo unicamente relevante a pessoa colectiva cujos custos estão em apreciação”. 

Exige-se, assim, para dedução de custos nos termos do art. 23.º do CIRC, que estejam em acção opções concretizadas pelo sujeito passivo em ordem à manutenção e desenvolvimento da sua actividade empresarial própria, e não motivações e operações destinadas à satisfação de interesses alheios, designadamente de estratégias de grupo, que economicamente apenas se entendem em termos de benefício global do grupo.

Assim, quando a Requerente obtém financiamento bancário e procede a “adiantamentos por conta de fornecimentos futuros” da J..., reconhecendo que o faz para apoio da tesouraria desta, impõe-se perguntar: terá sido a Requerente um mero instrumento de financiamento indirecto da J..., estando agora onerada por juros suportados no interesse desta outra empresa?

Lembremos que, nos termos do art. 74.º, 1 da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

E lembremos também que a Requerente beneficia da presunção legal de veracidade consagrada no artigo 75.º, 1 da LGT, nos termos do qual “presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”. 

Isso significa que caberia à AT fazer prova, nos presentes autos, de que os capitais obtidos pela Requerente foram utilizados por ela exclusivamente, ou predominantemente, para a realização de proveitos de outra empresa. 

Recorde-se, a propósito do ónus da prova que cabia à AT fazer, a jurisprudência do CAAD: 

¾   No acórdão n.º 932/2016-T do CAAD concluiu-se que “competiria à AT alegar e provar factos que permitissem concluir no sentido de que parte dos fundos mutuados à Requerente teriam sido efectivamente utilizados na exploração e na actividade das suas participadas e não da Requerente, uma vez que esta beneficia da presunção legal de veracidade e correcção da sua contabilidade e das declarações de rendimento apresentadas.

¾   No acórdão n.º 198/2018-T do CAAD concluiu-se que “assiste razão à Requerente quando alega que não é possível estabelecer uma ligação causal, direta, entre os financiamentos bancários e as prestações realizadas e que a AT não demonstrou os pressupostos da sua atuação, como lhe competia, de acordo com o preceituado no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, segundo o qual “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, em concretização do princípio geral consagrado no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil”. 

No caso “sub iudice”, e não obstante os elementos probatórios apresentados pela Requerente, a AT limitou-se, no âmbito da acção de inspecção, a presumir que parte do capital obtido pela Requerente foi mutuado a título gratuito à J..., e, consequentemente, a rejeitar como custo fiscal uma parte proporcional dos encargos financeiros suportados.

Como acabámos de referir, o ónus da prova dos pressupostos factuais das correções de IRC em causa impendia sobre a Requerida, nos termos do art. 74º, 1, da LGT, pelo que a mesma deveria ter provado os pressupostos legitimadores da sua actuação, o que não sucedeu – tendo-se limitado, ao invés, a lançar dúvidas sobre a adequação de valores e sobre os contornos de empréstimos entre entidades com “relações especiais”.

Em concreto, da leitura do RIT resulta que a Requerida reagiu, não propriamente aos encargos financeiros suportados pela Requerente, mas à circunstância de aquilo que ela entendeu ser um mútuo concedido à J... não ter gerado juros.

Ao estabelecer um nexo entre o empréstimo obtido pela Requerente junto da banca e os adiantamentos realizados à J..., referindo que o empréstimo bancário visou a concessão de financiamentos não remunerados, não só a Requerida se aventurou pelos domínios da conjectura desamparada da prova que lhe cabia produzir, como pareceu querer regredir para o recanto mais rígido do espectro hermenêutico que se estabeleceu em torno da anterior versão do art. 23.º do CIRC – esquecendo que, abolido o requisito da “indispensabilidade”, a simples prova da efectividade dos gastos e de um nexo de causalidade económica entre o encargo suportado e a actividade desenvolvida pela Requerente bastará para satisfazer os requisitos desse art. 23.º do CIRC.

A Requerida podia ter ido, e talvez devesse ter ido, por um outro caminho na exploração do facto que a fez reagir – mas não o caminho do estabelecimento de um nexo entre o empréstimo bancário obtido e os “financiamentos” concedidos pela Requerente: nexo que fica por provar, e, portanto, insiste-se, não sai dos domínios da conjectura, a qual, por mais legítima que seja, não constitui prova.

Esse outro caminho possível, e mais abstractamente viável, teria sido o de, desde a inspecção tributária, a Requerida ter sujeitado o alegado mútuo, concedido pela Requerente à J..., aos critérios do regime de preços de transferência previsto no artigo 63º do CIRC, procedendo, ao abrigo desse regime, aos ajustes que considerasse necessários para fazer cumprir o princípio de plena concorrência.

Mas, por razões que não nos cabe sindicar, a Requerida optou por não seguir por esse caminho, preferindo-lhe um outro que exigia uma prova de que ela não dispunha, e que não fornecia um standard de comparação que permitisse retirar conclusões relevantes – como o autorizaria o standard do regime de preços de transferência, que permite comparar as condições praticadas pelas partes com as condições de plena concorrência.

Como melhor veremos adiante, dadas as “relações especiais” que existem entre a Requerente e a J..., a Requerida deveria ter lançado mão do regime de preços de transferência, para, com ele, fundamentar as correcções a que procedeu.

Mas não o fez.

Ora, não tendo invocado o regime de preços de transferência, ficou vedado à Requerida apurar uma taxa de custo efectivo do capital alheio para aplicá-la ao montante dos financiamentos que ela julgou terem sido concedidos pela Requerente à J..., ficcionando (a um padrão de plena concorrência) os juros cuja falta tinha detectado. 

É destituído de fundamento legal presumir que os custos inerentes a um movimento financeiro são o disfarce para um outro movimento financeiro, para daí retirar ilações acerca da subsunção ao art. 23.º do CIRC, nomeadamente as ilações de que se transgrediu os limites do “fim empresarial”, ou de que a Requerente se endividou excessiva e inutilmente.

Na prática, a Requerida limitou-se a estimar indiretamente o valor dos encargos financeiros que ela presumiu estarem conexos com os financiamentos que ela julgou terem sido concedidos pela Requerente: o que substancialmente corresponde ao recurso a uma avaliação indirecta, mas sem invocação expressa do art. 87.º da LGT e sem subordinação aos respectivos requisitos.

Ou seja: os encargos financeiros (juros) suportados pela Requerente nos anos de 2019 (no montante de € 10.288,28) e de 2020 (no montante de € 7.583,91), tal como estão documentados, apresentam racionalidade económica do ponto de vista da actividade estatutária da Requerente e do seu interesse empresarial próprio e exclusivo – ainda que articulados informalmente com ganhos fiscais do “grupo” em que a Requerente se integra.

A motivação, no momento da concretização da operação, de uma perspectiva, directa ou indirecta, imediata ou mediata, de retorno económico futuro, em ordem à manutenção e desenvolvimento da actividade empresarial da Requerente na prossecução do lucro, designadamente para distribuição de lucros, mostra-se, assim, comprovada; e ainda o estaria nos moldes de uma potencialidade abstracta de incremento de proveitos com os gastos de financiamento incorridos na outra empresa que integra o “grupo”.

O ponto decisivo é este: a concomitância do financiamento bancário obtido pela Requerente, por um lado, com “adiantamentos” facturados pela J... à Requerente, por outro, não provam que estes tenham sido a causa daquele, e menos provam ainda a existência de uma “instrumentalização” nos termos da qual a Requerente se teria onerado para exclusivo, ou predominante, benefício da J... .

 

IV.B.2 - Custos com os serviços facturados pela J... à Requerente (incluindo “Serviços e assistência técnica” e “Participação nos custos fixos mensais”)

 

Por outro lado, e em especial no que respeita à facturação dos serviços prestados pela J... à Requerente em 2019 e em 2020, abarcando a referência a “serviços e assistência técnica” e a “participação nos custos fixos mensais”, cabe recordar que o ónus da prova incumbe ao sujeito passivo, por estar em causa um facto constitutivo de deduções invocadas (art. 74.º, 1 da LGT).

A este respeito, constitui pertinente orientação jurisprudencial que: “Se a contabilidade organizada goza da presunção de veracidade e, por isso, cabe à AT o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando que os factos contabilizados não são verdadeiros, já no que respeita à qualificação das verbas contabilizadas como custos dedutíveis, cabe ao contribuinte o ónus da prova da sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtora, se a AT questionar essa indispensabilidade” (cfr. os acórdãos do TCA Norte de 11-02-2016, proc. n.º 00080/03 e do TCA Sul de 02-02-2010, proc. n.º 03669/09 e de 16-10-2012, proc. n.º 05014/11).

Nestes termos, para serem fiscalmente dedutíveis, os gastos contabilizados fundadamente questionados pela AT teriam de ser objecto de comprovação objectiva por parte do sujeito passivo que os contabilizou.

Nos termos do disposto no art. 23.º do CIRC, são dois os requisitos para que os custos ou perdas das empresas sejam dedutíveis do ponto de vista fiscal: que sejam comprovados com documentos emitidos nos termos legais, e que sejam incorridos ou suportados para a realização dos proveitos tributáveis.

Importa, para tanto, averiguar se estão ou não verificados os requisitos formais exigidos para a comprovação dos custos, pois a não-verificação implicará a sua indedutibilidade.

A Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que procedeu à reforma da tributação das sociedades, alterou o CIRC e efectuou uma alteração do paradigma que existia quanto à aceitabilidade fiscal dos gastos fiscais, ao aditar um n.º 6 ao art.º 23.º do CIRC, relativo aos gastos e perdas, passando a impor expressamente que, quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado à emissão de factura nos termos do CIVA, o documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços deve obrigatoriamente observar e assumir a forma dos novos requisitos previstos no n.º 4 do mesmo art.º 23.º, nomeadamente:

a)    nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;

b)    números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se trate de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

c)    quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

d)    valor da contraprestação, designadamente o preço;

e)    data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.

O legislador, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2014, quis expressamente equiparar as exigências formais do documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços do IRC às exigências formais do art. 36.º, 5 do CIVA, sempre que se trate de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional, estabelecendo como obrigação dos sujeitos passivos “Emitir uma fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços”.

Como expressamente se lê na decisão do Proc. n.º 844/2019-T do CAAD, tem-se admitido que “no tocante ao suporte documental dos gastos é admissível, para além da fatura, qualquer prova documental que contenha os elementos a que se refere o n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC, não obstante à relevância atribuída à fatura, constante no n.º 6, do mesmo artigo”, desde que isso permita comprovar a materialidade das operações no quadro da actividade empresarial do sujeito passivo, não gerando riscos de fraude ou evasão fiscal.

As exigências formais compreendem a vertente interna e a externa. Os documentos internos são elaborados na empresa, normalmente para uso exclusivo interno (por exemplo folhas de férias, notas de lançamento). Os documentos externos são aqueles que provêm do exterior ou a ele se destinam ao exterior, como as facturas, recibos e notas de débito, e são estes que normalmente cabem no conceito de “documentos justificativos”, que devem acompanhar todo e qualquer gasto.

Sobre esta questão existe abundante jurisprudência, tendo a este propósito ficado consignado, designadamente no Acórdão do STA de 5/7/2012, proc n.º 0658/2012, que

É possível recortar dois tipos essenciais de falhas formais. As primeiras resultam da ocorrência de erro ou vício no lançamento das operações na contabilidade, traduzidas na falta ou vício no registo ou na sua subsunção numa errada rubrica. Neste caso, o documento externo existe e é idóneo, mas verifica-se a incorrecção do respectivo suporte interno. Em relação às segundas, mais complexas, e mais correntes, o problema situa-se ao nível do documento externo que acompanha as transacções e que inexiste ou é insuficiente. Nesta última situação, a resolução do problema pressupõe, desde logo, que se determine o que deva entender-se por «documento justificativo», uma vez que o CIRC não oferece qualquer noção operativa. Resulta linearmente da lei e do princípio da praticabilidade que informa o direito fiscal que os custos têm de estar devidamente documentados. O problema que a lei não resolve expressamente no âmbito do IRC é o de saber quais as exigências concretas que o conteúdo desse documento deve observar: bastará um simples documento interno ou será preciso uma factura completa?

No acórdão que vimos seguindo conclui-se que “(…) em sede de IRC, o documento comprovativo e justificativo dos custos para efeitos do disposto nos arts. 23º, nº1, e 42º, nº 1, alínea g), do CIRC não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as facturas em sede de IVA. A exigência de prova documental não se confunde nem se esgota na exigência de factura, bastando tão-só, para alguns autores, um documento escrito, em princípio externo e com menção das características fundamentais da operação”, uma vez que constitui também “jurisprudência do STA [Acórdão de 27/9/2000, recurso nº 25033] de que ao contrário do que se passa com o IVA, em sede de IRC, a justificação do custo consubstancia uma formalidade probatória e, por isso, substituível por qualquer outro género de prova.

Em suma, ao contrário do que se passa no IVA, no IRC as exigências formais quanto à comprovação dos custos serão menos estritas, bastando que o documento justificativo explicite de forma clara as principais características da operação, isto é, os sujeitos, o preço, a data e o objecto da transacção, admitindo-se mesmo que a comprovação do custo não tenha de ser feita de modo exclusivo através de documento escrito.

Como salienta Freitas Pereira,

Um documento de origem interna só pode substituir-se um documento de origem externa quando sejam reunidas provas adicionais que confirmem a autenticidade dos movimentos nele reflectidos.(…) Dito de outro modo : a substituição de um documento externo por um documento interno pode, no plano exclusivo da determinação do lucro tributável, não ser irremediável se, contendo este último todos os elementos indispensáveis que devia conter o primeiro, a veracidade da operação subjacente puder ser demonstrada.”[1]

Por outro lado, em relação às despesas devidamente documentadas (em relação às quais se presume a veracidade do custo para efeitos de determinação do lucro tributável em sede de IRC) compete à AT alegar a existência de elementos susceptíveis de pôr em causa essa veracidade, designadamente pela enunciação de indícios objectivos, sólidos e consistentes, que traduzam uma probabilidade elevada de que esses documentos não titulam operações reais.

Ao invés, no caso de despesas indocumentadas ou insuficientemente documentadas recai sobre o contribuinte o ónus de comprovar o respectivo custo, como lhe impõe o art. 23.º do CIRC, pela demonstração de que as operações se realizaram efectivamente, sendo-lhe possível para o efeito recorrer a outros meios de prova (designadamente a meios complementares de prova documental e prova testemunhal) para o demonstrar e convencer da bondade do correspondente lançamento contabilístico e da ilegalidade da correcção que a Administração Tributária tenha levado a efeito por virtude dessa falta ou insuficiente documentação (cfr., entre outros, o Acórdão do STA de 16/03/2005, proferido no processo 00340/03, ou o Acórdão de 09/09/2015, proferido no processo n.º 028/2015).

De acordo com estes critérios acabados de enunciar, as duas principais facturas emitidas pela J..., com as quais a Requerente pretendeu documentar, seja os serviços a si prestados pela J... em diversos projectos, seja em assistência técnica, seja numa partilha de custos fixos, assemelham-se a “encontros de contas” nos quais são enquadrados todos os créditos e débitos recíprocos que resultam das “relações especiais” existentes entre ambas as entidades, e portanto não contêm o detalhe, a especificação, que seriam exigidos de um suporte documental completo.

No entanto, há que reconhecer que a Requerente se multiplicou em esforços para corrigir essas deficiências iniciais da facturação, buscando, com prova documental e testemunhal, recobrir todos os recantos da colaboração entre ambas as entidades nos períodos de referência, por forma a esclarecer a efectiva materialidade das operações às quais as facturas fazem referência.

Cabe aqui assinalar, de novo, que tais deficiências de facturação poderiam ter sido evitadas através da adopção inicial das regras próprias do regime de preços de transferência, das quais a Requerente não estava dispensada (apenas o estando quanto à elaboração de um “dossier de preços de transferência”, nos termos do art. 13.º, 3 da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro).

Teria sido do próprio interesse da Requerente lançar mão de tais regras, ganhando em segurança e transparência que teriam evitado equívocos contabilísticos com implicações fiscais, como é comum que aconteça em situações de “relações especiais” nas quais não tenham sido adoptadas tais regras.

Devendo notar-se – para que não subsistam equívocos – que a AT também não invocou formalmente a existência de “relações especiais”, nem convocou o regime dos preços de transferência, para proceder à correcção das liquidações por desconsideração da facturação dos serviços prestados pela J... à Requerente: o que, entre outras consequências, teria determinado a aplicação, à decisão da AT, dos deveres  estatuído no art. 77.º, 3 da LGT.

Seja como for, o standard de prova que é admissível nestes casos permite-nos concluir que a materialidade dos actos documentados em tais facturas efectivamente corresponde aos valores indicados.

Ou seja, a não observância das regras próprias do regime de preços de transferência não induz que os serviços não ocorreram, acarretando apenas um menor rigor na aplicação dos procedimentos administrativos que regem as relações entre as partes. Nem induz, por outro lado, que não seja possível identificar os serviços prestados. As exigências formais em sede de comprovação de gastos visam propiciar à AT um eficaz controlo das relações económicas. Não obstante, tais exigências não podem servir de presunção de não ocorrência de operações, quando esteja aberta a via de comprovação por outros documentos.

Poderia ainda, especialmente no que se refere ao item “serviços e assistência técnica / participação nos custos fixos mensais”, questionar-se se os serviços, uma vez determinada a sua materialidade, foram prestados no interesse da J..., como sócia da Requerente, ou no interesse da própria Requerente.

Afigura-se que os serviços em análise visam o acompanhamento e controlo da actividade da Requerente, a maximização dos seus resultados. Se não fossem por ela adquiridos à J..., teriam presumivelmente de sê-lo a entidades externas, subcontratando, ou internalizados, via contratação de novos colaboradores qualificados para o efeito. Cabe na autonomia da administração, na liberdade de gestão, a opção pela entidade com a qual a Requerente tinha já relações especiais, como ficou consignado no contrato celebrado para o efeito: o que não significa necessariamente uma opção pela descapitalização da Requerente, significando a exploração de “sinergias de grupo” pela adopção de um modelo de controlo de gestão centralizado, denominado vulgarmente por “serviços partilhados” – cujos custos se tornam indispensáveis à realização de rendimentos, devendo, por isso, ser considerados fiscalmente dedutíveis.

Em suma, as “relações especiais” entre a Requerente e a J... deveriam ter sido acompanhadas de um cuidado de enquadramento e de documentação, entre ambas as entidades, muito maior do que aquele que se verificou; não obstante, a comprovação da materialidade das operações entre elas ficou facilitada pela própria existência das referidas “relações especiais”, gerando prova documental e testemunhal susceptível de contrabalançar as deficiências documentais de base.

 

IV.B.3 - Custos com os serviços facturados pela L... Unipessoal à Requerente

 

Não assim no que se refere aos serviços prestados à Requerente pela L... Unipessoal, pois aí a ausência de “relações especiais” não gerou o rasto documental que permitisse colmatar as lacunas geradas pela facturação, que não corresponde adequadamente aos requisitos estabelecidos nos n.os 4 e 6 do art. 23.º do CIRC.

Impressiona particularmente a circunstância de, em pleno exercício do inquisitório, os serviços da AT terem apurado, em contacto directo com a clientela identificada na facturação da “L...”, que todos os clientes foram peremptórios em negar qualquer envolvimento do comissionista cuja intervenção teria sido apresentada como a base de tal facturação, reiterando, pelo contrário, que todas as negociações se desenvolveram directamente com a ora Requerente.

Não se trata agora senão de constatar que, insatisfeitos tais requisitos, e na ausência de sucedâneos documentais, não está alcançado o standard probatório exigível – e que a consequência é, nos termos do art. 75.º, 2 da LGT, o abandono da presunção de veracidade das declarações do contribuinte, e a oneração deste com a prova dos factos constitutivos dos direitos que se arroga, nos termos do art. 74.º, 1 da LGT.

Não se trata, neste ponto, de aferir sequer se está preenchido, ou não, o requisito do art. 23.º, 1 do CIRC, de funcionalização dos gastos apresentados à obtenção ou garantia dos rendimentos sujeitos a IRC: porque uma tal aferição pressupõe que previamente estaria assegurada a prova da efectividade desses gastos – e essa prova não foi feita, de modo satisfatório.

Em síntese, dir-se-á que nem a mais ampla e generosa regra de dedutibilidade das “business expenses” poderá compadecer-se da falta de comprovação da materialidade de tais despesas, gastos e perdas – e daí que, como referimos antes, não possam aceitar-se fiscalmente aqueles gastos que, não obstante serem abstractamente apropriados, úteis, adequados, não se tenha demonstrado que efectivamente o foram – por falta de prova de que, nos períodos de tributação de referência, tenham sido “gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo”. Ou seja, como sublinhámos anteriormente, e resulta do estatuído nos n.os 3, 4 e 6 do art. 23.º do CIRC, mesmo no respeito de uma latitude razoável na gestão das empresas, a AT não tem que aceitar como dedutíveis todos e quaisquer encargos apresentados pelas empresas – começando, evidentemente, por aqueles que, por insuficiência de comprovação, não se pode concluir sequer que tenham sido efectivamente incorridos.

Ressalve-se que aos contribuintes assiste o direito ao livre desenvolvimento de uma actividade económica, que pode ser exercida através do modelo de organização empresarial que aqueles entendam ser mais adequado para o efeito, conforme decorre dos princípios da liberdade de iniciativa económica privada e da liberdade de iniciativa, organização e gestão empresarial previstos nos artigos 61º, 1, 80º, c) e 86º, 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP). 

Sendo a liberdade de gestão fiscal corolário da tutela conferida por aqueles princípios – liberdade nos termos da qual se assegura aos contribuintes a necessária amplitude na planificação das actividades económico-empresariais, e na escolha das opções que permitam uma maximização de receitas e uma optimização de custos, com a consequente obtenção, dentro dos limites da lei, de todas as vantagens fiscais possíveis.

Não está em causa que a “boa gestão fiscal” suponha a minimização dos custos fiscais, a “economia” ou “poupança” fiscal, avaliando as consequências económicas e fiscais das suas escolhas, buscando a optimização dos seus meios e a maximização dos seus resultados – dos seus proveitos.

Mas esse direito não é absoluto, e deve subordinar-se às opções expressas na lei relativamente à ponderação de valores e interesses que devam funcionalizar o exercício da própria liberdade económica, demarcando o exercício da liberdade económica por balizas de legitimidade e admissibilidade – fronteiras para lá das quais a referida ponderação qualificará com abusivo o exercício da mesma liberdade económica.

Mas, antes e acima disso, esse direito ao planeamento fiscal (lícito) supõe o rigoroso cumprimento das leis tributárias – e, logo, o acatamento estrito de standards probatórios que permitam a comprovação da fronteira que demarca a conduta lícita, de planeamento “secundum legem”, de práticas abusivas e censuráveis de evasão fiscal (“tax evasion”) ou de elisão fiscal (“tax avoidance”).

É por ausência de comprovação da simples materialidade dos factos aludidos na facturação à “L...” que não se suscitou na acção inspectiva, nem está em causa no presente processo, a prática de actos simulados ou a existência de finalidades fraudulentas, sendo que as liquidações correctivas assentaram na simples verificação do deficiente preenchimento de pressupostos legais em que tinham assentado os valores apresentados pela Requerente – sem mais.

O que torna desnecessário que se invoque, ou lance mão, de um instrumento de índole diversa, com requisitos próprios, como é a Cláusula Geral Anti-Abuso (CGA), com a sua sanção de ineficácia para actos de evasão e de elisão (arts. 38.º da LGT e 63.º do CPPT) – mas não interfere na aplicabilidade de regras de preços de transferência, já que, como tem sido notado pela doutrina, a aplicação do instituto dos preços de transferência é independente de qualquer motivação fiscal do contribuinte, e da existência, ou não, de qualquer abuso culposo[2].

 

IV.B.4 - Gastos com artigos para oferta

 

Entendemos estar comprovada a materialidade dos eventos para os quais a Requerente decidiu produzir as ofertas em relação às quais persistiram dúvidas da AT. E pelo contrário, consideramos desproporcionadas as exigências probatórias que levaram à desconsideração, pelos SIT, destes específicos gastos.

 

IV.B.5 - A alegada falta de credenciação das Ordens de Serviço das Inspecções Tributárias

 

Quanto ao alegado vício de falta de credenciação das Ordens de Serviço que deram início aos procedimentos de Inspecção Tributária, cremos que a Resposta da Requerida é esclarecedora quanto à respectiva regularidade, mormente em termos de notificação. Mas, mesmo que assim não fosse, não teríamos legitimidade para nos pronunciar, porque a insuficiência de notificação constituirá uma deficiência procedimental para a qual existem meios de reacção próprios, a serem accionados em prazos próprios, a tempo de susterem, ou sanarem, o próprio procedimento iniciado (art. 37.º do CPPT) – e não no âmbito da jurisdição arbitral, e não depois de esgotados os referidos prazos, o que leva a dever entender-se sanada qualquer irregularidade que possa ter existido[3].

Aproveitemos para afastar a sugestão, presente em diversos pontos da argumentação da Requerente, de que teria ocorrido uma violação do princípio do inquisitório, por falta de diligência instrutória da parte da AT. É certo que o art. 58.º da LGT impõe à AT, antes de mais, um juízo de necessidade: deve ponderar-se se uma diligência é necessária (adequada, útil) para se alcançar o duplo objectivo da satisfação do interesse público e da descoberta da verdade material; e só em função desse primeiro juízo é que a AT fica obrigada, por razões que se prendem com o dever de imparcialidade, a realizar todas as diligências que tenham sido consideradas como necessárias (por uma avaliação sua que é contenciosamente sindicável), e a não se escudar numa espera da iniciativa do contribuinte (como se se tratasse de acatamento do princípio dispositivo em processo). Em contrapartida, nunca pode presumir-se que uma diligência é necessária; essa necessidade deve resultar do próprio regime jurídico – pelo que sempre haverá uma margem de livre apreciação da AT sobre as diligências que são de considerar potencialmente úteis. E só depois de provada a necessidade de uma diligência (necessidade que, insista-se, não se presume), a sua omissão poderá representar uma violação dos princípios do inquisitório e da imparcialidade, afectando os pressupostos probatórios em que assenta a decisão procedimental.

No caso, a AT não era obrigada a seguir, ponto por ponto, todas as sugestões e todas as “pistas” fornecidas pela Requerente – como, por exemplo, contactos com a clientela da Requerente e da J..., para preencher lacunas probatórias imputáveis à própria Requerente – devendo, neste ponto, remeter-se para a fundamentação da decisão no Proc. nº 652/2021-T do CAAD: “afigura-se claro que o princípio do inquisitório não tem por escopo suprir falhas das partes, designadamente nas hipóteses em que estas não procedem ao cumprimento de deveres declarativos ou à impugnação oportuna de atos tributários”.

Por outras palavras, a AT não fica subordinada a ter que aceitar toda e qualquer prova que um interessado queira apresentar-lhe, sob pena de deixar-se enredar em actos inúteis e em esforços fúteis: “A eventual degradação da formalidade em questão em formalidade não essencial, preservando a legalidade do ato final do procedimento, apenas é de aceitar quando se possa concluir que a realização das diligências instrutórias ilegitimamente omitidas levaria à corroboração da base factual fixada sem a realização das mesmas[4].

Não se detecta, em toda a documentação resultante dos procedimentos inspectivos, a preterição de qualquer formalidade essencial, necessária, adequada ou útil, cuja não-preterição conduzisse, de alguma forma, a um desfecho diverso daquele que concluiu os referidos procedimentos.

O que se adequa ao princípio geral consagrado no art. 58º do Código do Procedimento Administrativo:

O responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos que participem na instrução podem, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados” (sublinhado nosso).

Havendo, pois, um limite de razoabilidade para aquilo que pode reclamar-se da actuação da AT na descoberta da verdade material. Como lapidarmente se estabelecia na decisão do Proc. nº 413/2022-T do CAAD:

a verdade é que o acesso à justiça ou o direito à tutela judicial efetiva não é um direito absoluto, devendo articular-se em conformidade com outros princípios e valores fundamentais da ordem jurídica constitucional, como a certeza e a segurança jurídicas, ao serviço dos quais se encontra a fixação de prazos de acesso aos tribunais. Acresce que a existência de prazos legais de acesso aos tribunais também serve o princípio da igualdade de tratamento, não podendo olvidar-se que os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade que enformam a atividade da AT impõem a correção oficiosa (como remédio último), mas desde que verificados os respetivos pressupostos. E nunca a mero título de uma alegada prevalência da justiça material sobre a forma. A prevalecer este entendimento facilmente se cairia no arbítrio”.

Não tendo ocorrido, portanto, qualquer violação do princípio do inquisitório.

 

IV.B.6 - A questão dos juros compensatórios

 

Quanto à questão dos juros compensatórios, lembremos que os juros compensatórios têm um carácter sancionatório, e são devidos pelo sujeito passivo com o propósito essencial de ressarcir a Administração pelo atraso na liquidação do imposto que a ele seja imputável, apontando para o caso mais frequente em que o contribuinte entrega a declaração de rendimentos fora dos prazos legais, prejudicando a liquidação atempada do imposto – compensando a AT pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente.

Lembremos ainda que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil, e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação, a título de dolo ou de negligência. Nesse contexto, constituem requisitos essenciais para a liquidação de juros compensatórios a existência de uma dívida de imposto, de um atraso na efectivação de uma liquidação desse imposto e da imputabilidade do atraso à actuação culposa do contribuinte. Consistindo a culpa na omissão reprovável de um dever de diligência, que tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência. Os juros compensatórios decorrentes do atraso na liquidação do respectivo imposto (art. 91.° do CIRS, art. 102.° do CIRC e art. 96.° do CIVA) pressupõem a existência de dolo ou negligência do contribuinte pelo atraso ou falta da liquidação.

O princípio dominante é o de que, na ausência de prova do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e uma actuação do contribuinte que fosse susceptível de um juízo de censura ético-pessoal, deixam de estar preenchidos os requisitos de que depende a legalidade de juros compensatórios: lembremos que os arts. 102.º, 1 do CIRC e 35.º, 1 da LGT reclamam, para que acresçam juros compensatórios ao montante de imposto devido, que o atraso na liquidação seja devido a facto imputável ao sujeito passivo.

Verificando-se porventura que o eventual atraso na liquidação se ficou a dever a mera e compreensível divergência de critérios entre a AT e o contribuinte, ou a erro desculpável deste, não são devidos aqueles juros. E há que reconhecer que, no que respeita ao tema central da liquidação do imposto, o presente processo, e os procedimentos que o antecederam, revelaram apreciável complexidade, sendo plausível que o retardamento da liquidação se tenha ficado a dever a compreensíveis dúvidas, dificuldades ou divergências razoáveis de critérios quanto à qualificação e enquadramento da situação tributária, caso em que o facto determinante, ainda que fosse imputável ao contribuinte, poderia considerar-se como constituindo um erro desculpável, insusceptível de ocasionar o direito a juros compensatórios – como especificamente sucederá quando a lei apresente dificuldades de interpretação e a opção realizada pelo contribuinte, ainda que defensável, tenha sido posta em causa, com ou sem sucesso, pela Administração.

No caso vertente, o atraso na liquidação ficou a dever-se, não a um comportamento omissivo e censurável do sujeito passivo, mas a um procedimento inspectivo desencadeado pela Autoridade Tributária e que conduziu a uma diferente qualificação jurídica dos factos tributários – condicionalismo em que, não podendo imputar-se à culpa da Requerente a inexactidão em que ela incorreu a Requerente, não se mostra justificado o pagamento de juros compensatórios por atraso na liquidação do imposto.

 

IV.B.7 - A questão da constituição de seguro para garantia idónea para suspensão do processo de execução fiscal

 

Quanto à questão da constituição de seguro para garantia idónea da suspensão do processo de execução fiscalficou demonstrado nos autos que a Requerente teve de proceder à constituição de garantias para suspensão do processo de execução instaurado para cobrança da dívida referente aos actos de liquidação em crise.

Deste modo, na parte em que lhe foi dada razão, no âmbito do presente pedido arbitral, reconhecendo-se a ilegalidade do procedimento adoptado pela AT, e, em consequência, a ilegalidade da alguns dos actos de liquidação em crise, terá a Requerente de ser ressarcida, a final, dos encargos suportados com a prestação daquelas garantias.

Só assim será assegurada, como impõe o art. 100.º da LGT, a imediata e plena reconstituição da situação que existiria, caso não tivesse sido cometida tal ilegalidade.

Esclareça-se que, quanto ao requisito da verificação de “erro imputável aos serviços”, é jurisprudência do STA que:

embora o conceito de erro imputável aos serviços” aludido na 2.ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro” – Acórdão de 06.02.2013, Proc. n.º 0839/11.

A jurisprudência do STA estabelece também que:

existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração” – Acórdão de 19.11.2014, Proc. n.º 0886/14.

E estabelece ainda que:

não pode bastar para atribuir o erro à atuação do sujeito passivo, entre o mais, a existência de uma declaração apresentada ou a prestação de uma informação, por este, aos serviços da AT, porquanto se trata de comportamentos a que está, legalmente, vinculado, sendo imprescindível avaliar, ainda, o grau de determinabilidade e/ou essencialidade do conteúdo de tal conduta/elementos, no sentido da posição final, errónea, traduzida no ato tributário praticado (e a rever).” – Acórdão de 07.04.2022, Proc. n.º 02931/16BEBRG.

Assim, sem prejuízo das demais condições, uma vez que o erro decorreu de correcções promovidas em resultados de inspecções tributárias, considera-se esse erro “imputável aos serviços”, desde logo porque tal erro não é associável à conduta da Requerente.

Nestes termos, deverá ser reconhecido o direito da Requerente ao pagamento da indemnização devida, nos termos previstos no art. 53.º da LGT, pelos encargos suportados com a prestação da referida garantia, na proporção do vencimento da presente acção – e, nos termos do n.º 2 do mesmo art. 53.º, sem subordinação ao prazo referido no n.º 1 desse artigo, visto que parte das liquidações impugnadas ficaram a dever-se a erro imputável aos serviços.

 

IV.C. Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão 

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em: 

 

a)     Declarar improcedente a excepção apresentada pela Requerida.

b)    Julgar improcedente o pedido, mantendo parcialmente na ordem jurídica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e os actos a que ela se refere, no que respeita à desconsideração dos valores facturados pela “L... Unipessoal” à Requerente;

c)     Julgar procedente o restante pedido de pronúncia arbitral, anulando parcialmente a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e os actos a que ela se refere;

d)    Condenar a Requerida à devolução de juros compensatórios;

e)     Condenar a Requerida à indemnização pelos encargos suportados com a prestação da garantia constituída para suspensão do processo de execução fiscal;

f)     Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas do processo, na proporção dos respectivos decaimentos.

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 331.307,10 (trezentos e trinta e um mil, trezentos e sete euros e dez cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 5.814,00 (cinco mil, oitocentos e catorze euros), € 523,00 a cargo da Requerente e € 5.291,00 a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 9 de Outubro de 2025

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Arlindo José Francisco

 

Luís Alberto Ferreira Alves

 



[1] Cfr. “Relevância, em termos de apuramento do lucro tributável, de documentos internos justificativos de compras de existências”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 365, 1992, pp. 346 ss.

[2] Cfr. Morais, Rui D. (2006), “Sobre a Noção de Cláusulas Antiabuso”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, p. 888. 

[3] Cfr. Jorge Lopes de Sousa (2011), Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., Áreas Editora, pp.349 ss.

[4] Pedro Vidal Matos (2010), O Princípio Inquisitório no Procedimento Tributário, Coimbra, Wolters Kluwer / Coimbra Editora, p. 147.