SUMÁRIO:
I. «O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. A interpretação do artigo 63.º do TFUE acabada de mencionar é incompatível com o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que este último limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-membros da União Europeia» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB (na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
II. «Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.os 1 e 3, da LGT» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 29 de junho de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 093/21.7BALSB.
DECISÃO ARBITRAL
As Árbitras Alexandra Coelho Martins (Árbitra Presidente), Sílvia Oliveira (Árbitra Adjunta) e Sónia Fernandes Martins (Árbitra Adjunta e Relatora), designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral coletivo constituído a 15 de abril de 2025, decidiram o seguinte:
I. Relatório
1. A..., doravante Requerente, organismo de investimento coletivo ("OIC") constituído e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, contribuinte fiscal português n.º ... e contribuinte fiscal francês n.º..., com sede em ..., ... Paris, em França, representado pela sua entidade gestora B..., S.A., pessoa coletiva de Direito francês n.º ..., sob a forma de “société par actions simplifiée”, com sede em ..., ... Paris, em França (“Requerente”), apresentou perante o CAAD, dirigido ao seu Ex.mo Presidente, pedido de pronúncia arbitral a 4 de fevereiro de 2025, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAMT”).
2. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente solicitou ao Tribunal Arbitral a declaração de ilegalidade (e concomitante anulação) das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), no montante total de 194.914 EUR, atinentes ao período de tributação de 2022, operadas mediante o mecanismo de retenção na fonte sobre dividendos de fonte portuguesa, constituindo tais atos tributários o objeto mediato da ação arbitral. Peticionou, de igual modo, a restituição do imposto (194.914 EUR) e o pagamento de juros indemnizatórios.
3. A propositura da ação arbitral teve lugar após a apresentação, perante o Diretor de Finanças de Lisboa, de reclamação graciosa daqueles atos tributários, a 20 de junho de 2024, a qual foi indeferida por decisão de 18 de novembro de 2024 do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, constituindo esta decisão o objeto imediato da ação arbitral.
4. No âmbito do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pugnou pela preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, por via disso, pela violação do princípio do primado do Direito da União Europeia plasmado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), porquanto a impossibilidade de aplicação na sua esfera (enquanto OIC não residente em território nacional) do regime ínsito no artigo 22.º, n.os 1, 3, e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) consubstancia uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal:
«[…] [O] regime estabelecido no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, ao restringir a dispensa de retenção na fonte e a exclusão de tributação em sede de IRC aos dividendos auferidos por OIC residentes em Portugal, discrimina os OIC não residentes, residentes noutro Estado-membro da União Europeia, não obstante tais entidades não residentes serem constituídas e operarem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa, ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE. Por outras palavras, ainda que revestindo características equivalentes aos OIC residentes em Portugal, em cumprimento das condições previstas na Diretiva 2009/65/CE, os OIC não residentes são colocados numa situação de desvantagem comparativamente aos OIC residentes, tão-só em consequência de não terem a sua residência em Portugal. Como tal, o tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, encontra-se em violação do TFUE, ao constituir uma restrição às liberdades fundamentais e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, facto que deverá determinar a anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas e a consequente restituição do imposto indevidamente liquidado ao ora Requerente […]. [C]om a anulação de atos de retenção na fonte ilegais com fundamento na violação do artigo 63.º do TFUE, necessariamente serão devidos juros indemnizatórios desde a data da entrega da prestação tributária, sob pena de o regime previsto nos artigos 43.º, n.º 1, 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, ser incompatível com os princípios do primado e da efetividade do Direito da União e da cooperação, previsto no artigo 4 § do Tratado da União Europeia (“TUE”), e, bem assim, no tratamento discriminatório dos contribuintes não residentes que, no exercício da sua livre circulação de capitais, obtêm rendimentos de capitais de fonte portuguesa, sujeitos a retenção na fonte contrária ao Direito da União, na medida em que não permitiriam uma tutela ressarcitória plena do contribuinte que, em violação do Direito da União, se viu privado de determinada quantia pecuniária, indevidamente entregue junto dos cofres do Estado a título de imposto. Sem conceder e por mero dever de patrocínio, caso se suscitem dúvidas de que, com a anulação dos atos tributários de retenção na fonte objeto da reclamação graciosa n.º ...2024..., o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde a data da retenção na fonte sub judice, e estando em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que assume decisiva relevância para a questão sub judice, deverá suspender-se a presente instância e submeter-se a interpretação das normas em referência ao Tribunal de Justiça da União Europeia, competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação do Direito Comunitário, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE […]».
5. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Entidade Requerida”).
6. A 3 de fevereiro de 2025, foi paga a taxa de arbitragem inicial, bem como a taxa arbitral subsequente.
7. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD a 6 de fevereiro de 2025, tendo sido notificado à Entidade Requerida a 12 de fevereiro de 2025.
8. As Árbitras Signatárias foram designadas, em 27 de março de 2025, pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo as nomeações sido aceites, no prazo e termos legalmente previstos.
9. Na mesma data, as partes foram notificadas das referidas designações, não tendo manifestado vontade de as recusar.
10. O Tribunal Arbitral foi constituído a 15 de abril de 2025, tendo sido proferido despacho arbitral na mesma data, no sentido de notificar a Entidade Requerida para, nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do RJAMT, apresentar resposta, no prazo máximo de 30 dias e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional. Adicionalmente, foi ainda referido naquele despacho arbitral que a Entidade Requerida deveria remeter ao Tribunal Arbitral, dentro do prazo da resposta, cópia do processo administrativo.
11. No dia 12 de maio de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
12. Na sua resposta, a Entidade Requerida sustentou carecer de razão a posição perfilhada pelo Requerente e, para este efeito, referiu, em síntese, o seguinte:
«[N]o presente caso não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º. do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente. E, ainda, que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu Estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores. Ou seja, a aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes não pode levar a concluir, em nossa opinião, por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois, como se viu, embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não se pode afirmar que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados- membros que auferem dividendos com fonte em Portugal sejam objetivamente comparáveis. E, não sendo as situações comparáveis, parece difícil de aceitar o argumento da requerente de que a legislação nacional, e particularmente o artigo 22.º do EBF, está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais […]. [Por outro lado,] não cabe à administração tributária a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia […]. Em face do exposto e inexistindo qualquer ilegalidade sobre os atos impugnados, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios».
13. Por despacho de 14 de maio de 2025, o Tribunal Arbitral notificou as partes (i) da dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT; (ii) da faculdade de apresentação de alegações escritas simultâneas e (iii) da data-limite destinada à prolação da decisão arbitral (15 de outubro de 2025).
14. A 3 de junho de 2025, o Requerente apresentou alegações escritas, em sede das quais corroborou a posição que anteriormente sufragara.
15. A 9 de junho de 2025, a Entidade Requerida apresentou alegações escritas, tendo reiterado o entendimento que expressara em sede de resposta.
II. Saneamento
16. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.os 1, parte final, e 3, alínea a), 6.º, n.os 2, alínea a), 3 e 4, e 11.º do RJAMT.
17. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAMT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
18. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAMT.
19. Não se verificam nulidades e não foi invocada matéria de exceção pela Requerida, impondo-se, por isso, a apreciação imediata do mérito da causa pelo Tribunal Arbitral.
III. Matéria de Facto
20. Relativamente à matéria de facto, não impende sobre o Tribunal Arbitral o ónus de pronúncia sobre todos os factos alegados pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os que importam à boa decisão da causa e de discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT].
21. Deste modo, os factos pertinentes ao julgamento da causa foram selecionados e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida atentas as várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito carentes de resposta (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).
A. Factos provados e respetiva motivação
22. O Tribunal Arbitral considera assente a seguinte factualidade:
a. O Requerente é um OIC em valores mobiliários (“organisme de placement collectif en valeurs mobilières”), sob a forma de fundo comum de investimento (“fonds commun de placement”), com sede em ..., ... Paris, em França [cfr. documentos n.os 3, 4 e 5 do pedido de pronúncia arbitral];
b. O Requerente opera sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, ao abrigo da Loi n.º 2010-1249 du 22 octobre 2010, de régulation bancaire et financière, a qual transpôs para a ordem jurídica francesa a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC em valores mobiliários [cfr. documentos n.os 3, 4 e 5 do pedido de pronúncia arbitral];
c. A entidade B..., S.A., pessoa coletiva de Direito francês n.º..., sob a forma de “société par actions simplifiée”, com sede em ..., ... Paris, em França, assume o papel de sociedade gestora (“société de gestion”) do Requerente [cfr. documentos n.os 3, 4 e 5 do pedido de pronúncia arbitral];
d. A entidade C..., S.A., pessoa coletiva de Direito francês n.º ..., sob a forma de “société anonyme”, com sede em ..., ..., em França, assume o papel de depositário, conservador e gestor do passivo (“dépositaire, conservateur et gestionnaire du passif”) do Requerente [cfr. documentos n.os 4 e 6 do pedido de pronúncia arbitral];
e. O Requerente não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente em França, aí se encontrando sujeito à lei fiscal francesa [facto não controvertido entre as partes];
f. O Requerente não é tributado em sede de “imposto sobre o rendimento” em França (i.e., no seu Estado de residência):
«L'OPCVM en tant que tel n'est pas sujet à imposition» [tradução nossa: «O Fundo, enquanto tal, não está sujeito a tributação»] [cfr. documento n.º 4 do pedido de pronúncia arbitral];
g. A entidade B..., S.A. não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente para efeitos fiscais em França, aí se encontrando sujeita à lei fiscal francesa [cfr. documento n.º 5do pedido de pronúncia arbitral];
h. No ano de 2022, o Requerente manteve investimentos em território nacional mediante a detenção de participações diretas – de 1,12% e 1,14%, respetivamente – nas seguintes sociedades comerciais residentes (para efeitos fiscais) em Portugal [cfr. documentos n.os 6 e 7 do pedido de pronúncia arbitral]:
Sociedade portuguesa
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ISIN
|
Ações (n.º)
|
D..., SGPS, S.A.
|
PT...
|
788.951 [1]
|
E..., SGPS, S.A.
|
PT...
|
2.330.055 [2]
|
D..., SGPS, S.A.
|
PT...
|
695.213 [3]
|
i. No ano de 2022, por força da detenção das referidas participações sociais, o Requerente auferiu dividendos totalizando o montante bruto de 779.662 EUR [cfr. documentos n.os 6 e 7 do pedido de pronúncia arbitral]:
Tipologia de rendimentos
|
Data do pagamento
|
Montante bruto (EUR)
|
Dividendos
|
13-05-2022
|
157.790
|
Dividendos
|
25-05-2022
|
559.213
|
Dividendos
|
21-12-2022
|
62.659
|
j. Tais rendimentos foram tributados em Portugal em sede de IRC, mediante retenção na fonte, no montante total de 194.914 EUR [cfr. documentos n.os 6 e 7 do pedido de pronúncia arbitral]:
Tipologia de rendimentos
|
Montante bruto (EUR)
|
Retenções na fonte (EUR)
|
Dividendos
|
157.790
|
39.447
|
Dividendos
|
559.213
|
139.803
|
Dividendos
|
62.659
|
15.664
|
k. A sociedade F..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., ...-... Lisboa, enquanto entidade registadora e depositária de valores mobiliários (intermediário financeiro com residência fiscal em Portugal), assumiu o papel de substituto tributário [cfr. documento n.º 6 do pedido de pronúncia arbitral];
l. Nesse contexto, esta entidade reteve na fonte (aquando do pagamento) e entregou junto dos cofres do Estado, mediante a submissão das guias de retenção na fonte n.os ... e ..., IRC, no montante de 194.914 EUR, incidente sobre os dividendos acima discriminados [cfr. documento n.º 6 do pedido de pronúncia arbitral];
m. Em consequência, os dividendos auferidos pelo Requerente ascenderam ao montante líquido de 584.748 EUR [cfr. documentos n.os 6 e 7 do pedido de pronúncia arbitral]:
Montante bruto (EUR)
|
Retenções na fonte (EUR)
|
Montante líquido (EUR)
|
157.790
|
39.447
|
118.343
|
559.213
|
139.803
|
419.410
|
62.659
|
15.664
|
46.995
|
n. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo ao IRC, no montante de 194.914 EUR, suportado em Portugal, seja ao abrigo da Convenção destinada à Eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França (“CDT Portugal/França”), seja ao abrigo da lei interna francesa [cfr. documento n.º 6 do pedido de pronúncia arbitral];
o. No dia 20 de junho de 2024, o Requerente apresentou perante o Diretor de Finanças de Lisboa reclamação graciosa (n.º ...2024...), em sede da qual requereu a anulação das liquidações de IRC (i.e., dos atos de retenções na fonte), no aludido montante, referentes ao período de tributação de 2022 [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral];
p. A título adicional, o Requerente solicitou a restituição do montante total de imposto retido (194.914 EUR) e, bem assim, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral];
q. O Requerente alicerçou os fundamentos da sua reclamação graciosa na preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, face ao tratamento discriminatório injustificado, em sede de IRC, concedido aos OIC não residentes (por força da exclusão de tributação dos OIC residentes ínsita no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF) [cfr. documento n.º 1 do pedido de pronúncia arbitral];
r. Foi exarado, em 25 de setembro de 2024, despacho pelo Chefe da Divisão da Direção de Finanças de Lisboa (Justiça Administrativa), por subdelegação, no sentido de notificar o Requerente da intenção de indeferir a reclamação graciosa apresentada, com os seguintes fundamentos [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral]:
«V – ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER
Fazendo um enquadramento tributário da matéria controvertida dir-se-á que:
14. O Reclamante, não residente fiscal em Portugal e sem estabelecimento estável, é sujeito passivo de IRC, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 2.º do CIRC, incidindo o imposto apenas sobre os rendimentos obtidos em território nacional (país da fonte), nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 3 e n.º 2 do art.º 4.º, ambos do CIRC, à taxa de 25% nos termos do n.º 4 do art.º 87.º do CIRC, objeto de retenção na fonte a título definitivo ou liberatório, na data da verificação do facto tributário (pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos), cujas importâncias retidas devem ser entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas, nos termos da al. c) do n.º 1, al. b) do n.º 3, n.º 5 e n.º 6, todos do art.º 94.º do CIRC.
15. No entanto, se no momento da retenção for feita prova junto do substituto tributário, da verificação dos pressupostos da aplicação da CDT celebrada entre Portugal e a França (art.º 10.º n.º 2), nos termos da al. a) do n.º 2 do art.º 98.º do CIRC, pode ser aplicada a taxa reduzida de 15%.
Quanto à desconformidade do regime previsto no art.º 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, cumpre dizer o seguinte:
16. Através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro (2), procedeu-se à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do art.º 22.º do EBF (3), aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (4), conforme resulta do n.º 1 do art.º 22.º do EBF, e Circular n.º 6/2015.
17. Com a nova redação, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC, (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos art.ºs 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, conforme resulta do n.º 3 do referido art.º 22.º do EBF, (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual (n.º 6) e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (art.º 22.º n.º 10 do EBF).
18. Tal regime não é aplicável ao reclamante – pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação de França, por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do art.º 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente. Vejamos,
19. Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.º C – 545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que «O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.»
20. De notar que, o legislador prevê no n.º 10 do art.º 22.º do EBF uma dispensa (e não uma isenção) da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional (n.º 1).
21. Todavia, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
22. Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
23. E, no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento legal na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
24. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
25. Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC’s não residentes e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
26. Ora, no caso em apreço, conforme informado, o reclamante não é residente fiscal e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.
27. Pelo exposto, é de indeferir o pedido quanto aos períodos de RF/IRC de 2022.
28. Cumpre ainda referir que por não se verificarem in casu os pressupostos do n.º 1 e da alínea c) do n.º 3, ambos do artigo 43.º da LGT, fica prejudicada a apreciação do direito a juros indemnizatórios».
s. O Requerente foi notificado da referida intenção de indeferir a reclamação graciosa através do Ofício nº ..., de 26 de setembro de 2024, expedido através do registo CTT RH ... PT, da mesma data, bem como para exercer o seu direito de audição prévia, querendo, no prazo de 15 dias [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral].
t. O Requerente não exerceu o seu direito de audição [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral]
u. Por despacho de 18 de novembro de 2024, do Chefe da Divisão da Direção de Finanças de Lisboa (notificado por Ofício de 28-11-2024), a 2 de dezembro de 2024, foi convolada em definitiva a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, tendo o Requerente sido notificado daquela decisão através do Ofício (com numeração ilegível), de 28 de novembro de 2024, expedido através do registo CTT RH ... PT, de 29 de novembro de 2024 [cfr. documento n.º 2 do pedido de pronúncia arbitral];
v. No dia 4 de fevereiro de 2025, por dissentir da posição perfilhada pela Entidade Requerida, o Requerente propôs a ação arbitral na origem dos presentes autos;
w. Em sede do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou a declaração de ilegalidade (e consequente anulação) da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, das liquidações de IRC do período de tributação de 2022, no montante total de 194.914 EUR, assim como o reembolso deste quantitativo acrescido de juros indemnizatórios computados desde as retenções na fonte de imposto (alegadamente indevidas) até ao processamento das inerentes notas de crédito;
x. Em concreto, o Requerente sustentou a preterição da liberdade de circulação de capitais ínsita no artigo 63.º do TFUE e, por conseguinte, do princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, atenta a discriminação em sede de IRC – em desfavor das entidades (OIC) não residentes – operada pelo disposto no artigo 22.º, n.os 1, 3, e 10, do EBF;
y. No dia 12 de maio de 2025, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo;
z. Na sua resposta, a Requerida pugnou pela conformidade à lei da decisão de indeferimento da reclamação graciosa das liquidações de IRC e, consequentemente, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
B. Motivação
23. O Tribunal Arbitral formou a sua convicção após ter analisado (i) o acervo documental carreado para os autos pelo Requerente; (ii) a resposta da Entidade Requerida e (iii) o processo administrativo.
24. No que diz respeito aos documentos anexados ao pedido de pronúncia arbitral, redigidos em língua inglesa e/ou francesa (cfr. documentos n.os 3, 7 e 8), para os efeitos ora em discussão, entende este Tribunal Arbitral que dado que a lei não impõe que os documentos a integrar nos autos estejam escritos na nossa língua cabe ao Tribunal Arbitral decidir se a respetiva tradução é necessária, estando, portanto, na discricionariedade do Tribunal Arbitral determinar a sua necessidade. No caso em análise, dado que o Tribunal Arbitral compreendeu o teor dos documentos em língua estrangeira, foram os mesmos admitidos como meio de prova, sem necessidade de tradução.
C. Factos não provados
25. Inexistem factos com relevância para a boa decisão da causa que não tenham sido dados como provados.
IV. Objeto da Pronúncia Arbitral
26. O thema decidendum da presente ação arbitral consiste em aferir da conformidade à lei – in casu, à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e, por via disso, ao princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP – do regime ínsito no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF e, por conseguinte, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, concomitantemente, das mencionadas liquidações de IRC por retenção na fonte, referentes ao período de tributação de 2022, no montante total de 194.914 EUR.
27. Nessa sequência, cumpre indagar do direito do Requerente à restituição do imposto retido, no montante total de 194.914 EUR, nos termos do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT), bem como do seu direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT (igualmente, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT).
V. Matéria de Direito
28. Quanto à matéria sob contenda, sem mais delongas, cumpre atentar na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a qual, por referência a situação similar à dos presentes autos (conducente, no presente caso, à “dispensa” da obrigação de reenvio prejudicial, prevista no artigo 267.º, 3.º parágrafo, do TFUE”), pelo Tribunal Arbitral], preconiza:
«O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção» – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
29. E, bem assim, na jurisprudência nacional, a qual visa “acomodar” o sentido decisório perfilhado por aquele Tribunal Europeu no âmbito do referido processo de reenvio prejudicial (Caso AllianzGi-Fonds).
30. Com efeito, neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo emitiu pronúncia uniformizadora de jurisprudência mediante a prolação do acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023 no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB[4].
31. Neste aresto – a cujo sentido decisório este Tribunal Arbitral expressa e integralmente adere –, o Supremo Tribunal Administrativo perfilha a seguinte posição:
«Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
A interpretação do artigo 63.º do TFUE acabada de mencionar é incompatível com o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-membros da União Europeia».
32. Do exposto resulta entender a referida jurisprudência que o artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF colide com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, por discriminar injustificadamente os OIC não residentes (face aos OIC residentes) em sede de IRC. [5]
33. Neste contexto, importa assim chamar à colação o regime de tributação em IRC dos rendimentos de capitais (i.e., dos dividendos) auferidos por OIC residente e não residente em Portugal (no pressuposto deste último ser residente em França, como sucede na situação dos presentes autos):[6]
Tributação de dividendos
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OIC não residente[7]
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OIC residente
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Retenção na fonte
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Sujeito
[artigo 94.º, n.os 1, al. c), 3, al. b), 5 e 6, do CIRC]
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Dispensado
[artigo 22.º, n.º 10, do EBF]
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Tributação a final
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Não sujeito
[nos termos da legislação francesa] [8]
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Não sujeito
[artigo 22.º, n.os 1 e 3, do EBF]
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Artigo 22.º do EBF (na redação do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro):
«São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional» [n.º 1];
«Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1» [n.º 3];
«Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1» [n.º 10].
Artigo 94.º do Código do IRC (“CIRC”):
«O IRC é objeto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português: rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à atividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada» [n.º 1, alínea c)];
«As retenções na fonte têm natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm carácter definitivo: quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis» [n.º 3, alínea b)];
«Excetuam-se do disposto no número anterior as retenções que, nos termos do n.º 3, tenham carácter definitivo, em que são aplicáveis as correspondentes taxas previstas no artigo 87.º [25%, nos termos do seu n.º 4]» [n.º 5];
«A obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC ocorre na data que estiver estabelecida para obrigação idêntica no Código do IRS ou, na sua falta, na data da colocação à disposição dos rendimentos, devendo as importâncias retidas ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas e essa entrega ser feita nos termos estabelecidos no Código do IRS ou em legislação complementar» [n.º 6].
34. Constata-se, pois, operar o regime doméstico um tratamento diferenciado em sede de IRC entre OIC residentes e não residentes – aqueles não são tributados sobre dividendos oriundos de sociedade residente em Portugal; estes são-no mediante retenção na fonte, de natureza liberatória, sem possibilidade de neutralização no Estado de residência do imposto suportado em Portugal, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França (atenta, desde logo, a inexistência de uma situação de dupla tributação jurídica internacional, face ao regime fiscal francês[9]) seja ao abrigo da legislação interna francesa.
35. Aqui chegados, cumpre então realçar (mediante transcrição) os excertos dos referenciados arestos europeu e nacional que darão “amparo” à ausência de justificação para a situação discriminatória em causa e, desse modo, às questões suscitadas pelas partes – e comummente emergentes desta temática –, levando a concluir pela preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE:
· Quanto à liberdade fundamental preterida (i.e., a liberdade de circulação de capitais):[10]
«No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-membro não podem beneficiar dessa isenção. Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes. Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º do TFUE […]» [sublinhados nossos] – cfr. Parágrafos 37 a 39 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Por força dos […] princípios da aplicabilidade direta e do primado, qualquer parte num litígio pode invocar em juízo, em apoio da sua pretensão, uma disposição comunitária e, se necessário for, solicitar a desaplicação de norma nacional com ela incompatível.
No caso “sub iudice” está em causa a apreciação de normas de direito interno (cf. artigo 22.º do EBF) e a sua compatibilidade com a liberdade de circulação de capitais, estatuída no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
· Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis (tornando inoperante qualquer derrogação à aplicação da liberdade fundamental preterida):
«[…] [H]á que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal [i.e., no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF] se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem. Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia[11] […]. Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes. Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 71 a 74 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Para aferir se existe, ou não, uma situação de discriminação é necessário determinar, desde logo, se as duas situações são, ou não, comparáveis […]. [C]omo regra, a condição de residente não é comparável à de não residente, sendo este facto geral veiculado pelas decisões do Tribunal de Justiça Europeu. Contudo, em muitos casos, tendo como referência, nomeadamente, o elemento teleológico da disposição de direito interno, o Tribunal de Justiça Europeu entendeu que residentes e não residentes podem estar em situações comparáveis […]. [D]eve considerar-se decisivo, para efeitos de comparabilidade, o facto de a lei portuguesa diferenciar expressamente, para efeitos de retenção na fonte, entre fundos de investimento residentes e não residentes, que não a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos seus investidores» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
· Quanto à inexistência de razões imperiosas de interesse geral (tornando inoperante qualquer derrogação à aplicação da liberdade fundamental preterida):
® Assentes na preservação da coerência do regime fiscal nacional:
«[N]o presente processo […], a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte […]. Consequentemente, não há uma relação direta […] entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo. A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 79 a 81 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
«Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) beneficiários, a situação dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação» – cfr. Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de setembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 093/19.7BALSB.
® Assentes na repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros visados:
«[…] [Q]uando um Estado-membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos […]. Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros também não pode ser acolhida» [sublinhado nosso] – cfr. Parágrafos 83 e 84 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
36. Chegados a este ponto, urge analisar a situação sob contenda.
37. O Requerente é um OIC sob a forma de fundo de investimento mobiliário (i.e., um “organisme de placement collectif en valeurs mobilières”, sob a forma de “fonds commun de placement”, cfr. alínea a) da matéria de facto provada), tendo sido constituído e operando ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC em valores mobiliários (cfr. alínea b) da matéria de facto provada), e foi transposta para a legislação portuguesa pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro.
38. Face à comum fonte normativa europeia – a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009 –, é possível inferir a similitude das regras aplicáveis à constituição e modus operandi dos OIC portugueses (residentes para efeitos fiscais em Portugal) e do Requerente (não residente em território nacional).[12]
39. A título adicional, extrai-se da matéria de facto provada ter o Requerente suportado IRC, no montante global de 194.914 EUR, mediante retenção na fonte de natureza liberatória, sobre dividendos de fonte portuguesa no montante global de 779.662 EUR (cfr. alíneas i) a m) da matéria de facto provada), não tendo neutralizado em França (i.e., no Estado de residência) tal carga tributária, por força do regime aplicável – nomeadamente: (i) da lei fiscal francesa, nos termos da qual o Requerente não está sujeito a imposto congénere ao IRC; e (ii) da CEDT Portugal/França, aplicável a situações de dupla tributação jurídica internacional, o que, no presente caso, não sucede, atenta a aludida não sujeição a imposto no Estado de residência.
40. Carece assim de fundamento a posição avançada pela Entidade Requerida, no sentido de o Requerente não ter logrado demonstrar a não dedução em França do imposto suportado em Portugal (cfr., nomeadamente, artigos 8.º e 56.º da resposta apresentada a 12 de maio de 2025).
41. Por outro lado, a alegada discrepância – aventada pela Entidade Requerida (cfr. artigos 6.º e 7.º da resposta apresentada a 12 de maio de 2025) – entre os montantes (dividendos e IRC) refletidos pelo substituto tributário na declaração “Modelo 30” (4.824.625,61 EUR e 1.206.156,40 EUR, respetivamente) e identificados pelo Requerente nos presentes autos (779.662 EUR e 194.914 EUR, respetivamente) reveste somenos importância, na medida em que estes quantitativos assumem uma ordem de grandeza inferior à daqueles.
42. Ademais, a Entidade Requerida não encetou quaisquer diligências junto do F..., S.A. com vista a dissipar as suas pretensas dúvidas, o que não pode deixar de merecer censura ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT e dos poderes inspetivos que lhe estão cometidos, nomeadamente ao abrigo do artigo 63.º, n.º 1, alínea d), da LGT.
43. Em face do exposto, afigura-se aplicável ao Requerente a jurisprudência acima identificada: o lugar da sua residência (França, ao invés de Portugal) determinou a tributação por si sofrida em sede de IRC, o que, nos termos supra mencionados, redunda numa discriminação (injustificada) contrária à liberdade circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE e ao princípio do primado do Direito da União Europeia previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP.[13]
44. Sendo certo irrelevar nesta sede, contrariamente à posição perfilhada pela Entidade Requerida (cfr., nomeadamente, artigo 30.º da resposta apresentada a 12 de maio de 2025), o regime de tributação aplicável aos titulares das respetivas unidades de participação, na medida em que «não há uma relação direta […] entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo» – cfr. Parágrafo 80 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds)[14].
45. Irrelevando de igual modo, ao arrepio da posição adotada pela Requerida (cfr., nomeadamente, artigos 25.º a 28.º da resposta apresentada a 12 de maio de 2025), a tributação dos OIC residentes em sede de tributação autónoma (cfr. artigos 22.º, n.º 8, do EBF e 88.º, n.º 11, do CIRC) e, bem assim, em sede de Imposto do Selo (“IS”) (cfr. Verba 29 da Tabela Geral do IS):
«[…] [I]mporta salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. Além disso, como salientou a advogada-geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402). Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes» – cfr. Parágrafos 53 e 56 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de março de 2022, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19 (Caso AllianzGi-Fonds).
46. Perante o exposto, este Tribunal Arbitral entende que o regime previsto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF atenta contra a liberdade de circulação de capitais plasmada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE e, desse modo, contra o princípio do primado do Direito europeu consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, inquinando de ilegalidade os atos tributários e em matéria tributária objeto dos presentes autos, determinando-se a sua anulação (bem como do despacho de indeferimento da reclamação graciosa contra aqueles interposta) e impondo-se, por via disso, a restituição do imposto (indevidamente) retido no montante de 194.914 EUR, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, da LGT.
47. Em consequência do deferimento de pretensão do Requerente quanto ao pedido de anulação dos atos de retenção na fonte e consequente reembolso do imposto indevidamente retido, haverá que aferir do pedido formulado pelo Requerente de pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, que o Requerente entende ser de computar desde a data da retenção na fonte em referência.
48. No que respeita ao direito à perceção de juros indemnizatórios, o Supremo Tribunal Administrativo emitiu recentemente pronúncia uniformizadora de jurisprudência mediante a prolação, no âmbito do processo n.º 078/22.6BALSB, do Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 28 de maio de 2025.
49. Neste aresto, o Supremo Tribunal Administrativo entende:
«[…] [A] impugnação judicial das retenções na fonte em causa está sujeita à reclamação administrativa necessária (artigo 132.º, n.os 3 e 4, do CPPT) […]. [A] obrigação de pagamento de juros indemnizatórios não depende apenas da prova do prejuízo do contribuinte; importa também que tais prejuízos, derivados de atuação pública ilegal, sejam imputáveis à Administração Fiscal. Tal nexo de imputabilidade em relação à Administração Fiscal apenas se verifica quando ocorre o indeferimento do meio administrativo impugnatório das retenções na fonte em apreço […]. É que, através da instauração do meio impugnatório gracioso, foi ativado o poder-dever da Administração Fiscal de, no quadro do exercício dos poderes revisivos do ato tributário, corrigir as retenções na fonte contestadas, conformando-as com o ordenamento jurídico da União Europeia […].
Perante a desaplicação de norma legal com fundamento na sua desconformidade com o Direito da União Europeia, e perante a inerente anulação das retenções na fonte indevidas […], a consequente obrigação da AT de reconstituição da situação ex ante impõe, não apenas a restituição dos montantes indevidamente pagos a título de imposto retido, mas também o pagamento de juros indemnizatórios, computados desde a data do indeferimento, expresso ou tácito, do meio impugnatório administrativo intentado contra as retenções na fonte indevidas até à data do processamento da respetiva nota de crédito».
50. Constata-se, pois, ter o Supremo Tribunal Administrativo mantido a posição que há muito sufraga e de que é reflexo o Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário de 29 de junho de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 093/21.7BALSB:
«Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, n.os 1 e 3, da LGT».
51. Com efeito, de acordo com a referida posição, aquando da emissão (por substituto tributário) de ato de retenção na fonte indevido, o contribuinte tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da Entidade Requerida na aceção do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, a partir do momento em que esta se pronuncie (de forma tácita ou expressa) desfavoravelmente à ilegalidade daquele ato tributário.
52. Sobre o momento do início da contagem dos juros não se reportar à data do pagamento das retenções na fonte, mas à data da decisão administrativa ilegal ou ao termo do prazo para a sua prolação (na hipótese de indeferimento tácito), o Supremo Tribunal Administrativo já teve oportunidade de salientar não ser esta posição jurisprudencial atentatória da tutela ressarcitória decorrente do artigo 22.º da CRP (nem da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e do princípio do primado do Direito da União Europeia plasmado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP), tendo sustentado a este respeito como se segue:
«Não parece […] que algum rigor na interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços”, enquanto pressuposto do direito a juros indemnizatórios – conducente a que tal erro apenas se tenha por verificado, nos casos em que o imposto foi liquidado por substituto ou em que foi liquidado pela Administração nos termos declarados pelo contribuinte, quando a Administração se pronunciou ou teve a oportunidade de se pronunciar, corrigindo, a ilegalidade e o não fez –, ponha em causa a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto no artigo 22.º da CRP e se afigure discriminatório e propulsor da violação do princípio da livre circulação de capitais e do primado do direito comunitário sobre o direito interno, constitucionalmente assegurado. É que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios é apenas uma via expedida de assegurar a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, sem contender com a via tradicional de assegurar tal direito» [sublinhados nossos] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de março de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 0405/14.
«[…] [A] Constituição e a lei não exigem que a reparação de prejuízos causados por atos ilegais tenha de ser assegurada através do pagamento de juros indemnizatórios, antes esta reparação pode ser obtida quer para além do montante dos juros, desde que se comprovem prejuízos superiores, quer nos casos em que não sejam devidos juros mas haja prejuízos imputáveis à atuação administrativa, sendo contudo, para tal necessário que o lesado intente ação própria para esse fim, na qual demonstre a existência do direito a essa reparação […]» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de novembro de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 0822/09-30.
53. Assim, se o Requerente identificar prejuízos adicionais, sempre poderá aceder ao seu ressarcimento por via da correspondente ação indemnizatória. Em conformidade, claudica o entendimento perfilhado pelo Requerente quanto ao dies a quo do seu direito à perceção de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT (i.e., a partir das retenções indevidas, cfr. artigos 115.º a 150.º do pedido de pronúncia arbitral).
54. Neste contexto, o presente Tribunal Arbitral não ignora a jurisprudência europeia sobre a presente temática – nomeadamente, o aresto referenciado pelo Requerente [Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 18 de abril de 2013, proferido no âmbito do processo n.º C-565/11 (Caso Irimie)] e, bem assim, o Acórdão de 8 de junho de 2023, proferido no âmbito do processo n.º C-322/22 (Caso E.), e o Acórdão de 13 de janeiro de 2022, proferido no âmbito dos processos apensos C-415/20, C-419-20 e C-427/20 (Caso Gräfendorfer Geflügel | Flexi Montagetechnik).
55. Porém, desses arestos não é possível inferir, tout court, que a propositura de uma ação de responsabilidade civil, eventualmente nos termos da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro – destinada ao ressarcimento residual (por exemplo: sob a forma de pagamento de juros) dos danos causados pela atuação do substituto tributário no período compreendido entre a retenção indevida e a pronúncia (tácita ou expressa) da Entidade Requerida – seria, por si só, atentatória do princípio da efetividade.
56. Para se alcançar tal desiderato, seria indispensável demonstrar a dificuldade excessiva subjacente ao recurso a essa via processual. I.e., não seria bastante, na ótica do Tribunal Europeu, a demonstração da mera dificuldade, sempre se imporia a prova cabal de um grau anormal de dificuldade (que, no âmbito dos presentes autos, o Requerente não logrou demostrar):
«Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União […]» [sublinhado e negrito nossos] – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 18 de abril de 2013, proferido no âmbito do processo n.º C-565/11 (Caso Irimie).
57. Ademais, uma coisa é não ter, de todo, direito a juros indemnizatórios; outra é tê-lo, podendo este operar por duas vias cumulativas – uma, a título principal, aquando da anulação dos atos tributários, e, outra, a título residual, caso subsistam danos não cobertos, através de um meio processual alternativo (a ação de responsabilidade civil).
58. Por outro lado, e contrariamente à posição defendida pelo Requerente (cfr. artigo 141.º do pedido de pronúncia arbitral), o Tribunal Arbitral entende que os contribuintes não residentes, nesta matéria dos juros, não se encontram em desvantagem com os contribuintes residentes, estando antes em “pé de igualdade”.
59. Com efeito, quer nos casos de retenção na fonte (comummente aplicáveis a entidades não residentes) quer nos casos de autoliquidação (tipicamente aplicáveis a entidades residentes), no que concerne ao pagamento de juros indemnizatórios, o Supremo Tribunal Administrativo adota solução idêntica – só são devidos juros indemnizatórios, na aceção do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, a partir da pronúncia (silente ou expressa) da Entidade Requerida:
«Sobre esta problemática, está pacificado na jurisprudência deste STA […] o entendimento de que, não obstante o erro da autoliquidação seja imputável ao contribuinte, esse erro passa a ser imputável à Administração Tributária a partir do momento em que, tendo na sua posse os elementos necessários, deveria ter proferido decisão a corrigir o erro e mantém a situação de erro e pagamento indevido do imposto […]. Ou seja, em caso de procedência da impugnação judicial, a AT está obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato objeto do litígio, tal dever compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios» [sublinhado nosso] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de dezembro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 01098/16.5BELRS.
60. Aqui chegados, sob evocação do desiderato uniformizador ínsito no artigo 8.º, n.º 3, do CC, o Tribunal Arbitral adere assim à posição (há muito) sufragada por aquele Tribunal Superior em matéria de juros indemnizatórios. Pelo que, o Requerente tem direito à perceção de juros indemnizatórios sobre o montante de 194.914 EUR a partir da prolação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa (18 de novembro de 2024) e até à emissão das respetivas notas de crédito.
VI. Decisão
61. Por tudo quanto se expôs, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente, declarando-se a ilegalidade – com fundamento na preterição da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE e, concomitantemente, do princípio do primado do Direito europeu sobre o Direito interno previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP – das liquidações de IRC por retenção na fonte, relativas ao período de tributação de 2022, no montante total de 194.914 EUR (cento e noventa e quatro mil, novecentos e catorze euros), assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, anulando-se, por via disso, os aludidos atos tributários e em matéria tributária, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
62. Ademais, julga-se parcialmente procedente o pedido de condenação da Entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios na aceção do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, sendo estes devidos (sobre o montante de 194.914 EUR) desde a prolação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa (18 de novembro de 2024) até à emissão das respetivas notas de crédito.
VII. Valor da causa
63. Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT), e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“Regulamento de Custas”), fixa-se o valor do processo (da causa) em 194.914 EUR (cento e noventa e quatro mil, novecentos e catorze euros).
VIII. Custas arbitrais
64. Condena-se a Requerida nas custas do processo, as quais perfazem 3.672 EUR (três mil, seiscentos e setenta e dois euros), em consonância com os artigos 527.º, n.º 1, do CPC (ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT), 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAMT e, bem assim, com os artigos 3.º, n.º 1, e 4.º, n.os 1 e 5, do Regulamento de Custas e Tabela I anexa a este.
Lisboa, 6 de outubro de 2025
O Tribunal Arbitral Coletivo
Alexandra Coelho Martins
(Árbitra Presidente)
Sílvia Oliveira
(Árbitra Adjunta)
Sónia Fernandes Martins
(Árbitra Adjunta e Relatora)
[1] De um total de 133.000.000 ações [cfr. página 11 do Relatório e Contas Individuais da D..., SGPS, S.A., disponível em ...
[2] De um total de 205.131.672 ações [cfr. página 3 do Relatório e Contas Individuais da E...i, SGPS, S.A., disponível em ...f].
[4] Esta pronúncia uniformizadora tem sido adotada nos sequentes acórdãos sobre o tema. A título exemplificativo: Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de julho de 2024, proferidos no âmbito dos processos n.os 0758/19.3BELRS, 0760/19.5BELRS, 02467/21.4BELRS; de 29 de maio de 2024, proferidos no âmbito dos processos n.os 0755/19.9BELRS e 0806/21.7BELRS; de 2 de julho de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 01665/20.2BELRS.
[5] Quanto ao conceito de discriminação, vide BEN TERRA e PETER VATEL, European Tax Law, Wolters Kluwer, 2012, pp. 58 e 63, e, bem assim, NIELS BAMMENS, The Principle of Non-discrimination in International and European Tax Law, IBFD Doctoral Series, 2012, p. 9.
[6] Vide, também, ANA PAULA DOURADO, JESSICA M. MÜLLER, LEIDSON RANGEL e CHRISTOPH SPENGEL, Tax Neutrality Treatment of Investment Funds in the European Union; World Tax Journal, Volume 16, Issue 3, agosto de 2024, p. 451 (tabela 1).
[7] Como é o caso do Requerente.
[8] cfr. alínea f) da matéria de facto provada.
[9] «Em direito francês, os OICVM agrupam as sociedades de investimento de capital variável (SICAV) e os fundos comuns de investimento (FCI). Por força do artigo 208.º, 1.º bis A, Código Geral dos Impostos (code général des impôts, a seguir “CGI”), as SICAV estão isentas do imposto sobre as sociedades em relação aos lucros realizados no âmbito do seu objeto legal. Quanto aos FCI, a sua qualidade de copropriedade coloca-os de pleno direito fora do âmbito de aplicação do imposto sobre as sociedades» [sublinhado nosso] – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de maio de 2012, proferido no âmbito dos processos apensos C-338/11 a C-347/11 (Caso Santander Asset Management).
[10] Nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, «[…] são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros […]». A liberdade de circulação de capitais opõe-se assim a tratamentos discriminatórios suscetíveis de demover determinado sujeito/entidade de investir noutro Estado-membro – cfr., a título de exemplo, Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 11 de outubro de 2009, 10 de abril de 2014, e 2 de junho de 2016, respetivamente proferidos no âmbito dos processos n.os C-493/09 (Caso Comissão vs. Portugal), C-190/12 (Caso Emerging Markets Series) e C-252/14 (Caso Pensioenfonds Metaal en Techniek).
[11] No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de abril de 2014, proferido no âmbito do processo n.º C-190/12 (Caso Emerging Markets Series).
[12] «[…] [T]he UCITS Directive is one of the main, if not the main, European framework covering collective investment schemes. The UCITS Directive stipulates common rules to be used to determine the types of investment funds. It envisages the approximation of the conditions of competition for UCITS at the EU-level, making it easier for a UCITS to market its units in other Member-States and it adopts, as its cornerstone, the principle of mutual recognition, which grants investment funds a passport to invest in any other Member State» [tradução nossa: A Diretiva OICVM é um dos principais, senão o principal, quadro jurídico europeu abrangendo os organismos de investimento coletivo. A Diretiva OICVM estabelece regras comuns para determinar os tipos de fundos de investimento. Prevê a aproximação, ao nível da UE, das condições de concorrência aplicáveis aos OICVM, facilitando que um OICVM comercialize as suas unidades de participação noutros Estados-membros, e adota, como pedra angular, o princípio do reconhecimento mútuo, que confere aos fundos de investimento um passaporte para investir em qualquer outro Estado-membro – cfr. MARIO TENORE, Investment Fund Taxation (Domestic Law, EU Law, and Double Taxation Treaties), Chapter 7: Investment Fund Taxation and Fundamental Freedoms: Four Approaches to Comparability, Wolters Kluwer, 2018, pp. 153 e 154.
[13] «Não obstante o tratado não se referir à questão da primazia do direito da União Europeia face ao direito nacional, esta questão resulta do posicionamento do TJ, apresentado muito claramente no caso Costa v ENEL [nota de rodapé 37: «De 15 de julho de 1964, proc. C-6/64»]. Firmou-se, por conseguinte, a partir desse acórdão, a regra de que sempre que haja um conflito entre o direito interno e o direito da União Europeia, prevalece este último, independentemente de a disposição nacional ser anterior ou ter surgido ulteriormente à norma da União Europeia» – cfr. JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, Direito Fiscal da União Europeia: tributação direta, Almedina, 2018, p. 29. No mesmo sentido, vide ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, Almedina, 1997, pp. 125 e 126, e, bem assim, ALBERTO XAVIER, Direito Tributário Internacional, Almedina, 2007, p. 216.
[14] Em sentido similar, na legislação fiscal francesa, vide parágrafos 28 a 32 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de maio de 2012, proferido no âmbito dos processos apensos C-338/11 a C-347/11 (Caso Santander Asset Management): «Quando um Estado-membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OICVM beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório ou não da referida regulamentação […]. Acresce que […], a isenção fiscal de que beneficiam os OICVM residentes não está subordinada à tributação dos rendimentos distribuídos aos seus detentores de participações […]. A regulamentação nacional em causa nos processos principais não estabelece assim nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OICVM de capitalização – sejam estes residentes ou não residentes – e a situação fiscal dos seus detentores de participações. Quanto aos OICVM que procedem à distribuição dos dividendos recebidos, a regulamentação em causa também não tem em conta a situação fiscal dos seus detentores de participações». Vide, ainda, neste contexto, MARIO TENORE, Investment Fund Taxation (Domestic Law, EU Law, and Double Taxation Treaties), Chapter 7: Investment Fund Taxation and Fundamental Freedoms: Four Approaches to Comparability, Wolters Kluwer, 2018, pp. 149 e 150, e, bem assim, ANA PAULA DOURADO, JESSICA M. MÜLLER, LEIDSON RANGEL e CHRISTOPH SPENGEL, Tax Neutrality Treatment of Investment Funds in the European Union; World Tax Journal, Volume 16, Issue 3, agosto de 2024, p. 449.